RESUMO: A Teoria do Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, formulada pelo professor Luiz Edson Fachin, explicita a legitimidade do mínimo patrimonial como assegurador da dignidade inerente à condição humana do indivíduo. Realizando análise sobre o texto do Código Civil e a influência da Constituição Federal de 1988 sobre seus institutos, percebe-se a hodierna tendência de humanização nas relações privadas, onde subsiste, harmoniosamente com a proteção ao patrimônio, a tutela aos valores pessoais inalienáveis do particular. O Direito Civil Constitucional faz surgir, portanto, uma maior influência da Carta Política sobre as relações privadas, devendo dar-se uma interpretação e aplicação da legislação privada conforme os ditames da Lei Maior. Pela teoria, surge a necessidade de tutela do Estado, por todas suas três esferas de atuação, sobre o patrimônio mínimo assecuratório de direitos e valores imprescindíveis à vida digna. A Metodologia de abordagem utilizada foi a dedutiva, combinada com o procedimento comparativo e com as técnicas bibliográfica e documental.
Palavras-chave: Patrimônio Mínimo. Dignidade da Pessoa Humana. Princípios Constitucionais. Direito Civil Constitucionalizado.
Sumário: 1 Introdução 2 Referencial teórico 2.1 Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. 2.2 Princípios constitucionais no Código Civil de 2002. 2.2.1 Dignidade da Pessoa Humana (Art. 1º, III, CF/88). 2.2.2 Direito à Propriedade (art. 5º, Caput, CF/88). 2.2.3 Boa-fé objetiva (art. 422, CC/02). 2.3 A tendência de humanização das relações privadas do Direito Civil brasileiro. 3 Metodologia. 3.1 Método de abordagem. 3.2 Método de procedimento. 3.3 Técnicas de pesquisa. 4 Análise de Resultados. 4.1 Direito Civil Contemporâneo e Patrimônio mínimo: a garantia da dignidade patrimonial 5 Conclusão. 6 Referências.
1 Introdução
O princípio da Dignidade da Pessoa Humana perfaz chave hermenêutica na leitura e na interpretação de toda a legislação pátria. Os direitos fundamentais previstos pela Carta Política estabelecem limites para a legislação infraconstitucional, devendo esta guardar consonância com a ordem constitucional e os direitos individuais por ela consagrados. Sobre esse prisma, a teoria do Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo busca garantir ao particular o mínimo existencial de modo a resguardar sua dignidade enquanto pessoa humana, tratando das tendências de personalização das relações jurídicas do Código Civil de 2002, examinando, ainda, a influência dos princípios constitucionais sobre a referida lei.
O presente estudo busca analisar os institutos do novel Código que guardem relação com a teoria ora delineada, analisando sua compatibilidade com determinados princípios constitucionais e com a recente tendência de humanização por que passa o Direito brasileiro.
Percebe-se, daí, que o patrimônio não pode mais ser observado por sua mera natureza existencial, estando ele vinculado a uma finalidade social maior, devendo considerar-se a relação que o bem guarda com seu proprietário e com toda a coletividade.
Pretende-se aqui analisar a conduta do Estado frente ao particular insolvente, partindo da ideia que o Poder Público deveria, em tese, garantir o mínimo patrimonial capaz de lhe proporcionar o exercício de seus direitos fundamentais. Cediço, portanto, que o ordenamento jurídico deve regular as relações jurídicas de modo a assegurar o mínimo digno ao particular.
Por fim, far-se-á uma análise sobre a possibilidade da aplicação da teoria do mínimo patrimonial para pessoas jurídicas, sobre o espectro da função social, partindo da inegável interdependência existente entre a atividade de certas empresas e a existência digna de setor da sociedade, dando enfoque ao procedimento de execução patrimonial e sua correlação com a ordem constitucional brasileira.
Para alcançar tal desiderato, a metodologia utilizada nesse trabalho compreendeu a abordagem dedutiva, por meio da qual partimos do raciocínio geral desde a própria definição da teoria que fundamenta o presente estudo até a influência do texto constitucional sobre as relações privadas, buscando analisar ainda as possibilidades de aplicação da tese aqui estudada em todas as searas do Poder Público. O procedimento utilizado foi o comparativo, pelo qual confrontamos o pensamento de diferentes doutrinadores, analisando-os criticamente. As técnicas de pesquisa foram a documental e a bibliográfica.
2 Referencial Teórico
2.1 Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo
A teoria desenvolvida pelo professor Luiz Edson Fachin trata da obrigação relativa ao Estado de garantir ao particular, por meio de todas as suas esferas de atuação, o mínimo patrimonial, de modo a assegurar-lhe a dignidade inerente à sua condição imperecível de pessoa humana. Trata-se, tal direito à dignidade, de Princípio constitucional estruturante da República brasileira, consoante disposto pelo artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988.
O princípio em comento constitui a base da república brasileira, prestando de ponto de partida para a concepção de tantos outros princípios e direitos fundamentais. Consoante Luís Roberto Barroso: “... merece destaque em todas as relações públicas e privadas o princípio da dignidade da pessoa humana [art. 1º, III], que se tornou o centro axiológico da concepção de Estado democrático de direito e de uma ordem mundial idealmente pautada pelos direitos fundamentais.”[i]
Entendemos, portanto, que o princípio ora delineado perfaz guarida para a teoria ora analisada.
De princípio, incumbe estabelecer algumas considerações acerca da proposta trazida pelo professor Fachin. Primeiro, há de se ter clara a ideia que a presente tese não busca impor obstáculo aos direitos do credor, nem tampouco favorecer o inadimplemento do devedor; o desiderato a que almeja a teoria é proporcionar uma situação de equilíbrio nas relações privadas, imprimindo um juízo de proporcionalidade ao caso concreto, desde sempre sob o amplo prisma da dignidade da pessoa humana. Consoante elucida o autor da tese em análise em trecho de sua obra, verbis:
Destaque-se, nesse passo, não se tratar de interesses opostos ou excludentes. Não há, pois, defesa da ilegitimidade do crédito em si mesmo. Cogita-se, tão-somente, do estabelecimento de limites à pretensão creditícia e não sua impugnação ontológica. E diante de um dano injusto, cuja reparação busca o credor em face do autor do ato, a tutela patrimonial buscará equilíbrio no juízo de proporcionalidade entre os interesses envolvidos.[ii]
Há, portanto, que se visualizar a relação obrigacional levando em conta os direitos pessoais inerentes às condições das partes. Não é razoável, consoante o presente momento da ordem jurídica brasileira, tratar da mesma forma, na condição de devedores, um trabalhador que percebe um salário mínimo para sustentar toda sua família e uma grande empresa de telefonia, por exemplo. Nesse sentido, frise-se:
essa maneira, para Pontes de Miranda, a obrigação permanece com seu caráter pessoal, jurídico e oneroso, no entanto sendo influenciada pelas garantias que cada polo da obrigação detém enquanto pessoa. Assim, necessária foi a diferenciação entre débito, situação em que o devedor pode sofrer a cobrança forçada (execução judicial) por parte do credor, e obrigação, a relação obrigacional per se. Para ele, a relação obrigacional tem por base uma pretensão do credor em relação ao devedor, e não um implacável crédito daquele perante este.[iii]
O segundo ponto crucial que deve atentar-se é que o estudo em testilha parte do prisma da recente tendência de repersonalização das relações privadas, tendência essa representada pela aplicação de princípios constitucionais sobre a seara do Direito Civil, de forma a resguardar os direitos fundamentais do indivíduo em certas relações creditícias. Tem-se, portanto, uma evolução na hermenêutica do direito civil brasileiro, caracterizada pela necessidade da interpretação conforme a Constituição.
Ao passo que a teoria se desenvolve, o autor assinala institutos que possuem a interferência clara da superioridade da condição humana digna frente a certos institutos previstos pelo Código Civil de 2002, como claramente verificado nas hipóteses limitação à execução do bem de família, a cláusula de inalienabilidade testamentária, a incapacidade relativa dos pródigos, dentre outros.
Anote-se, nesse passo, o disposto pelo professor sobre a tendência em comento, a seguir:
É certo que essa ‘repersonalização’ do Direito Civil somente encontrou explícita guarida na Constituição Federal de 1988, não só porque explicitou o princípio da dignidade da pessoa humana como um dos pilares da República, mas também porque a matéria cível foi diretamente constitucionalizada.[iv]
Por fim, faz-se necessário esclarecer não haver um conceito objetivo do que seria o mínimo a se garantir, premissa de que parte o criador da teoria ao buscar explicar a impossibilidade de determinação acerca do instituto. A simples ideia de mensurar o mínimo patrimonial encontra limite claro nas diferenças sociais existentes no Brasil. Não há, portanto, critério objetivo para determinar o que seria o mínimo a ser tutelado pela ordem jurídica, causa pela qual sublinha-se a importância dos conceitos jurídicos indeterminados na legislação pátria, conferindo, no mais das vezes, um viés genérico à norma, buscando garantir a aplicação mais próxima da justa, observando-se as peculiaridades e divergências dos casos concretos.
Sobre a dificuldade da mensuração do mínimo examinado pela tese, sublinha-se trecho da obra de Fachin, que se lê:
Não pretende a tese em apresentação eliminar todos os paradoxos que cercam temas jurídicos polêmicos, como é este, aqui deduzido. Trabalha sobre eles e procura, a partir deles, construir, na utilidade possível, através de tamanha complexidade que marca o cenário jurídico e social do país, espaço e tempo que circunscrevem tais reflexões. O mínimo é, com efeito, conceito complexo.[v]
Inequívoco, portanto, que a tese aqui delineada realiza ampla análise sobre os limites e possibilidades da tutela estatal acerca do mínimo patrimonial, buscando, assim, estabelecer propostas para o alcance o objetivo maior, definido pela tutela do Estado patrimônio mínimo, a fim de promover a dignidade do particular.
2.2 O Código Civil de 2002 à luz dos Princípios Constitucionais
A Constituição Federal de 1988, comumente apontada como “Constituição Cidadã”, atribuiu novo espectro à ordem jurídica de nosso país. A ideia de Princípios Positivos afasta a ultrapassada ideia de que o texto da Carta Política serviria unicamente como norte a ser seguido pela legislação ordinária.
A ideia hora traçada encontra fundamento na própria Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro [Dec. Lei n. 4.657 de 4 de setembro de 1942], que no caput de seu artigo 4º[vi] confere aos princípios gerais do Direito status de fonte do direito. Temos hoje, portanto, um ordenamento jurídico diretamente vinculado ao texto constitucional, fato confirmado diariamente quando percebemos o crescimento do poder vinculante do Tribunal Constitucional.
Sobre o tema, Paulo Bonavides assevera:
Estabelecendo originalíssima distinção entre normas primárias, que são os princípios, e normas secundária, que são aquelas baseadas nos ‘princípios’, nos costumes e nas convenções, Quadri, citado por Pergolesi, denomina princípios ‘as normas que são expressão imediata da vontade do corpo social’. Para Quadri, o princípio, sendo uma norma primária, se acha em direta relação com a autoridade que está na base do sistema.[vii]
Como comentado anteriormente, o Direito Civil Constitucional propõe que a interpretação de normas infraconstitucionais deve dar-se em plena consonância com o texto constitucional. Aponta-se, nesse sentido, passagem de artigo científico dos autores Priscilla Raphaella Oliveira Lopes de Araújo e Saullo Pereira de Oliveira, que destacam:
Analisando esse novo contexto jurídico, constata-se que o Direito Civil, dito ‘constitucionalizado’, tem o desejo de superar lógica patrimonial pelos valores existenciais da pessoa humana, uma vez privilegiados pela Constituição. O intérprete, ao realizar seu trabalho, tem de reler a legislação civil sob a ótica constitucional, de modo a priorizar os valores não-patrimoniais, o desenvolvimento da personalidade da pessoa humana, de sua dignidade, os direitos sociais e a justiça distributiva. Hodiernamente, não há como o Direito Civil ficar imune aos valores e aos princípios constitucionais.[viii]
Dada a amplitude do texto da Carta Magna, o desiderato a que aqui se almeja suplica por uma análise do texto do Código Civil de 2002, de forma a examinar a influência certos princípios constitucionais no texto da Lei Substantiva Civil, buscando examinar sua atuação no Direito Privado e sua relevância para o tema em análise.
2.2.1 Dignidade da Pessoa Humana [Art. 1º, III, CF/88]
Como já comentado, trata-se de Princípio basilar do sistema Republicano brasileiro, por força do próprio artigo 1º [ix] da Carta Política, caracterizando-se como o mais importante mandado de otimização do texto constitucional. Lançando-se um olhar sobre a Código Civil de 2002, nota-se claramente influência do Princípio sobre o seu texto, conferindo maior caráter humanista às relações privadas no Direito brasileiro.
Alexandre de Moraes reflete, em sua obra, lúcido pensamento acerca da importância da máxima em análise, verbis:
A dignidade da pessoa humana: concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a ideia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. (grifos nossos)[x]
A influência desse princípio sobre o texto da Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002 faz-se perceptível em variados institutos por ela regulados. Partindo da vertente do presente estudo, observa-se que há diversos exemplos em que o caráter patrimonial das relações obrigacionais ira restar mitigado frente à superioridade de um bem maior, qual seja a garantia da plena dignidade do particular, sendo exemplos citáveis: execução sobre os bens de família, doação universal, a cláusula de inalienabilidade testamentária, entre outras.
Percebe-se ainda que é de vital importância para a tese do professor Fachin o princípio em análise. Vislumbra-se do texto da Carta Magna que o presente princípio é o ponto gênese de todos os direitos pessoais advindos da Ordem Jurídica brasileira. Leia-se, nesse sentido, trecho da obra do professor supracitado:
A tese encontra-se conexionada ao princípio da dignidade humana, de foro constitucional, diretriz fundamental para guiar a hermenêutica e a aplicação do Direito, e para nortear o rumo do presente trabalho. A reflexão sobre o patrimônio pode (e deve) estender-se em dois horizontes complementares: o primeiro, aquele que supere o limite individual da guarida e abrace a coletividade; o segundo, aquele que voe do presente para alcançar o futuro, mesmo que em incerta e improvável utopia.[xi]
O presente princípio configura, portanto, base hermenêutica para análise dos demais valores subjetivos de que trata a Carta Política, como restará evidenciado da leitura dos próximos tópicos.
2.2.2 Direito à Propriedade [art. 5º, Caput, CF/88]
Hodiernamente, torna-se inegável o fato de que vivemos em uma sociedade plenamente capitalista. Nesse sentido, a propriedade possui um papel garantidor de uma série de direitos fundamentais do indivíduo. Faz-se uma análise, a título de exemplificação do pensamento ora delineado, dos direitos que devem ser amparados pelo Salário Mínimo; de acordo com o texto do inciso IV, artigo 7º[xii], da CF/88, o salário mínimo deve garantir ao receptor do piso salarial e para sua família o acesso a moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social.
Gilmar Mendes ensina, de maneira clara, a atual abrangência do direito constitucional à propriedade, alertando para a nova perspectiva conceitual do instituto, que engloba não apenas a propriedade privada, mas também tutela uma série de relações de caráter patrimonial, leia-se:
“Já sob o império da Constituição de Weimer passou-se a admitir que a garantia do direito de propriedade deveria abranger não só a propriedade sobre bens móveis ou imóveis, mas também os demais valores patrimoniais, incluídas aqui as diversas situações de índole patrimonial, decorrentes de relações de direito privado ou não.
(...)
Essa orientação permite que se confira proteção constitucional não só à propriedade privada em sentido estrito, mas, fundamentalmente, às demais relações de índole patrimonial. Vê-se que esse conceito constitucional de propriedade contempla as hipotecas, penhores, depósitos bancários, pretensões salariais, ações, participações societárias, direitos de patente e de marcas etc. Teria esse entendimento validade no ordenamento constitucional brasileiro? A resposta há de ser afirmativa.”[xiii]
Percebe-se que, diante das novas influências do texto constitucional sobre as normas de direito privado, as relações privadas encontram novos limites baseados na proteção ao indivíduo. Nota-se, portanto, que o novo Direito Civil fundamenta-se com cerne na pessoa humana, e não mais sobre o patrimônio. Nesse sentido, leia-se:
Desde o direito romano difundiu-se a ideia de bipartição do direito em dois ramos: direito público e direito privado. Essa dicotomia sobreviveu às intempéries do tempo e às críticas de substanciosa parte da doutrina jurídica. No entanto, esse paradigma clássico não mais reflete a hodierna lógica do sistema jurídico, nem o atual contexto econômico-social, os quais são frutos da pós-modernidade.
Ora, com a Constituição Federal de 1988 -, que tem entre os seus fundamentos a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa -, o antagonismo público-privado perdeu definitivamente o sentido. Os objetivos constitucionais de construção de uma sociedade livre, justa e solidária e de erradicação da pobreza colocaram a pessoa humana – isto é, os valores existenciais – no vértice do ordenamento jurídico brasileiro, que de modo tal é o valor que conforma todos os ramos do Direito.[xiv]
Diante do novo ângulo que se observa o Direito Privado, percebe-se uma clara mudança de perspectiva, não sendo mais o patrimônio o principal objeto de tutela das codificações privadas, e sim o particular e suas direitos irrenunciáveis. Do próprio texto constitucional infere-se, portanto, a importância da propriedade enquanto direito fundamental do cidadão, em todas as suas perspectivas, e da necessidade de sua tutela por parte do Estado.
2.2.3 Boa-fé objetiva [art. 422, CC/02]
O novel Código Civil guarda consonância com várias previsões da lei 8.078 de 11 de setembro de 1990, o Código de Defesa do Consumidor. Nota-se, nesse último diploma, a importância e imprescindibilidade da boa-fé nas relações jurídicas do direito privado, em especial nos artigos 4°, inciso III; 6°, incisos I a V, e no artigo 51, inciso IV.
Trata-se de conceito jurídico indeterminado, que impele os contratantes a agirem de forma honesta, clara, sem buscar obtenção de vantagens ilícitas em detrimento alheio. A indeterminação do conceito permite à doutrina que restrinja o espectro de atuação do instituto, delimitando, por meio de conceitos concretos, a real intenção do legislador. Lê-se na doutrina, nesse sentido, o seguinte:
Sobre a amplitude do conceito da boa-fé objetiva, ORLANDO GOMES a sintetizava em três termos – lealdade, confiança e colaboração. TARTUCE, auxiliado por TERESA NEGREIROS, formulou seis palavras-chave para a compreensão do instituto emergente, a partir daquelas apontadas por GOMES, a saber: lealdade, confiança, equidade, razoabilidade, cooperação e colaboração.[xv] (grifos originais)
Inequívoco, portanto, que os contraentes devem conhecer da totalidade dos possíveis resultados da relação jurídica que se instaura, resguardando, desde logo, seus direitos diante de possíveis obstáculos ao cumprimento do acordo referentes ao estatuto ora estudado. Inadmissível seria, a título exemplificativo, que uma instituição financeira fornecesse contrato de financiamento de imóvel com parcelas a que o particular não comprovasse ser possível cumprir, sob pena de deparar-se com os limites aqui esposados.
O mais conhecido dos limites à execução do Estado para cumprir dívidas pecuniárias, sejam elas provenientes de relações jurídicas públicas ou privadas, é o bem de família. Nessa linha de raciocínio, assevera Gilmar Mendes:
A lei n. 8.009 de 1990, estabeleceu a impenhorabilidade do bem de família assim entendido o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados, excluídos os veículos de transporte, obras de arte e adornos suntuosos.[xvi]
Conclui-se, desse modo, que a boa-fé objetiva representa elemento de validade da relação jurídica no direito privado, devendo esta ainda guardar sintonia com os bons costumes relativos à solidariedade social, observados, desde sempre, os limites estabelecidos pelo estatuto do patrimônio mínimo.
2.3 A tendência de humanização das relações privadas do Direito Civil brasileiro
A tese desenvolvida por Luiz Edson Fachin propõe uma nova concepção sobre o patrimônio, sugerindo que este não deva ser o cerne das relações privadas, mas sim a pessoa humana e seus valores personalíssimos. O autor mostra que, diante da nova ordem constitucional, não há espaço para a prevalência de interesses patrimoniais frente a sucumbência da própria plenitude e dignidade inerente à vida do particular, devendo o direito tutelar as relações sociais de modo a impedir tais excessos. Em sua obra lê-se:
Em certa medida, a elevação protetiva conferida pela Constituição à propriedade privada pode, também, comportar tutela do patrimônio mínimo, vale dizer, sendo regra de base desse sistema a garantia ao direito de propriedade não é incoerente, pois, que nele se garanta um mínimo patrimonial. Sob o estatuto da propriedade agasalha-se também, a defesa dos bens indispensáveis à subsistência.[xvii]
Não se propõe aqui a necessidade de uma nova codificação, tendo em vista que a própria Lei substantiva civil compõe-se de conceitos gerais, podendo adaptar-se à ordem constitucional vigente. O que se busca na realidade é a humanização das relações sociais hodiernas em consonância com os ditames constitucionais de dignidade, solidariedade e igualdade.
A tendência a que se aponta provêm da recente evolução de perspectiva sobre o Direito Privado, conceito imprescindível para a teoria do Direito Civil Constitucional. Nesse sentido, leia-se:
Assim, amparados na feição civilista, os defensores do chamado ‘Direito Civil Constitucional’ sustentam que o direito privado deve ser lido em consonância com os ditames constitucionais, haja vista que a concepção jurídica moderna, na qual o patrimônio era a razão de ser do ordenamento, cede lugar para o viés pós-moderno, que prega a socialização do direito, cujo cerne é a pessoa humana.[xviii]
Inegável influência dos ideais provenientes do Direito Civil Constitucional, de tal forma que, cada vez mais, observa-se doutrina e jurisprudência caminhando no sentido de tutelar as relações privadas em busca de proteção aos direitos personalíssimos e do mínimo em discussão. Nesse sentido, anota Fachin:
Na inegável transformação que abre portas, sob a crítica dos paradigmas tradicionais, ao Direito Civil contemporâneo, abre-se espaço para dar um passo adiante. A garantia pessoal de um patrimônio mínimo, do qual ninguém pode se assenhorear forçadamente, sob hipótese legítima alguma, pode ser esse novo horizonte.[xix]
Dessa nova perspectiva que surge sobre o Direito Privado, no estudo em andamento viso discutir a importância de tutela do patrimônio mínimo, dado seu papel essencial na concretização da vida digna do indivíduo e de sua família. Busco, no próximo tópico, estabelecer pontos fáticos e jurídicos capazes de caracterizar o patrimônio mínimo como instituto básico da dignidade almejada.
2.4 Direito Civil Contemporâneo e Patrimônio mínimo: a garantia da dignidade patrimonial
A evolução da relação credor-devedor é de fácil constatação quando da análise da história do Direito Privado. Partindo da intervenção mínima do Estado, quando o credor poderia constranger o devedor em seus próprios direitos de personalidade, tornando-o, por vezes, seu escravo, como meio de satisfazer o débito; passando pela proteção à honra do devedor, onde restaram somente penas civis patrimoniais; até a hodierna tendência de proteção ao patrimônio mínimo, como forma de garantia a dignidade inerente à condição humana.
O direito civil contemporâneo denota uma série de novas perspectivas relativas às relações jurídicas privadas de nosso País. A humanização dos institutos jurídicos refletem a atual influência do texto da Constituição Cidadã sobre o direito privado, restando claro, portanto, que os valores pessoais devem ser objeto de tutela nas relações obrigacionais particulares.
O que se vê são mudanças na perspectiva de atuação dos modos de cobrança judicial de créditos obrigacionais. O estatuto em exame não busca desconstituir a legitimidade dos contratos, nem tampouco das formas judiciais de execução; o que se almeja é tão somente clarear a inegável realidade que o patrimônio deve superar o limite individual da relação obrigacional e abraçar sua função para a coletividade.
Daí surge a ideia, guarida de tudo o que aqui fora delineado, de que o mínimo patrimonial é um dos garantidores da dignidade humana a que tanto se ambiciona. Os limites impostos pelo Estado sob as relações privadas devem convergir no sentido de garantir o fim que aqui se discute, buscando, por meio de seus três poderem atuantes, limitar os abusos e as ilegalidades no campo do Direito Privado.
Os limites da legitimidade da atuação do Poder Público nesse sentido devem ser objeto de estudo e de nova normatização, devendo discutir-se qualquer possibilidade de defesa ao bem de família, inclusive a possível aplicação da teoria em estudo sobre as Pessoas Jurídicas, nas hipótese facilmente encontradas em nosso país de famílias que dependam de sua existência para garantir o seu sustento mínimo.
3 Conclusão
A presente análise da teoria do Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo e a influência do texto constitucional sobre o novo Código Civil e sobre as relações de direito privado permitem concluir que a tendência de humanização do direito patrimonial é uma realidade inegável no Direito Brasileiro.
A Carta Magna amplia seu espectro de atuação e eficácia no sentido que influi nas relações obrigacionais para tutelar valores personalíssimos frente aos débitos patrimoniais, como a dignidade humana, o direito à propriedade e a proteção ao bem de família.
O texto do novo Código Civil apresenta influência incontestável das máximas da Carta Política, motivo pelo qual encontra-se em certos institutos, como requisito de validade, valores constitucionais, como a boa-fé e o respeito ao direito de propriedade. Nesse sentido, destaca-se ainda a inexistência de critério objetivo para fixar o mínimo patrimonial, daí a importância da atividade discricionária do aplicador da norma, que, fazendo uso de conceitos abertos que a legislação lhe oferece, deve resguardar, desde logo, o direito ao mínimo aqui delineado, atentando para as peculiaridades que o caso concreto lhe apresenta.
Trata-se, portanto, de evolução na perspectiva e nos ideais do direito privado brasileiro, que caminha no sentido de uma aplicação mais justa e humana da legislação pátria, mediante a atuação dos três poderes do Estado, que devem atuar em harmonia buscando garantir, desde sempre, a aplicação e efetivação do texto constitucional.
4 Referências
ARAÚJO, Priscilla Raphaella Oliveira Lopes e OLIVEIRA, Saullo Pereira de. A constitucionalização do direito obrigacional. In MARQUES JÚNIOR, William Paiva. (Coord.). Presente em Mutações do direito civil das obrigações na perspectiva da constitucionalização das relações privadas. Fortaleza: DINCE, 2012, v. 1.
BARROSO, Luiz Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 24ª ed. São Paulo: Malheiros Editora, 2009.
FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
GUIMARÃES, Ana Renata de Freitas e CUNHA, Isaac Rodrigues. Do conceito de obrigação: para além do direito civil. In MARQUES JÚNIOR, William Paiva. (Coord.). Presente em Mutações do direito civil das obrigações na perspectiva da constitucionalização das relações privadas. Fortaleza: DINCE, 2012, v. 1.
MENDES, Gilmar. Curso de Direito Constitucional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 27ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2011.
NASCIMENTO, Maria José Mais. O Direito Civil Constitucional e os Princípios Norteadores do Novo Código Civil como Pilares Fundamentais do Moderno Direito Privado: a Boa-Fé Objetiva e a Função Social. PGE.AC. Disponível em: Acesso em: 24 abr. 2012.
[i] BARROSO, Luiz Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 377.
[ii] FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, P. 68.
[iii] GUIMARÃES, Ana Renata de Freitas e CUNHA, Isaac Rodrigues. Do conceito de obrigação: para além do direito civil. In MARQUES JÚNIOR, William Paiva. (Coord.). Presente em Mutações do direito civil das obrigações na perspectiva da constitucionalização das relações privadas. Fortaleza: DINCE, 2012, v. 1. p. 61.
[iv] Ibid., P. 92.
[v] Ibid., P. 273-274
[vi] Decreto Lei n. 4.657/42 (Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro) - Art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
[vii] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 24ª ed. São Paulo: Malheiros Editora, 2009, p. 246.
[viii] ARAÚJO, Priscilla Raphaella Oliveira Lopes e OLIVEIRA, Saullo Pereira de. A constitucionalização do direito obrigacional. In MARQUES JÚNIOR, William Paiva. (Coord.). Presente em Mutações do direito civil das obrigações na perspectiva da constitucionalização das relações privadas. Fortaleza: DINCE, 2012, v. 1, p. 78.
[ix] Constituição Federal - Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
III - a dignidade da pessoa humana;
[x] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 27ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2011, p. 24
[xi] FACHIN. op. cit., P. 287-288
[xii] Constituição Federal - Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
(...)
IV - salário mínimo , fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;
[xiii] MENDES, Gilmar. Curso de Direito Constitucional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 424, 425.
[xiv] NASCIMENTO, Maria José Mais. O Direito Civil Constitucional e os Princípios Norteadores do Novo Código Civil como Pilares Fundamentais do Moderno Direito Privado: a Boa-Fé Objetiva e a Função Social. PGE.AC. Disponível em: Acesso em: 24 abr. 2012, p. 108
[xv] Ibid., p. 113
[xvi] MENDES, Gilmar. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 398.
[xvii] FACHIN. op. cit., p. 68.
[xviii] NASCIMENTO. op. cit., p. 107-108
[xix] FACHIN. op. cit., p. 284
Advogado. Procurador do Estado do Maranhão; Graduado em Direito pelo Centro Universitário Christus (2014);
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ARTHUR RéGIS FROTA CARNEIRO ARAúJO, . Direito civil constitucional: análise crítica sobre a aplicação da teoria do estatuto jurídico do patrimônio mínimo no Código Civil de 2002 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 jul 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50517/direito-civil-constitucional-analise-critica-sobre-a-aplicacao-da-teoria-do-estatuto-juridico-do-patrimonio-minimo-no-codigo-civil-de-2002. Acesso em: 23 dez 2024.
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