Resumo: O Direito de Família é profundamente influenciado pela realidade social. Diante das mudanças por que passaram os conceitos de família e de pátrio poder e do acolhimento dessas modificações pela Constituição Federal de 1988, faz-se necessário o aprofundamento dos estudos sobre o reconhecimento jurídico da filiação socioafetiva. Portanto, esse trabalho analisará os estudos doutrinários bem como as decisões relevantes dos tribunais pátrios.
Palavras-chave: Direito de Família. Filiação socioafetiva. Reconhecimento.
Abstract: Family law is deeply influenced by social reality. Given the changes undergone by the concepts of family and parental rights and acceptance of these modifications by the Constitution of 1988, it is necessary to further study on the legal recognition of parenthood socioaffective. Therefore, this paper will examine the doctrinal studies as well as relevant decisions of the courts patriotic.
Key words: Family law. Parentage socioaffective. Recognition.
Sumário: 1. Introdução. 2. Princípio da Afetividade. 3. Filiação Socioafetiva; 3.1 Conceito; 3.2 Espécies; 3.2.1 Filiação socioafetiva pela adoção; 3.2.2 Filiação socioafetiva originária; 3.2.3 Filiação socioafetiva consistente na adoção à brasileira; 3.2.4 Filiação socioafetiva consistente no “filho de criação. 3.3 Filiação socioafetiva e Multiparentalidade 3.4 Efeitos resultantes do reconhecimento da filiação socioafetiva 3.5 Reconhecimento da filiação socioafetiva pelos Tribunais 4. Conclusão 5. Referências Bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
A Constituição da República provocou uma crise de legitimidade do direito de família. Consagrou-se na Carta Magna a prioridade absoluta das relações existenciais em detrimento das relações patrimoniais e uma nova ordem pública fundada na solidariedade social e na dignidade da pessoa humana. Diante disso, houve a necessidade de reconstrução do Direito de Família construído à luz de um modelo patriarcal.
A família vigente no antigo Código Civil era apenas aquela formada por relações consanguíneas, isto é, uma relação biológica entre os membros de uma relação matrimonial. O casamento era fundamental para a constituição de uma família.
Entretanto, com o passar do tempo, surgiram filhos oriundos de relações não matrimonias que foram tratados de forma desiguais diante de filhos advindos de um casamento. Surgiu, então, a Constituição Federal de 1988 que estabeleceu, além da paridade dos filhos, a igualdade entre homens e mulheres, pondo fim ao poder despótico do marido sobre a mulher.
A família hoje se tornou plural, democratizou-se, transformando-se em um instrumento privilegiado de convivência, de amor e liberdade, voltada para a plena realização dos filhos.
Entende-se que a filiação não é somente aquela resultante de laços de sangue, mas também aquela que se forma pelo afeto, amor, convivência e carinho, sendo chamada de filiação socioafetivo. Assim, são considerados pais ou mães aqueles que possuem uma relação de afeto com o filho, contraindo responsabilidades e deveres independentemente do vínculo biológico.
Nesta linha, este estudo visa o entendimento e a compreensão das relações familiares permeadas pelo afeto e seu reconhecimento pelo ordenamento jurídico brasileiro.
2. PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE
Durante séculos, o conceito de família esteve ligado à ideia de casamento, pois só era considerada família a união resultante de um vínculo matrimonial que tinha como chefe o pai, portador de poder absoluto.
Mas, com o passar do tempo, esse instituto sofreu grandes modificações. A conquista da mulher ao direito ao voto e a sua inserção no mercado de trabalho foram alguns dos marcos que fizeram com que as formas familiares se multiplicassem.
Diante dessa evolução da mulher no mercado, o marido passou a exercer funções até então exclusivas das esposas e, com isso, a entidade familiar deixou de ser ligada apenas pelo vínculo sanguíneo, mas também pelo afeto.
Corroborando desse entendimento está João Baptista Villela:
As transformações mais recentes por que passou a família, deixando de ser unidade de caráter econômico, social e religioso para se afirmar fundamentalmente como grupo de afetividade e companheirismo, imprimiram considerável esforço ao esvaziamento biológico da paternidade.[1]
No mesmo sentido se encontra Paulo Luiz Netto Lôbo:
A família, tendo desaparecido suas funções tradicionais, no mundo do ter liberal burguês, reencontrou-se no fundamento da afetividade, na comunhão de afeto, pouco importando o modelo que adote, inclusive o que se constitui entre um pai ou mãe e seus filhos. A comunhão de afeto é incomparável com o modelo único, matrimonializado, que a experiência constitucional brasileira consagrou, de 1824 até 1988. A afetividade, cuidada inicialmente pelos cientistas sociais, pelos educadores, pelos psicólogos, como objeto de suas ciências, entrou nas cogitações dos juristas, que buscam explicar as relações familiares contemporâneas.[2]
E ainda, Rodrigo da Cunha Pereira:
Embora os ordenamentos jurídicos ocidentais em geral determinem a paternidade biológica como fonte de responsabilidade civil, a verdadeira paternidade só se torna possível a partir de um ato de vontade ou um desejo. Assim, ela pode coincidir, ou não, com o elemento biológico. Nós nos arriscaríamos a dizer que em nossa sociedade a paternidade baseada puramente nos laços de sangue pode ser uma ficção.[3]
No âmbito jurídico, até a Constituição Federal de 1988, o direito de família tinha como finalidade precípua, proteger o patrimônio constituído através do casamento. Atualmente, a carta Magna oferece fundamentos para a distinção entre fato de gerar e o ato de ser pai. Ao igualar os filhos havidos ou não na constância do casamento, em seu artigo 227, §6º, ela privilegia o critério sanguíneo, mas também os laços afetivos, na medida em que não permite discriminações.
A afetividade é princípio jurídico presente no Direito de Família constitucional, uma vez que iguala os filhos biológicos aos adotivos, com respeito à escolha afetiva, e protege como entidades familiares outras, como a união estável e a família monoparental, cujo vínculo fundante é o da afetividade.
Segundo Paulo Luiz Netto Lôbo[4], encontram-se na Constituição Federal brasileira, três fundamentos essenciais do princípio da afetividade: todos os filhos são iguais, independentemente de sua origem (art. 227, §6º); a adoção, como escolha afetiva, alçou-se integralmente ao plano da igualdade de direitos (art. 227, §§5º e 6º) e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo-se os adotivos, tem a mesma dignidade de família constitucionalmente protegidos (art. 226, §4º).
Assim, toda paternidade é necessariamente socioafetiva, podendo ter origem biológica ou não biológica.
Nesse mesmo entendimento, preleciona Paulo Luiz Netto Lôbo:
A paternidade é muito mais que o provimento de alimentos ou a causa de partilha de bens hereditários. Envolve a constituição de valores e da singularidade da pessoa e de sua dignidade humana, adquiridos principalmente na convivência familiar durante a infância e a adolescência. A paternidade é múnus, direito-dever, construída na relação afetiva que assume os deveres de realização dos direitos fundamentais da pessoa em formação “a vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar” (art. 227 da CF/88). É pai que assumiu esses deveres, ainda que não seja o genitor.[5]
Assim também leciona Tânia da Silva Pereira:
Toda família tem um passado, vive um presente com as suas complexidades e contradições e tem regras que provavelmente passarão para o futuro. Este modelo, que tenderá a se repetir nas gerações subseqüentes, é um ponto de interesse também para uma análise da afetividade nas relações familiares, o que terá um reflexo considerável na tutela jurídica da convivência familiar e comunitária, visando, sobretudo, à proteção e ao desenvolvimento da população infanto-juvenil.[6]
Observa-se, com isso, que a afetividade ascendeu a um novo patamar no Direito de família, como um princípio que deve ser seguido. Isso porque a família só se justifica na liberdade e no afeto, como bem revela o julgado prolatado pelo Superior Tribunal de Justiça:
RECONHECIMENTO DE FILIAÇÃO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE. INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO SANGÜÍNEA ENTRE AS PARTES. IRRELEVÂNCIA DIANTE DO VÍNCULO SÓCIO-AFETIVO.
- Merece reforma o acórdão que, ao julgar embargos de declaração, impõe multa com amparo no art. 538, par. único, CPC se o recurso não apresenta caráter modificativo e se foi interposto com expressa finalidade de prequestionar. Inteligência da Súmula 98, STJ.
- O reconhecimento de paternidade é válido se reflete a existência duradoura do vínculo socioafetivo entre pais e filhos. A ausência de vínculo biológico é fato que por si só não revela a falsidade da declaração de vontade consubstanciada no ato do reconhecimento. A relação socioafetiva é fato que não pode ser, e, não é, desconhecido pelo Direito. Inexistência de nulidade do assento lançado em registro civil.
- O STJ vem dando prioridade ao critério biológico para o reconhecimento da filiação naquelas circunstâncias em que há dissenso familiar, onde a relação socioafetiva desapareceu ou nunca existiu. Não se pode impor os deveres de cuidado, de carinho e de sustento a alguém que, não sendo o pai biológico, também não deseja ser pai socioafetivo. A contrário sensu, se o afeto persiste de forma que pais e filhos constroem uma relação de mútuo auxílio, respeito e amparo, é acertado desconsiderar o vínculo meramente sanguíneo, para reconhecer a existência de filiação jurídica.
Recurso conhecido e provido.
O julgado ressalta a importância do vínculo afetivo tendo prioridade sobre as relações biológicas.
Cumpre ressaltar que o princípio da afetividade não está expresso na Carta Magna, mas sua extração é feita de diversos outros princípios, como o da proteção integral e o da dignidade da pessoa humana, este fundamento da República Federativa do Brasil.
Entretanto, essa derivação não o torna subsidiário, ao contrário, ele vem sendo bastante contemplado pelos tribunais, como foi visto acima, regendo questões pertinentes à filiação socioafetiva.
O artigo 3º da Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), também contempla o aludido axioma, senão vejamos:
Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.[7]
O Código Civil de 2002, em seu artigo 1.638, inciso II, também considerou, mesmo que por indireta, o princípio da afetividade ao afirmar que perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que deixar seu filho em abandono.
Contudo, o afeto não pode ser visto apenas como uma liberdade individual, tendo em vista que, desenvolve-se e evolui como uma relação social gerando direitos e obrigações. Deste modo, a afeição, através de sua função social, evolui do direito individual para direito social.
Com relação à função social do afeto, leciona Sérgio Resende de Barros:
Com esse fundamento é que o art. 229 da Constituição determina que "os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade". Também é por esse fundamento que o § 6º do art. 227 equipara os filhos, inclusive os adotivos. Igualmente, porque o afeto tem função social, gera responsabilidade social, a Constituição abrigou a união estável e a família monoparental e não impede reconhecer outras categorias de família geradas pelo afeto, como a família anaparental (entre descendentes privados de ambos os pais) e a família homoafetiva (entre pessoas do mesmo sexo).[8]
Como se observa, o afeto está inerente às relações familiares e examiná-lo significa estudar um dos elementos fundamentais do modelo de família consagrado pela Constituição Federal Brasileira.
3. FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA
3.1 Conceito
Com o surgimento da Constituição Federal de 1998 surgiram modificações legislativas relevantes à filiação, percebendo-se assim, a possibilidade de se reconhecer um novo tipo de filiação, a socioafetiva.
Segundo Jorge Fujita:
Filiação socioafetiva é aquela consistente na relação entre pai e filho, ou entre mãe e filho, ou entre pais e filho, em que inexiste liame de ordem sanguínea entre ele, havendo, porém, o afeto como elemento aglutinador, tal como uma sólida argamassa a uni-los em suas relações, quer de ordem pessoal, quer de ordem patrimonial.[9]
Já para Rolf Madaleno a “filiação socioafetiva é a real paternidade do afeto e da solidariedade; são gestos de amor que registraram a colidência de interesse entre o filho registral e o seu pai de afeto”. [10]
A socioafetividade tornou-se uma das principais características da família atual e se assenta nas relações familiares onde o amor é cultivado cotidianamente.
Esse novo tipo de filiação encontra sólido apoio nas normas constitucionais sobre direito de família e tem assento infraconstitucional no Código Civil de 2002, que em seu artigo 1.595 menciona a possibilidade de embasar-se o parentesco na consanguinidade ou em “outra origem”, expressão que engloba a origem afetiva. [11]
Nesse sentido leciona Eduardo de Oliveira Leite:
O ineditismo, e de certa forma, a força maior do artigo radica de seu in fine, que escancara as portas a uma nova forma de parentesco, nem natural, nem civil, mas que fundamenta a filiação sócio afetiva. Ou seja, pela primeira vez na história do Direito de Família reconhece-se, sem vacilar, assento ao afeto nas relações paterno-materno-filiais, capaz de gerar efeitos na ordem jurídica familiar.[12]
O elemento socioafetivo também é tutelado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, em seus artigos 28 a 52, ao tratar das famílias substitutas, como se observa abaixo:
Art. 33. A guarda obriga a prestação de assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais.
Entende-se, assim, que a paternidade socioafetiva se fundamenta na distinção entre pai e genitor e no direito ao reconhecimento da filiação, já que entende é aquele que desempenha o papel educacional, emocional.
Conclui-se que os laços de afeto que se constroem entre pais e filho não dependem de imposição biológica ou jurídica. Nesse sentido já lecionava Fachin:
A verdadeira paternidade pode também não se explicar apenas na autoria genética da descendência. Pai também é aquele que se revela no comportamento cotidiano, de forma sólida e duradoura, capaz de estreitar os laços de paternidade numa relação psico-afetiva, aquele, enfim, que além de poder lhe emprestar seu nome de família, o trata verdadeiramente como seu filho perante o ambiente social.[13]
Corroborando com esse entendimento, afirma Jédison Daltrozo Maidana:
[...] pai, ou mãe, na complexidade que esses termos comportam, será sempre aquele ou aquela que, desejando ter um filho, acolhem em seu seio o novo ser, providenciando-lhe a criação, o bem estar e os cuidados que o ser humano requer para o seu desenvolvimento e para a construção de sua individualidade e de seu caráter. Aquele que se dispõe a assumir espontaneamente a paternidade de uma criança, levando ela ou não a sua carga genética, demonstra, por si só, consideração e preocupação com o seu desenvolvimento.[14]
Segundo entendimento de Regina Beatriz Tavares da Silva[15] para que exista paternidade socioafetiva devem ser preenchidos dois requisitos: inexistência de vício de consentimento, ou seja, aquele que realiza o registro deve ter a consciência de que o filho é de outra pessoa; o pai deve tratar o filho como se fosse realmente seu, de modo a assim ser havido em sociedade. Percebe-se assim, que a filiação socioafetiva é o resultado do desejo de dar continuidade a espécie humana, direito inerente a todas as pessoas.
3.2 Espécies
3.2.1 Filiação socioafetiva pela adoção
A adoção pode ser conceituada como o negócio jurídico pelo qual se promove, mediante sentença judicial constitutiva, o ingresso de uma pessoa como filho na família do adotante, independentemente da existência entre eles de uma relação parental consanguínea ou afim, desfrutando o adotado de todos os direitos e deveres inerentes à filiação.[16]
Zeno Veloso conceitua adoção com “o ato jurídico que estabelece um vínculo de parentesco entre adotante e adotado, passando este a ser filho daquele. Adquire, assim, o adotado estado de filho do adotante e este o de pai do adotado” [17].
Nesse sentido, de acordo com Rubens Limongi França a adoção pode ser entendida como “um instituto de proteção à personalidade, em que essa proteção se leva a efeito através do estabelecimento entre duas pessoas – o adotante e o protegido adotado – de um vínculo civil de paternidade (ou maternidade) e de filiação[18]”.
Já para Sérgio Gischkow Pereira:
A adoção faz-se baseada em laços afetivos poderosos e insere o adotando na vida familiar, integrando-o plenamente. Significa a demonstração pensada a consciência do amor. Quantas vezes o filho biológico, infelizmente, não é desejado (que o diga o enorme número de abortos). É problema que não se dá no referente ao adotivo. Quantos parentes, mesmo nos graus mais próximos, mantêm distância e nutrem ódios recíprocos. Não é o vínculo consangüíneo, por si só, que deve ser levado em conta, mas a realidade da afeição, da convivência, da assistência, da amizade, da simpatia e da empatia.[19]
Orlando Gomes[20] afirma que a adoção “é o ato jurídico pelo qual se estabelece, independentemente do fato natural da procriação, o vínculo de filiação”.
Cumpre ressaltar que a adoção deve sempre levar em consideração “os interesses do adotando e não o suprimento de carências do adotante, tais como a necessidade de companhia”.[21]
Percebe-se que, na filiação adotiva se encontra o caráter da afetividade envolvendo um adotante de um lado e o adotado de outro, concedendo-se a este todos os direitos e qualificações a que tem direito um filho, na forma estabelecida pelo artigo 227, §6º, CF.
Esse também é o entendimento dos Tribunais:
APELAÇÃO CÍVEL. ANULATÓRIA DE PATERNIDADE. ADOÇÃO À BRASILEIRA. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. IMPROCEDÊNCIA.
Ainda que não estabelecida a paternidade socioafetiva entre os litigantes, mantêm-se a sentença de improcedência da anulatória de paternidade, se evidenciada a adoção à brasileira proferida pelo autor, a qual incorporou na identidade da ré o nome paterno, e sua alteração, não pretendida por ela, representaria uma violação a sua personalidade e a sua dignidade como pessoa humana. Apelação desprovida. (TJRS, Apelação Cível n. 70025492349, de Gravataí, Rel. Des. José Ataíde Siqueira Trindade, julgada em 21- 8-2008).
3.2.2 Filiação socioafetiva originária da posse do estado de filho
A filiação socioafetiva decorrente da posse do estado de filho é aquela em que se verifica uma relação paterno-filial em que se destacam o tratamento existente entre os pais e filho, de caráter afetivo, amoroso e duradouro, e a reputação na qualidade de filho perante terceiros.[22]
Maria Berenice Dias afirma que a noção de posse do estado de filho não se estabelece com o nascimento, mas num ato de vontade que se sedimenta no terreno da afetividade, colocando em xeque tanto a verdade jurídica, quanto a certeza científica no estabelecimento da filiação.[23]
A filiação socioafetiva possui elementos que caracterizam a posse do estado de filho. Embora não haja legislação específica, grande parte dos doutrinadores identifica essas características, quais sejam: a tractatio, a nominatio e a reputatio.[24]
O trato configura-se através do tratamento que é dispensado na relação paterno-filial, ou seja, dá-se por meio da convivência. Assim, o estado de filho encontra-se ligado com a relação vivenciada com o pai, na medida em que este demonstra os sentimentos que nutre por seu filho, cuidando de sua saúde, educação.
O segundo elemento refere-se à utilização pelo filho do patronímico pertencente ao pai. Entretanto, este elemento tem pouca importância, pois a paternidade poderá ser comprovada através dos outros dois elementos. Nesse sentido leciona José Bernardo Boeira:
[...] a doutrina reconhece em sua maioria, o fato de o filho nunca ter usado o patronímico do pai, não enfraquece a posse do estado de filho se concorrerem os demais elementos – trato fama – a confirmarem a verdadeira paternidade. Na verdade, esses dois elementos são os que possuem densidade suficiente capaz de informar e caracterizar a posse de estado.[25]
O terceiro elemento é a reputatio ou fama, que significa a notoriedade acerca da filiação. Tal notoriedade não está adstrita ao lar em que vivem pais e filho, devendo transcendê-lo à sociedade.
É importante ressaltar que esses elementos não constituem numerus clausus, são requisitos meramente exemplificativos, como bem afirma Fachin:
[...] outros fatos podem preencher o seu conteúdo quanto à falta de algum desses elementos. É inegável, porém, que naquele tríplice elenco há o mérito de descrever os elementos normais que de modo corrente demonstram a presença da posse de estado.[26]
Percebe-se, assim, que os elementos demonstram que existe a posse de estado de filho, mas se eles não estiverem presente na relação familiar isso não impede o seu reconhecimento.
3.2.3 Filiação socioafetiva consistente na adoção à brasileira
A adoção à brasileira é uma prática disseminada no Brasil que consiste no reconhecimento registral de determinada pessoa como sendo filho de outros que não se traduzem como seus pais biológicos, sem, no entanto, obedecer aos trâmites legais, caracterizando um procedimento irregular, tipificador de falsidade ideológica, de acordo com o artigo 299, parágrafo único do Código Penal.
Não cabe a anulação do registro por parte daquele que, mesmo tendo ciência de que a criança ou o adolescente não era seu, promoveu o seu reconhecimento voluntário. Essa conduta corresponde a uma adoção e é, portanto, irrevogável.
Maria Berenice Dias afirma:
A lei não autoriza a ninguém vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento. Ainda que dito dispositivo legal excepcione a possibilidade de anulação por erro ou falsidade, não se pode aceitar a alegação de falsidade do registro levada a efeito pelo autor do delito. Assim, o registro de filho alheio como próprio, em havendo o conhecimento da verdadeira filiação, impede posterior anulação.[27]
Esse também é entendimento dos Tribunais:
EMENTA: APELAÇÃO. NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA.
Descabido anular o registro e paternidade, ainda que o apelante não seja o pai biológico da apelada. Quando o registro foi feito o apelante sabia não ser o pai biológico. E ademais sempre criou a apelada como filha, o que consubstancia a paternidade socioafetiva. NEGARAM PROVIMENTO[28].
No mesmo sentido, outra decisão:
APELAÇÃO CÍVEL. ANULATÓRIA DE PATERNIDADE. ADOÇÃO À BRASILEIRA. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. IMPROCEDÊNCIA. Ainda que não estabelecida a paternidade socioafetiva entre os litigantes, mantêm-se a sentença de improcedência da anulatória de paternidade, se evidenciada a adoção à brasileira proferida pelo autor, a qual incorporou na identidade da ré o nome paterno, e sua alteração, não pretendida por ela, representaria uma violação a sua personalidade e a sua dignidade como pessoa humana. Apelação desprovida[29].
Por outro lado, se o pai foi levado a erro e registrou a criança como sendo seu filho, e com este não criou nenhum elo de afetividade, não há por que se reconhecer a adoção à brasileira, impondo-se a anulação do registro civil de nascimento.
A importância conferida ao erro no reconhecimento da paternidade como causa de anulação pode ser verificada na seguinte decisão:
EMENTA: NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. ANULAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. PROVA PERICIAL FRUSTRADA. LIAME SOCIOAFETIVO. 1. O ato de reconhecimento de filho é irrevogável (art. 1º da Lei nº 8.560/92 e art. 1.609 do CCB).
2. A anulação do registro civil, para ser admitida, deve ser sobejamente demonstrada como decorrente de vício do ato jurídico (coação, erro, dolo, simulação ou fraude).
3. Em que pese o possível distanciamento entre a verdade real e a biológica, o acolhimento do pleito anulatório não se justifica quando evidenciada a existência do liame socioafetivo.
4. Inexistência de prova do vício induz à improcedência da ação. Recurso desprovido[30].
Percebe-se, assim, que é a postura de quem realiza o registro que vem sendo considerada pelos julgadores nas decisões de desconstituição de paternidade. Aquele que realizou o registro tendo consciência de que a paternidade biológica não existia não tem direito à desconstituição. Entretanto, se o reconhecimento foi fruto de erro, não deixando de levar em consideração a relação de afeto, privilegiam-se os interesses daquele que foi levado ao erro.
3.2.4 Filiação socioafetiva consistente no “filho de criação”
Os chamados “filhos de criação” são aqueles que, embora pertencentes a outrem, são sustentados, educados, amados e providos por casais que os consideram como filhos próprios, embora apenas se encontrem sob a sua guarda, e não sob o amparo de uma adoção.[31]
Corrobora com esse entendimento Zeno Veloso:
Quem acolhe, protege, educa, orienta, repreende, veste, alimenta, quem ama e cria uma criança, é pai. Pai de fato, mas, sem dúvida, pai. O “pai de criação” tem posse de estado com relação a seu “filho de criação”. Há nesta relação uma realidade sociológica e afetiva que o direito tem de enxergar e socorrer. O que cria, o que fica no lugar do pai, tem direitos e deveres para com a criança, observado o que for melhor para os interesses desta.[32]
Trata-se de uma adoção informal ou de fato, não podendo ser considerados filhos adotivos, já que não há amparo legal, inexistindo equiparação aos filhos biológicos, para os devidos efeitos jurídicos.
Entretanto, alguns Tribunais têm reconhecido a filiação socioafetiva resultante do estado de filho afetivo caracterizado pelo filho de criação, concedendo-lhe a totalidade dos efeitos jurídicos.
AÇÃO DECLARATÓRIA. ADOÇÃO INFORMAL. PRETENSÃO AO RECONHECIMENTO. PATERNIDADE AFETIVA. POSSE DO ESTADO DE FILHO. PRINCÍPIO DA APARÊNCIA. ESTADO DE FILHO AFETIVO. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. PRINCÍPIOS DA SOLIDARIEDADE HUMANA E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. ATIVISMO JUDICIAL. JUIZ DE FAMÍLIA. DECLARAÇÃO DA PATERNIDADE. REGISTRO. A paternidade sociológica é um ato de opção, fundando-se na liberdade de escolha de quem ama e tem afeto, o que não acontece, às vezes, com quem apenas é a fonte geratriz. Embora o ideal seja a concentração entre as paternidades jurídica, biológica e socioafetiva, o reconhecimento da última não significa o desapreço à biologização, mas atenção aos novos paradigmas oriundos da instituição das entidades familiares. Uma de suas formas é a “posse do estado de filho”, que é a exteriorização da condição filial, seja por levar o nome, seja por ser aceito como tal pela sociedade, com visibilidade notória e pública. Liga-se ao princípio da aparência, que corresponde a uma situação que se associa a um direito ou estado, e que dá segurança jurídica, imprimindo um caráter de seriedade à relação aparente. Isso ainda ocorre com o "estado de filho afetivo", que além do nome, que não é decisivo, ressalta o tratamento e a reputação, eis que a pessoa é amparada, cuidada e atendida pelo indigitado pai, como se filho fosse. O ativismo judicial e a peculiar atuação do juiz de família impõe, em afago à solidariedade humana e veneração respeitosa ao princípio da dignidade da pessoa, que se supere a formalidade processual, determinando o registro da filiação do autor, com veredicto declaratório nesta investigação de paternidade socioafetiva, e todos os seus consectários. APELAÇÃO PROVIDA, POR MAIORIA.[33]
3.3 Filiação socioafetiva e multiparentalidade
O ordenamento jurídico brasileiro reconhece a filiação socioafetiva e entende que não existe uma hierarquia entre ela e a filiação biológica, de forma que o Direito deve acolher tanto os vínculos originados da ascendência biológica, como também aqueles construídos pela relação afetiva.
Com base nesse entendimento, o Supremo Tribunal Federal[34] fixou tese no sentido de que “a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”.
Dessa forma, a Corte Suprema fez prevalecer o principio da dignidade da pessoa humana que, no campo do direito de família, confere ao individuo a possibilidade de escolha do formato de família que lhe agrade, de acordo com as suas relações afetivas, ainda que elas não estejam previstas em lei. Ademais, baseou seu entendimento no direito à busca da felicidade, estritamente ligado à dignidade humana, o que faz com que a pessoa seja o centro do ordenamento jurídico, que deverá reconhecer sua capacidade de autodeterminação, de autossuficiência e liberdade de escolher seus próprios objetivos.
Tal direito funciona como meio de proteção do ser humano contra as tentativas do Estado de enquadrar a sua realidade familiar em modelos pré-concebidos pela lei. Entretanto, é o direito que deve se curvar às necessidades e vontades das pessoas e não o contrário.
Dessa maneira, o Supremo reconheceu a pluriparentalidade ou multiparentalidade, ou seja, a possibilidade de uma pessoa possuir dois pais (um socioafetivo e o outro biológico), com todos os efeitos daí decorrentes, inclusive sucessórios, pois todos os pais devem assumir os encargos referentes ao poder familiar e, ademais, haveria uma afronta ao principio da paternidade responsável (art. 226, §7o, CF) se fosse permitido que o pai biológico se desobrigasse de ser reconhecido como tal pelo simples fato de o filho já ter um pai socioafetivo.
3.4 Efeitos resultantes do reconhecimento da filiação socioafetiva
Apesar de ser assegurado o direito à filiação, não podemos confundir o direito de conhecer sua origem genética com o direito de filiação. Com efeito, o eventual reconhecimento da paternidade ou maternidade biológica, na grande maioria dos casos, não terá o condão de anular a relação socioafetiva estabelecida entre os pais e seus filhos, prevalecendo o vínculo de filiação construído no decorrer do tempo.
Nesse sentido leciona Paulo Luiz Netto Lôbo:
Toda pessoa humana tem direito ao estado de filiação, como prerrogativa contida no âmbito da disciplina jurídica das relações familiares, e essa constituição do estado de filiação pode se dar inclusive através do conhecimento da origem genética, se os laços de paternidade não se constituíram por via da afetividade. Diferentemente ocorre quando há uma relação de paternidade socioafetiva pré-constituída. Nestes casos, existe sim o direito à investigação da origem genética, mas ela tem seu fundamento deslocado do direito de família para a seara dos direitos de personalidade; vindica-se a origem genética, não a paternidade.[35]
Com efeito, a filiação socioafetiva é construída a partir das relações familiares que o filho tem com seus pais. Estas relações, de uma forma ou de outra, formam o seu caráter, sua personalidade. Desta forma, se há o descobrimento de uma paternidade biológica posterior, em nada ela poderá alterar aqueles liames de intimidade construídos durante a convivência diuturna entre pais e filhos. Em outras palavras, o conhecimento de sua origem genética não tem força de desfazer as ligações de afetividade estabelecidas.
Neste aspecto, em relação à desconstituição do registro de nascimento, entende-se impossível fazer-se por iniciativa do pai registral, mesmo que este não seja o pai biológico, já que se estabeleceu relação socioafetiva entre eles na qualidade de pai e filho.
Esse é o entendimento dos Tribunais:
APELAÇÃO CÍVEL. NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. Ainda que o autor, pai registral, não seja o pai biológico do réu, mantém-se a improcedência da negatória da paternidade, se estabelecida a paternidade socioafetiva entre eles. Em se tratando de relação de filiação, não se pode compreender que seja descartável, ao menos em casos como o presente, onde por vinte anos o réu teve como genitor o autor. Pretensão que afronta o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, porque o réu ficaria sem pai registral, ou seja, sem filiação e sobrenome paterno. Precedentes doutrinários e jurisprudenciais.[36]
Assim, entendendo que este direito a própria identidade e à felicidade constituem-se em pressupostos para a edificação da dignidade de qualquer pessoa, e entendendo que o Direito brasileiro destina-se à garantia do adequado desenvolvimento do ser humano, entende-se não ser possível a dissolução dos vínculos afetivos construídos, por uma mera questão biológica ou registral.
3.5 Reconhecimento da filiação socioafetiva pelos tribunais
A jurisprudência é uma importante fonte do Direito que tem como finalidade fornecer soluções a cerca de um determinado tema. Assim, o estudo jurisprudencial tem relevância para demonstrar como vem se posicionando os Tribunais Pátrios acerca da filiação socioafetiva.
No julgado colecionado a seguir tem-se o entendimento do Tribunal de que a filiação não pode se basear apenas em elementos biológicos, devendo prevalecer as situações afetivas.
CIVIL. FAMÍLIA. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. INEXISTÊNCIA DE VÍNCULO BIOLÓGICO E SOCIOAFETIVO. RELAÇÃO EXTRAMATRIMONIAL. EXISTÊNCIA DE ERRO NO REGISTRO DE NASCIMENTO. INEXISTÊNCIA DA RELAÇÃO FILIAL.
Com o advento da Constituição Federal de 1988 e do novo Código Civil, ficou erigida como diretriz fundamental a vedação de qualquer tratamento discriminatório a respeito do status da filiação. Assim, o vínculo filiatório não pode ser exprimido apenas com base em elementos meramente biológicos, revelando, ao contrário, serem as situações afetivas muito mais representativas dessa relação. Além desses vínculos, existe o critério jurídico e legal, fundado na presunção relativa imposta pelo direito, materializada mediante a lavratura de registro civil, a teor do art. 1.603.
É admitida a desconstituição da relação de paternidade, mediante o manejo de ação negatória de paternidade, se comprovadas, cumulativamente, a ausência do vínculo biológico e do vínculo socioafetivo, bem como a existência de erro ou falsidade no registro.
Restando comprovada a inexistência do vínculo biológico e socioafetivo e, em se verificando a ocorrência de erro no ato registral do suposto filho, impõe-se a declaração da inexistência da relação de paternidade.[37]
(20070310326979APC, Relator NATANAEL CAETANO, 1ª Turma Cível, julgado em 26/05/2010, DJ 08/06/2010 p. 85)
Depreende-se do presente entendimento que o vínculo afetivo deve prevalecer sobre o biológico, pois o que importa é o afeto, o amor, a convivência e não os laços de sangue. Pode-se perceber a possibilidade de desconstituição da paternidade desde que se prove a existência de erro ou a ausência de vínculo biológico ou afetivo.
No mesmo entendimento tem-se a decisão seguinte que assegura o acolhimento da ação negatória de paternidade desde que demostrada a ausência de vínculo socioafetivo entre as partes.
DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. CANCELAMENTO DE REGISTRO CIVIL. AUSÊNCIA DE FILIAÇÃO BIOLÓGICA. NÃO CARACTERIZAÇÃO DE FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA. INDUZIMENTO A ERRO.
1. O pedido de declaração de negatória de paternidade com a anulação do registro civil da menor deve ser acolhido quando demonstrada a existência de vício do ato jurídico ou ausência de relação socioafetiva entre as partes.[38]
À similitude tem-se a jurisprudência seguinte que declara a prevalência da filiação socioafetiva independentemente do resultado do exame de DNA.
CONTRÁRIA AO RESULTADO DE EXAME DE DNA. IRRELEVÂNCIA. PREVALÊNCIA DA FILIAÇÃO SÓCIO-AFETIVA. SUFICIÊNCIA DO CONJUNTO PROBATÓRIO. INCIDÊNCIA DA COISA JULGADA.
1. A flexibilização dos efeitos da coisa julgada está adstrita às ações que versem sobre direitos indisponíveis, cuja sentença foi lastreada em conjunto probatório deficiente.
2. Possuindo o julgador todos os meios de provas disponíveis, inclusive o exame de DNA, a decisão judicial com trânsito em julgado há de ser abarcada pela coisa julgada na sua totalidade, ainda que se tenha julgado contrariamente ao resultado da perícia, em decorrência da prevalência da filiação socioafetiva e ante a inexistência de comprovação de vício de vontade quando da perfilhação levada à efeito pelo autor da negatória.[39]
No sentido de que a adoção e guarda devem se pautar pelo relacionamento socioafetivo e não o biológico ou registral tem-se o seguinte arresto:
CIVIL. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. GUARDA DE MENOR. PREVALÊNCIA DA PATERNIDADE SÓCIO-AFETIVA SOBRE A BIOLÓGICA. RECURSO IMPROVIDO.
A excepcionalidade que autoriza seja a criança criada e educada em família substituta encontra-se configurada quando o menor é voluntariamente entregue, ainda recém-nascido, à outra família, estando a criança a ela perfeitamente integrada. A paternidade a ser privilegiada, em qualquer hipótese, é a socioafetiva.[40]
Com o entendimento de que devem prevalecer os interesses do menor, sendo a filiação socioafetiva mais benéfica a ele, pois já convive com a família substituta há seis anos e de que o vínculo sanguíneo não deve se sobrepor ao afetivo temos o julgado a seguir:
DIREITO CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE ADOÇÃO CONVERTIDA EM GUARDA. FAMÍLIA SUBSTITUTA. OPOSIÇÃO DA GENITORA. SITUAÇÃO CONSOLIDADA NO TEMPO. PATERNIDADE SÓCIOAFETIVA QUE SE SOBREPÕE À BIOLÓGICA. PROCEDÊNCIA. PREVALÊNCIA DOS INTERESSES DA MENOR.
1. Deve ser julgado procedente o pedido de guarda quando o conjunto probatório sinaliza que a melhor solução consiste em manter a menor sob a guarda de sua família substituta, com quem convive há aproximadamente 6 (seis) anos, a qual reúne plenas condições de assumi-la, como de fato tem feito durante todo esse tempo. Ademais, o instituto da guarda apresenta caráter revogável, podendo ser revisto a qualquer momento, sempre no interesse do menor, mediante ato judicial fundamentado e após ouvido o Ministério Público, consoante preconiza o art. 35 do Estatuto da Criança e de Adolescente.
2. A consanguinidade não pode ser fator preponderante para se definir a guarda do menor, em detrimento da paternidade socioafetiva, que, em muitos casos, se mostra mais benéfica aos interesses do infante.[41]
3. Recurso desprovido
Trata-se de julgado interessante, pois além de ressaltar que a adoção ou a guarda devem se fundar nas relações de afeto, denota que se deve levar em conta, primeiramente, os interesses do menor, ou seja, o que for mais benéfico a ele.
É igualmente digno de nota o caso abaixo de improcedência da filiação socioafetiva:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA. IMPROCEDÊNCIA. Se a família afetiva transcende os mares do sangue, se a verdadeira filiação só pode vingar no terreno da afetividade, se a autêntica paternidade/maternidade não se funda na verdade biológica, mas sim, na verdade afetiva, a ponto de o direito atual autorizar que se dê prevalência à filiação socioafetiva, esta só pode ser reconhecida quando baseada no afeto, e não somente no interesse patrimonial. Se o autor, que possui pai e mãe biológicos e registrais, e com a mãe estabeleceu relação parental afetiva (somente não o fazendo com o pai porque já era falecido), não pode pretender o reconhecimento de uma filiação que não é espontânea e não foi voluntariamente assumida pelos alegados “pais de criação”, pretensão que vem permeada de interesse exclusivamente econômico. Precedentes. Apelação desprovida.[42]
Depreende-se do presente caso que o reconhecimento da filiação socioafetiva foi julgado improcedente porque o que se deve levar em conta é a relação de afeto e não os interesses patrimoniais.
Pode-se perceber, assim, que a maioria dos Tribunais entende que a filiação socioafetiva deve prevalecer sobre a biológica, levando-se em conta o princípio da dignidade da pessoa humana e os interesses da criança.
4. CONCLUSÃO
Através do estudo realizado acerca da filiação socioafetiva, pode-se concluir que tal instituto é amplamente aceito pelo ordenamento jurídico brasileiro, não havendo que se falar em prevalência vínculo resultante de origem biológico e vínculo resultante de origem afetiva, sendo possível, inclusive, no entender do Supremo Tribunal Federal, o reconhecimento de paternidade socioafetiva concomitante com paternidade biológica, com os efeitos jurídicos próprios.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] VILLELA, João Baptista. Desbiologização da paternidade. In: VENCELAU, Rose Melo. O Elo perdido da Filiação: entre a verdade jurídica, biológica e afetiva no estabelecimento do vínculo paterno filial. São Paulo: Renovar, 2004. pág.112.
[2] LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípio jurídico da afetividade na filiação. Jus Navigandi. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=527>. Acesso em: 15 de julho 2017.
[3] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família: uma abordagem psicanalítica. Belo Horizonte : Del Rey, 1997, p. 134.
[4] LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípio jurídico da afetividade na filiação. Jus Navigandi. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=527>. Acesso em: 15 julho de 2017.
[5] LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípio jurídico da afetividade na filiação . Jus Navigandi. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=527>. Acesso em: 15 julho de 2017.
[6] PEREIRA, Tânia da Silva. Direito da criança e do adolescente. Rio de Janeiro: Renovar, 1996. p. 153.
[7] BRASIL. Estatuto da criança e do adolescente. São Paulo: Cortez, 1990. 181p.
[8] BARROS, Sérgio Resende de. A Tutela Constitucional do Afeto. In: V CONGRESSO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA, 2006, Belo Horizonte [MG]. Família e Dignidade Humana. Anais... Belo Horizonte: IOB Thomson, 2005. v. 1. p. 881-889. Disponível em: < http://www.ibdfam.org.br/?congressos&evento=5&anais> Acesso em: 17 de julho de 2017.
[9]FUJITA, Jorge Shiguemitsu. Filiação. São Paulo: Atlas, 2009. p.70
[10] MADALENO, Rolf. Paternidade alimentar. In: Revista Brasileira de Direito de Família, ano VIII, n. 37, ago./set. 2006. p. 138.
[11] FACHIN, Luiz Edson. Direito de Família: elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. Coordenador: Ricardo Pereira Lira. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.17.
[12] LEITE, Eduardo de Oliveira. Direito civil aplicado: v.5: direito de família. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 93
[13] FACHIN. Op.cit.pág169.
[14] MAIDANA, Jédison Daltrozo. O fenômeno da paternidade socioafetiva: a filiação e a revolução da genética. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, v. 6, n. 24, p. 98,Jun/jul.,2004.
[15] BARROS MONTEIRO, Washington; TAVARES, Regina Beatriz da Silva. Curso de Direito Civil. Vol. 2. Direito de Família. 40º ed. São Paulo: Saraiva, 2010. P.134.
[16] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direito de família. 14. ed. revista e atualizada por Tânia da Silva Pereira. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p.392.
[17] VELOSO, Zeno. Direito brasileiro da filiação e paternidade. São Paulo: Malheiros, 1997. p.160.
[18] FRANÇA, Rubens Limongi. Direitos de personalidade – Coordenadas fundamentais. In Revista da Academia Brasileira de Letras Jurídicas. Rio de Janeiro, ano VII, n. 4, jul./dez. 1993. p.123.
[19] PEREIRA, Sérgio Gischkow. A guarda conjunta de menores no direito brasileiro. Porto Alegre: Ajuris, 1986. p.125.
[20] GOMES, Orlando. Direito de Família. 14.ed.rev.e atual. por Humberto Theodoro Júnior. Rio de Janeiro: Forense, 2001.p.324.
[21] TAVARES, José de Farias. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 6 ed. revista, ampliada e atualizada de acordo com as leis correlatas. Rio de Janeiro: Forense, 2006. pág.55
[22] FUJITA. op.cit. p.78.
[23] DIAS, MARIA Berenice. Manual de direito das famílias. 4.ed.,rev., atual e ampl. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2007. p.253.
[24] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro:volume VI. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010. p.291.
[25] BOEIRA, José Bernardo Ramos. A investigação de paternidade: a posse de estado de filho: paternidade socioafetiva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 55.
[26] FACHIN, op.cit. pág. 172.
[27] DIAS, op.cit. pág.436.
[28] BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cívil 700016096596. Rel. Rui Portanova. Porto Alegre, 22 de maio de 2006.
[29] BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cívil 70025492349. Rel. Des. Ataíde Siqueira Trindade, Gravataí, 21 de agosto de 2008.
[30] BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cívil 700158777. Rel. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, aí, 21 de agosto de 2008.
[31]BITTENCOURT, Edgard de Moura. Família. 5. ed. revista, atualizada e ampliada por Joaquim Macedo Bittencourt Netto e Antonio Carlos Mathias Coltro. Campinas: Millenium, 2003. p.219.
[32] VELOSO, op.cit. p. 214.
[33] BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cívil 70008795775. Rel. José Carlos Teixeira Giorgis, 23 de junho de 2004.
[34]http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciarepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4803092&numeroProcesso=898060&classeProcesso=RE&numeroTema=622
[35] LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção necessária. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre, n. 19, p.153, ago./set. 2003.
[36] BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível 70022895072. Rel. José Ataíde Siqueira Trindade, 5 de junho de 2008.
[37] BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cívil 20070310326979. Rel. Natanael Caetano, 26 de maio de 2010. In: Diário da Justiça, p.85, 8 jun. 2010.
[38]BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cívil 20080510114638. Rel. João Mariosa, 12 de junho de 2010. In: Diário da Justiça, p.140, 8 jun. 2010.
[39] BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cívil 20080510052717. Rel. Cruz Macedo, 25 de março de 2009. In: Diário da Justiça, p.137, 20 abr. 2009.
[40] BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cívil 20030150089995. Rel. Carmelita Brasil, 8 de novembro de 2004. In: Diário da Justiça, p.64, 17 fev. 2005.
[41] BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cívil 20020130016165. Rel. Mario-Zam Belmiro, 2 de maio de 2007. In: Diário da Justiça, p.107, 26 jun. 2007.
[42]BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível 70023288251. Rel. José Ataídes Siqueira Andrade, 8 de maio de 2008.
Advogada, pós-graduada em Direito Civil.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FREITAS, Hannah Yasmine Lima. Filiação socioafetiva e seu reconhecimento pelo ordenamento jurídico brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 jul 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50532/filiacao-socioafetiva-e-seu-reconhecimento-pelo-ordenamento-juridico-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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