RESUMO: O presente artigo tem a finalidade de esclarecer sobre a aplicabilidade ou não do princípio do contraditório e da ampla defesa no inquérito policial, devido a promulgação da Constituição da República de 1988. A investigação criminal no Brasil, como regra, não possui contraditório, no entanto, como a Constituição Federal assegura tais garantias aos processos judiciais e administrativos, parcela da doutrina, entende que principalmente o princípio do contraditório deve ser respeitado. Dessa forma, é necessário explicitar as razões pelas quais surgiram tais discussões, com uma ampla abordagem doutrinária, com base nos mais variados constitucionalistas penais, onde apresentam argumentos a favor e contra a possibilidade de exercer o contraditório no inquérito policial.
Palavras-chave: Inquérito policial. Investigação criminal. Contraditório. Devido processo legal. Processualização dos procedimentos.
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Inquérito Policial. 2.1 Conceito. 2.2 Natureza Jurídica. 2.3 Características do Inquérito Policial. 3 (In)aplicabilidade do Princípio do Contraditório no Inquérito Policial. 3.1 Devido Processo Legal na Constituição Federal de 1988. 3.2 Do Contraditório no Processo Penal. 3.3 Inquérito Policial e o Princípio do Contraditório. 3.4 Inquérito Policial e o Movimento da Processualização dos Procedimentos. 3.5 Do Direito de Defesa no Inquérito Policial. 4 Considerações Finais. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O inquérito policial, considerado pela maioria como um procedimento policial administrativo, instituído no Brasil por meio do Decreto n. 4.824, de 22.11.1871, e previsto no Código de Processo Penal Brasileiro como fundamental procedimento investigativo da polícia judiciária brasileira. Ele precede a ação penal, sendo usualmente considerado como pré-processual, com a finalidade de buscar de elementos de informações acerca da autoria e materialidade de delito, para apresenta-los ao titular da ação penal.
O presente estudo visa aprofundar a análise do inquérito policial sob o prisma constitucional, onde, por meio do movimento chamado “processualização dos procedimentos”, busca aplicar ao inquérito policial os mesmos princípios garantidos para o processo.
Desta forma, faz-se necessário abordar o princípio constitucional do contraditório, bem como suas facetas perante o inquérito conduzido pela autoridade policial.
O tema é amplo e farto para divergências, sendo impositivo salientar que durante todo o estudo a doutrina e jurisprudência foram prevalentes fontes de informação. Não poderia ser de outra a referência, em virtude da época em que o código foi editado.
Por fim, espera-se demonstrar ao leitor as controvérsias acerca do tema explicitado, as quais são discutidas em linguagem simples e direta, possibilitando a plena compreensão do tema enfrentado pelo presente trabalho.
2. INQUERITO POLICIAL
2.1. Conceito
Inquérito policial é um procedimento administrativo inquisitório e preparatório, presidido pela autoridade policial, consistente no conjunto de diligências realizadas com o objetivo de colher elementos de informação quanto à autoria e à materialidade do delito, a fim de que o titular da ação penal possa ingressar em juízo.
A partir do momento em que um delito é praticado, o Estado começa a desenvolver uma série de medidas com o objetivo de punir o agente. As investigações policiais, iniciadas através do inquérito policial, são o começo dessas atividades.
Nesse contexto, o respeitável doutrinador Aury Lopes Junior entende que o inquérito policial possui uma dupla função:
a) função preservadora, ao evitar que sejam instauradas ações penais temerárias e sem justa causa, ferindo direitos e garantias fundamentais (Scarance Fernandes); e
b) função preparatória, ao colher elementos de informação que forneçam lastro probatório mínimo para que o titular da ação penal possa iniciar a persecução penal em juízo.
2.2. Natureza Jurídica
O inquérito policial é um procedimento de natureza administrativa (é um procedimento administrativo), porque dele não resulta a imposição direta de sanção. Há dois momentos bem distintos no Processo Penal, o das investigações (inquérito policial) e o da ação penal (denúncia ou queixa), ao final da qual será eventualmente imposta a sanção.
Por ser um procedimento administrativo, e não um processo, o contraditório e ampla defesa não são garantidos de modo absoluto tal como ocorre nos procedimentos judiciais. Garantir o contraditório e a ampla defesa na fase investigatória protelaria e tumultuaria sobremaneira a conclusão do procedimento, cujo prazo para conclusão atribuído pelo Código de Processo Penal é exíguo (10 dias no caso de réu preso e 30 dias nos casos de réu solto, conforme art. 10, Código de Processo Penal).
Todavia, vale ressaltar que, excepcionalmente, é possível admitir o contraditório das provas produzidas durante a investigação criminal, tal como ocorre nos casos de provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.
2.3. Características do Inquérito Policial
O inquérito policial possui diversas características, dentre as principais destaca-se:
a) Escrito: O inquérito policial é uma peça escrita. Tudo é documentado no papel (art. 9º, do Código de Processo Penal);
b) Dispensável: Se o titular da ação penal contar com elementos de informação a partir de peças de informação distintas, poderá dispensar o inquérito policial. O inquérito policial ainda é hoje o principal instrumento investigatório, mas não é a única fonte de investigação, como demonstra, por exemplo, o art. 39, § 5º, do Código de Processo Penal;
c) Sigiloso: A surpresa é essencial à eficácia das diligências investigatórias. A Constituição Federal determina que a publicidade deve ser observada no processo judicial. O direito de ter acesso às investigações já documentadas nos autos, é dado ao Ministério Público, ao Juiz e ao defensor, ou seja, a eles não se opõe o sigilo. Quanto ao advogado, o art. 5º, LXIII, a Constituição da República prevê a assistência de advogado à pessoa objeto de investigação. E a Lei 8.906/94 (Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil), em seu art. 7º, XIV (direitos do advogado), permite a análise de autos de inquérito policial;
d) Inquisitorial: Majoritariamente, não é obrigatória a observância do contraditório e da ampla defesa no inquérito policial. Afirmar que o inquérito é inquisitivo é trabalhar com a forma de gestão do procedimento. O inquérito é administrado (gerido) com a concentração de poder em autoridade única.
e) Discricionário: A atividade investigatória, como é inquisitiva, permite que o delegado conduza discricionariamente as investigações, determinando a realização das diligências que lhe pareçam úteis ou necessárias à elucidação do crime e de sua autoria, tal como estabelece o art. 14 do Código de Processo Penal. A discricionariedade do inquérito se caracteriza por uma margem de conveniência e oportunidade na condução da investigação, de forma que a autoridade policial organiza o inquérito dentro da sua estratégia investigativa. Delegado pode negar diligências. Não é um procedimento predeterminado passo a passo. As etapas dependerão do caso concreto.
f) Indispensável: O Delegado não pode arquivar o inquérito. O arquivamento é um procedimento complexo, que passa pelo MP e chega ao Juiz (art. 17, do Código de Processo Penal).
3. (IN)APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO NO INQUÉRITO POLICIAL
3.1. Devido Processo Legal na Constituição Federal de 1988
Com o advento da Constituição Federal de 1988, foi inserido o artigo 5º, inciso LV, no capítulo dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, no qual dispõe que:
Art. 5º, LV - Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
Este inciso contempla o devido processo legal, pois, efetivamente, não se pode falar neste se não forem observados os princípios do contraditório e da ampla defesa (TUCCI, 2002, p. 212). Apesar de muitos doutrinadores discutirem que o princípio do contraditório se insere na ampla defesa e outros aduzirem diametralmente o oposto, é necessário entender que ambos os princípios estão interligados, ainda que se trate de conceitos absolutamente distintos. Conhecido como direito de defesa, os princípios do contraditório e da ampla defesa não se resumem a um simples direito de manifestação no processo, isto é, o que o constituinte realmente objetivou foi assegurar a pretensão à tutela jurídica (MIRANDA, 1987, p. 234).
A doutrina moderna, corroborando as mesmas premissas, entende que a garantia mencionada não envolve apenas o direito de manifestação dos atos processuais e o direito à informação sobre o objeto do processo. É necessário também levar em consideração as razões e os argumentos apresentados pelas partes, ou seja, deve o juiz incumbir-se de responder à parte a razão pela qual não acolheu seu pedido. Essa resposta promovida pelo juiz não é apenas garantia do devido processo legal, sendo, portanto, consequência do dever do magistrado de fundamentar suas decisões, conforme estabelece o art. 93, IX, da Constituição Federal (MENDES, 2012, p. 500).
3.2. Do Contraditório no Processo Penal
Antes de adentrar no tema, é necessário entender o conceito de contraditório. Segundo a lição de Joaquim Canuto Mendes de Almeida (1973, p. 82), o princípio do contraditório é a ciência bilateral dos atos ou termos do processo e a possibilidade de contrariá-los. Essa audiência bilateral permite a fiscalização recíproca de todos os atos processuais, e não somente à defesa (BRASILEIRO, 2012, p.18).
Em virtude do princípio do contraditório, Fernando da Costa Tourinho Filho (2009) sustenta que a defesa não pode sofrer restrições, mesmo porque o princípio supõe completa igualdade entre acusação e defesa. Ambas estão situadas no mesmo plano, em igualdade de condições, e, entre elas, de maneira imparcial, o Órgão Jurisdicional, para, afinal, depois de ouvir as alegações das partes, depois de apreciar as provas, dar a cada um o que é seu.
Por essa razão, o princípio do contraditório ganhou grande destaque no processo penal, tendo em vista sua imprescindibilidade para a condenação. Em outras palavras, inexiste condenação penal sem defesa. Além disso, é patente a afirmação de que, na falta de advogado para promover a defesa do réu, cabe ao juiz designar defensor dativo para assegurar o patrocínio da causa (MENDES, 2012, p. 500). Essa mesma ideia se dá nos casos em que a defesa se mostra insuficiente (NERY JUNIOR, 2002, p. 137) ou desidiosa, para com o acusado, razão pela qual, não raras vezes, essa negligência ocasiona a anulação do feito, devendo-lhe ser, posteriormente, regularizada por meio da designação de um novo defensor ao acusado.
Parafraseando Aury Lopes Júnior, Fábio Motta Lopes (2009, p. 82), aduz ainda que o princípio do contraditório caracteriza-se, preliminarmente, por assegurar ao sujeito passivo o direito de ser informado sobre a acusação, com o objetivo de que possa oferecer, em um segundo instante, resistência à imputação. O autor ainda ressalta que “com o contraditório, nasce para o sujeito passivo, após tomar conhecimento da existência e do teor da imputação (direito de informação), a possibilidade de resistência à pretensão investigatória e coercitiva estatal”. Para Pedroso (1986, p.18), essa resistência é tão somente a manifestação do princípio da isonomia, possibilitando-se, assim, a igualdade de condições em relação à acusação. Por outro lado, Cristiane da Rocha Corrêa (2006, p.228), fundamentada numa posição mais radical, entende que não basta somente garantir a audiência bilateral das partes, sendo necessário também assegurar às partes idênticas chances com relação à produção e utilização das provas e o mesmo acesso às informações que constem no processo, garantindo-se, assim, a paridade de armas.
Por essa razão é que Renato Brasileiro (2012, p.18) sustenta que o contraditório é formado, basicamente, pelos direitos à informação e à participação. O primeiro exige a necessidade de cientificar o acusado da existência da demanda ou dos argumentos da parte contrária. Por outro lado, o direito à participação no processo resta garantido pela possibilidade de a parte se manifestar e reagir contrariamente àquilo que está sendo imputado a ela.
Ainda que haja importantes posicionamentos sobre o tema, a maioria da doutrina e jurisprudência ainda entende que a observância do contraditório somente se mostra obrigatória, no processo penal, na fase processual, e não na fase investigatória. Essa posição se fundamenta no art. 5º, inc. LV, da Constituição Federal, o qual somente menciona a observância obrigatória do contraditório em processo judicial ou administrativo. Portanto, por inexistir menção expressa aos procedimentos administrativos, a doutrina majoritária entende que o contraditório não se mostra aplicável ao inquérito policial.
3.3. Inquérito Policial e o Princípio do Contraditório
Conforme mencionado ao longo desta elucidação, a doutrina é majoritária no sentido de que não há aplicação do princípio do contraditório durante o inquérito policial. Não obstante esse entendimento, a matéria é dura e controvertida, trazendo posições de inúmeros autores do mais alto gabarito doutrinário.
Segundo Paulo Rangel (2010, p.106), por se tratar de um procedimento administrativo com a finalidade de apurar a prática de um fato, em tese, dito como infração penal, não há razão para aplicação do princípio do contraditório, em razão de que não há qualquer acusação em detrimento do indiciado. Logo, o indivíduo é tão somente um objeto de investigação com todos os direitos previstos na Constituição. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (2001, p. 41 apud LOPES, 2009, p. 91) complementa, dizendo que “a regra constitucional que assegura o contraditório somente se aplica quando houver processo, não incidindo tal princípio durante o inquérito policial”. José Néri Silveira (1996, p. 11), por sua vez, aduz que as investigações criminais não se submetem, em virtude da própria natureza, ao contraditório e à ampla defesa, postulados que são reservados aos acusados na fase judicial.
Em que pese inexistir partes na etapa pré-processual, é de convir que a aplicação do direito à informação configura, para muitos autores, o primeiro momento do contraditório na fase investigatória. Aury Lopes Jr. (2012, p. 366) sustenta que, a prima facie, há duas formas em que há possibilidade de o indiciado exercer o contraditório no inquérito policial:
1) A primeira delas se dá no interrogatório policial, onde o acusado tem a possibilidade de exercer autodefesa positiva (dando sua versão aos fatos) ou negativa (usando seu direito de silêncio);
2) Outra possibilidade ocorre nos casos em que o acusado se faz acompanhar de advogado (defesa técnica) que poderá agora intervir no final do interrogatório. O autor aduz ainda que a possibilidade aberta pelo art. 14 do CPP, que possibilita ao acusado postular diligências e juntar documentos, também configura uma hipótese de exercício do contraditório.
O professor Aury Lopes Jr. argui que o princípio do contraditório no inquérito policial se extrai da interpretação extensiva do art. 5º, LV, da Constituição Federal, uma vez que o texto constitucional é extremamente abrangente, motivo pelo qual tal interpretação deverá proteger os litigantes tanto em processo judicial como em procedimento administrativo. E continua: “o direito de defesa é um direito-réplica, que nasce com a agressão que representa para o sujeito passivo a existência de uma imputação ou ser objeto de diligências e vigilância policial” (2012, p. 368).
Para Paulo Cláudio Tovo (1999, p. 216-7 apud LOPES, 2009, p. 97), o direito ao contraditório e à ampla defesa deve viger “mesmo antes de instaurado o processo penal”. De acordo com o autor, o dispositivo constitucional sob análise incide sobre o inquérito policial, a partir do indiciamento, não só porque se faz menção a acusados em geral, mas em razão, igualmente, do termo litigantes.
Diante do exposto, é possível observar que há litígios na fase policial, pois, de um lado estão as vítimas e familiares buscando provas, e de outro o investigado almejando outras para se eximir da culpa. Essas posições contrapostas, que iniciam desde a investigação preliminar, caracterizam conflitos de interesses (VARGAS, 1992, p. 115), portanto, deve-se garantir a defesa, ainda que por meio de um contraditório mínimo, consubstanciado no direito de informação, aos investigados que sejam apontados no inquérito como prováveis autores de infrações penais.
3.4. Inquérito Policial e o Movimento da Processualização dos Procedimentos
Nos últimos anos, principalmente com o destaque que a operação lava jato imprime a fase pré-processual, vem se destacando o movimento chamado de “processualização dos procedimentos”, cuja ideia se funda na aplicação dos princípios constitucionais aos procedimentos administrativos. Por conta desse fenômeno, o inquérito policial, que é procedimento administrativo, deveria sofrer um abrandamento em relação a sua inquisitoriedade, isto é, passando-se a admitir a presença do contraditório.
Levando em consideração este movimento, podemos notar um ponto em comun na fala da grande maioria dos Políticos investigados na operação Lava Jato, é o fato de que “não tiveram acesso total as investigações”, “vão provar a sua inocência com as investigações” entre outras desculpas, pretendendo processualizar os procedimentos, ou seja, querem aplicar o princípio do contraditório no inquérito policial.
Os doutrinadores, que defendem a processualização, sustentam que a regra está contida no inciso LV, artigo 5º da Magna Carta, que dispõe “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados e, geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ele inerentes”.
Aury Lopes Jr. (2012, p. 366), corroborando este mesmo entendimento, afirma que a intenção do constituinte foi claramente protetora, o que significa dizer que a confusão terminológica entre processo administrativo e procedimento administrativo não pode servir de obstáculo para sua aplicação no inquérito policial. Além disso, sustenta o autor, que o próprio legislador ordinário cometeu outros enganos, tal como chamar, no próprio Código de Processo Penal, de processo comum, processo sumário etc., quando na verdade deveria dizer “procedimento”. A sua obra apresenta ainda outras expressões que, com o passar do tempo, passaram a ser utilizadas de forma ampliativa, como, por exemplo, o fato de a Constituição Federal mencionar acusados, e não indiciados, não ocasionando qualquer impedimento para sua aplicação na investigação criminal.
Também se filiam a essa corrente doutrinária, diversos outros autores, os quais sustentam que o momento jurídico reconhece ser o de “processualização dos procedimentos”, tendo, por conseguinte, a necessidade de reconhecimento do contraditório e do direito de defesa no inquérito policial. Dessa maneira, entendem ainda que atualmente os métodos de exercício de poder vêm sendo modulados com a previsão de respeito ao princípio do contraditório, de forma que seja garantida a aplicação horizontal dos direitos e garantias fundamentais, ainda quando se trate de procedimento administrativo.
Higor Vinicius Nogueira Jorge, afirma que:
“A processualização seria uma saída rumo ao fortalecimento do procedimento e ensejaria a não repetição em Juízo, das provas obtidas no procedimento investigatório”.
Por fim, é importante ressaltar, que tal aplicação não deverá ocorrer indistintamente e de forma desenfreada, tendo em vista a impossibilidade de contraditório pleno no inquérito policial. Isso se dá, em face da inexistência de relação jurídico-processual, não estando presente a estrutura dialética que caracteriza o processo. Para Aury Lopes Jr., “não há o exercício de uma pretensão acusatória” (2012, p.367), porém, conforme o procedimento investigatório for progredindo em sua tramitação, deverá o acusado ser cada vez mais titular ao seu direito à informação. O objetivo disso é que, na medida em que o inquérito policial chegue ao seu fim, este ganha especial relevância, tendo em vista que, posteriormente, o exercício de defesa deverá também ser fundamentado no mesmo procedimento investigatório submetido pelo acusado, qual seja: o próprio inquérito policial.
3.5. Do Direito de Defesa no Inquérito Policial
No que pese inexistir propriamente o contraditório no inquérito policial, é importante atentar a quase unânime aceitação de que há direito de defesa na fase investigatória, conforme se extrai do art. 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal, dispondo que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”. Essa assistência técnica concedida desde a etapa preliminar permite que o acusado prepare adequadamente sua defesa em juízo, bem como fiscalize os atos que não se renovam durante o processo penal. De acordo com Gilmar Mendes (2012, p. 511), o direito do advogado a ter acesso aos autos antes da data designada para o seu interrogatório é direito do investigado,
No entanto, para que essa assistência se mostre eficaz, é necessário que o advogado esteja armado com diversas garantias, permitindo que atue de forma independente e autônoma em relação aos demais órgãos estatais. Uma dessas garantias é o amplo acesso ao inquérito policial, sendo inclusive assegurado o direito à extração de cópias e de fazer apontamentos (AURY, 2009, p. 321). Portanto, ainda que o procedimento investigatório seja classificado como sigiloso, essa sigilosidade também sofre limitações em prol da plena acessibilidade do advogado.
O Supremo Tribunal Federal, considerando esse direito do advogado editou o Enunciado n. 14 da Súmula Vinculante, segundo a qual “é direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgãos com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”. Com a edição do enunciado, passou-se a garantir ao defensor o seu devido acesso aos documentos já juntados aos autos que poderão ser contraditados pelo acusado, e ao mesmo tempo preservar o necessário sigilo dos atos de investigação inda não realizados ou em andamento, como, por exemplo, a escuta telefônica em andamento ou um mandado de prisão ou busca e apreensão ainda não cumprido (AURY, 2012, p. 370).
É importante salientar que, ao garantir ao acusado uma defesa na fase pré-processual, não significa dizer que todos os direitos inerentes ao contraditório e à ampla defesa deverão ser concedidos. De outro lado, direitos inerentes a estes poderão ser analisados conforme a discricionariedade do delegado, tal como o direito de postular diligências e a de buscar elementos informativos em favor de sua defesa. Para Paulo Thadeu Gomes da Silva (2005, p.315), a limitação da defesa ao indiciado na etapa pré-processual pode trazer reflexos no processo penal, gerando prejuízos ao réu que possam resultar em sua condenação. Por essa razão, sustenta o autor, o cerceamento desse direito ao indiciado no inquérito policial é suficiente para que seja admitido o remédio constitucional do habeas corpus.
Como se verifica, o reconhecimento do direito de defesa ao acusado mitiga a inquisitoriedade do inquérito policial, não havendo qualquer incompatibilidade entre um e outro. Para muitos autores o direito de defesa inicia com o indiciamento, o qual contribui para a ampla defesa do investigado, que a partir de então passa a ter ciência do seu status dentro da persecução penal. Fazendo uma analogia com o auto de prisão em flagrante, podemos afirmar que o indiciamento funciona como uma espécie de nota de culpa (CABETTE, 2013). Disciplina o referido autor que:
em observância aos princípios do contraditório e da ampla defesa, uma vez efetivado o formal indiciamento de um suspeito, cabe ao Delegado de Polícia lhe fornecer uma nota de culpa, onde constará o crime e os motivos pelo qual ele está sendo indiciado, além do nome da autoridade responsável por esta decisão.
E tem razão o autor, uma vez que agindo dessa forma a autoridade policial, as investigações preliminares não sofrem qualquer prejuízo, pelo contrário, com o cumprimento da formalidade, o acusado passa a ter o conhecimento exato de sua imputação, fortalecendo os elementos adquiridos pelo procedimento. O autor ainda conclui: “da mesma forma e em obediência ao princípio da igualdade (paridade de armas), a Autoridade de Polícia Judiciária deve permitir a manifestação da vítima e do Ministério Público nos autos do Inquérito Policial. Tudo isso no intuito de melhor formar o seu convencimento” (CABETTE, 2013).
4. Considerações Finais
De acordo com o que foi explorado no presente estudo, o inquérito policial, por se tratar de uma ferramenta estatal com o intuito de investigar as infrações penais, traz consigo grandes discussões sobre o instituto do contraditório, motivo pelo qual a doutrina, historicamente, o considera bastante polêmico.
Além do que, tendo sido inserido no Código de Processo Penal em meio a ditadura militar no Brasil, o inquérito policial se caracteriza precipuamente pela inquisitoriedade, sigilosidade e discricionariedade, o que, para muitos operadores do Direito, abre espaço para a prática de reiteradas arbitrariedades pela polícia.
Acontece que essa atribuição concedida ao delegado de polícia não é unilateral, de forma que apenas a acusação se beneficie de toda e qualquer diligência investigatória. Pois é exatamente neste ponto em que as discussões se acentuam. Isso porque a corrente amplamente majoritária não admite que haja contraditório no inquérito policial, pois, por ser um procedimento administrativo, e não processo, inexiste aplicação dos princípios constitucionais abrangidos pelo disposto no art. 5º, inciso LV, da CF.
Em que pese os respeitáveis argumentos que não reconhecem o contraditório no inquérito policial, outros autores por não vislumbrar efetiva diferença entre procedimento e processo, entendem que é garantido ao acusado o direito ao contraditório. Isso porque a Carta Magna deve ser interpretada ampliativamente, o que significa dizer que onde se lê processo administrativo, caberia também interpretação para os procedimentos administrativos.
No entanto, entendemos que somente deve caber o contraditório nos casos em que haja compatibilidade dos institutos, de modo que seja resguardado o interesse público pela aplicação da lei penal e punição de seus infratores, de modo a não procrastinar o procedimento e não prejudicar as investigações, que necessitam de rapidez para efetividade na colheita de elementos de informações.
Tendo em vista os diversos argumentos contra e afavor, acreditamos que a melhor solução encontrada se baseia na discricionariedade e no bom senso da autoridade policial, ou seja, ainda que não tenha expressamente o dever de conceder o contraditório, e amparado pela discricionariedade, pode realizar medidas para agregar substância ao procedimento. Portanto, é importante que a autoridade policial continue a conceder vista do inquérito policial ao advogado e autorize que o advogado acompanhe seu cliente nas diligências, entre outras medidas, a fim de garantir a lisura do procedimento, a fim de evitar possíveis defeitos que possam refletir na ações processuais futuras, aconselha-se que a autoridade policial deva também receber documentos e permitindo que o acusado se pronuncie acerca de algumas provas já documentadas pela acusação, sempre que qualquer desses atos não atrapalhe nem retarde o andamento das investigações.
Assim, sendo a autoridade policial mais diligente, haverá mais credibilidade para a polícia, evitando-se, com isso, a realização de inquéritos policiais despreparados e sem elementos de informação fidedignos, cujo, posteriormente, poderão ser facilmente desacreditados pela defesa ao longo do processo penal.
Portanto, cabe as autoridades policiais se valer da discricionariedade concedida pela lei para promover ainda que minimamente e no que for compatível a aplicação do contraditório dos investigados no inquérito policial.
Logo, não há como especificar o momento exato para que essa medida seja observada, tendo em vista que, deverá a autoridade policial, de acordo com sua discricionariedade, encontrar a melhor maneira e o melhor momento para assegurar os princípios constitucionais aos investigados, buscando sempre privilegiar, em primeiro lugar, pela melhor aplicação da Constituição Federal e, da norma infraconstitucional, tendo em vista que o Delegado de Polícia é o primeiro garantidor dos direitos humanos dos cidadãos.
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEREIRA, Douglas Camilo. (In)aplicabilidade do princípio do contraditório no inquerito policial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 jun 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50285/in-aplicabilidade-do-principio-do-contraditorio-no-inquerito-policial. Acesso em: 29 abr 2025.
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