RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo constatar o atual fenômeno da judicialização de políticas públicas no campo da educação pública, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais juridicamente vinculantes, e para controlar, concomitantemente, os atos discricionários ilegítimos ou abusivos do Poder Executivo, que tenham aprovado dotação orçamentária que represente desvio ou má gestão de verbas públicas, a partir da interpretação sistemática das normas constitucionais e da legislação infraconstitucional que regem e organizam a implementação das políticas públicas e consequentemente do ensino fundamental obrigatório e gratuito, demonstrando de forma exemplificativa, que a doutrina e os tribunais já se afastaram há muito e de forma consistente, da ideia de afronta à separação dos poderes, quando há omissão ou abuso do Estado perante a coletividade ou o cidadão.
Palavras-chaves:. Direitos fundamentais. Educação. Direito subjetivo. Políticas Públicas. Poder Judiciário. Controle do orçamento.
1. A EDUCAÇÃO PÚBLICA NA CF/88
O dever de promover a educação no Brasil, está claramente delineado na Carta Magna, conforme artigos 205 e seguintes:
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Artigo 208
§ 1º - O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo.
§ 2º - O não-oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente.
§ 3º - Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela frequência à escola.
Com efeito, depreende-se da leitura dos artigos 205 e 208, § 3º, da Constituição Federal, que a intenção do legislador em instituir a educação como um direito de todos e dever do Estado e da família, fora que, na falta de um, o outro tem o dever de cumprir a prestação, estabelecendo um regime de responsabilidade solidária, que visa ao pleno desenvolvimento da pessoa e ao seu preparo para a cidadania e a qualificação para o trabalho.
A clara redação do artigo 208 § 1º e § 2º, norteia e direciona, a discussão quanto a obrigatoriedade e subjetividade do direito ao ensino fundamental nos tribunais e no meio acadêmico Brasileiro, a responsabilizar inclusive, a autoridade competente pela omissão. Um avanço sem igual, se comparado a constituições estrangeiras.
A estrutura organizacional do sistema educacional Brasileiro, deverá seguir o estatuído no artigo 211 e seus parágrafos, onde consta que a União os Estados e o Distrito Federal e os Municípios, organizarão em regime de colaboração os seus sistemas de ensino e que:
§ 1º A União organizará o sistema federal de ensino e dos territórios, que financiará as instituições de ensino públicas federais e exercerá, em matéria educacional, função redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios,
§ 2º Os Municípios atuarão prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 14, de 1996)
§ 3º Os Estados e o Distrito Federal atuarão prioritariamente no ensino fundamental e médio. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 14, de 1996)
§ 4º Na organização de seus sistemas de ensino, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios definirão formas de colaboração, de modo a assegurar a universalização do ensino obrigatório. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 59, de 2009)
§ 5º A educação básica pública atenderá prioritariamente ao ensino regular. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)
Básica e prioritariamente a educação infantil e o ensino fundamental devem ser implementados e mantidos pelos Municípios e o Distrito Federal, ou seja, a educação infantil em creches e pré-escolas, dos zero aos cinco anos de idade e o ensino fundamental, dos seis aos quatorze anos respectivamente. Por sua vez, os Estados e o Distrito federal atuarão prioritariamente tanto do ensino fundamental, dos seis aos quatorze anos, como do ensino médio dos quinze aos dezessete anos;
Note-se que legislador constituinte instituiu a expressão “prioritariamente” (parágrafos 2º e 3º), ou seja, que na organização de seus sistemas de ensino, os entes federativos, definirão formas de colaboração de modo a assegurar a universalização do ensino obrigatório, sendo a União responsável pelas funções redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, como também, responsável pela organização e o financiamento das instituições de ensino públicas federais e dos territórios (§ 1º).
O legislador constituinte estipulou, portanto, que ensino fundamental básico é obrigatório e gratuito, e que compreende a educação infantil e o ensino fundamental e médio profissionalizante, dos zero aos dezoito anos de formação e tem por finalidade, conforme o artigo 22[1], da Lei Nº 9394/96 – Lei Diretrizes Bases da Educação Nacional –, “desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores”. Estatuiu também o legislador constituinte que os seus recursos serão provenientes dos Municípios e dos Estados em princípio, cabendo a União à responsabilidade pelas funções redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino.
O artigo 208[2], da Constituição Federal, deixa claro o dever constitucional Estatal com a educação, que será efetivado mediante a garantia da educação básica obrigatória e gratuita a todos, inclusive aos que não tiveram acesso a ela na idade adequada. Outrossim, o estado deverá: implantar uma progressiva universalização do ensino médio gratuito; o atendimento especializado aos portadores de deficiência física; a educação infantil em creches e pré-escolas; o acesso aos níveis mais elevados, segundo a capacidade de cada um; a oferta de ensino noturno adequado às condições do educando; e, por fim, o atendimento ao educando por programas suplementares de material, transporte, alimentação e assistência à saúde.
2. A JUDICIALIZAÇÃO DA POLITICA PÚBLICA EDUCACIONAL
Os chamados Direitos Prestacionais – direitos fundamentais de segunda geração –, possuem natureza de normas programáticas e, pois, depende de atos discricionários do Poder Executivo na implementação destes no orçamento público e posterior execução.
Não se trata, todavia, de discricionariedade absoluta. O direito a educação está protegido mandamentalmente na constituição pátria, distribuído na construção articulada de seus artigos, que combinados com a legislação infraconstitucional, constituem um conjunto normativo jurídico complexo de amplo alcance.
É corolário do núcleo axiológico antropocentrista do ordenamento constitucional a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativas. É dever explicitamente intrínseco do Estado, preparar o indivíduo, educando-o, para exercer a cidadania com dignidade e com igual oportunidade para todos.
Ao longo de toda a Constituição, numa construção complexa, o legislador constituinte deixa claro e evidente que o povo Brasileiro tem o direito de exigir do Estado a prestação do ensino básico obrigatório e gratuito de qualidade, mormente pelo mandamento de otimização dos direitos fundamentais, que o revelam como normas de aplicação imediata, nos termos do art. 5º, §1º, da CRFB.
O ensino fundamental, de qualidade obrigatório e gratuito, (a educação em seu amplo sentido) consiste em pressuposto lógico de cidadania e dignidade, dever inescusável por parte dos gestores públicos. Trata-se de mandamento constitucional juridicamente vinculante dos atos do Poder Executivo, inclusive e, especialmente, dos atos discricionários. Ademais, qualquer lesão ou ameaça de direito poderão, e nestes casos deverão, por também estar o Ministério Público vinculado, serem submetidos à avaliação e controle de constitucionalidade pelo judiciário.
Em contraponto, pode-se arguir o princípio da Separação dos Poderes. O art. 2º, da CF/88, preconiza que os poderes são independentes e harmônicos entre si. Trata-se do princípio da Separação dos Poderes, ou ainda, da Separação das Funções do Poder uno e indivisível. Neste sentido, Walber Moura Agra leciona:
“A terminologia separação dos poderes foi expressa de forma errônea, porque na verdade o poder que resvala da soberania é uno. O que se reparte são as funções realizadas por esses poderes, de acordo com o que fora estipulado pela Constituição em cada país.”
O check and balances da doutrina inglesa, modelo de controle recíproco dos governantes, fundamenta a separação das fundações. O art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão afirma que, “onde não houver separação dos poderes e outorga dos direitos fundamentais não se pode falar na existência de uma lei maior”.
Nesse diapasão, a Administração Pública argumenta que os direitos prestacionais, especificamente o direito a educação, são essencialmente programáticos e técnicos, formulados no âmbito do Poder Legislativo e implementos via o Poder Executivo, sendo indevida a ingerência do Poder Judiciário, no âmbito das políticas públicas, uma vez que não lhe assiste amparo constitucional na atuação típica de outros Poderes. Lhe faltaria, portanto, legitimidade democrática.
Ocorre que, com o movimento neoconstitucional, passou-se a se discutir e considerar novos papeis do Poder Judiciário, guardião máximo da Carta Magna, a qual lhe cumpre conferir máxima efetividade e força normativa. Quando o Administrador oferece educação de qualidade e escolas de referência gratuitas a apenas uma parte da população em detrimento de outra, verifica-se uma discriminação frontalmente atentatória aos direitos da dimensão da igualdade e ao mandamento constitucional da obrigatória educação básica gratuita de qualidade a todos. Trata-se de clara violação aos direitos e liberdades fundamentais instituídos pela Constituição de 1988.
Ademais, no artigo 5º § 1º, da CF/88, está instituído em claro vernáculo: “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais são de aplicação imediata”, e mais ainda, para completar o arcabouço normativo, o artigo 208, §1º, estatui que “o acesso ao ensino obrigatório e gratuito, é direito público subjetivo”.
Nesse aspecto, o Ministério Público é legitimado e competente para ingressar com Ação Civil Pública, na defesa da ordem jurídica, do regime democrático de direito, dos interesses individuais e sociais indisponíveis, ou seja, tem o poder-dever de atuar nas garantias dos acessos a educação obrigatória gratuita de qualidade.
O Superior Tribunal de Justiça converge neste entendimento, acerca da legitimidade do Ministério Público quanto à proteção do direito a educação, senão vejamos:
MANDADO DE SEGURANÇA - ENSINO PÚBLICO – CRIANÇA – DIREITO A EDUCAÇÃO – MINISTERIO PÚBLICO – COMPETENCIA – SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL – LEI 8.069/90, ART. 201, IX.
- A teor do Código da Criança e do Adolescente, o ministério Público não está apenas legitimado, mas “é competente”. Vale dizer: tem o encargo legal de defender, em substituição processual os interesses sociais da criança. Recurso Especial 212.961/MG.
No Estado de Minas Gerais, a Procuradoria Geral de Justiça do Estado, juntamente com a Secretaria de Educação Estadual e outras entidades, em 30 de janeiro de 1998, editou a Resolução número 05, na qual:
Se normatiza a atuação do Ministério Público na fiscalização da efetiva observância pelo Estado, Municípios e famílias do direito da criança e do adolescente ao ensino fundamental, assegurado pela Constituição Federal e pelas leis (preâmbulo).
Caio Tá[3]cito, em um trecho de sua Carta Mensal:
[...] certamente tão ambicioso plano de valorização da cultura e da educação pressupõe que a tais setores da atividade pública sejam dedicadas parcelas maiores da receita pública, acima dos limites mínimos prescritos na Constituição. Caberá aos homens do Governo, submetidos à cobrança de uma opinião pública exigente de seus direitos fundamentais, atribuir efetiva vigência a tais prioridades de modo a que possa o país vencer atrasos históricos, superar desigualdades sociais e deficiências na formação nacional que são pré-requisitos elementares para um verdadeiro desenvolvimento equilibrado que torne reais os benefícios prometidos no lema da bandeira nacional. (CAIO TÁCITO; 1988, P. 36-7).
Em interessante trabalho monográfico, Taciana Alves de Paula Rocha, quanto à dificuldade em executar o provimento judicial obtido em ação civil pública, ou seja, a condenação da Fazenda Pública a obrigação de ofertar o ensino regular fundamental. “[...] o provimento judicial obtido em ação civil pública [condenação à Fazenda Pública de ofertar ensino fundamental regular] não satisfaz as necessidades educacionais formalmente consagradas na Constituição Federal, em razão da limitação política a execução contra a Fazenda Pública [ admitida apenas na forma de quantia certa] e, ainda, por força da vinculação das verbas condenatórias a fundos especiais previstos em lei. Tal provimento judicial é monetarizado, obtido em execução por quantia certa, enquanto o provimento educacional, objeto de satisfação de necessidades educacionais, somente é satisfeito por meio de provimentos concretos [bens e serviços educacionais] e, portanto, não vinculados ao sistema jurídico, mas ao econômico, no qual a administração de recursos escassos impõe que os gastos públicos para a satisfação de necessidades sejam incluídos em orçamento [previsão orçamentária].
O controle de políticas públicas consiste, pois, em um controle dos orçamentos. Quanto ao controle preventivo, este pode ser admitido quando o orçamento estiver em dissonância com o plano plurianual ou com a lei de diretrizes e bases orçamentárias, quando não se respeitarem as verbas vinculadas ou quando há necessidade de inclusão de verba no ano seguinte.
Quanto ao controle concomitante, ou seja, durante a execução do orçamento, tem-se que é permitida a atuação do poder judiciário no sentido de corrigir desvios de despesa quando, por exemplo, estiver contemplada rubrica não prioritária, em detrimento de outra que é.
3. A DA RESERVA DO POSSÍVEL E DO MÍNIMO EXISTENCIAL
Superada a discussão da legitimidade e competência, passa-se a analisar a problemática da reserva do possível e o mínimo existencial.
O debate acerca da efetivação dos direitos sociais é sempre criado em volta de um núcleo econômico. O orçamento Público aparece como obstáculo Constitucional, mandamental e (in)vencível. Ao determinar as escolhas políticas de quais direitos sociais privilegiar – as chamadas escolhas trágicas –, o executivo e legislativo encontram o limite das despesas públicas – recursos limitados – e, portanto, o equilíbrio das contas públicas, com o fornecimento de prestações materiais. Trata-se do princípio da reserva do possível, que limita a plenitude das prestações positivas.
Sendo então os recursos limitados, deve-se fazer escolhas trágicas, e no momento histórico atual, insuficientes para a efetivação dos mandamentos constitucionais vinculantes relacionados a direitos públicos subjetivos, notadamente, ao direito social fundamental a educação pública de qualidade.
Desse modo, ficam o executivo e o legislativo, vinculados a gastar prioritariamente com o que está constitucionalizado e legalizado – normas pré orçamentárias impositivas – a fim de se preservar mínimo existencial da pessoa humana. Não se trata, obviamente, de envolver o Ministério Público e os Tribunais nas escolhas trágicas, mas sim, na discussão acerca da vedação ao retrocesso e no controle preventivo e concomitante dos orçamentos e dos atos discricionários do executivo. Isto porque, estando estes desconforme, os ditames mandamentais juridicamente vinculantes da Constituição e da Lei, serão contrários e, portanto, ilegais, ilegítimos e inconstitucionais, vinculando o Ministério Publico à exercer o poder-dever de provocar o controle jurisdicional.
Observemos, pois, as palavras de Maurício Pedrosa Filho, a respeito da elaboração dos orçamentos e alocação de recursos para a implantação de políticas com a saúde pública;
Mercê de toda essa normatização atinente à questão orçamentária é que os gestores públicos têm a obrigação de alocar recursos necessários ao cumprimento dos direitos sociais, eis que são prestações garantidas e dispostas na Constituição aos cidadãos, a exemplo da prestação da saúde (nela incluída a assistência farmacêutica).
Essa obrigação do gestor decorre do seu dever legal e funcional de honrar os ditames da Constituição e das leis em geral, haja vista que ele – gestor - enquanto no exercício do seu múnus público, só poderá agir secundum legem.
Na esteira das linhas precedentes, a ausência ou escassez de recursos no orçamentário serve de mote para o gestor se eximir do cumprimento de alguma prestação estatal imposta pela Constituição, a exemplo dos serviços de saúde de cuja deficiência e reclamos são notórios em nosso país.
A reserva do possível reflete a ausência de recursos para atender a alguma atividade estatal típica, como a saúde. A ausência de recursos, ou seja, a sua inexistência, representa o vazio dos cofres públicos. (PEDROSA FILHO; 2012, p. 117).
Destaca Américo Bedê Freire Júnior, no sentido de questionar a prioridade de despesas com propaganda governamental versus áreas priorizadas pela Constituição de 1988;
Será que é possível falar em falta de recursos para a saúde quando existem no orçamento, recursos para propaganda de governo? Antes de os finitos recursos se esgotarem para os direitos fundamentais, precisam estar esgotados em áreas não prioritárias do ponto de vista constitucional e não do detentor do poder. AMÉRICO BEDÊ FREIRE JÚNIOR (2005,p. 74).
Andrea Lazzarini Salazar e Karina Bozola Grou, tratam da constitucionalidade e legitimidade, quanto ao remanejamento de recursos públicos de áreas não prioritárias, como a propaganda governamental, para áreas das políticas públicas constitucionalizadas;
O estado tem o dever de alocar recursos necessários para o cumprimento de prestações garantidas pela Constituição prioritariamente. Não o fazendo previamente, poderá promover as alterações necessárias no orçamento sem ofensa às normas constitucionais que dispõem sobre os princípios orçamentários e sobre os gastos públicos. Especialmente atenderá Constituição Federal quando remanejar verbas inicialmente destinadas a atividades de menor ou pouca importância, como é o caso daquelas destinadas a publicidade governamental. (SALAZAR; GROU, 2009, p.92).
Na mesma direção, Lucia Valle Figueiredo, no sentido em que vincula os atos políticos do executivo, que em princípio seriam discricionários, as prioridades constitucionalmente garantidoras de direitos fundamentais e as políticas públicas;
O orçamento não é uma peça livre para o administrador. Há valores que são priorizados pelas Constituições Federal e Estadual. Aqui também, por vezes, o administrador não tem qualquer discricionariedade, pois, do contrario, seria lhe dar o poder de negar, pela via transversa, a escala de prioridades e de urgência que foi constitucionalmente fixada. (SALAZAR GROU 2009, P. 91).
Assim, não pode o Estado prover a dignidade humana e as condições de exercício pleno da cidadania, sem a efetivação do direito a educação e a tudo que com ela se relaciona e a compõe, a exemplo dos materiais e livros didáticos, da merenda escolar balanceada, do fardamento completo de uso diário em salas de aulas e na prática desportiva, dos materiais para as artes e prática musical, do transporte, da assistência médica odontológica e psicológica, enfim, tudo o que se faz necessário ao cumprimento do mandado constitucional da prestação do ensino fundamental.
Isto posto, ficam limitados e juridicamente vinculados, os atos políticos discricionários que são, equivocadamente, tidos como livres de quaisquer controles judiciais, a priorizar a prestação positiva do direito público subjetivo ao ensino fundamental obrigatório, podendo para tanto ocorrer, o remanejamento de verbas orçamentárias inicialmente destinadas a atividades de menor relevância, para áreas privilegiadas constitucionalmente, sem ofensa aos princípios constitucionais inerentes aos gastos públicos, tampouco a separação dos poderes.
Transcrevemos passagem de Walber de Moura Agra em seu livro curso de direito constitucional, 2010, p. 308. “Mesmo não tendo assento constitucional e podendo ser destituída de valia em decorrência do princípio da proporcionalidade, a teoria da reserva do possível se mostra propícia quando for usada para racionalizar os recursos públicos, impedindo que sejam direcionados de forma temerária. Mostrar-se-á despicienda e danosa quando for utilizada para estiolar a concretização de direitos fundamentais.”
4. JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS SUPERIORES
No Processo Civil tradicional, instrumento para solução de conflitos entre particulares, temos os limites do pedido. Os princípios da demanda e da adstrição da sentença ao pedido, são como, os trilhos de um trem para o Magistrado, o juiz fica adstrito à dimensão apresentada pelas partes, proibido de julgar ultra, extra ou citra petita, ou seja, obrigado a se utilizar duma hermenêutica de interpretação restritiva do pedido.
Na tutela da ação, por sua vez, o magistrado possui âmbito maior de atuação. Como pontua, sabiamente, Marcos Aurélio de Freitas Barros em suas “Ponderações sobre o Pedido nas Ações Coletivas e o Controle Jurisdicional das Políticas Públicas”, a despeito da discricionariedade do juiz:
Antes de abordar o tema de frente, contudo, é preciso realçar, no plano genérico, o controle jurisdicional de políticas públicas, fixando premissas necessárias à compreensão de tão instigante tema ligado à efetividade dos direitos sociais, econômicos e culturais, considerando-se que o principal objeto destes direitos fundamentais são justamente as políticas públicas.
Não se pode esquecer que, no âmbito da tutela coletiva, deixa o magistrado de ser um simples aplicador do direito para inferir diretamente em políticas públicas, com reflexos, muitas vezes, em toda a sociedade. A todo o momento, se depara com valores constitucionais da mais alta relevância, o que lhe impõe um alto grau de discricionariedade. Com frequência, o juiz é levado a formular uma opção político-jurídica, a propósito de qual bem jurídico ou interesse social deve prevalecer.
Não pode, pois, estar jungido às amarras impostas pelo clássico. O juiz, em hipótese alguma, pode se satisfazer simplesmente com o que foi apresentado pelas partes ou manejar os meios executivos tipicamente previstos. Deve assumir postura ativa, podendo, inclusive decidir além, aquém ou fora dos limites do pedido autoral, como bem demonstra o art. 84 do CDC, extremamente comprometido com estas ideias. O compromisso maior não pode ser com a pretensão da parte, mas com a tutela do direito material coletivo. O princípio da adstrição da sentença ao pedido, pois, deve, no mínimo, ser mitigado no âmbito da tutela coletiva.
Daí resulta algumas questões de alta gravidade. Diante dos incrementados poderes do juiz na tutela coletiva, o pedido não se apega a quaisquer limites? A discricionariedade judicial, quanto à escolha da providência mais adequada, se submeteria somente ao arbítrio do magistrado? Como permitir a manifestação do inconformismo da parte que se sentir prejudicada?
Em resposta a essas indagações, é preciso deixar claro, de início, que o pedido nas ações coletivas não é livre, como se pode pensar. Tem o juiz, mesmo de ofício, liberdade quanto ao pedido imediato (providencia jurisdicional), não podendo, contudo, se afastar da tutela do bem jurídico de que se busca a proteção judicial (o pedido mediato). A parte não pode pedir nem tampouco o juiz determinar, providencia que não atenda ao bem jurídico tutelado. O limite, pois, está no pedido mediato.
Não existe, portanto, absoluta discricionariedade judicial na escolha da providência a ser adotada. Até porque isso seria um convite à arbitrariedade. É-lhe imposta a obrigação da providencia ótima, a mais adequada para proteger, in casu, o bem jurídico de dimensão coletiva.
Em razão do exposto, o juiz estará também adstrito ao princípio da proporcionalidade, devendo adotar a providência mais adequada às exigências do caso concreto. Vê-se, portanto, que há uma diferença evidente entre o processo tradicional, de índole liberal-individualista, e o processo coletivo, já que, como ensina Marinoni: “A diferença está na forma de controle. Se antigamente ele era feito pela lei – daí pensar no princípio da tipicidade dos meios executivos, na separação entre conhecimento e execução e na congruência entre pedido e a sentença – atualmente esse controle deve ser realizado pela regra da proporcionalidade”.
Permiti-se, pois, o controle dos atos judiciais à luz da proporcionalidade.
Percebe-se, portanto, que o juiz apesar de não ficar adstrito ao pedido como no processo civil entre particulares, sendo, pois, mitigado o princípio da adstrição da sentença ao pedido, em se tratando de tutela de direitos coletivos, prevalecendo a providência mais adequada no caso concreto e ao principio da proporcionalidade, não sendo possível distanciar-se deste ou daqueles, sob o risco de incorrer em arbitrariedade.
O Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, em decisão monocrática histórica na ADPF nº45, ponto de referência para os Tribunais inferiores, dispõe que:
A questão da legitimidade constitucional do controle e da intervenção do Poder Judiciário em tema de implementação de políticas públicas, quando configurada hipótese de abusividade governamental. Dimensão política da jurisdição constitucional atribuída ao Supremo tribunal Federal. Inoponibilidade do arbítrio estatal à efetivação de direitos sociais, econômicos e culturais. Caráter relativo da liberdade de conformação do legislador. Considerações em torno da cláusula da reserva do possível. Necessidade de preservação, em favor dos indivíduos, da integridade e intangibilidade do núcleo consubstanciador do mínimo existencial. Viabilidade instrumental da arguição de descumprimento no processo de concretização das liberdades positivas (direitos constitucionais de segunda geração). ADPF n° 45 MC/DF, decisão monocrática, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 4.5.2004, informativo n° 345-STF.
Acerca da excepcionalidade do controle judicial das políticas públicas, assinalou o ministro que é cabível, quando descumpridas as obrigações pelo executor competente que comprometam a eficácia de direitos de estatura constitucional, mesmo que provenientes de normas programáticas;
Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político- jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático.
O Supremo Tribunal Federal, considera omissão estatal injustificável, a não preservação ou fomentação ao direito fundamental a educação do cidadão, o que enseja controle pelo poder judiciário, por serem considerados atos administrativos ilegais ou abusivos;
Agravo regimental no agravo de instrumento. Acesso à educação. Direito fundamental. Controle judicial. Ato administrativo ilegal. Possibilidade. Precedentes. 1. A educação é direito fundamental do cidadão, assegurada pela constituição da República, e deve não apenas ser preservada, mas, também, fomentada pelo poder público e pela sociedade, configurado a omissão estatal no cumprimento desse mister um comportamento que deve ser repelido pelo Poder Judiciário. 2. O poder Judiciário pode efetuar o controle judicial dos atos administrativos quando ilegais ou abusivos. 3. Agravo regimental não provido. (AI 658491)
Diante da doutrina e da jurisprudência pacífica, percebe-se o cabimento de controle judicial nos orçamentos públicos, no que diz respeito à ilegalidade e abusividade dos atos administrativos, que violam o mínimo constitucional e o direito público subjetivo a uma educação pública de qualidade.
Vê-se, como método coercitivo, a possibilidade de serem utilizadas as astreintes contra o poder público. Em decisão do Supremo Tribunal Federal, que dispõe sobre o descumprimento de políticas publicas definidas em sede constitucional, observa-se a possibilidade deste expediente:
E M E N T A: CRIANÇA DE ATÉ CINCO ANOS DE IDADE - ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA - SENTENÇA QUE OBRIGA O MUNICÍPIO DE SÃO PAULO A MATRICULAR CRIANÇAS EM UNIDADES DE ENSINO INFANTIL PRÓXIMAS DE SUA RESIDÊNCIA OU DO ENDEREÇO DE TRABALHO DE SEUS RESPONSÁVEIS LEGAIS, SOB PENA DE MULTA DIÁRIA POR CRIANÇA NÃO ATENDIDA - LEGITIMIDADE JURÍDICA DA UTILIZAÇÃO DAS “ASTREINTES” CONTRA O PODER PÚBLICO - DOUTRINA - JURISPRUDÊNCIA - OBRIGAÇÃO ESTATAL DE RESPEITAR OS DIREITOS DAS CRIANÇAS - EDUCAÇÃO INFANTIL - DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV, NA REDAÇÃO DADA PELA EC Nº 53/2006) - COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO - DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º) - LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM CASO DE OMISSÃO ESTATAL NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PREVISTAS NA CONSTITUIÇÃO - INOCORRÊNCIA DE TRANSGRESSÃO AO POSTULADO DA SEPARAÇÃO DE PODERES - PROTEÇÃO JUDICIAL DE DIREITOS SOCIAIS, ESCASSEZ DE RECURSOS E A QUESTÃO DAS “ESCOLHAS TRÁGICAS” - RESERVA DO POSSÍVEL, MÍNIMO EXISTENCIAL, DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E VEDAÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL - PRETENDIDA EXONERAÇÃO DO ENCARGO CONSTITUCIONAL POR EFEITO DE SUPERVENIÊNCIA DE NOVA REALIDADE FÁTICA - QUESTÃO QUE SEQUER FOI SUSCITADA NAS RAZÕES DE RECURSO EXTRAORDINÁRIO -PRINCÍPIO “JURA NOVIT CURIA” - INVOCAÇÃO EM SEDE DE APELO EXTREMO - IMPOSSIBILIDADE - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. POLÍTICAS PÚBLICAS, OMISSÃO ESTATAL INJUSTIFICÁVEL E INTERVENÇÃO CONCRETIZADORA DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE EDUCAÇÃO INFANTIL: POSSIBILIDADE CONSTITUCIONAL
Assim, verifica-se que doutrina e os Tribunais Superiores, já aplicam de forma consistente a ideia de que, a atuação judicial, quando provocada, obedecendo aos limites do pedido mediato, a providência mais adequada no caso concreto e ao princípio da proporcionalidade, na tutela ao direito a educação pública de qualidade, quando há omissão injustificável ou abuso do Estado, não afronta a separação dos poderes, pelo contrário, reforça a legitimidade destes, evitando uso indevido do principio da reserva do possível e a vedação ao retrocesso.
Conforme o entendimento de Josué Mastrodi, ao se justificar uma negativa de intervenção estatal em prioridades sociais, em países com a economia reconhecidamente entre as maiores do mundo como a brasileira, devem ser percebidos estes argumentos como pretexto. Ele arremata ao dizer “[...] numa situação destas, isto não é uma reserva do possível, mas uma reserva da injustiça”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na Constituição pátria, foi normatizado programaticamente o mandamento da implementação do ensino fundamental progressivo, gratuito e obrigatório para todo o povo Brasileiro. É patente na doutrina e nos tribunais, a responsabilidade dos governantes diante de tamanho lapso temporal. O desrespeito, afronta, ilegalidade e ilegitimidade constitucional, diante da formulação dos orçamentos e inadequada implementação das políticas públicas, ao momento histórico e econômico vivido no Brasil, é notório.
As normas programáticas não podem se interpretadas e consideradas como apenas promessas vazias do legislador constituinte, ao cargo e na dependência da boa vontade do governante eleito. Os orçamentos não são peças desvinculadas de premissas e livres para o administrador público. Há regras, ditames e mandamentos constitucionais a serem perseguidos. Um verdadeiro arcabouço normativo deve ser respeitado pelo Executivo, e, quando não, controlado pelos outros Poderes, do contrário ser-lhe-ia dado o poder de renegar a segundo plano, as prioridades do sistema normativo constitucional, e, porque não dizer, até dos supralegais acordos internacionais.
Do parágrafo 1º do artigo 5º da Constituição de 1988, extrai-se o mandamento de que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais, da qual faz parte a educação básica de qualidade, têm aplicação imediata. Do parágrafo 1º artigo 208, extra-se também, o importantíssimo e esclarecedor mandamento de que o ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo.
Conclui-se, portanto, que nas ações civis públicas, cujo objeto seja a implementação de políticas públicas, e, sobretudo, nos casos de omissão ou abuso estatal, aplicam-se as regras do pedido nas ações coletivas. Deve-se evitar a postulação de medidas que importem em ingresso na específica esfera da Política, pois assim, haveria intromissão indevida do Poder Judiciário, e consequente arbitrariedade, em juízos de conveniência e oportunidade.
Nas medidas de caráter liminar, ou seja, no pedido imediato, que pretende garantir um resultado útil no futuro, no final do processo, fica o Magistrado, de oficio, com base no art. 84 do CDC, autorizado a determinar multa diária ou quaisquer outras providências executivas necessárias à obtenção da tutela específica, ou resultado prático equivalente, se valendo de verdadeiras cláusulas gerais processuais, entretanto, adstrito aos limites do pedido mediato, do bem jurídico tutelado.
Logo, o controle jurisdicional das políticas públicas é possível, mas deverá ser excepcional e proporcional ao caso concreto. Este controle para ser legítimo, não se afina com um exame unicamente político, mas sim jurídico ou jurídico-político, com a contemplação das finalidades predispostas pelas normas Constitucionais. Somente haverá espaço para o controle jurídico dos atos políticos, se estes tiverem contorno de desvio ou abusividade governamental, dentro de um exame criterioso de compatibilidade ou não, entre a atividade estatal e os ditames das normas Constitucionais.
REFERÊNCIAS
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[1] Art. 22. A educação básica tem por finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores.
[2] Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:
I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 59, de 2009) (Vide Emenda Constitucional nº 59, de 2009)
II - progressiva universalização do ensino médio gratuito; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 14, de 1996)
III - atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino;
IV - educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)
V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um;
VI - oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando;
VII - atendimento ao educando, em todas as etapas da educação básica, por meio de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 59, de 2009)
[3] Tácito, Caio. Da educação e da cultura na nova Constituição. Rio de Janeiro, no 34, nov. 1988, p. 36-7.
Bacharel em direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Pós-Graduado Lato Sensu em Direito Público pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BEZERRA, Fernando Costa Santos. Judicialização de políticas públicas no campo da educação à luz da jurisprudência dos tribunais superiores Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 ago 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50581/judicializacao-de-politicas-publicas-no-campo-da-educacao-a-luz-da-jurisprudencia-dos-tribunais-superiores. Acesso em: 23 dez 2024.
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