Prof. Me. Rodrigo Freschi Bertolo
(Orientador)
RESUMO: A Constituição Federal de 1988, mesmo sem declarar expressamente, consagrou a laicidade do Estado brasileiro ao permitir a liberdade de crença, descrença e a prática de quaisquer religiões. Laico é o caráter de neutralidade religiosa do Estado para que não haja privilégios a nenhuma religião em particular. A efetivação do princípio da laicidade é um processo democrático que está em processo de construção e amadurecimento. Com o objetivo de esclarecer o conceito de laicidade, este trabalho de pesquisa parte da denominação que os Estados recebem acerca de suas relações com as religiões, para então caracterizar o Brasil e entender o caminho percorrido para ser considerado um país laico e não ateu ou a-religioso. O próprio preâmbulo atual Constituição Federal, embora não tenha força normativa, traz o reconhecimento estatal da existência de Deus. Como a maioria dos Estados mundiais, o Brasil não quer que política e religião se confundam, nem que as decisões políticas, jurídicas e administrativas estejam atreladas a uma religião oficial, mas destaca-se, como conclusão, a abertura constitucional para que haja colaboração recíproca, Estado-Igreja, nas ações de interesse comum.
PALAVRAS-CHAVE: Estado, crença, laicidade, religiões
ABSTRACT: The Federal Constitution of 1988, even without expressly declaring it, consecrated the laity of the Brazilian State by allowing freedom of belief, disbelief and the practice of any religions. Secular is the character of religious neutrality of the state so that there is no privilege to any particular religion. The execution of the principle of secularism is a democratic process that is in the process of building and ripening. With the aim of the to clarify the concept of secularity, this research is based on the denomination that the States receive about their relations with religions, to characterize Brazil and to understand the way taken to be considered a secular and non atheist country or -religious. The own preamble to the Federal Constitution, although not normative, brings state recognition of the existence of God. Like most states, Brazil does not want politics and religion to be confused, or that political, juridical and administrative decisions are linked to an official religion, but the conclusion is that constitutional openness is necessary in order to have reciprocal cooperation , State-Church, in actions of common interest.
KEYWORDS: State, Belief, Secularity, Religions.
INTRODUÇÃO
Estado Laico é aquele que não adota uma religião oficial, mas permite liberdade de crença, descrença e religião, garante direitos e proíbe a interferência da religião nos rumos políticos e jurídicos da nação.
Embora não se tenha uma literatura vasta sobre o tema, que muitas vezes invoca unicamente questões pontuais, como por exemplo os objetos religiosos em lugares públicos, feriados religiosos e subsídios para eventos religiosos, este trabalho busca explicitar o conteúdo jurídico do princípio do Estado Laico, fundamentar suas colocações e evidenciar a opção dos constituintes de colocar a expressão “sob a proteção de Deus” no preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil, que embora não tenha força normativa, mas valor interpretativo do sistema jurídico-constitucional.
1 SISTEMAS DE RELAÇÃO DO ESTADO E DAS RELIGIÕES
O Estado Teocrático é aquele que não se confunde com religião, de tal forma que a religião decide os rumos da nação, influenciando diretamente o campo da política e o âmbito jurídico. O grande exemplo de Estado Teocrático são os Estados Islâmicos, de regime totalitário no tocante à religião e à moralidade, de modo que excluem tudo o que não esteja em sintonia com os dogmas da religião.
O Estado confessional, por sua vez, é aquele que possui uma religião oficial capaz de influir nos rumos políticos e jurídicos da nação, mas que não são impositivos e repressores como o Estado Teocrático. É o caso do Brasil Imperial, quando a Constituição de 1824 instituiu a religião católica apostólica romana como oficial do país.
O Estado Laico é aquele que não adota uma religião como oficial e permite a liberdade de crença, descrença e quaisquer religiões, com direitos iguais para todas, mas elas não podem influir nos rumos políticos e jurídicos da nação. É o rege a Constituição Federal do Brasil de 1988, no art. 19, inc. I, vedando as relações de dependência ou aliança com quaisquer religiões. A maioria dos Estados pode ser considerada laica.
O Estado ateu é aquele que nega a existência de Deus, e não aceita que seus cidadãos manifestem publicamente suas crenças religiosas, trata-se, assim como no Estado Teocrático, de totalitarismo. Exemplo de Estado ateu foi a União Soviética.
Dessa forma, entende-se que laicidade é a doutrina que identifica a separação entre Estado e religião, de forma que não haja confusão entre o Estado e uma instituição religiosa e não permite que o Estado seja influenciado por uma religião determinada. Vale destacar que Estado Laico não é Estado ateu, pois permite que os cidadãos possam manifestar sua crença, como também sua descrença.
Na análise de Santos Júnior (2017), laico é o caráter de neutralidade religiosa do Estado, ou seja, pois não dá privilégios a nenhuma religião em particular, e também a política não se deixa determinar por critérios religiosos. Assim, Estado e instituições religiosas não sofrem interferências recíprocas no tocante às finalidades institucionais. Contudo, não se pode confundir interferência com influência, ou seja, não é proibido que grupos de religiosos postulem a adoção de políticas públicas em algum sentido, mas o que se espera da decisão estatal é que a decisão não seja determinada pelo pensamento religioso.
2 A LAICIDADE DO ESTADO BRASILEIRO
O Brasil tornou-se um Estado laico com o Decreto nº 119-A, de 07/01/1890, de autoria de Ruy Barbosa. Antes, porém, havia liberdade de crença, mas não a liberdade de culto, ou seja, os cultos de religiões que não eram as liturgias próprias da Igreja Católica Romana, só podiam ser realizados no âmbito restrito, geralmente em casas particulares. Com este decreto, houve no Brasil a separação Estado-Igreja, permitindo a ampliação da liberdade religiosa e o Brasil deixou de ser considerado Estado confessional e de ter uma religião oficial.
A consolidação do princípio da laicidade acompanhou a evolução histórica dos direitos humanos, desde a abrangência de seu conteúdo até à necessidade que o Estado tem de agir para a sua concretização. Pela análise de Zylbersztajn (2017), assim como os direitos humanos foram marcados por momentos que reconhecem certas dimensões, a laicidade também tem suas fases determinadas por momentos históricos. Inicialmente, estava relacionada com a liberdade, que surge com o discurso liberal de cidadania expresso nas primeiras declarações de direitos. Posteriormente, a laicidade passa a incorporar a ideia de igualdade entre os cidadãos, para que enfim se inserisse na concepção democrática dos Estados modernos.
2.1 BREVE HISTÓRICO DAS CONSTITUIÇÕES DO BRASIL COM ACENO ÀS RELIGIÕES
Durante o período da colonização, a única religião reconhecida e admitida pelo Estado era a Igreja Católica. Dados históricos comprovam que em 1540 a Companhia de Jesus, chamada de jesuítas, iniciarou a ação de catequese com os povos habitantes nas terras brasileiras. Entre os anos de 1630 e 1656 chegaram os holandeses que ampliaram a tolerância religiosa, mas somente em 1822 o Brasil manteve a previsão de liberdade religiosa.
Segundo o estudo realizado por Rachel (2017), a Constituição de 1824, foi outorgada em nome da Santíssima Trindade e institui a religião Católica Apostólica Romana como a religião oficial, permitindo apenas que outras crenças reunissem para o culto doméstico, vedada qualquer construção de templo. Esta constituição caracterizava-se pela união entre o Estado e a Igreja Católica.
A religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a Religião do Império. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior do Templo. (Constituição de 1824, art. 5º)
O art. 95 da mesma Constituição, havia a determinação que somente quem professasse a religião oficial do Estado poderia ser eleitor ou candidato, embora o inciso V do artigo 179 afirmava que ninguém podia ser perseguido por motivo de religião, pois o Estado não ofenderia a Moral Pública.
Logo após a proclamação da República, houve um rompimento drástico nas relações entre Estado e religião. Ao redigir o Decreto 119-A, Ruy Barbosa promoveu a separação definitiva do Estado brasileiro e a Igreja Católica Apostólica Romana, nos seguintes termos:
Art. 1º, referido Decreto determinava que “é proibido a autoridade federal, assim como a dos Estados federados, expedir leis, regulamentos ou atos administrativos, estabelecendo alguma religião, ou vedando-a, e criar diferenças entre os habitantes do país, ou nos serviços sustentados à custa do orçamento, por motivos de crenças, ou opiniões filosóficas, ou religiosas”.
Os demais artigos ampliavam a liberdade de culto e previam a organização religiosa, mas sem contar com a intervenção do poder público.
A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891 representou, segundo Russar (2017), o marco no tocante à laicidade do Estado. Não houve menção do nome de Deus em seu preâmbulo. Nesta Constituição já se vedou aos Estados e a União estabelecessem, subvencionassem ou embraçassem o exercício religioso, e determinou que não haveria relações de dependência ou aliança com o governo da União ou outros Estados.
Em seguida, a Constituição de 1934 trouxe diversas alterações relacionadas à questão religiosa. Nesta Constituição, o nome de Deus foi mencionado e houve o reconhecimento da liberdade de culto, desde que não fosse contrário a ordem pública e os bons costumes. O casamento foi reconhecido com seus efeitos civis, dentro das regras estabelecidas, permitiu-se a assistência espiritual e hospitalar e as associações religiosas passaram a adquirir personalidade jurídica.
Com a Constituição de 1937, novamente se reforça a proibição do Estado em estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos, mas não houve no preâmbulo desta constituição a menção do nome de Deus. A liberdade religiosa, nos termos da constituição anterior, foi assegurada, mas o caráter jurídico das associações foi silenciado e a igualdade perante a lei foi prevista de forma genérica.
Na Constituição de 1946 a expressão da proteção de Deus volta a ser mencionada, e reforçada a proibição da União, Estados, Distrito Federal e Municípios em estabelecer, subvencionar ou embaraçar os cultos religiosos. Mas, nesta Constituição não há previsão expressa para que o Estado mantenha relação de aliança ou dependência com a igreja. Surge neste momento a imunidade tributária com relação aos impostos para os templos de qualquer culto e a previsão de assistência religiosa aos militares e aos internados em habitação coletiva. Os cemitérios seriam lugares seculares, onde as organizações religiosas poderiam praticar seus cultos. Surgiu também a previsão de descansos remunerados em dias de feriados religiosos e a possibilidade de efeitos civis ao casamento religioso.
A Constituição de 1967 mantém as mesmas proibições anteriores, mas permite a colaboração entre o Estado e as organizações religiosas, quando houvesse interesse público, destacando os setores da educação, assistencial e hospitalar. Reafirma a segurança da liberdade de consciência e exercício de cultos religiosos, desde que não contrarie a ordem pública e os bons costumes. Foi novamente assegurada a assistência religiosa às forças armadas e nos estabelecimentos de internação coletiva. Continuou a assegurar o repouso remunerado nos feriados religiosos e o casamento religioso com efeitos civis e o ensino religioso facultativo e se manteve a imunidade tributária sobre os templos de qualquer culto.
Por fim, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 segue, no que diz respeito às instituições religiosos e crença do povo brasileiro, consagrando a possibilidade de a lei prever a escusa de consciências nestes termos:
“ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”. (Art. 5°, Inc. VIII da Constituição Federal de 1988.)
Continua a proibição de estabelecer, subvencionar ou embaraçar o funcionamento dos cultos religiosos ou igreja. São assegurados a possibilidade de colaboração de interesse público, o ensino religioso facultativo, a imunidade tributária e o casamento religioso com efeitos civis.
2.2 A LAICIDADE PRESENTE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO A PARTIR DA CONSTITUIÇÃO DE 1988
O artigo 19 da Constituição Federal de 1988 consagra a laicidade do Brasil, estabelecendo que:
É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvenciona-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.
III – criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.
Para melhor compreensão deste artigo, é necessário buscar o significado das palavras aliança e dependência. Por aliança se entende uma união de esforços para se chegar a uma finalidade específica. Por dependência se entende a situação de sujeição de uma pessoa a outra.
O Estado brasileiro, ao vedar todos os entes federativos à manutenção de relações de dependência com instituições religiosas, proibiu-se a teocracia, para que não haja confusão entre Estado e Religião. Ao vedar ao Estado à manutenção de relações de aliança com instituições religiosas, proibiu-se que a religião influenciasse nos rumos políticos e jurídicos da nação. Ao vedar o estabelecimento e subvenção de cultos religiosos ou igrejas, proibiu-se uma religião oficial e o caráter confessional do Estado. Mas, ao vedar o embaraço dos cultos e intuições religiosas, o Estado se afirma não ser ateu, pois a ideologia do Estado Ateu é proibir qualquer manifestação religiosa. Por fim, ao vedar as distinções ou preferências de brasileiros entre si, proibiu-se o estabelecimento de privilégios, que são vantagens entre as diversas religiões entre si.
Dessa forma, são vedados os conceitos teocráticos, confessional e ateísta de Estado brasileiro, tendo restado para reger o país o conceito laico, consagrando a liberdade de consciência, a liberdade de crença, o livre exercício de cultos religiosos, a proteção, na forma da lei, dos locais dos templos e suas liturgias. E, com essas vedações, o Estado também não pode determinar as normas internas das instituições religiosas, pois estas possuem liberdade para organizarem a sua própria estrutura e seus dogmas.
Contudo, a parte final do inc. I do art. 19 da Constituição Federal de 1988 afirma que, se a instituição religiosa estiver desenvolvendo atividades beneficentes e úteis a sociedade, poderá receber a colaboração do Estado. Mas isso só pode acontecer se o Estado considerar útil para um fim pretendido pela coletividade sem nenhuma relação com a crença em si.
Segundo Zylbersztajn (2017), “o Estado brasileiro tem o dever de garantir que os cidadãos exerçam sua religiosidade de maneira livre”, assim não pode tornar novamente uma religião como oficial ou mesmo prejudicar o exercício das diversas religiões.
Nota-se que não há nenhum dispositivo de lei que expressa que a República Federativa do Brasil é um Estado laico. Mas sim, diretrizes gerais que garantem a igualdade e liberdade para o exercício das religiões.
3 LAICIDADE E LIBERDADE RELIGIOSA
Sobre o tema da liberdade religiosa, destaca Silva (2008, p. 248), se compreendem três formas de expressão, também chamadas de três liberdades, a saber: liberdade de crença, liberdade de culto e liberdade de organização religiosa, todas garantidas pela Constituição.
A Constituição de 1988, retomando à tradição da Constituição de 1946, declara inviolável a liberdade de consciência e de crença e instrui que ninguém será privado de seus direitos por motivos de crença religiosa (Art. 5°, VI). É percebido que o constituinte não confunde liberdade de crença com a de consciência, pois o descrente também tem liberdade de consciência e pode pedir que seu direito seja tutelado. Entende-se que a liberdade de crença se refere a liberdade de ter ou não ter uma crença. Entra, neste aspecto, a liberdade de escolha da religião, de aderir uma determinada seita religiosa, a possiblidade de mudança de religião e a liberdade de não aderir a nenhuma religião, de ser ateu ou agnóstico.
Por liberdade de culto se entende que a religião não é somente um sentimento sagrado, mas geralmente está acompanhada de uma doutrina, com características próprias, ritos de cultos e cerimônias, reuniões, hábitos e tradições. Assim, a liberdade de culto significa a possibilidade de rezar, orar, praticar os atos próprios e manifestações exteriores em recintos fechados ou em público.
O art. 5°, VI, da Constituição Federal em tese descreve: “é assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. Supõe-se que o culto religioso não seja contrário aos bons costumes e à ordem pública. Não será a lei que definirá os locais de cultos e as liturgias, mas garantirá proteção dos locais de culto, inclusive se o culto religioso acontecer em lugares e logradouros públicos.
A Constituição também garante a liberdade de organização religiosa, com relação a possibilidade de estabelecimento e organização das igrejas e suas relações com o Estado. Entende-se nesse aspecto a colaboração do Estado, desde que tenha interesse púbico, mesmo se a iniciativa e administração seja por parte das religiões, como é o caso de associações assistenciais e beneficentes.
4 NOME DE DEUS NO PREÂMBULO DA CONSTITUIÇÃO DE 1988
Para esclarecer a afirmação que o Estado brasileiro é laico e não ateu, a análise do preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, é fundamental.
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
Desde a Constituição Política do Império do Brasil, de 1824, até a Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, foram elaborados preâmbulos que procuraram refletir a conjuntura política e social, com uma linguagem repleta de promessas e anseios e marcas do tempo que foram escritos. Somente as Constituições de 1891 e 1937, inspiradas, no ideal positivistas e na doutrina totalitária, não reportaram a Deus em seus preâmbulos.
De acordo com Coelho (2009, p.30), que analisou a natureza jurídica do preâmbulo a partir da obra clássica de Hans Helsen, Teoria Geral do Direito e do Estado, afirma ser uma introdução solene, que expressa as ideias políticas, morais e religiosas que a constituição tende a promover, possuindo caráter mais ideológico que jurídico, mas que serve para dar maior dignidade e elevar o grau da eficácia da Constituição.
Conforme o Supremo Tribunal Federal (MS 24645 MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 15/9/2003), o texto do preâmbulo não pode ser invocado isoladamente e não tem força de norma constitucional. Contudo, o nome de Deus é parte integrante da Constituição e desempenha, portanto, valor interpretativo do sistema jurídico-constitucional, servindo indiretamente como aferição de constitucionalidade.
Silva Junior (2011), em sua pesquisa, destacou a posição de alguns constituintes a respeito de manter ou não a “proteção de Deus”, o que faz compreender que a vontade do povo é que o nome de Deus seja preservado e o próprio Estado reconheça a existência de Deus. A seguir, destaca-se alguns posicionamentos.
A separação Igreja-Estado e o respeito aos brasileiros ateus ou materialistas, ainda que minoria da população, foram os principais argumentos dos constituintes Haroldo Lima (Diário da ANC (“C”) e José Genuíno (Diário da ANC), que buscavam a supressão de “Deus” da disposição preambular.
Dentre os constituintes que se manifestaram a favor de manter a proteção de Deus, tiveram diversos fundamentos, destacando-se:
a) “recusar a proteção de Deus é querer negar a fé que todo o povo brasileiro testemunha e invoca”, sendo falso o argumento “de que se pode dispensar esta invocação em respeito aos incrédulos, ateus, céticos ou infiéis”; (Diário da ANC (“C”) - constituinte Daso Coimbra)
b) apesar de já ter votado, em outras ocasiões, pela “exclusão de qualquer referência a Deus”, “mudo” o voto para não “desrespeitar um sentimento deísta e religioso do povo brasileiro”; (Diário da ANC (“C”) - constituinte Roberto Freire)
c) “faz justiça a toda nossa formação cristã”, evocando “aquela mensagem extraordinária do Evangelho, aquele testemunho que estabelece: ‘quando estiverem reunidas em Meu nome, duas ou mais pessoas, eu ali estarei’”; (Diário da ANC (“C”) - constituinte José Maria Eymael, p. 860)
d) “a fé cristã é predominante na sociedade brasileira”; (Diário da ANC (“C”) - constituinte Aluízio Campos, 1988, p. 879)
e) “Ninguém pode tirar o sentimento místico do povo brasileiro”; (Diário da ANC (“C”) - constituinte Lysâneas Maciel, 1988 p. 856)
f) a Nação é “totalmente cristã” e “o sentimento de respeito a Deus vai nos trazer a sabedoria, humildade, bom-senso e prudência que só Deus pode colocar em nossas vidas”; (Diário da ANC - constituinte Roberto Augusto)
g) “a maioria do povo brasileiro, como nós, invoca o nome de Deus”, sendo que há “uma profunda ligação entre invocar o nome de Deus e a participação popular”, pois “Ninguém mais do que Cristo se preocupou com os humildes, com os pobres e com aqueles que não tinham as dádivas que só os grandes possuem”; (Diário da ANC - constituinte Brandão Monteiro)
h) os comunistas “não aceitam a ideia de que Deus possa existir, de que Deus possa ser respeitado”, sendo o Brasil “a maior Nação cristã do mundo”; (Diário da ANC - constituinte Fausto Rocha, p. 6634)
i) as “ideias de liberdade, justiça, fraternidade e solidariedade, na alma, no conceito e na linguagem das nações” desembocam “em um vocábulo que em todas as línguas acaba por traduzir-se em poucas, mas profundas e eternas letras: Deus”, sendo certo que “a própria alma da Nação brasileira [é], na sua maioria absoluta irmanada no sentimento de cristandade”. (Diário da ANC - constituinte José Maria Eymael)
Dessa forma, entende-se que a citação de Deus no preâmbulo, mantida pelos constituintes, tem o objetivo de traduzir o reconhecimento estatal da existência de Deus e do poder que Ele tem para proteger toda a nação. Portanto, não é só uma questão de respeito de crença com a maioria do povo brasileiro, mas a vontade que o Estado minifesta de estar sob a proteção de Deus.
CONCLUSÃO
Tendo discorrido um longo período da história do Brasil e analisado as suas constituições, evidencia-se a adoção do princípio da laicidade do Estado, o qual segue também a maioria dos Estados mundiais, que não querem que política e religião se confundem, nem que as decisões políticas, jurídicas e administrativas sejam atreladas a uma religião oficial, de tal modo a permitirem ao povo ter sua crença e liberdade de manifestar publicamente a sua religião, sem repreensão ou limitação por parte do Estado impondo respeito igual aos que não manifestam publicamente a sua crença e até mesmo aos que não creem, os ateus ou agnósticos.
Merece destaque a abertura que a Constituição Federal oferece acerca da colaboração recíproca de interesse público, na forma da lei, contido no art. 19, I, da CF de 1988. No Brasil, diversas iniciativas de religiões, sobretudo relacionadas a obras de caridade e assistenciais a idosos, crianças e adolescentes, doentes, imigrantes e prisioneiros, como por exemplo a iniciativa da Igreja Católica da Pastoral da Criança que presta serviço à população carente, contando com o apoio do Estado para o desenvolvimento de suas ações. Há também iniciativas próprias do Estado de pedir a colaboração da Igreja, como é o caso do Amicus Curie, solicitando a opinião no julgamento ou elaboração de alguma norma, como foi o caso da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 54 julgado pelo STF, que pediu a opinião da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, da Igreja Católica) sobre a interrupção da gravidez no caso de anencefalia.
O Brasil é considerado um país laico e não a-religioso ou ateu. Seja por respeito aos costumes, ou explicitado em leis, é garantido o direito de crer, não crer e praticar sua religião de acordo com suas convicções, sem ferir os bons costumes e respeitando o princípio maior da dignidade da pessoa humana.
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Bacharelando em Direito pela Universidade Brasil. Fernandópolis/SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Rodolfo Cabrini de. A laicidade como princípio constitucional no ordenamento jurídico brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 jun 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50244/a-laicidade-como-principio-constitucional-no-ordenamento-juridico-brasileiro. Acesso em: 16 nov 2024.
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