RESUMO: O presente artigo objetiva incitar a reflexão dos direitos das famílias, tendo por base a nova ordem constitucional e sua influência no ordenamento jurídico brasileiro. Iremos abordar a respeito da socialização, o princípio da dignidade da pessoa humana e sua influência no Direito Civil perante a Constituição Federal e, principalmente suas consequências no Direito de Família.
Palavras-chave: Constitucionalização da Lei. Direito Civil. Direito de Família.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Desenvolvimento. 3. Conclusões. 4. Referências.
1. Introdução
Não se pode negar que, principalmente no século XIX, a relação entre Constituição e Código Civil era muito precisa. Formavam dois mundos, e não se tocavam. Um determinava as normas públicas, regendo a relação entre Estado e particulares; o outro entrava na relação entre particulares.
Assim, andavam paralelos, como um universo de normas que não se relacionavam a não ser diante do aspecto formal, ou seja, quando uma norma constitucional superveniente tinha sentido absolutamente contrário em face da norma civil. Neste caso, ocorria o fenômeno da revogação pela incompatibilidade de norma de hierarquia inferior diante da norma de hierarquia superior.
Um dos fatores que muito contribuía para o fortalecimento desta separação era a dicotomia, até mesmo exaustiva e forçada, que existia entre os Direitos Público e Privado. Acreditava-se que o Direito Privado não possuía caráter social e assim sendo, as normas se tornavam incomunicáveis.
Diante disto, o Código Civil surge em 1916 com a missão de garantir os direitos e formalizar as relações entre particulares. Neste sentido, e levando em conta o momento histórico de sua criação, nasce pautado no patrimonialismo e individualismo, que muito será debatido no decorrer deste estudo.
Um pouco mais de setenta anos depois, nasce a Constituição Federal de 1988. Contrariando as demais Constituições, esta se mostra extremamente analítica, e acaba por adentrar em temas que nunca haviam sido tratados em outras Constituições.
Assim, passa a Constituição a tratar de temas que cabia antes exclusivamente ao Código Civil, e a incompatibilidade entre as normas de um e de outro acarreta séria crise jurídica. Sabe-se, como já dito anteriormente, que as normas constitucionais são hierarquicamente superiores às civis e assim deve prevalecer diante desta. Mas neste ponto surge a grande questão: para que então manter em vigor este Código, agora não ultrapassado apenas pela natural transformação social, mas também desatualizado com a Magna Carta.
O direito civil passa então a ter de obedecer a novos princípios. Não se permitia mais falar em Direito Público e Direito Privado. A relação entre eles se torna indivisível. Assim, o Código Civil passa a ter de ser lido em consonância com a Constituição. Tem-se, portanto, o início o Direito Civil Constitucional. O Direito Civil passa a ser um direito constitucionalizado, quer nas regras, quer nos princípios, ambos compondo a categoria das normas.
Muitas alterações se operam, e aqui serão tratadas, merecendo atenção especial as do Direito de Família. É uma transformação fundamental.
A família matrimonializada, hierarquizada, transpessoal e de natureza patriarcal, com número expressivo de filhos, cede espaço a um texto constitucional que mantém o casamento, mas retira-lhe a exclusividade, para reconhecer que também há família quando não há casamento, que ao direito de casar corresponde o direito de não casar e de não permanecer casado. O afeto supera o patrimônio, o Ser coloca em segundo plano o Ter.
Neste intervalo, o Código Civil de 2002. Não iremos questionar se verdadeiramente ele já nasceu ou não ultrapassado, mas serão tratadas as significativas alterações a que ele deu origem. Com toda a certeza, este foi um marco no Direito Civil e merece todo o nosso louvor.
É o nascimento de um novo Direito Civil, de um novo Direito de Família. Ainda hoje não se instalou por completo, ainda faz surtir perplexidades e também paradoxos.
Não é a sociedade, contudo, que deve se adaptar ao Direito. O Direito sempre deve se adaptar a sociedade. Nesse aspecto, merecem aplausos brilhantes decisões jurisprudenciais e opiniões doutrinárias, que se mostram à frente de nosso tempo, e que neste trabalho serão citadas. É o Direito se mostrando, é a prova que o Direito Civil pode –e deve ser – um Direito Constitucional.
2.Desenvolvimento
O Código Civil de 1916 foi um código de sua época e buscou atender aos ideais almejados naquele momento histórico, sofrendo grande influência das ideias iluministas e da sociedade burguesa. Buscou, a todo o momento, fortalecer e evidenciar a dicotomia entre as esferas do Direito Público e do Direito Privado.
Foi estruturado essencialmente nos elementos propriedade, autonomia da vontade e família. Assim manifesta César Fiúza (2003):
As instituições de Direito Civil foram tradicionalmente aprisionadas em quatro grandes ramos, quais sejam, o Direito das Obrigações, o Direito das Coisas, o Direito de Família e o Direito das Sucessões. Assim está disposta a matéria das grandes codificações dos séculos XIX e XX, assim é ensinada nos cursos de Direito. Na verdade, procedendo a um corte epistemológico, descobre-se que o sustentáculo desses quatro grandes ramos é, tradicionalmente, a autonomia da vontade, a propriedade e a família.
O Código inspirou-se na autonomia da vontade e o diploma possuía inspiração estritamente individualista e garantia, por consequência, o direito de propriedade e de liberdade contratual, como frutos do liberalismo econômico dominante. Até mesmo o mais pessoal dos direitos civis, o da família, era marcado pelo predomínio do patrimônio.
O direito de família do Código Bevilácqua se assentava em um arcabouço patriarcalista e hierarquizado. Não era o afeto ou o amor elementos preponderantes para a caracterização da família. O valor jurídico pautava-se todo no patrimônio. Assim, o matrimônio fazia surgir laços de sangue e a monogamia visava proteger os bens adquiridos.
O patrimônio era a dimensão econômica da personalidade; garantia de proteção e preservação do indivíduo frente ao Estado; o sujeito somente existia na medida em que possuía e se possuía; era protegido enquanto proprietário, contratante, marido ou herdeiro.
De fácil verificação que os valores existenciais foram relegados a um segundo plano no Código Civil de 1916 em face da preponderância do patrimonialismo, da propriedade. Os valores humanos só começaram a destacar-se com o advento da Constituição Federal de 1988 e a instauração do Estado Democrático de Direito, que erigiu a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental da República, momento em que os institutos jurídicos passaram a ser funcionalizados para a promoção do desenvolvimento pleno do homem.
Grandes momentos históricos ocorrem e o sustentáculo do liberalismo é enfraquecido gradativamente. É a influência marcante da I Guerra Mundial e da Revolução Industrial. O Estado liberal vai se enfraquecendo em decorrência do surgimento do Estado Social.
O Estado intervencionista modifica as funções do Direito Civil e a moldura individualista começa a não mais se enquadrar em uma sociedade que passa a exigir a permanente integração do homem. O Direito Privado se apropria de instrumentos tradicionalmente de Direito Público. As normas constitucionais passam a ter aplicação direta nas relações jurídicas privadas.
O Direito Civil adquiriu novos contornos e seus institutos basilares foram repaginados. A base passou a ser o homem e sua dignidade. Todo o resto deve estar funcionalizado para promoção do desenvolvimento do ser humano em todos os seus aspectos.
O dogma da autonomia da vontade é superado nas relações contratuais, colocando-se de lado o princípio liberal de igualdade formal para permitir a intervenção estatal, regulando desequilíbrios e disparidades.
A família se multiplicou, se pluralizou, se repersonalizou. Ao Estado não mais interessa tutelar simplesmente os interesses de um grupo organizado como esteio da sociedade; procura-se proteger a família como ambiente ideal para o surgimento de condições que permitam o pleno desenvolvimento da pessoa humana.
Passada a necessidade de se positivar as normas sociaise, ainda mais, estabelecida verdadeira crise entre Direito Público e Privado, passou-se a questionar a estaticidade do Código Civil. Ele não consegue acompanhar o desenvolvimento da sociedade e suprir suas carências. Isso faz com que, ao lado da codificação privada, ocorra uma explosão legislativa, com o objetivo de suprir eventuais deficiências que emergem com o próprio surgimento da codificação. A história nos demonstra a falibilidade do sistema codificado do Positivismo Jurídico, pois a sociedade humana é dinâmica, mutante, e força o Direito a acompanhar suas transformações.
Neste sentido, o Código Civil de 1916 teve sua ideologia fundante - completude, centralidade e unicidade - abalada com poucos anos de vigência. Já nas décadas de 20 e 30, começaram a surgir leis extravagantes, frutos do crescente intervencionismo econômico e do dirigismo contratual do Estado, no intuito de disciplinar matérias não dispostas no corpo codificado.
Disciplinas que, longe de estarem revestidas de qualquer caráter emergencial, tratavam simplesmente de matérias não previstas pelo legislador codificador. Uma legislação extravagante que regulava novos institutos – surgidos com a evolução da sociedade – e que possuíam alto grau de especialização, formando, paralelamente ao Código, um direito especial. Com o tempo, essa legislação extravagante passou a ser conhecida como legislação especial e representou profunda alteração na dogmática do Código Civil.
Este movimento forçou, então, a abertura do sistema. Surgiram outros sistemas, menores e específicos, que, por sua vez, se tornaram o centro para cada um daqueles setores que passaram a regulamentar de forma interdisciplinar, pois traziam não só normas de direito civil, as de outros campos, tais como penal, administrativo, dentre outros. E, assim, conforme Ricardo Luís Lorenzetti (1998), em Fundamentos do Direito Privado:
os códigos perderam a sua centralidade, porquanto esta se desloca progressivamente. O Código é substituído pela constitucionalização do Direito Civil, e o ordenamento codificado pelo sistema de normas fundamentais.
O Código Civil vai, então, perdendo sua importância até mesmo nas relações privadas.
A Constituição Federal, mais do que nunca, é a norma fundamental e preponderante. Apesar de ainda existir certa relutância por parte daqueles que insistem em manter a separação entre direitos particulares e privados, o Direito Civil se transforma, acompanhando a necessidade social.
Hoje, e devido à inegável influência dos princípios constitucionais no Direito Civil, não se pode mais falar em existência de direito civil. Um novo direito vem se consolidando: o Direito Civil Constitucional.
Assim assinala Francisco Amaral (2006), no artigo publicado “Racionalidade e sistema no direito civil brasileiro”, sobre o fenômeno da constitucionalização do Direito Civil:
essa constitucionalização significa que os princípios básicos do direito privado emigram do Código Civil para a Constituição, que passa a ocupar uma posição central no ordenamento jurídico, assumindo o lugar até então privilegiadamente ocupado pelo Código Civil, transformando-se este num satélite do sistema constitucional.
Não há mais espaço para a separação de Direito Público e Direito Privado. Em um Estado Democrático de Direito, que tem como fundamento a dignidade da pessoa humana e valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, este antagonismo perde completamente o seu sentido.
Os valores existenciais, e não mais os patrimoniais destacados no Código Civil de 1916, passam a ocupar o vértice do ordenamento jurídico. A pessoa humana é o valor fundamental da nova realidade e todos os instrumentos jurídicos devem ser funcionalizados com o objetivo de promover o pleno e integral desenvolvimento do homem.
Embora seja um extenso trecho, convém aqui expor o ponto de vista do grande doutrinador Caio Mário da Silva Pereira (2004), em suas Instituições de Direito Civil, trecho que sintetiza perfeitamente esta evolução do Direito:
Visualizando o Direito como norma de conduta, como regra de comportamento, e esquivando-me os excessos do Positivismo Jurídico, sempre conclamei o estudioso a buscar conciliá-lo com as exigências da realidade, equilibrando-a com o necessário grau de moralidade e animando-a com o anseio natural de Justiça – este inato ao ser humano.
Não se pode, em verdade, ignorar o Direito positivo, o direito legislado, a norma dotada de poder cogente. Ele é necessário. Reprime os abusos, corrige as falhas, pune as transgressões, traça os limites à liberdade de cada um, impedindo a penetração indevida na órbita das liberdades alheias. Não é aceitável, porém, que o Direito se esgote na manifestação do poder estatal. Para desempenhar a sua função básica de adequar o homem à vida social, como eu o defini, há de ser permanentemente revitalizado por um mínimo de idealismo, contribuindo para o equilíbrio de força e a harmonia das competições.
Assiste-se, por outro lado, à evolução do direito legislado, na expressão morfológica de sua elaboração, como tendente a perder cada vez mais o exagerado tecnicismo de uma linguagem esotérica, posta exclusivamente ao alcance dos iniciados. Sem se desvestir de uma linguagem vernácula, há de expressar-se de tal modo que seja compreendido sem o auxílio do misticismo hermenêutico dos especialistas.
Tomando como ponto de partida o Código Civil de 1916, sua preceituação e a sua filosofia, percebe-se que o Direito Civil seguiu por décadas rumo bem definido. Acompanhando o desenvolvimento de cada instituto, vê-se que, embora estanques, os segmentos constituíram uma unidade orgânica, obediente no seu conjunto a uma sequência evolutiva uniforme.
No entanto, as últimas décadas, marcadas pela redemocratização do País e pela entrada e vigor da nova Constituição, deflagraram mudanças profundas em nosso sistema jurídico, atingindo especialmente o Direito Privado.
Diante de tantas transformações, passei a rever a efetiva função dos Códigos, não mais lhes reconhecendo a missão tradicional de assegurar a manutenção os poderes adquiridos, nem tampouco seu valor histórico de direito Comum. Se eles uma vez representaram a consagração da previsibilidade, hoje exercem, diante da nova realidade legislativa, um papel residual.
Como ressalvei no primeiro volume de minhas Instituições, buscando subsídios e Lúcio BITTENCOURT, “a lei contém na verdade o que o intérprete nela enxerga, ou dela extrai, afina em essência com o conceito valorativo da disposição e conduz o Direito no rumo evolutivo que permite conservar, vivificar e atualizar preceitos ditados há anos, há décadas, há séculos, e que hoje subsistem somente em função do entendimento moderno de seus termos”.
O legislador exprime-se por palavras e é no sentido real destas que o intérprete investiga a verdade e busca o sentido vivo do preceito. Cabem a ele preencher lacunas e omissões e construir permanentemente o Direito, não deixando que as leis envelheçam, apesar do tempo decorrido.
Fiel a estas premissas hermenêuticas, sempre considerei a atuação de duas forças numa reforma do Código Civil: a imposição das novas contribuições trazidas pelo progresso incessante das idéias e o respeito às tradições do passado jurídico. Reformar o Direito não significa amontoar um conjunto normativo como criação de preceitos aptos a reformular a ordem jurídica constituída.
Em meus ensinamentos sobre a interpretação sistemática, conclamei o investigador a extrair de um complexo legislativo as idéias gerais inspiradoras da legislação em conjunto, ou de uma província jurídica inteira, e à sua luz pesquisar o conteúdo daquela disposição. Deve o intérprete investigar qual a tendência dominante nas várias leis existentes sobre matérias correlatas e adotá-la como premissa implícita daquela que é o objeto das perquirições.
Estou convencido de que, no atual sistema jurídico, existe espaço significativo para uma interpretação teleológica, que encontra na Lei de Introdução ao Código Civil sua regra básica, prevista no art. 5º: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.”.
Na hermenêutica do Novo Código Civil destacam-se hoje os princípios constitucionais e os direitos fundamentais, os quais se impõem às relações interprivadas, aos interesses particulares, de modo a fazer prevalecer uma verdadeira “constitucionalização” do Direito Privado.
Conclui Paulo Luiz Netto Lôbo (2012) em seu artigo “A constitucionalização do Direito Civil”:
A constitucionalização do direito civil, entendida como inserção constitucional dos fundamentos de validade jurídica das relações civis, é mais do que um critério hermenêutico formal. Constitui a etapa mais importante do processo de transformação, ou de mudanças de paradigmas, por que passou o direito civil, no trânsito do Estado liberal para o Estado social.
O conteúdo conceptual, a natureza, as finalidades dos institutos básicos do direito civil, nomeadamente a família, a propriedade e o contrato, não são mais os mesmos que vieram do individualismo jurídico e da ideologia liberal oitocentista, cujos traços marcantes persistem na legislação civil. As funções do Código esmaeceram-se, tornando-o obstáculo à compreensão do direito civil atual e de seu real destinatário; sai de cena o indivíduo proprietário para revelar, em todas suas vicissitudes, a pessoa humana. Despontam a afetividade, como valor essencial da família; a função social, como conteúdo e não apenas como limite, da propriedade, nas dimensões variadas; o princípio da equivalência material e a tutela do contratante mais fraco, no contrato.
Assim, os valores decorrentes da mudança da realidade social, convertidos em princípios e regras constitucionais, devem direcionar a realização do direito civil, em seus variados planos.
Quando a legislação civil for claramente incompatível com os princípios e regras constitucionais, deve ser considerada revogada, se anterior à Constituição, ou inconstitucional, se posterior a ela. Quando for possível o aproveitamento, observar-se-á a interpretação conforme a Constituição. Em nenhuma hipótese, deverá ser adotada a disfarçada resistência conservadora, na conduta freqüente de se ler a Constituição a partir do Código Civil.
A perspectiva da Constituição, crisol das transformações sociais, tem contribuído para a renovação dos estudos do direito civil, que se nota, de modo alvissareiro, nos trabalhos produzidos pelos civilistas da atualidade, no sentido de reconduzi-lo ao destino histórico de direito de todas as pessoas humanas.
Dentre as diretrizes fundamentais, elencadas pelos elaboradores do novo diploma civil brasileiro como orientador de sua feitura, está a compreensão do Código como lei básica e não global do direito privado e a manutenção da estrutura do Código anterior, no sentido de preservar, sempre que possível, a redação do Código Beviláqua.
A parte geral tem 232 artigos, dividida em três livros, referentes às pessoas, aos bens e aos fatos jurídicos. A parte especial compreende cinco livros: Direito das Obrigações, Direito de Empresa, Direito das Coisas, Direito de Família e Direito das Sucessões.
Ao se pautar nos princípios da eticidade, socialidade e operabilidade, o CC/2002 busca resgatar a ética nas relações privadas, o que havia sido deixado para um segundo plano na antiga codificação.
Miguel Reale, na Exposição de Motivos do Anteprojeto do Código Civil de 2002, já é claro a respeito da nova sistemática do referido Código:
Superado de vez o individualismo, que condicionara as fontes inspiradoras do Código vigente; reconhecendo-se cada vez mais que o Direito é social em sua origem e em seu destino, impondo a correlação concreta e dinâmica dos valores coletivos com os individuais, para que a pessoa humana seja preservada sem privilégios e exclusivismos, numa ordem global de comum participação, não pode ser julgada temerária, mas antes urgente e indispensável, a renovação dos códigos atuais, como uma das mais nobres e corajosas metas de governo.
O princípio da eticidade tem por escopo valorizar o ser humano na sociedade, o que se dá mediante a efetivação dos princípios constitucionais, especialmente o da dignidade da pessoa humana.
O ser humano vai sendo valorizado na medida em que a confiança e a lealdade passam a ser imperativos das relações privadas. Diante disto, o julgador passa a ter maior poder na busca da solução mais justa e equitativa para os casos concretos que lhe são submetidos, mediante análise subjetiva da questão. O julgador tem espaço para refletir sobre a questão e, aplicar, em cada caso concreto, a melhor solução. Isso implica, em última análise, no afastamento do formalismo jurídico reinante durante a vigência da codificação anterior.
O Princípio da eticidade pode ser percebido pela leitura de vários dispositivos do atual Código Civil. Inicialmente, nota-se a valorização de condutas éticas, da boa-fé objetiva, como, por exemplo, pelo conteúdo da norma do art. 113, segundo o qual "os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”.
Ainda exemplificando este princípio, o art. 187 prevê justamente qual a sanção para a pessoa que contraria a boa-fé, a função social ou econômica de um instituto ou os bons costumes – cometerá abuso de direito, assemelhado a ilícito: “comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
O art. 422 também valoriza a eticidade, prevendo que a boa-fé deve integrar a conclusão e a execução do contrato. As conseqüências dessa previsão serão enormes, mantendo íntima relação com o princípio da função social do contrato.
O princípio da socialidade, por sua vez, nada mais é o que o mero reflexo da eticidade nas relações sociais. Dessa forma, a finalidade deste é afastar a mera aplicação do Direito Civil às relações dos particulares, eis que esses vínculos, em diversas oportunidades, podem interessar à sociedade como um todo, autorizando, por conseguinte, a intervenção estatal. Em suma: o princípio da socialidade objetiva a afastar a visão individualista, egoística e privatística do Código Civil de 1916.
Assim sendo, a função social do contrato está agora tipificada em lei, prevendo o art. 421 do Código Civil de 2002, que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.
Até mesmo a posse recebe uma função social, já que o Código prevê a diminuição dos prazos de usucapião quando estiver configurada a posse-trabalho, situação fática em que o possuidor despendeu tempo e labor na ocupação de determinado imóvel.
A nova codificação valoriza o trabalho da pessoa natural, do cidadão comum. Tais regras podem ser captadas pela leitura dos arts. 1.238, parágrafo único, e 1.242, parágrafo único, do Código Civil de 2.002.
Também prestigiando a posse produtiva, os parágrafos 4º e 5º do art. 1.228,traz a desapropriação Judicial por Posse-Trabalho.
A propriedade também recebe a previsão legal de proteção da sua função social, pelo que consta no art. 1.228, §1º, do Código Civil de 2002. Mais do que mera função social, o dispositivo prevê a função sócio-ambiental do domínio, não podendo o exercício do direito de propriedade gerar danos ao ambiente natural, cultural ou artístico. O atual Código, assim, confirma a proteção constitucional, prevista nos artigos 5º, incisos XXII e XIII; 170, III e 225 do Texto Maior.
Além do contrato, da posse e da propriedade, percebe-se que a empresa e a família, cernes da vida em comunidade, como não poderiam deixar de ser, também têm função social, instrumentos principais que são para a vida fraterna do ser humano.
O princípio da operabilidade, por sua vez, e também guardando especial ligação com os já estudados, pretendeu a facilitação da aplicação das novas normas. Informa ele a possibilidade de se recorrer a outros elementos, não presentes no texto da lei, para que a Justiça seja aplicada. É a influência das cláusulas gerais, lacuna deixada pelo legislador para preenchimento pelo aplicador do direito. Assim, pode-se dizer que o legislador delegou parte de suas atribuições para que o intérprete, em cada caso concreto, aja com justiça e criando o direito.
Citando como exemplo, em matéria de Direito Contratual, o princípio da operabilidade pode ser percebido pela previsão taxativa e conceitual dos contratos em espécie. O atual Código conceitua a compra e venda, a locação, a empreitada, a prestação de serviços, o transporte, o seguro, e assim sucessivamente.
Interessante frisar também que a intenção de manter um Código dividido em uma Parte Geral e uma Parte Especial mantém relação com a operabilidade, já que tal organização facilita e muito o estudo dos institutos jurídicos.
2.1 O direito de família no Código Civil de 1916
Como tratado no capítulo anterior, o Código Civil de 1916 foi marcado pelo sentido patrimonialista e, assim também o foi ao regular o direito de família.
O casamento constituía a única forma de constituição de família legítima e era inconcebível falar em filhos ou relações afetivas fora deste matrimônio. Essa desigualdade entre prole e companheira legitimada ou não pelo casamento não era inspirada na proteção de suas pessoas, mas do patrimônio familiar. Garantir os mesmos direitos àqueles que não participavam do matrimônio era atentar contra a preservação do patrimônio e, assim, constituía um atentado contra a previsão legal.
Neste mesmo sentido, não se podia falar em dissolução do vínculo conjugal, cuja única previsão legal contemplava apenas a hipótese da morte de um dos cônjuges.
O legislador, evidenciando ainda mais a proteção o patrimônio, foi cuidadoso ao tratar do regime matrimonial dos bens. Reservou 59 artigos para este tema. O mesmo cuidado teve ao cuidar da tutela, curatela e ausência; constituindo estes institutos verdadeiro estatuto legal da administração dos bens.
O Código de 1916 também foi marcado por seu tom machista. O rol de direitos dos maridos era muito mais extenso do que o dos direitos das esposas, a quem competia, basicamente, apenas deveres. Nunca é demais ressaltar que, até 1962, a mulher era considerada relativamente incapaz para os atos da vida civil.
Assim, o direito de família nesta época era tido como o conjunto de normas que disciplinavam as relações decorrentes do casamento e de sua prole, bem como as relações de parentesco e os institutos protetivos da tutela, curatela e ausência.
O campo de atuação deste ramo do direito era, assim, bastante limitado. A família era tratada como uma unidade de produção, objeto impulsionador de riqueza. Não se falava em afeto, amor. Os sentimentos pessoais não interferiam no direito, de cunho eminentemente materialista.
2.2 A evolução: o surgimento de leis esparsas
Não sendo a sociedade estática e devendo a legislação acompanhar as transformações, o Código Civil de 1916 logo começou a ficar desatualizado. Assim, começaram a surgir leis esparsas e no direito de família esta evolução se deu em etapas.
Em 1962, a lei 4.121 altera a posição e a figura da mulher casada. Em 1977, a lei 6.515 passa a instituir o divórcio, o que foi de extrema importância, pois passou a regular a situação dos descasados e as eventuais relações concubinárias passaram a estar bem próximas do reconhecimento.
Contudo, a grande mudança se deu em face da promulgação da Constituição Federal de 1988. Foi a publicização ou constitucionalização do direito, quando valores sociais e princípios constitucionais se tornaram evidentes também nas relações privadas.
2.3 A Constituição Federal de 1988
A abordagem mais moderna do direito de família pela Carta Magna e não pelo Código Civil fez com que a atenção se deslocasse deste para aquele. A Constituição passou a determinar o Direito Civil.
Neste momento, serão estudadas as principais alterações implementadas no Direito de Família com a vigência deste novo ordenamento, sem, contudo, ainda se adentrar no Código Civil de 2002, o que será feito ainda no decorrer deste.
2.3.1 A união estável
A família não pode deixar de ser vista com um fato natural, através do qual pessoas que sentem algum laço de afetividade se unem para viver uma vida comum. É o lado humano da sociedade.
O casamento é o contrato desta união, mera convenção social. Este é muito estreito para conter aquele, produzindo-se, então, o fato fora da convenção. Embora o homem queira obedecer ao legislador, vê-se impedido a não obedecer à natureza, constituindo sua família, se possível nos moldes legais, e se necessário fora deles.
Assim sendo, muitas relações surgiram fora dos moldes preestabelecidos. Era preferível viver como se sempre desejou e com quem sempre se desejou, ainda que fosse esta relação discriminada, tida como família ilegítima.
A CR 1988, atenta a esta realidade, passou a reconhecer estas relações como entidades familiares e deixou de ser o casamento a única forma legal de constituição de família.
A Carta Magna traçou, nesse dispositivo, os requisitos genéricos para configuração do instituto, quais sejam, a diversidade de sexo e a inexistência de impedimentos matrimonias, já que "a lei facilitará a sua conversão em casamento".
Posteriormente, outros diplomas legais surgiram estabelecendo novos requisitos, ou ainda, requisitos mais específicos. Assim, as leis 8.971/94 e a lei 9.287/96.
2.3.2 A família monoparental
O Código Civil de 1916 considerava a família em seu sentido restrito. Família era o cônjuge e a prole comum. Com o advento da CR, a família passa a ser vista em seu sentido amplíssimo, vislumbrando-se uma maior flexibilidade no conceito.
Assim, outras formas de relacionamento também passam a ser consideradas família. È o caso, por exemplo, da família constituída pela mãe viúva e seus filhos. A esse grupo formado por qualquer dos pais e seus descendentes dá-se o nome de família monoparental (artigo 226, § 4º).
2.3.3 Igualdade entre os cônjuges
A Constituição da República não se ateve a proclamar o princípio da isonomia entre homens e mulheres. Pautando-se na relação familiar, o artigo 226, § 5º reforçou esta igualdade, agora na posição de marido e esposa, para que a nova condição de casados não provocasse qualquer dúvida acerca da manutenção do princípio.
Dessa forma, muitos dispositivos da legislação civil não foram recepcionados, enquanto outros, para que se adequassem à nova realidade, precisaram de uma nova interpretação.
O homem deixou de exercer a chefia da sociedade conjugal e a esposa deixa de ser mera colaboradora. O pátrio poder deve ser exercido e igualdade de condições pelos dois, e não mais apenas subsidiariamente pela mulher.
Norma, antes absurda, e que deixa de existir é a possibilidade de anulação do casamento em decorrência de já ter ocorrido defloramento da mulher, não conhecido pelo marido.
Contudo, é de se frisar que o presente princípio constitucional deve ser interpretado como a proibição de tratamento distinto a quem tem situação material idêntica. É no dizer de Rui Barbosa, tratar os desiguais de forma desigual, para que obtenham a igualdade material, e os iguais de forma igualitária.
Assim, a Constituição Federal que determina a igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres, não se esquece, no entanto, das especificidades inerentes a cada um, conforme a própria natureza individual. Ou seja, se homens e mulheres fossem iguais indistintamente em direitos e deveres, não existiriam prerrogativas específicas para cada um dos sexos em nossas leis e normas como a licença gestante, que é tratada diferentemente da licença paternidade, teriam de ser abolidas do ordenamento.
2.3.4 Isonomia do tratamento jurídico entre os filhos
Sempre tendo em vista a proteção ao patrimônio, o Código Civil de 1916 discriminava a filiação havida fora do casamento. Com o princípio da dignidade da pessoa humana, o conceito de filiação e o seu tratamento ganham novo eixo. Passam os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, a terem idênticos direitos e proibidos quaisquer discriminação. Não há mais espaço para a dicotomia entre filhos legítimos e ilegítimos; fala-se, agora, em filhos havidos ou não fora do casamento. Da mesma forma, não se distingue filho natural e civil (adotivo).
Leis esparsas surgem para tutelar e garantir ainda mais estes direitos. Assim, a lei 8.560/92, a lei 8069/9.
Em atendimento à dignidade humana, e não mais à simples proteção da paz familiar, o bem estar e a comodidade dos filhos são objetivos a serem alcançados. Não por menos, a vontade dos filhos é de relevante importância em diversos institutos, como nas disposições gerais da colocação em família substituta (§ 1º do art. 28 do ECA), na adoção (§ 2º do art. 45 do ECA), na proteção da pessoa dos filhos (art. 13 da Lei do Divórcio).
Quanto ao tema de filiação, a multiplicidade é de uma riqueza salutar. De há muito reclamada a disposição constitucional, segundo a qual “os filhos havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.” (art. 227, parágrafo 6). Destacando-se, ainda, a regra do art. 1593, do Código Civil: “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem.”
A par das técnicas de fecundação artificial, homóloga e heteróloga, o direito reconhece a afetividade da natureza humana. Os vínculos socioafetivos são valorizados. O direito fundamental à paternidade se expande e alcança situações de reconhecimento espontâneo ou voluntário que, na esteira de precedentes do Superior Tribunal de Justiça[1], somente pode ser afastado quando comprovado vício de consentimento. Interessante foi a decisão do STJ em pretensão de pai biológico de alteração do registro civil de sua filha biológica, para que dele o constasse como genitor. Entendeu-se que “a filiação socioafetiva constitui uma relação de fato que deve ser reconhecida e amparada juridicamente. Isso porque a parentalidade que nasce de uma decisão espontânea, frise-se, arrimada em boa-fé, deve ter guarida no Direito de Família.” As normas sobre filiação devem ser interpretadas à luz do bem-estar das crianças e dos adolescentes. Reconheceu-se, ademais, a incidência da supressio e da surrectio. “Aquela ao impossibilitar a busca tardia pela paternidade; esta, ao possibilitar a chancela, no mundo jurídico, da inusitada situação fática vivenciada pelo pai socioafetivo e sua filha. O reconhecimento da filiação socioafetiva, in casu, tão somente dá vigência à cláusula geral de tutela da personalidade humana, que salvaguarda a filiação como elemento fundamental na formação da identidade do ser humano.”[2]
A propósito do afeto, bem destaca Rolf Madaleno (2007):
[...] a criança e o adolescente precisam ser nutridos do afeto de seus pais, representado pela proximidade física e emocional, cujos valores são fundamentais para o suporte psíquico e para a futura inserção social dos filhos. Pouco importa sejam os vínculos de ordem genética, civil ou socioafetiva, pois têm os pais a obrigação de exercerem a sua função parental, essencial à formação moral e intelectual de sua prole, mesmo porque um filho ‘só crescerá de forma saudável, através das salutares construções que importam na ausência de rupturas dos vínculos socioafetivos’[3]
A busca da promoção dessa afetividade ou solidariedade também foi objeto da Lei n. 12.010, de 3 de agosto de 2009, aperfeiçoando as regras sobre adoção. A colocação da criança ou adolescente em família substituta é medida excepcional que deve ser aplicada, quando impossível a sua permanência junto à família natural[4].
Essas novas e reconhecidas formas de filiação repercutem nos aspectos pessoais e patrimoniais da família. Os reflexos econômicos reacendem o mecanismo de Ação de Petição de Herança previsto nos artigos 1824 a 1828 do Código Civil.
2.4 Novos princípios do Direito de Família
Antes mesmo de adentrar no tema do direito de família, a Constituição trata de alguns princípios genéricos. Primordial é o princípio da dignidade da pessoa humana, que contrasta com a figura até então reinante da patrimonialidade. Agora, é fundamental o lado humano, psicológico e a figura do afeto.
O princípio da isonomia entre homens e mulheres, regulado pelo art. 5º da CR, também vem a servir de marco. Não se admite mais a distinção entre os sexos e os direitos e deveres elencados no Código Civil 1916 perdem seu sentido.
Contudo, é no art. 226 CR que são estabelecidos os princípios atinentes ao direito de família em específico. A família foi reconhecida como base da sociedade e recebe proteção do Estado. A família como formação social, na visão de Pietro Perlingieri (2002) é garantida pela Constituição não por ser portadora de um direito superior ou superindividual, mas por ser o local ou instituição onde se forma a pessoa humana.
A família é valor constitucionalmente garantido nos limites de sua conformação e de não contraditoriedade aos valores que caracterizam as relações civis, especialmente a dignidade humana: ainda que diversas possam ser as suas modalidades de organização, ela é finalizada à educação e à promoção daqueles que a ela pertencem.
O merecimento de tutela da família não diz respeito exclusivamente às relações de sangue, mas, sobretudo, àquelas afetivas, que se traduzem em uma comunhão espiritual e de vida.
Exercendo influência cada vez maior no direito civil, a Constituição Federal se torna determinante no estudo do direito de família. Segundo Maria Berenice Dias (2010):
(...) grande parte do Direito Civil está na Constituição, que acabou enlaçando os temas sociais juridicamente relevantes para garantir-lhes efetividade. A intervenção do Estado nas relações de direito privado permite o revigoramento das instituições de direito civil e, diante do novo texto constitucional, forçoso ao intérprete redesenhar o tecido do Direito Civil à luz da nova Constituição.
Assim, os princípios determinantes deste ramo do direito foram se alterando. Alguns perdem sua importância, em face de outros que vão surgindo.
Neste ponto, é preciso destacar a importância dos princípios em nosso ordenamento. Sobretudo, dos princípios constitucionais. Estes surgem complementando os já tão conhecidos princípios gerais de direito (art 4º LICC) e exercem sua influência ao atuarem como cláusulas gerais dentro de um texto de lei. Ajudam o intérprete a solucionar o caso concreto com a maior justiça possível, ainda que não haja norma prevista. Atuam na margem de liberdade que passou a existir no CC/2002.
2.4.1 Princípio da proteção da dignidade da pessoa humana
Este princípio já vem estampado no art. 1º CR, constituindo um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Devido a sua grande importância, é considerado como um super princípio, ou, ainda mais, como um princípio de onde derivam os demais princípios que serão estudados.
O princípio da dignidade da pessoa humana foi o responsável pela grande transformação que ocorreu no Direito Civil. Dele é que derivou toda a mudança de paradigma, a despatrimonialização do direito em prol da personalização. O desvio de atenção do eixo patrimônio para o eixo pessoa. Diz Paulo Luís Netto Lobo (2012), em já citado artigo:
O princípio da dignidade humana pode ser concebido como estruturante e conformador dos demais, nas relações familiares. A Constituição, no artigo 1º, o tem como um dos fundamentos da organização social e política do país, e da própria família (artigo 226, § 7º). Na família patriarcal, a cidadania plena concentrava-as na pessoa do chefe, dotado de direitos que eram negados aos demais membros, a mulher e os filhos, cuja dignidade humana não podia ser a mesma. O espaço privado familiar estava vedado à intervenção pública, tolerando-se a subjugação e os abusos contra os mais fracos. No estágio atual, o equilíbrio do privado e do público é matrizado exatamente na garantia do pleno desenvolvimento da dignidade das pessoas humanas que integram a comunidade familiar, ainda tão duramente violada na realidade social, máxime com relação às crianças. Concretizar esse princípio é um desafio imenso, ante a cultura secular e resistente. No que respeita à dignidade da pessoa da criança, o artigo 227 da Constituição expressa essa viragem, configurando seu específico bill of rigths, ao estabelecer que é dever da família assegurar-lhe "com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária", além de colocá-la "à salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão". Não é um direito oponível apenas ao Estado, à sociedade ou a estranhos, mas a cada membro da própria família. É uma espetacular mudança de paradigmas.
Especial influência exerce este princípio no direito de família, quando o afeto passa a ser fundamental na constituição da relação e não mais apenas a constituição do patrimônio. Atentemos para a difícil conceituação deste macroprincípio, segundo Wolfang (2005):
(...) o reduto intangível de cada indivíduo e, neste sentido, a última fronteira contra quaisquer ingerências externas. Tal não significa, contudo, a impossibilidade de que se estabeleçam restrições aos direitos e garantias fundamentais, mas que as restrições efetivadas não ultrapassem o limite intangível imposto pela dignidade da pessoa humana.
A aplicação deste princípio na jurisprudência é inquestionável, e apenas para ilustrar nosso trabalho, pode-se citar jurisprudência que considera moradia de pessoa solteira como bem de família. Embora o ordenamento jurídico não considere a pessoa que more sozinha como família, a aplicação deste princípio e aliado às cláusulas gerais, permitiu que tal decisão fosse concedida e, neste caso, a justiça fosse aplicada.
Situação ainda mais influenciada por esta diretriz, foi a do garoto que, nunca tendo sido aparado afetivamente pelo pai ingressou na justiça e busca de indenização. Vale a pena transcrever o julgado.
INDENIZAÇÃO DANOS MORAIS – RELAÇÃO PATERNO-FILIAL – PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE. A dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno, que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável, com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana" (Tribunal de Alçada de Minas Gerais, 7ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível 408.555-5. Decisão de 01/04/2004. Relator Unias Silva, v.u.).
Neste ponto, e com particular tristeza, cabe dizer que o Superior Tribunal de Justiça reformou a decisão e afastou a condenação por danos morais. Contudo, de suma importância é ainda ela no mundo jurídico, pois é prova inequívoca de que o paradigma está, aos poucos, verdadeiramente, se alterando.
2.4.2 Princípio da solidariedade familiar
O princípio em questão constitui um dos objetivos a serem alcançados. Está presente no art. 3º, I da nossa Carta Magna.
É bem verdade que o dispositivo não trata da solidariedade familiar, mas da solidariedade em seu todo. A solidariedade deve pautar as relações humanas e pessoais. Mais ainda deve pautar a relação familiar.
A solidariedade não deve ser apenas patrimonial, mas também emocional. Os integrantes do núcleo familiar devem se tratar com respeito, atenção e afeto. E, caso não seja a relação assim constituída, caberá ao Estado intervir.
O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. (Art. 226, § 8º, da CF/88)
2.4.3 Princípio da igualdade entre filhos
Estudada já está igualdade no capítulo anterior, resta reforçar a isonomia entre os filhos. É rezada tanto pela Constituição Federal, como pelo Código Civil. (art. 227, § 6º, da Constituição Federal e 1.596 CC). É importante atentar que esta isonomia repercute tanto no campo pessoal como patrimonial.
A situação jurídica dos filhos no Brasil foi marcada por preconceitos e discriminações, normalmente relacionados ao estado civil dos pais.
O Código Civil de 1.916 fez expressa distinção entre filhos legítimos, ilegítimos, legitimados e adotivos.
Os primeiros eram aqueles cujos genitores uniam-se pelo casamento. Todos os direitos decorrentes da relação paternofilial eram-lhe garantidos.
Os segundos, denominados ilegítimos, procediam de relações outras, diversas das decorrentes das justas núpcias. Eram agrupados em naturais (filhos de pais sem impedimento para casar) e espúrios, estes últimos subdivididos em adulterinos (um ou ambos os genitores eram casados com terceiros) e incestuosos (originados de relações entre parentes próximos). De regra, eles eram destituídos de qualquer direito e sequer poderiam ser reconhecidos (art. 358).
Filhos legitimados eram aqueles que, em decorrência do matrimônio de seus procriadores, adquiriam a condição de legítimos e a estes se equiparavam para todos os efeitos (art. 352 a 354).
A legislação infraconstitucional, através do Decreto-lei nº 3.200, de 19 de abril de 1.941; do Decreto-lei nº 4.737, de 27 de setembro de 1.942; da Lei nº 883, de 21 de outubro de 1.949; e da Lei nº 6.515, de 26 de dezembro de 1.977 (Lei do Divórcio), ampliou significativamente os direitos dos filhos ilegítimos, mitigando a discriminação da prole, mas nunca os igualou aos legítimos. As desigualdades de tratamento compreendiam, entre outros, os direitos ao reconhecimento, alimentos e sucessão.
Aos filhos legítimos e ilegítimos somavam-se os filhos adotivos, fruto de parentesco civil, cujos vínculos se restringiam ao adotante e adotado. Eles também não gozavam de tratamento isonômico.
O Poder Constituinte de 1.988, albergando os movimentos sociais da época e sob a influência do discurso psicanalítico, elevou a fundamento do Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana, rompendo de vez com a tendência patrimonialista até então em vigor (art. 1º, III). Ao mesmo tempo, extirpou do ordenamento jurídico pátrio a famigerada desigualdade de gênero (art. 5º, I), elevou a princípio constitucional a isonomia entre os filhos (art. 227, § 6º) e desvencilhou o conceito de família da noção de casamento (art. 226, §§ 3º e 4º).
A origem dos filhos e a forma de constituição da entidade familiar perderam importância diante da expressa e especial proteção a eles conferida pela Magna Carta.
2.4.4 Princípio da igualdade entre cônjuges e companheiros
Semelhante à igualdade entre os filhos, a CR reconhece a igualdade entre os companheiros, advindos do casamento ou união estável. (art. 226, §§ 3º e 5º, da CF/88).
Lembramos que o art. 1º do atual Código Civil utiliza o termo pessoa, não mais homem, como fazia o art. 2º do Código Civil de 1916, deixando claro que não será admitida qualquer forma de distinção decorrente do sexo.
Ainda, em acatamento ao princípio da isonomia, encontramos no Código Civil a mesma idade núbil de dezesseis anos para homens e mulheres. Em verdade, esse dispositivo foi desenvolvido com base nas aptidões físicas das pessoas, pois com a puberdade que é alcançada aos 16 (dezesseis) anos, os seres humanos estão aptos a procriar, portanto – em tese – podem se casar. Mas é sempre importante observar que quanto maior for o desenvolvimento intelectual do ser humano, mais fácil será seu relacionamento e a conseqüente mantença dessa sociedade conjugal. Dessa forma, a idade mínima é de dezesseis anos, porém, para o bom desenvolvimento do relacionamento se faz mister que os cônjuges possuam uma certa maturidade.
Há exceções a essa regra, quando se permite que o casamento seja realizado antes da idade legal ser alcançada, de acordo com o artigo 1.520 do Código Civil, com o intuito de evitar a imposição ou o cumprimento de pena criminal, ou em caso de gravidez.
O Código Civil traz no bojo do parágrafo primeiro do seu artigo 1.565, que qualquer dos cônjuges poderá acrescer ao seu nome o sobrenome do outro, aplicando mais uma vez o princípio da isonomia, igualando os direitos dos cônjuges e, assim, tanto o homem pode adotar o sobrenome da mulher, quanto a mulher acrescer ao seu nome o sobrenome do marido.
A tradição de nosso Direito de Família impunha-se de forma diversa, por se tratar de uma família patriarcal, a regra era a esposa adotar o patronímico do marido, pois a idéia desse conceito de família é que a mulher com o casamento, ingressava na família do homem que ela desposava, deixando de fazer parte de sua família para fazer parte da família de seu marido – tal como um bem.
Tanto o era, que o artigo 240 do Código Civil de 1.916 impunha a obrigatoriedade da adoção do patronímico do marido, apesar da doutrina majoritária defender a eletividade. Esse entendimento permaneceu mesmo após a edição da Lei do Divórcio em 1.977, que adotou expressamente a forma optativa da adoção do patronímico do marido para as mulheres, podendo estas acrescerem ou não aos seus nomes os sobrenomes do marido. Porém, as mulheres sentiam-se constrangidas com tal direito de opção adquirido pela nova legislação, e na maioria das vezes não o utilizavam.O Código Civil de 2002 veio mais uma vez, para igualar os direitos dos cônjuges dentro da vida conjugal. Observe que, hoje, através desse novo preceito qualquer dos nubentes pode acrescer ao próprio apelido o sobrenome do consorte, ou então, pode conservar seu nome de solteiro.
A liberdade para fixação do domicílio conjugal sempre foi uma batalha das mulheres, pois este sempre foi determinado e imposto pelo marido, sem que a esposa pudesse se opor ou mesmo argumentar sobre o assunto, como consta no artigo 233, inciso III, e artigo 36, parágrafo único, do Código Civil de 1.916. Competia somente ao marido fixar o domicílio do casal, bem como, modificá-lo sem qualquer restrição, e o pior, conforme a legislação antiga os cônjuges tinham o dever de viverem no mesmo domicílio. Desta forma, cada vez que ao marido aprouvesse alterá-lo a mulher tinha a obrigação de acompanhá-lo.
A harmonia com relação a esta desigualdade e discriminação somente foi alcançada com a Constituição Federal de 1.988, que através do princípio da isonomia, revogou tal preceito, que foi corrigido e corretamente elaborado no Código Civil de 2002. Agora, o domicílio do casal será escolhido pelos cônjuges de comum acordo, sendo que se houver divergências, o juiz decidirá qual das partes desfruta das melhores razões. Há também a possibilidade de qualquer dos cônjuges se afastar do domicílio conjugal, o que diminui as causas de divergências.
Em relação à guarda dos filhos, o Código Civil inovou e a guarda dos filhos será atribuída a quem revelar melhores condições para exercê-la. Atualmente, grande parte das mulheres trabalha fora do lar, alteraram-se os costumes, ambos os cônjuges exercem profissões e dividem as tarefas e os cuidados com os filhos, de modo que devem ser tidos, a princípio, em iguais condições de guardá-los, cabendo ao juiz, no caso concreto, avaliar qual deles está mais habilitado ao exercício da guarda, sem qualquer prevalência feminina.
Assim, o princípio da isonomia, neste aspecto vale também para igualar pai e mãe, que com o advento do Código Civil de 2002 devem ser tratados pela lei em absoluta igualdade de condições, excluindo completamente o fator "culpa na separação" como razão determinante da perda da guarda. A guarda dos filhos deve ser estabelecida com base no princípio da prevalência dos interesses dos menores, observando que nem sempre o cônjuge inocente pode preservar tais interesses.
Neste sentido, o atual Código Civil atende aos princípios constitucionais da plena igualdade entre homens e mulheres e da proteção à criança e ao adolescente, excluindo a prevalência da mãe na atribuição da guarda dos filhos, bem como, eliminou o regime de perda da guarda por culpa na separação judicial, valorizando, sobretudo, as relações de afinidade e afetividade para sua fixação, de modo que preserve a dignidade dos filhos.
As mulheres conquistaram direitos legítimos de igualdade jurídica, e essa igualdade trouxe para as mesmas não só direitos, mas também deveres e julgamentos afinados com a modernidade. Esse é o caso dos alimentos que decorrem da mútua assistência, um dever que persiste diante da isonomia consagrada pelo artigo 226, parágrafo quinto, da Constituição Federal.
O dever de alimentos aos filhos menores cabe a ambos os pais, subordinando-se a necessidade do alimentando e a capacidade econômica do alimentante.
O Código Civil contemporâneo traz também em seus artigos 1.694 e 1.702, que um dos cônjuges também pode requerer alimentos ao outro no caso de separação do casal, desde que o requerente seja considerado inocente na ação de separação e que o requerido possua possibilidades financeiras para tanto. Mais uma vez, o problema da "inocência" do cônjuge na separação, se apresenta como forma de discriminação, já que na maioria dos casos não há como o juiz verificar qual o culpado pelo término do casamento, e muitas vezes, não importa em nada tal verificação.E também foi fixado pelo nosso atual codex, que se na separação houver "culpa recíproca" dos cônjuges, ambos perderão o direito aos alimentos.
O dever de prestar alimentos fundamenta-se na solidariedade familiar, no dever legal de assistência em relação ao cônjuge ou companheiro necessitado.
2.4.5 Princípio da igualdade na chefia familiar
Colocando fim ao machismo eivado no CC 1916, a CR e o CC/2002 igualou o pai e a mãe no processo de educação de sua prole. Hoje não se pode falar mais em pátrio poder, não é o pai mais o único chefe da família.
Pai e mãe passaram a assumir idênticas funções na criação dos filhos, o que deve ser feito de acordo com as possibilidades financeiras e emocionais de cada um.
Complementando, prevê o art. 1.631 do atual Código Civil que durante o casamento ou união estável o poder familiar compete aos pais. Na falta ou impedimento de um deles, o outro exercerá esse poder com exclusividade. Em casos de eventual divergência dos pais quanto ao exercício do poder familiar, é assegurado a qualquer um deles recorrer ao juiz para a solução do desacordo.
Esse exercício de forma igualitária também consta do art. 1.634 do Código Civil, que traz as suas atribuições, a saber: a) dirigir a criação e a educação dos filhos; b) ter os filhos em sua companhia e guarda; c) conceder aos filhos ou negar-lhes consentimento para casarem; d) nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou se o sobrevivo não puder exceder o poder familiar; e) representar os filhos, até aos 16 anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; f) reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; g) exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.
2.4.6 Princípio da liberdade
O princípio da liberdade ou da não intervenção assemelha-se ao princípio da autonomia da vontade.
Devem ter as partes a liberdade de conduzirem a sua vida da forma que melhor lhe convierem, sem a interferência do Estado.
É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família. (art. 1.513 CC)
Contudo, é óbvio que a intervenção poderá ocorrer, pautada em outros interesses, tais como programas governamentais de planejamento familiar ou de educação, dentre outros.
2.4.7 Princípio do melhor interesse da criança
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda a forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (art. 227 CR).
A proteção que é dada pela CR, também é regulamentada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/90), que considera criança a pessoa com idade entre zero e doze anos incompletos e, adolescente aquele que tem entre 12 e 18 anos de idade.
Em reforço, o art. 3º do próprio ECA prevê que a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral, assegurando-se lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e as facilidades, a fim de facultar-lhes o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Reforçando ainda mais a supremacia deste, o atual CC implicitamente confirma este princípio ao rezar sobre a guarda dos filhos. (arts. 1.583 e 1.584 CC). Como se pode perceber, no caso de dissolução da sociedade conjugal, a culpa não mais influencia quanto à guarda de filhos, devendo ser aplicado o princípio que busca a proteção integral ou o melhor interesse do menor, conforme o resguardo do manto constitucional.
2.4.8 Princípio da afetividade
O princípio da afetividade talvez seja, ao lado do já estudado super princípio da dignidade da pessoa humana, o mais importante. Embora não seja expresso no regramento constitucional, ou nem mesmo em qualquer ordenamento, este princípio surge quebrando paradigmas e estabelecendo novos valores.
A relação construída entre pessoas deve ser pautada em afeto, respeito e atenção. Agora o que é valorizado não é mais o ter propriamente dito, como o era no CC 1916, mas o ser. Não importa mais o que um tem materialmente a oferecer ao outro, mas o que se sente e o que podem construir juntos. É a valorização da pessoa, já tão amplamente debatida neste trabalho.
Em decorrência deste princípio, é que se pode falar na famosa paternidade socioafetiva, predominante sobre a paternidade biológica.
AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE – ADOÇÃO À BRASILEIRA – PATERNIDADE SÓCIO-AFETIVA. O registro de nascimento realizado com o ânimo nobre de reconhecer a paternidade socioafetiva não merece ser anulado, nem deixado de se reconhecer o direito do filho assim registrado. “Negaram provimento”. (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 00502131NRO-PROC70003587250, DATA 21/03/2002, Relator Rui Portanova, ORIGEM RIO GRANDE).
2.4.9 Princípio da função social da família
Este princípio está em perfeita consonância com o já discorrido princípio da socialidade. As relações familiares devem ser construídas tendo como base não apenas o núcleo familiar, mas todo o núcleo social. Se a família altera seus valores, exercerá influência em toda a sociedade. Assim é que o interesse maior deve ser sempre preservado e buscado. O social deve prevalecer diante do individual.
2.4.10 Princípios da paternidade responsável e o planejamento familiar
O artigo 226, § 7º, da Constituição Federal dispõe que o planejamento familiar é livre decisão do casal, fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável.
A Lei nº 9.253/96 regulamentou a questão, principalmente no tocante à responsabilidade do Poder Público. O Código Civil de 2002, no artigo 1.565, traçou diretrizes asseverando que o planejamento familiar é de livre decisão do casal e que é vedado qualquer tipo de coerção por parte de instituições públicas e privadas.
3. CONCLUSÃO
Com a vigência do Código Civil de 2002, chegou a hora do aplicador-intérprete da norma alterar o foco do Direito Civil, deixando que este se ilumine pelos valores contidos na Constituição de 1988 a fim de conseguir um novo contorno deste ramo, agora à luz do Texto Constitucional vigente.
A Magna Carta não é, e nem nunca pode ser, norma inaplicável devido à falta de uma pré-compreensão de seus valores e de sua aplicação sobre o direito infraconstitucional. Deve prevalecer, qualquer que sejam seus mandamentos, sobre o texto Civil.
Querer que uma norma infraconstitucional – seja ela qual for – se torne aplicável é direito do intérprete e é o que deve ser buscado, se alcançando a segurança jurídica. Contudo, a norma deve ser consoante com a lei primária de nosso País, a Constituição da República.
O aplicador e estudioso do Direito na atualidade não podem se limitar, contudo, às regras ditadas, em qualquer que seja o diploma legal. Ele deve ir sempre além disto. É de se lembrar sempre que nosso ordenamento atual se baseia em princípios, muitos dos quais foram debatidos, e em cláusulas gerais. É margem de liberdade, é o anseio, é a busca pela Justiça.
O Direito, neste sentido, não pode ser estático e não o é. A sociedade é quem o transforma: são as mudanças históricas, a alteração de valores sociais e a adequação ao novo tempo. E isto é que é o Direito de Família Constitucional.
As novas e múltiplas relações familiares devem se orientar no sentido de proteger a vida e a integridade física e psicológica dos seus membros. Todos devem ser respeitados e o direito de personalidade, direito esse inerente a qualquer ser humano, assegurado. É a aplicação do in totum do princípio da dignidade humana.
O nascedouro da sociedade é a família, nas suas mais diversas vestimentas. Acrescento que o indivíduo tem o direito de se agrupar de acordo com as suas tendências, escolhas e identidade de propósitos (os iguais se atraem) em um lar. Lar esse que deve pautar-se pela solidariedade, pelo respeito, pela fraternidade, pela confiança e pelo amor. Tomando por base tal consideração, não importa se tal lar é composto por um homem e uma mulher, uma mulher e seus filhos, dois irmãos, o avô e seus netos ou mesmo dois homens ou duas mulheres. O que importa? Esse grupo tem que ser um meio de realização pessoal de seus membros, um núcleo de cidadania, um campo de afeto em que as sementes ali plantadas vão germinar com segurança e confiança sob o adubo da sinceridade e do respeito. Vão, futuramente, dar bons frutos e, consequentemente, boas sementes. É um ciclo inevitável.
Sendo assim, novos valores jurídicos surgiram em decorrência do alargamento das relações interpessoais, da evolução constante da sociedade e dos seus costumes: afeto, cuidado, igualdade, fraternidade, liberdade, solidariedade e pluralismo. O homem não é mais chefe da família, tem os mesmos direitos e deveres da mulher, sua companheira de lida, que inclusive tem o direito e o dever de ser tratada com igualdade substancial (vide Lei Maria da Penha); o filho, para ser considerado filho, pode surgir fora ou dentro do casamento, pode ser biológico ou advir de uma relação profunda de afeto (paternidade socioafetiva), pode ser concebido com a participação dos integrantes da família ou mesmo com a participação de um estranho, com o devido consentimento do parceiro ou da parceira; o casamento não é a única maneira de constituir uma família, mas, sim, uma sorte de entidade familiar que não deixa de existir pela ausência da “certidão de nascimento” emitida pelo Estado; um homem pode amar um homem, uma mulher pode amar outra mulher, com o fim de constituir mais um tipo de célula-mãe da sociedade, isto é, uma família calcada no afeto, no respeito e no carinho, com a possibilidade ainda de, da mesma forma, deixar na terra os seus descendentes, a confirmação da perpetuação não só da raça humana, mas também da família. Resumindo: estamos sob a égide da democratização das relações afetivas em todos os seus matizes.
O direito positivo tem que se aproximar dos princípios fundamentais necessários à sobrevivência terrena do homem. As normas colocadas à obediência não devem ser obras desconectadas da sociedade, que merece ser ouvida e atendida, mas, sim, normas à disposição do homem (espécie) e da sociedade reais, em cumprimento aos direitos do ser humano.
Decisões jurisprudenciais, antes inimagináveis e inconcebíveis, começam a ser prolatadas e mais do que isto, são acatadas e respeitadas.
Destarte, a família não está em crise, mas, sim. passando por uma reformulação necessária para que as antigas fórmulas sejam deixadas de lado em nome de uma sociedade mais justa e igualitária, pautada na dignidade da pessoa humana, na igualdade, na solidariedade, na liberdade de perseguir e de ser feliz. É a família um instrumento de promoção da felicidade e de afirmação da cidadania, um refúgio seguro. É o reconhecimento e a aplicação do princípio da não intervenção ou da liberdade, no sentido de deixar a cargo do ser humano escolher com quem e como consorciar, sem qualquer tipo de ingerência de qualquer um, particular ou Estado. É escola em que os seus membros são ao mesmo tempo professores e aprendizes dedicados a uma só lição fácil e complicada: ser feliz!
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[1]STJ, Resp. 450566/RS, j. 3/5/2011, Rel. Min. Nancy Andrighi.
[2]STJ, Resp. 1.087.163/RJ, j. 18/8/2011, Rel. Min. Nancy Andrighi.
[3] MADALENO, Rolf. Repensando o direito de família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 113-114.
[4] Destaque-se a importância da Resolução nº 71, de 15 de junho de 2011, do Conselho Nacional do Ministério Público, sobre a atuação dos membros do Ministério Público na defesa do direito fundamental à convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes em acolhimento.
Universidade Cândido Mendes. Graduação em Direito pela Universidade de Itaúna. Pós-graduação em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes. Analista do Ministério Público de Minas Gerais.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CRISTIANO SOARES ELEUTéRIO, . Considerações sobre o Direito de Família à luz do Direito Constitucional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 mar 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/49780/consideracoes-sobre-o-direito-de-familia-a-luz-do-direito-constitucional. Acesso em: 23 dez 2024.
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