RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo analisar os limites do poder constituinte derivado reformador no tocante à transição de sistemas de governo (Parlamentarismo/Presidencialismo), tendo como parâmetro a Constituição Federal de 1988 da República Federativa do Brasil. Objetiva-se traçar parâmetros objetivos acerca dos institutos, em especial sua evolução histórica, contraponto as diferentes teses de surgimento e sopesando como estes diferentes panoramas influenciaram o atual estágio de desenvolvimento sobre o tema no ordenamento jurídico brasileiro. Conclui-se o estudo com o posicionamento crítico a respeito da possibilidade de modificação do sistema de governo vigente.
PALAVRAS-CHAVE: Poder Constituinte. Limites implícitos e explícitos. Originalismo.
SUMÁRIO: 1 Introdução 2 Da análise propedêutica dos institutos 2.1 Do Poder Constituinte e suas espécies 2.2 Limites ao Poder de Reforma 3 O originalismo e processo de fossilização da atividade legislativa 4 Considerações Finais 5 Referências Bibliográficas
1 INTRODUÇÃO
A problemática apresentada gera discussão no meio jurídico desde o plebiscito de 21 de abril de 1993, determinado pela art. 2.º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) e cuja data foi alterada pela Emenda Constitucional N.º 2, de 1992, ao ter sido cristalizado o presidencialismo como sistema de governo eleito para a República Federativa do Brasil.
No contexto político atual, tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) o Mandado de Segurança N.º 22.972 que visa à discussão no Pretório Excelso sobre a existência de limites implícitos que vedem a convocação de novo plebiscito para incorporar o parlamentarismo no Brasil.
Neste contexto, indispensável para o meio acadêmico que se analise detidamente sobre a eventual inconstitucionalidade da matéria.
2 DA ANÁLISE PROPEDÊUTICA DOS INSTITUTOS
Cumpre elucidar, inicialmente, as definições de Poder Constituinte Originário e Derivado, destacando-se, quanto ao último, o Poder Constituinte Derivado Reformador e seus limites, sob o enfoque específico: a) do processo de fossilização do Poder Legislativo; e b) da interpretação constitucional americana do Originalism (originalismo, em tradução livre).
2.1 Do Poder Constituinte e suas espécies
O Poder Constituinte Originário (também denominado inicial ou de 1.º grau) é aquele que instaura uma nova ordem jurídica, rompendo com as disposições legais precedentes. Apesar de ser classicamente afirmado que este poder é ilimitado juridicamente, incondicionado e soberano na tomada de suas decisões, a doutrina mais moderna afasta essa onipotência do constituinte originário, conforme ensinamentos de CANOTILHO (2003, pág. 81), ao atrelar uma vinculação à chamada “vontade do povo”, ou seja, padrões e modelos de conduta espirituais, culturais, éticos e sociais enraizados na consciência da comunidade que atenuam a discricionariedade absoluta na formação de um novo regime jurídico.
O Poder Constituinte Derivado é criado e delimitado pelo Originário, havendo submissão direta às regras impostas por este. O primeiro limite do Poder Constituinte Derivado são as próprias normas, explícitas e implícitas, do Poder Constituinte Originário. Subdivide-se em Reformador, Decorrente e Revisor.
Nas ensinamentos de LENZA (2015, PÁG. 332), percebe-se a clara submissão existente entre o Poder Constituinte Originário e o Derivado, sendo este rapidamente criticado, pois, ao sentir do autor, a denominação correta seria “competência”, não “poder constituinte:
Ao contrário de seu “criador”, que é, do ponto de vista jurídico, ilimitado, incondicionado, inicial, o derivado deve obedecer às regras colocadas e impostas pelo originário, sendo, nesse sentido, limitado e condicionado aos parâmetros a ele impostos. Alguns autores preferem a utilização da terminologia competências, em vez de poder constituinte derivado, pois só seria poder constituinte o que derivasse diretamente da soberania popular e fosse ilimitado. No entanto, mantemos a utilização da expressão “poder constituinte” na medida em que dele decorre a produção de normas de caráter constitucional. (nas provas preambulares também vem sendo, de maneira geral, utilizada a nomenclatura “poder constituinte derivado”.)
Para os fins do presente trabalho será analisado apenas o Poder Constituinte Derivado Reformador e seus limites, expressos e implícitos. É compreendido como a competência de alterar a Constituição Federal, através de procedimento específico (emendas constitucionais, arts. 59, I, e 60 da CF/88) estabelecido pelo Poder Originário.
2.2 Limites ao Poder de Reforma
Os limites expressos são divididos em formais, circunstanciais e materiais. Os formais referem-se a procedimentos obrigatórios previstos na Constituição, como a iniciativa para determinadas matérias, o quorum de aprovação de um projeto ou a promulgação da emenda. A vedação à reforma da Constituição em momentos de anormalidade institucional, como intervenção federal, estado de defesa ou estado de sítio, são limitações circunstanciais. Os limites materiais encontram-se expressamente previstos no art. 60, §4.º da Carta Magna, o qual veda proposta de emenda tendente a abolir: I) a forma federativa de estado; II) o voto direto, secreto, universal e periódico; III) a separação dos Poderes; e IV) os direitos e garantias individuais.
Da simples leitura do dispositivo é possível inferir que a mudança do sistema de governo não se encontra nas vedações ao poder de reforma constitucional. De onde advém, portanto, a celeuma doutrinária acerca desta possibilidade?
A questão será tratada, consoante o supracitado, com o enfoque em dois institutos divergentes: a fossilização da atividade legislativa e aplicação da teoria americana do originalismo.
3 O ORIGINALISMO E O PROCESSO DE FOSSILIZAÇÃO DA ATIVIDADE LEGISLATIVA
O originalismo surge na doutrina americana, segundo historiadores, em meados de 1980 através da obra The Misconceived Quest for the Original Understanding de Paul Brest, como a forma de identificar o intento original das Cartas Políticas cuja vontade vincularia as futuras gerações a seus ditames. Ou seja, para os defensores do originalismo não cabe remodelar o sistema para adequá-lo à sociedade, inexistindo um processo de construção e evolução de normas jurídicas.
Nas lições de MORALES (2011, pág. 32), encontra-se definição breve e sucinta a respeito do originalismo:
A idéia central do originalismo consiste em reconhecer que o propósito de uma Constituição escrita é fixar normas para viger indefinitivamente, a menos que sejam modificas pelo procedimento que ela própria contempla (ou seja, por via de emenda).
Esta teoria, ainda que se choque com o sistema de controle constitucional brasileiro, que permite inclusive decisões manipuladoras (aditivas ou substitutivas), tem como mérito reduzir a interferência do Poder Judiciário, composta por juízes não eleitos pela vontade popular, em um sistema confeccionado por legítimos representantes do povo.
Ademais, o modelo atual de interpretação constitucional privilegia a vontade subjetiva dos julgadores da Suprema Corte, desconsiderando o caráter objetivo da atividade jurisdicional. Ao identificar a vontade soberana do texto constituinte original e submeter-se a ela, o magistrado não incorre no risco de desvirtuar o sistema constitucional em detrimento de suas visões pessoais de realidade. Cumpre honrosa menção ao já falecido jurista da Suprema Corte dos Estados Unidos Antonin Scalia, 13/02/2016, célebre defensor do originalismo.
Ao se defender a tese de impossibilidade de modificação do sistema de governo em decorrência do esgotamento do comando normativo do art. 2.º do ADCT, adota-se, em tese, a postura originalista, visto que se vincula a atuação do Poder Legislativo no comando das políticas públicas à vontade já superada pelo plebiscito de 1993 de manutenção do presidencialismo.
Em divergência à tese exposta, analisa-se o processo de fossilização da Constituição. A expressão relaciona-se à impossibilidade do Poder Legislativo encontrar-se submetido, e restrito, às decisões do Supremo Tribunal Federal no âmbito do controle de constitucionalidade concentrado, conforme art. 102, §2.º da Carta Magna. Entretanto, será utilizado o termo para explanar a relação entre a vontade política da geração atual e o sistema instituído pelas normas constitucionais originárias.
Apreende-se de LENZA (2015, pág. 538) que o princípio da segurança jurídica (pacificação social), veiculado através das decisões vinculantes e erga omnes do Pretório Excelso, sacrificariam o próprio valor de justiça da decisão, pois se impediria a atualização dos textos normativos através do Legislativo.
Ao analisar a possibilidade de vinculação também para o Legislativo (no caso de sua função típica), o Ministro Cezar Peluso indica, com precisão, que essa possível interpretação (diversa da literalidade constitucional) significaria o “inconcebível fenômeno da fossilização da Constituição”. O Legislativo, assim, poderá, inclusive, legislar em sentido diverso da decisão dada pelo STF, ou mesmo contrário a ela, sob pena, em sendo vedada essa atividade, de significar inegável petrificação da evolução social. Isso porque o valor segurança jurídica, materializado com a ampliação dos efeitos erga omnes e vinculante, sacrificaria o valor justiça da decisão, já que impediria a constante atualização das Constituições e dos textos normativos por obra do Poder Legislativo.
Preconizar que a geração atual encontra-se diretamente vinculada ao sentido original de uma maioria constituída no passado deturpa o ideal democrático de autogoverno, gerando um verdadeiro “governo dos mortos sobre os vivos”.
O Supremo Tribunal Federal detém a prerrogativa de interpretar a Constituição e suas decisões têm eficácia vinculante ao restante do Poder Judiciário e à Administração Pública direta e indireta em todos os níveis da Federação. Pode-se afirmar que suas decisões não se restringem ao comando de declarar apenas a (in)constitucionalidade de normas (sentença interpretativa de rechaço ou aceitação), mas visam, também, a alterar diretamente o ordenamento jurídico. Trata-se da construção italiana da decisioni manipolative, que se subdivide em:
a) Sentença Aditiva, “declara inconstitucional certo dispositivo legal não pelo que expressa, mas pelo que omite, alargando o texto da lei ou seu âmbito de incidência” MENDES (2010, pág. 1432), tomando como exemplo a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, no qual se deu interpretação conforme a constituição dos arts. 124 a 128 do Código Penal para incluir a antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto anencefálico como excludente de punibilidade ao aborto;
b) Sentença Substitutiva, não se restringe a anular (declarar a inconstitucionalidade) de uma norma, mas a substitui por outro comando normativo substancialmente distinto do original. Ou seja, o tribunal atua como verdadeiro legislador positivo (eis a principal crítica da teoria originalista, atribuir um poder de comando das políticas públicas a julgadores não eleitos pelo povo). Toma-se como exemplo a liminar concedida na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2.332, na qual se declarou inconstitucional a taxa de juros de 6% ao ano, instituída pela MP 2183-56, e substituída pela de 12%, convencionada na Súmula 618/STF.
Percebe-se, claramente, que a Corte Suprema brasileira não limita sua atuação a declarar a (in)constitucionalidade de normas tendo como parâmetro um sistema político criado pelo Poder Constituinte Originário. Ela própria altera a realidade fática ao trazer sucessivas interpretações da vontade do constituinte originário.
Em que reside, portanto, o limite de alteração das normas constitucionais fora das causas previstas expressamente na Constituição?
São os chamados limites implícitos, os quais, eles próprios, dependem da interpretação dada pelo STF. Um dos limites implícitos firmados é a impossibilidade de alterar o titular do poder constituinte originário e o do poder constituinte derivado reformador. Também é uma restrição a possibilidade de revogar o art. 60, $4.º da Constituição Federal, em outras palavras, afirmar que não existiriam mais cláusulas pétreas no ordenamento jurídico brasileiro ou promover sua alteração substancial.
Voltando a problemática: o sistema de governo presidencialista pode ser entendido como uma cláusula pétrea implícita considerando que sua alteração alteraria substancialmente outras cláusulas pétreas? (Alteraria, como exemplo, o exercício do voto direto ao se considerar que o primeiro-ministro é escolhido indiretamente pelo Poder Legislativo e a autonomia federativa ao submeter governos estaduais e municipais ao novo sistema de governo).
Para responder a questão devem-se resumir todas as premissas apontadas neste trabalho: partindo da conclusão de que no sistema jurídico brasileiro vigora uma forma de controle de constitucionalidade que permite o STF modificar diretamente as normas vigentes (decisões manipulativas) ao dar uma interpretação conforme a Constituição sem se vincular a uma vontade política previamente instituída pelo poder constituinte originário (afastamento do originalismo); considerando que o sistema de governo não é uma cláusula pétrea, limite explícito, mas que interfere substancialmente em outras cláusulas pétreas (voto e autonomia federativa), sem, contudo, aboli-las (art. 60, §4º da CF); é possível concluir pela possibilidade de alteração do sistema de governo.
O texto constitucional é claro ao vedar proposta tendente a abolir cláusulas pétreas, mas não de modificá-las. Exemplo muito claro é a Reforma da Previdência instituída pela Emenda Constitucional N.º 41/2003, na qual, para alguns, foram suprimidos direitos e garantias fundamentais. A interpretação do STF, de outra monta, entendeu que pelo “princípio estrutural da solidariedade” poderia, sim, por exemplo, ser cobrado de inativos e pensionistas contribuição previdenciária que antes (ainda que de forma implícita) não era permitida aos estatutários.
A mudança de sistema de governo não abole o voto direito, secreto, universal e periódico. Apenas modifica o procedimento para escolha dos representantes do povo (chefe do poder executivo é eleito pelos representantes do poder legislativo, encontrando neste o fundamento de sua legitimidade. E os parlamentares são eleitos pelo voto direto dos eleitores).
Não há violação da autonomia federativa. Não se pode confundir a autonomia dos entes (autogoverno, auto-organização e autoadministração) com soberania dos mesmos. Todos os entes se submetem à vontade da Carta Política, e, ao se alterar o sistema de governo, inexiste uma interferência direta que macule a autonomia dos entes. O parlamento federal não organizará ou legislará quanto aos assuntos de competência dos Estados ou Municípios. Existe apenas uma alteração, e não supressão, na dinâmica de poder e nas formas de exercer o controle político de suas regiões, mas não se altera a titularidade dos mesmos.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo teve visou à explanação acerca da possibilidade de alteração do sistema de governo brasileiro com enfoque na corrente doutrinária do originalismo e do processo conhecido no ordenamento jurídico brasileiro como ‘fossilização da Constituição”.
Em apertada síntese, é possível se inferir que a criação de um limite implícito a tal transição de sistema acabar por veicular todas as futuras gerações a um comando político pretérito, incorrendo-se em um verdadeiro “governo dos mortos sobre os vivos”. Utilizar-se de interpretações do Pretório Excelso que não guardam similitude com os limites expressamente instituídos pelo Poder Constituinte Originário acaba por afrontar a harmonia e independência dos Poderes.
Não há que se indagar acerca de “abolição de cláusulas pétreas”, visto que os institutos, em si, não são suprimidos, sendo apenas modificado o seu exercício, a forma como são desempenhados para se adequar a uma nova realidade social.
De todo o exposto, conclui-se o presente trabalho posicionando-se favoravelmente à alteração do sistema de governo por meio do Poder Constituinte Derivado Reformador.
5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, 7.ª Ed., p. 81. 2003.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. São Paulo. Saraiva. 2015. 19.ª Edição.
MENDES, G. F., I. M. Coelho, P. G. G. Branco, Curso de direito Constitucional, 5. Ed. pág.. 1432. 2010.
MORALES, Cesar Mecchi. Originalismo e Interpretação Constitucional. 2011. Disponível em: https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=2&cad=rja&uact=8&ved=0ahUKEwifodboi7HWAhVCeSYKHWuYDEwQFggwMAE&url=http%3A%2F%2Fwww.teses.usp.br%2Fteses%2Fdisponiveis%2F2%2F2134%2Ftde-16042012-161140%2Fpublico%2FCESAR_MECCHI_MORALES.pdf&usg=AFQjCNEPUxHNLo7YhGG-M9L_olKVvFXsnw
Procurador autárquico da Manaus Previdência. Graduado em Direto pela Universidade Federal do Amazonas.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GERALDO UCHôA DE AMORIM JúNIOR, . Limites do poder constituinte derivado reformador e o sistema de governo brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 set 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50700/limites-do-poder-constituinte-derivado-reformador-e-o-sistema-de-governo-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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