Resumo: o presente artigo tem por objetivo analisar a aplicação do princípio da reserva do possível e a sua relação com efetividade das políticas públicas, notadamente na doutrina e nos precedentes do Supremo Tribunal Federal.
Palavras-chave: reserva do possível, políticas públicas, efetivação.
INTRODUÇÃO
Com advento da Constituição Federal de 1988 várias inovações foram introduzidas, dentre elas, a consagração do princípio da Dignidade da Pessoa Humana, que vem se mostrando como um dos principais pontos axiológicos do nosso ordenamento jurídico atualmente.
No entanto, sua positivação e efetividade vivem um dilema, pois, em que pese a Constituição Federal dizer no seu art. 5º, §1º, que os direitos fundamentais são dotados de eficácia, efetividade e de aplicabilidade imediata, a prestação estatal tem-se mostrado falha em alguns aspectos.
Com efeito, o Estado é o incumbido pela Magna Carta de garantir a efetividade dos Direitos fundamentais por meio de políticas públicas, devendo garantir sua efetividade.
Ocorre que, por muitas vezes, o Estado não é capaz de cumprir tal incumbência, seja por questões financeiras, seja por conflitos de atribuições entre os órgãos executores das políticas públicas.
Frisa-se que tal fato acaba por gerar volume intenso de demandas no Poder Judiciário, que por vezes, por meio de decisões judiciais, acaba por interferir na tarefa precípua do poder executivo, qual seja a criação e gestão das políticas públicas.
O Estado em contrapartida, em sua defesa, alega que não dispõe de recursos financeiros suficientes para garantir todos os direitos que a Constituição Federal assegura aos cidadãos, isso porque os recursos econômicos seriam limitados e as necessidades sociais ilimitadas.
Nesse sentido, é de suma importância analisar se o princípio da reserva do possível, de fato, pode ser oponível à realização das políticas públicas.
DESENVOLVIMENTO
É sabido que para efetivação dos Direitos Fundamentais, o Estado deve desprender receitas para o seu custeio. Neste contexto, entra o princípio da reserva do possível, definido como um limite ao poder do Estado de concretizar efetivamente direitos fundamentais. Este e o próprio mínimo existencial só podem conformar-se diante dos limites impostos pelo que se denomina de reserva do possível, não somente pela disponibilidade de recursos, mas também ao argumento das competências constitucionalmente estabelecidas, do princípio da separação dos poderes, da reserva da lei orçamentária e ainda do princípio federativo. (SILVA, 2010)
Nesse sentido, Mânica (2011) cita que a reserva do possível deve ser entendida sob o prisma da razoabilidade da reivindicação de efetivação de determinado direito social. Isso significa que pretensões deduzidas perante o Poder Judiciário deverão ser analisadas mediante a ponderação de bens, com base no critério da proporcionalidade.
Silva (2010) aduz, ainda, que por mais que se pense num Estado bem estruturado, aparelhado de maneira satisfatória para desempenhar seu papel constitucional, ainda assim, é difícil se pensar em um Poder Público nessas condições promoverá o atendimento integral a todos aqueles que necessitem das prestações sociais, dos direitos fundamentais de que são titulares.
Tem-se, doutrinariamente, que é possível a aplicabilidade e recepção da teoria da reserva do possível, fundamentando suas decisões, não somente pela disponibilidade de recursos, mas também ao argumento das competências constitucionais estabelecidas, do princípio da separação de poderes, da reserva da lei orçamentária e ainda do princípio federativo.
No entanto, a jurisprudência dos Tribunais Superiores, notadamente, Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça tem entendido de forma diversa. Nesse sentido, colaciona-se os seguintes precedentes, in verbis:
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. CADEIA PÚBLICA. SUPERLOTAÇÃO. CONDIÇÕES PRECÁRIAS. AÇÃO CIVIL PÚBLICA PARA OBRIGAR O ESTADO A ADOTAR PROVIDÊNCIAS ADMINISTRATIVAS E APRESENTAR PREVISÃO ORÇAMENTÁRIA PARA REFORMAR OU CONSTRUIR NOVA UNIDADE PRISIONAL. ALEGAÇÃO DE OFENSA AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES E DE NECESSIDADE DE PRÉVIA DOTAÇÃO ORÇAMENTÁRIA (ARTS. 4º, 6º E 60 DA LEI 4.320/64). CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS EM CASOS EXCEPCIONAIS. POSSIBILIDADE. CASO CONCRETO CUJA MOLDURA FÁTICA EVIDENCIA OFENSA À GARANTIA CONSTITUCIONAL DO RESPEITO À INTEGRIDADE FÍSICA E MORAL DOS PRESOS E AOS PRINCÍPIOS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DO MÍNIMO EXISTENCIAL, CONTRA O QUAL NÃO SE PODE OPOR A RESERVA DO POSSÍVEL. 1. Na origem, a Defensoria Pública e o Ministério Público do Estado do Mato Grosso ajuizaram Ação Civil Pública visando obrigar o Estado a adotar providências administrativas e apresentar previsão orçamentária para reformar a cadeia pública de Mirassol D'Oeste ou construir nova unidade, entre outras medidas pleiteadas, em atenção à situação de risco a que estavam expostas as pessoas encarceradas no local. Destaca-se, entre as inúmeras irregularidades estruturais e sanitárias, a gravidade do fato de - conforme relatado - as visitas íntimas serem realizadas dentro das próprias celas e em grupos.
2. A moldura fática delineada pelo Tribunal de origem - e intangível no âmbito do Recurso Especial por óbice da Súmula 7/STJ - evidencia clara situação de violação à garantia constitucional de respeito da integridade física e moral do preso e aos princípios da dignidade da pessoa humana e do mínimo existencial.
3. Nessas circunstâncias - em que o exercício de pretensa discricionariedade administrativa acarreta, pelo não desenvolvimento e implementação de determinadas políticas públicas, seriíssima vulneração a direitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição - a intervenção do Poder Judiciário se justifica como forma de pôr em prática, concreta e eficazmente, os valores que o constituinte elegeu como "supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos fundada na harmonia social", como apregoa o preâmbulo da nossa Carta Republicana.
4. O entendimento trilhado pela Corte de origem não destoou dos precedentes do STF - RE 795749 AgR, Relator: Min. Celso de Mello, Segunda Turma, Julgado em 29/04/2014, Processo Eletrônico DJe-095 Divulg 19-05-2014 Public 20-05-2014, ARE 639.337-AgR, Rel. Min.
Celso de Mello, Segunda Turma, DJe 15.9.2011 - e do STJ, conforme AgRg no REsp 1107511/RS, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 06/12/2013. Aplicação da Súmula 83/STJ.
5. Com efeito, na hipótese sub examine, está em jogo a garantia de respeito à integridade física e moral dos presos, cuja tutela, como direito fundamental, possui assento direto no art. 5º, XLIX, da Constituição Republicana.
6. Contra a efetivação dessa garantia constitucional, o Estado de Mato Grosso alega o princípio da separação dos poderes e a impossibilidade de realizar a obra pública pretendida sem prévia e correspondente dotação orçamentária, sob pena de violação dos arts.
4º, 6º e 40 da Lei 4.320/1964.
7. A concretização dos direitos individuais fundamentais não pode ficar condicionada à boa vontade do Administrador, sendo de suma importância que o Judiciário atue, nesses casos, como órgão controlador da atividade administrativa. Trata-se de inadmissível equívoco defender que o princípio da separação dos poderes, originalmente concebido com o escopo de garantir os direitos fundamentais, possa ser utilizado como óbice à realização desses mesmos direitos fundamentais.
8. Tratando-se de direito essencial, incluso no conceito de mínimo existencial, inexistirá empecilho jurídico para que o Judiciário estabeleça a inclusão de determinada política pública vital nos planos orçamentários do ente político, mormente quando não houver comprovação objetiva de incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, como na hipótese dos autos.
9. In casu, o pedido formulado na Ação Civil Pública é para, exatamente, obrigar o Estado a "adotar providências administrativas e respectiva previsão orçamentária e realizar ampla reforma física e estrutural no prédio que abriga a cadeia pública de Mirassol D'Oeste/MT, ou construir nova unidade, de modo a atender a todas as condições legais previstas na Lei nº 7.210/84 (Lei de Execuções Penais), bem como a solucionar os problemas indicados pelas equipes de inspeção sanitária, Corpo de Bombeiros Militar e CREA na documentação que instrui os presentes autos, sob pena de cominação de multa".
10. Como se vê, o pleito para a adoção de medida material de reforma ou construção não desconsiderou a necessidade de previsão orçamentária dessas obras, de modo que não há falar em ofensa aos arts. 4º, 6º e 60 da Lei 4.320/64.
11. Recurso Especial não provido.
(REsp 1389952/MT, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 03/06/2014, DJe 07/11/2016)
REPERCUSSÃO GERAL. RECURSO DO MPE CONTRA ACÓRDÃO DO TJRS. REFORMA DE SENTENÇA QUE DETERMINAVA A EXECUÇÃO DE OBRAS NA CASA DO ALBERGADO DE URUGUAIANA. ALEGADA OFENSA AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES E DESBORDAMENTO DOS LIMITES DA RESERVA DO POSSÍVEL. INOCORRÊNCIA. DECISÃO QUE CONSIDEROU DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE PRESOS MERAS NORMAS PROGRAMÁTICAS. INADMISSIBILIDADE. PRECEITOS QUE TÊM EFICÁCIA PLENA E APLICABIILIDADE IMEDIATA. INTERVENÇÃO JUDICIAL QUE SE MOSTRA NECESSÁRIA E ADEQUADA PARA PRESERVAR O VALOR FUNDAMENTAL DA PESSOA HUMANA. OBSERVÂNCIA, ADEMAIS, DO POSTULADO DA INAFASTABILIDADE DA JURISDIÇÃO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO PARA MANTER A SENTENÇA CASSADA PELO TRIBUNAL. I - É lícito ao Judiciário impor à Administração Pública obrigação de fazer, consistente na promoção de medidas ou na execução de obras emergenciais em estabelecimentos prisionais. II - Supremacia da dignidade da pessoa humana que legitima a intervenção judicial. III - Sentença reformada que, de forma correta, buscava assegurar o respeito à integridade física e moral dos detentos, em observância ao art. 5º, XLIX, da Constituição Federal. IV - Impossibilidade de opor-se à sentença de primeiro grau o argumento da reserva do possível ou princípio da separação dos poderes. V - Recurso conhecido e provido. (RE 592581, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 13/08/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-018 DIVULG 29-01-2016 PUBLIC 01-02-2016)
Nesse contexto, ressalta-se que STJ enfatizou que a teoria da reserva do possível seria inaplicável no direito brasileiro, eis que tal princípio teria sido importado do Direito Alemão, que vive realidade social totalmente diferente do Brasil. Confira-se parte do voto de Relator Min, Herman Bejamim, enfatizando tal ponto:
Além do mais, tem-se visto, recorrentemente, a invocação da teoria da reserva do possível, importada do Direito alemão, como escudo para o Estado se escusar do cumprimento de suas obrigações prioritárias. Não se pode deixar de reconhecer que as limitações orçamentárias são um entrave para a efetivação dos direitos sociais. No entanto, é preciso terem mente que o princípio da reserva do possível não pode ser utilizado de forma indiscriminada. Na verdade, o direito alemão construiu essa teoria no sentido de que o indivíduo só pode requerer do Estado uma prestação que se dê nos limites do razoável, ou seja, na qual o peticionante atenda aos requisitos objetivos para sua fruição. Informa a doutrina especializada que, de acordo com a jurisprudência da Corte Constitucional alemã, os direitos sociais prestacionais estão sujeitos à reserva do possível no sentido daquilo que o indivíduo, de maneira racional, pode esperar da sociedade. Ocorre que não se podem importar preceitos do direito comparado sem atentar para Estado brasileiro. Na Alemanha, os cidadãos já dispõem de um mínimo de prestações materiais capazes de assegurar existência digna. Por esse motivo, o indivíduo não pode exigir do Estado prestações supérfluas, pois isso escaparia do limite do razoável, não sendo exigível que a sociedade arque com esse ônus. Eis a correta compreensão do princípio da reserva do possível, tal como foi formulado pela jurisprudência germânica. Todavia, situação completamente diversa é a que se observa nos países periféricos, como é o caso do Brasil, país no qual ainda não foram asseguradas, para a maioria dos cidadãos, condições mínimas para uma vida digna. Nesse caso, qualquer pleito que vise a fomentar uma existência minimamente decente não pode ser encarado como sem razão, pois garantir a dignidade humana é um dos objetivos principais do Estado brasileiro. É por isso que o princípio da reserva do possível não pode ser oposto a um outro princípio, conhecido como princípio do mínimo existencial. Desse modo, somente depois de atingido esse mínimo existencial é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em quais outros projetos se deve investir. Ou seja, não se nega que haja ausência de recursos suficientes para atender a todas as atribuições que a Constituição e a Lei impuseram ao estado. Todavia, se não se pode cumprir tudo, deve-se, ao menos, garantir aos cidadãos um mínimo de direitos que são essenciais a uma vida digna, entre os quais, sem a menor dúvida, podemos incluir um padrão mínimo de dignidade às pessoas encarceradas em estabelecimentos prisionais.
Assim, nota-se que o princípio da Reserva do Possível tem sido ignorado pelo Poder Judiciário, no que concerne à efetivação dos direitos fundamentais estabelecidos na Constituição Federal, pois aquele constituiria óbice à concretização das políticas públicas no Brasil.
CONCLUSÃO
Da realização deste trabalho, observa-se que a doutrina advoga pela possibilidade da aplicação do princípio da reserva do possível, pois, de fato, o Estado não teria condições financeiras de efetivar todos os direitos fundamentais como preceitua a Constituição Federal.
Por outro lado, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, tem-se posicionado de forma contrária à doutrina, defendo que tal princípio seria inaplicável, pois: 1) a teoria por ser importada do direito alemão, onde a realidade social é totalmente diferente da brasileira, não seria aplicável ao direito brasileiro; e 2) não haveria motivo plausível por parte do Estado que justifique tamanha ausência na realização e gestão das políticas públicas.
Assim, vê-se que o Poder Judiciário, claramente, entende que o princípio da Reserva do Possível constitui óbice à efetividade das políticas públicas que visam a concretização dos direitos fundamentais.
REFERÊNCIAS
SILVA, Ricardo Augusto Dias. Direito fundamental à saúde: o dilema entre o mínimo existencial e a reserva do possível. Belo Horizonte: Fórum, 2010.
MÂNICA, Fernando Borges. TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVEL: DIREITOS FUNDAMENTAIS A PRESTAÇÕES E A INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS. Revista Eletrônica de Direito Administrativo – REDAE- 2011. Disponível em:< http://direitodoestado.com/revista/REDAE-25-ABRIL-2011-FERNANDO-BORGES-MANICA.pdf>. Acesso em fev/2017.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 592581. , Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 13/08/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-018 DIVULG 29-01-2016 PUBLIC 01-02-2016.
BRASIL. Superior Tribunal Federal. REsp 1389952/MT, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 03/06/2014, DJe 07/11/2016
Advogada. Pós-graduada em Direito Penal e Processo Penal pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Eliziane Chagas. A reserva do possível e a efetividade das políticas públicas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 jun 2017, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50311/a-reserva-do-possivel-e-a-efetividade-das-politicas-publicas. Acesso em: 23 dez 2024.
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