O presente estudo tem por objetivo analisar como o Brasil pode adequar sua realidade legislativa e jurisprudencial à decisão tomada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no famoso caso “Mohamed x Argentina”, sem que, para tanto, sejam necessárias reformas no ordenamento jurídico pátrio, ou mesmo alterações de entendimentos jurisprudenciais já consolidados de há muito.
De início, parece necessário que se proceda a uma pequena incursão no supramencionado caso julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Oscar Alberto Mohammed, motorista profissional, foi denunciado pelo Ministério Público argentino por supostamente ter cometido um homicídio culposo, em situação de trânsito. Em primeiro grau, o réu restou absolvido pela Justiça portenha. Insatisfeito com a decisão, o Parquet argentino apresentou recurso à Corte de Apelação que, julgando o caso, condenou Mohamed nos termos em que requerido na exordial acusatória.
Diante desta condenação, proferida por um tribunal local, a Defesa Técnica de Mohamed se encontrou em situação muito semelhante à que se verifica em casos análogos no Brasil: vindo o réu absolvido de primeiro grau e condenado em grau de apelação, não se oportunizou à Defesa Técnica, em razão da ausência de previsão legal, a possibilidade de se interpor um recurso ordinário, ou seja, um recurso que pudesse rediscutir e reapreciar plenamente os fatos e as provas.
Restou à Defesa de Mohamed a interposição do chamado “recurso extraordinário”, muito semelhante ao recurso especial pátrio. Uma vez interposto o referido recurso pela Defesa Técnica, contudo, o mesmo restou infrutífero “sob o argumento de que o recorrente se referia a questões de fato, de prova e de direito comum, as quais não poderiam ser debatidas na instância extraordinária, ou esta se transformaria numa ‘terceira instância ordinária’”[1].
Desta forma, a condenação transitou em julgado perante o Poder Judiciário argentino e Mohamed perdeu o emprego de motorista, em razão da pena acessória de perda a habilitação para dirigir.
Diante desta nítida violação ao direito convencional do duplo grau de jurisdição (previsto na Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 8, item 2, alínea “h”) – já que o ordenamento jurídico da Argentina não conferiu ao réu o direito a um recurso ordinário e amplo que pudesse discutir os fatos e provas que embasaram sua condenação – a Defesa Técnica de Mohamed fez uma denúncia perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
A Comissão, após o regular trâmite interno da demanda, houve por bem levar o caso à Corte Interamericana. Já em sede jurisdicional, o caso passou por todo o procedimento da Corte, chegando, por fim, à sentença que, em resumo, condenou o Estado argentino a: (a) adotar todas as medidas necessárias para garantir que Mohamed tenha o efetivo direito de recorrer da sentença condenatória, na forma preconizada pelo art. 8.2.h, da Convenção Americana de Direitos Humanos; (b) suspender os efeitos da condenação até o julgamento do recurso a ser interposto por Mohamed; (c) pagar as indenizações fixadas.
O grande fundamento utilizado pela Corte Interamericana foi o cotejo do supramencionado art. 8.2.h, da Convenção Americana de Direitos Humanos, que expressamente garante o direito ao duplo grau de jurisdição, com o art. 14.5 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, que:
“(...) contém um redação que não deixa margem para dúvidas sobre o acerto da conclusão obtida no Caso Mohamed, já que expressamente estabelece que ‘Toda pessoa declarada culpada por um delito terá direito de recorrer da sentença condenatória e da pena a uma instância superior, em conformidade com a lei”. Logo, se a pessoa é declarada culpada somente a partir do julgamento de uma apelação, pelo órgão jurisdicional de segundo grau, nasce daí o seu direito ao recurso”[2].
E não pode ser qualquer recurso para que sejam satisfeitos os dispositivos já mencionados de ambos os documentos internacionais. Este recurso precisa ser ordinário, ou seja, que possa analisar questões de fato, de prova e de direito nas quais se fundamentam a condenação.
Como se pode perceber, as molduras jurídicas argentina e brasileira, para fatos análogos ao de Mohamed, são bem parecidas: réu absolvido em primeira instância e condenado em segunda instância não possui direito a exercer, de maneira efetiva, o seu direito convencional ao duplo grau de jurisdição, uma vez que os recursos disponíveis em ambos os ordenamentos jurídicos não podem ser considerados “ordinários”.
Partindo agora para uma análise mais profunda da situação brasileira, fato é que do julgamento de uma apelação criminal, por uma corte local, cabem dois recursos (além dos embargos de declaração e dos embargos infringentes e de nulidade, que possuem hipóteses restritas e específicas de cabimento): o recurso especial, dirigido do Superior Tribunal de Justiça, e o recurso extraordinário, dirigido ao Supremo Tribunal Federal.
E, como é de sabença geral, tanto a jurisprudência do STF, quanto a do STJ, são assentes no sentido de ser impossível a rediscussão de fatos e provas pelas vias dos recursos excepcionais. Tanto é assim que o STF houve por bem sumular a questão, por meio do verbete nº 279 (“Para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário”). E assim também o STJ o fez, por meio do verbete sumular nº 7 (“A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”).
Desta forma, uma vez absolvido em primeira instância e condenado em segunda, ao réu não será garantido – ao menos da forma como o ordenamento jurídico pátrio vem sendo interpretado – o direito convencional ao duplo grau de jurisdição, que, como bem assentou a Corte Interamericana de Direitos Humanos, inclui o direito a um recurso ordinário, de espectro amplo.
Porém, existe uma saída para que o direito positivo nacional seja relido e o Brasil se adeque à jurisprudência da Corte Interamericana, se antecipando a uma futura eventual condenação em caso análogo ao “Mohamed x Argentina”, evitando injustiças e todas os consectários lógicos advindos de uma condenação internacional.
Esta é exatamente a proposta que as presentes linhas visam trazer. E, salvo melhor juízo, trata-se de uma proposta extremamente simples e muito pouco traumática, qual seja: a releitura das súmulas nº 279 do STF e nº 7 do STJ.
Explica-se.
Não existe a necessidade de se criar um recurso próprio para o caso do réu absolvido em primeira e condenado em segunda instância. Os recursos já existem e são exatamente o recurso especial e o recurso extraordinário.
Isso porque na regulamentação de ambos os recursos – seja em sede constitucional, seja em sede legal – inexiste o óbice de se rediscutir fatos e provas. Tal vedação é uma verdadeira construção jurisprudencial dos Tribunais Superiores, dentro de um fenômeno que alguns estudiosos do direito entenderam por bem denominar “jurisprudência defensiva”.
A “jurisprudência defensiva” pode ser entendida, em poucas palavras e em linguagem simplificada, como o posicionamento consolidado dos tribunais – em especial, os tribunais superiores – que coloca aspectos essencialmente técnicos ou de filigranas formais como obstáculos para a análise da questão meritória dos recursos.
Referido fenômeno tem origem na estrutura piramidal do Poder Judiciário nacional, em que os processos surgem em órgãos jurisdicionais capilarizados e, à medida que vão se desenvolvendo – em especial, na fase recursal – vão sendo transferidos para órgãos cada vez mais concentrados, sem que haja magistrados em quantidade suficiente para dar conta de tamanha demanda pela tutela jurisdicional.
Como forma de racionalizar – mais no sentido de “racionamento”, do que no sentido de “racional” – essa situação, a jurisprudência vem, de há muito, criando diversos filtros para dificultar a chegada de processos às instâncias superiores. É neste contexto que surgem as referidas súmulas supramencionadas.
Assim, o que se propõe é um abrandamento dos referidos entendimentos sumulados, para que se passe a entender que, no caso específico de réu em ação penal que seja absolvido em primeira instância e condenado em sede de apelação, seja garantido ao mesmo o direito ao efetivo duplo grau de jurisdição, por meio da possibilidade de interposição de recurso especial e/ou recurso extraordinário com direito à rediscussão da condenação, por meio da viabilidade da reanálise dos fatos e das provas constantes do processo.
Dessa forma, o Estado brasileiro se adequaria à jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, sem a necessidade de uma condenação internacional e de suas consequências lógicas, em razão de todos os motivos já expostos, além de poder fazê-lo sem a necessidade de reformar a legislação hoje em vigor. A mera criação de uma exceção aos verbetes sumulares nº 279 do STF e nº 7 do STJ, nos termos aqui propostos seria suficiente e tornaria efetivo o direito convencional ao duplo grau de jurisdição.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Pedro Ramos Lyra da. Como tornar efetiva a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso "Mohamed x Argentina" sem a necessidade de condenação do Estado brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 jul 2017, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50417/como-tornar-efetiva-a-jurisprudencia-da-corte-interamericana-de-direitos-humanos-no-caso-quot-mohamed-x-argentina-quot-sem-a-necessidade-de-condenacao-do-estado-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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