Introdução
Ferdinand LaSalle e Konrad Hesse são notórios pensadores do Direito Constitucional, que, em seus estudos, conceberam o conceito de Constituição de formas diversas. O objetivo do presente trabalho é identificar pontos de convergência e divergência entre suas teorias, de forma a buscar maneiras de melhor entender e estudar a Lei Maior. Ao final, pretende-se ainda compreender qual das duas abordagens melhor se aplica à situação constitucional brasileira.
Desenvolvimento
Ferdinand LaSalle, em conferência ocorrida em 1862, propõe-se a encontrar o verdadeiro significado da Constituição. Somente tendo esse conhecimento, segundo o autor, é que poderíamos julgar se uma Constituição é boa ou ruim, pois dela é que “nascem a arte e a sabedoria constitucionais.” Para chegar então à essência do conceito, LaSalle faz diversas indagações, para as quais apresenta respostas exemplificando-as com fatos históricos da Prússia.
O que diferencia a Constituição das leis comuns é seu caráter basilar em relação ao restante do ordenamento jurídico, obrigando as outras leis a ser necessariamente o que são, não podendo ser de outro modo. A Constituição é uma força ativa, pois é, em essência, resultado dos fatores reais de poder presentes na sociedade.
LaSalle propõe uma situação hipotética em que tivessem sido queimadas todas as leis da Prússia, fazendo-se necessário decretar novas leis. O autor demonstra que essas novas leis que seriam decretadas não poderiam ser diferentes do resultado dos fatores reais de poder da sociedade, indicando que o monarca, a aristocracia, a grande burguesia, os banqueiros, a pequena burguesia e a classe operária são todos fragmentos da Constituição. Passando de uma situação hipotética para a realidade, LaSalle indica o sistema eleitoral de três classes da Prússia como a consolidação dos fatores reais de poder em fatores jurídicos.
Enfatiza-se o papel importante do exército como instrumento do poder político do rei. O exército é nomeado pelo rei e somente a ele tem de prestar contas, ou seja, está às margens da Constituição. Mesmo que o poder da nação seja mais numeroso, o do exército ainda se sobressai, uma vez que é organizado, ao contrário do povo.
Sendo assim, a Constituição não é uma prerrogativa dos tempos modernos, pois em qualquer nação e a qualquer tempo, existiram fatores reais de poder e, portanto, uma Constituição real e efetiva. O que nem sempre existiu foi a Constituição escrita em folha de papel. De acordo com LaSalle, a aspiração à uma Constituição escrita surge de transformações que afetam os fatores reais de poder. Revoluções trazem a necessidade de reinventar as normas de direito público.
Uma Constituição escrita é considerada boa e duradoura por LaSalle quando corresponde à Constituição real, refletindo os fatores reais de poder que regem o país. Havendo conflito entre a Constituição real e a Constituição escrita, esta sucumbirá àquela. La Salle exemplifica de forma interessante a contradição entre a Constituição real e Constituição folha de papel: tem-se uma macieira no quintal em cujo tronco há um papel identificando-a como uma figueira. A árvore, no entanto, não deixará de ser uma macieira somente pelo fato de haver nela uma inscrição que diz o contrário, e quando a planta produzir maçãs em vez de figos ficará evidente a fantasia. A Constituição, mesmo que a folha de papel diga diferente, continuará sendo o que ela realmente é. LaSalle entende, portanto, que os problemas constitucionais são problemas de poder, e não problemas de direito.
Exemplo disto foi a Constituição de 1848 da Prússia, que, embora proclamada pelo rei, fazia diversas concessões aos interesses da Assembleia constituinte. Por não corresponder aos fatores reais de poder, ela foi modificada inúmeras vezes, inclusive por meio sistema de três grupos eleitores mencionado anteriormente.
Por considerar o problema constitucional um problema essencialmente político, o constitucionalista questiona e eficácia das normas. Seriam as normas então simplesmente uma ferramenta de manutenção do status quo das classes dominantes em relação às classes mais fracas? Essa concepção me parece questionar o Direito como um todo e excluir completamente o dever ser. Se as normas constitucionais, que são o fundamento de todo o ordenamento jurídico, refletem simplesmente o que as coisas são, e, quando não o fazem, são substituídas, então qual seria a utilidade do Direito? Seria uma situação ideal, como entende LaSalle, a constituição escrita refletir os fatores reais de poder? Isso não somente contribuiria para manter as desigualdades, em vez de auxiliar para que a divisão de poderes fosse mais igualitária?
Konrad Hesse, em contraponto à tese de LaSalle, entende que considerar o poder superior à força das normas jurídicas – fazendo com que a normatividade se submeta à realidade fática e implicando na sucumbência da Constituição jurídica à Constituição real – é negar a própria Constituição jurídica e o direito constitucional como ciência jurídica. Se as normas constitucionais nada mais seriam que a expressão da realidade fática, restaria ao direito constitucional justificar as relações de poder dominantes. De acordo com Hesse, conceber a existência, ainda que de forma limitada, de uma força normativa da Constituição, capaz de motivar a vida do Estado, é essencial para entender o Direito Constitucional como uma ciência normativa e o conceito de Constituição jurídica.
Primeiro, há que se considerar a Constituição jurídica e a realidade sócio-política em sua reciprocidade. Não se pode isolar norma de realidade, o ser do dever ser. Hesse, portanto, vai de encontro a teses que atribuem exclusiva força à realidade, como a de La Salle, bem como às que atribuem exclusiva força à norma jurídica. A Constituição certamente é influenciada pelas condições históricas e forças sociais e políticas de sua vigência, mas vai, além disso, buscando imprimir ordem e conformação a essa realidade política e social por meio de sua pretensão de eficácia. A pretensão de eficácia da Constituição somente pode ser realizada se levar em conta a realidade concreta de seu tempo.
Dessa forma, “Constituição real” e “Constituição jurídica” se coordenam reciprocamente, mas existem separadamente uma da outra. A força vital e a eficácia da Constituição jurídica assentam-se na adaptação à natureza singular do presente, compondo uma “ordem geral objetiva do complexo das relações de vida”. A Constituição ela própria se transformará em força vital quando houver a vontade e a disposição de concretizar a ordem e as tarefas por ela impostas – se houver vontade de Constituição.
A Constituição jurídica não apenas reflete a realidade histórica, mas também ordena e conforma a realidade, convertendo-se em força ativa. Quanto maior a convicção na inviolabilidade da Constituição, ou seja, quanto maior a vontade de Constituição, maior será a intensidade de sua força normativa.
A Constituição jurídica não seria, portanto, uma simples folha de papel, como defendeu LaSalle. Em situação de conflito entre a Constituição jurídica e a Constituição real, não necessariamente a Constituição jurídica será a parte mais fraca. Somente quando certos pressupostos não forem cumpridos é que os problemas constitucionais, enquanto questões jurídicas, converter-se-ão em questões de poder, e a Constituição jurídica sucumbirá em face da real. Cabe à ciência do Direito Constitucional evitar que as questões constitucionais se transformem em questões de poder, por meio da preservação da vontade de constituição.
Hesse, ao aliar ser e dever ser no bojo constitucional, confirma o papel da norma fundamental no sentido de condicionar a realidade para assim promover a mudança. Tal visão imprime ao Direito Constitucional uma maior importância, indo além de uma simples justificação do status quo.
Dessa maneira, é possível identificar que a concepção de Constituição de Konrad Hesse melhor representa a Constituição Brasileira de 1988. Essa Constituição, também conhecida como “Constituição cidadã”, tem essência programática, pois, apesar de haver certa desarmonia entre o seu texto e a realidade política e social, ela estabelece metas de cumprimento, buscando, portanto, a conformação da realidade social e política à norma. Trata-se das questões constitucionais como problemas jurídicos. A Constituição tem força normativa mesmo que não corresponda à realidade, e fundamenta todo o restante do ordenamento jurídico.
Conclusão
É observável que ambos os autores abordam as noções de uma constituição jurídica e de uma constituição real. La Salle defende que a constituição jurídica só existe se reflete a realidade, caso contrário se torna uma mera folha de papel. Por outro lado, Hesse acredita em um condicionamento da realidade à constituição jurídica, aliando o ser ao dever ser. O que se torna claro é que não se pode entender a Constituição como um mero conjunto estático de leis, há que levar em conta os impulsos políticos, sociais e econômicas que atuam sobre esse conjunto de leis, bem como as consequências, também políticas, sociais e econômicas, que ele imprime sobre a realidade.
Referências
LA SALLE, Ferdinand. A essência da Constituição. 6ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2001.
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução: Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Editora Sérgio Antônio Fabris:1991.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LUISA, Ana. Análise comparativa entre as concepções de Constituição em LaSalle e Hesse Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 mar 2017, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/49758/analise-comparativa-entre-as-concepcoes-de-constituicao-em-lasalle-e-hesse. Acesso em: 23 dez 2024.
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