ANTÔNIO CÉSAR MELLO
(Orientador)[1]
RESUMO: O instituto do foro por prerrogativa de função tem origem na Constituição Republicana em 1891 no seu art. 57, § 2º, que deu competência ao Senado para julgar os membros do Supremo Tribunal Federal nos crimes de responsabilidade e, ao STF, para julgar os juízes federais inferiores (art. 57, § 2º) e o Presidente da República e os Ministros de estado nos crimes comuns e de responsabilidade (art. 59, II). Desde então ele se fez presente em todas as demais Constituições, mesmo recebendo muitas críticas da sociedade civil organizada. Contudo, a Constituição de 1988 não trouxe nenhuma vedação ao Foro por Prerrogativa de Função, ao contrário, ampliou essa garantia a outras funções dos três poderes. A presente obra tem por objetivo a análise do instituto do foro por prerrogativa de função. Abordando a sua origem, conceito, natureza jurídica e evolução histórica no direito constitucional brasileiro. Neste, serão discutidas as questões polêmicas que cercam o referido instituo e os princípios constitucionais que regem a Constituição Federal. Ao longo do desenvolvimento será analisado o atual cenário político e a ligação com o dispositivo em questão. Por fim, será examinada a Proposta de Emenda a Constituição 10/2013 que modifica drasticamente o instituto do foro por prerrogativa.
Palavras-chave: Instituto; Foro; Prerrogativa; Função; Princípios.
ABSTRACT: The institute of the forum by prerogative of function has its origin in the Republican Constitution in 1891 in its art. 57, § 2, which gave the Senate the power to judge the members of the Federal Supreme Court in crimes of responsibility and, to the STF, to judge the lower federal judges (article 57, § 2) and the President of the Republic and the Ministers of state in common crimes and responsibility (article 59, II). Since then he has been present in all other Constitutions, even receiving many criticisms from organized civil society. However, the Constitution of 1988 did not bring any prohibition to the Forum by Prerogative of Function, on the contrary, extended this guarantee to other functions of the three powers. The objective of this work is the analysis of the institute of the forum by function prerogative. Addressing its origin, concept, legal nature and historical evolution in Brazilian constitutional law. In this, the controversial issues surrounding the institution and the constitutional principles that govern the Federal Constitution will be discussed. Throughout the development will be analyzed the current political scenario and the connection with the device in question. Finally, it will examine the Proposed Amendment of the Constitution 10/2013 that drastically modifies the institute of the forum by prerogative.
Keywords: Institute; Forum; Prerrogativa; Function; Principles.
SUMÁRIO: 1. Conceito e natureza jurídica; 2. Origem e evolução histórica; 3. O foro por prerrogativa de função diante dos princípios constitucionais; 3.1. Princípio da igualdade; 3.2. Princípio do juiz natural; 3.3. Princípio do duplo grau de jurisdição; 4. Atual cenário do foro por prerrogativa de função; 5. A incapacidade dos tribunais diante da prerrogativa de foro; 6. A pec 10/2013 e a necessidade de mudanças; 7. Considerações finais.
INTRODUÇÃO
Um assunto que ganhou força nos últimos anos foi o Instituto do Foro por Prerrogativa da Função, popularmente conhecido como “Foro Privilegiado”. Instituto esse que foi criado com o intuito de garantir o julgamento de autoridades públicas por magistrados com o mesmo nível hierárquico ou superior ao réu que está sendo julgado. Dessa forma, evitando que essas pessoas estejam sujeitas a um julgamento parcial, já que, em tese um magistrado de instância inferior poderia estar sujeito a pressões políticas.
O objeto de pesquisa do presente trabalho está pautado na análise de dois entendimentos divergentes. Um que se posiciona contra a permanência de tal instituto em nosso ordenamento jurídico, pois entende que ele viola princípios fundamentais previstos em nossa Constituição Federal. Outro posicionamento é o que vai de encontro aos ideais basilares da criação desse dispositivo e entendi que ele é fundamental para a segurança jurídica, porém, admite a necessidade de modificações para que ele produza o efeito desejado.
Posto isso, iremos ao final concluir se o Foro por Prerrogativa da Função é uma prerrogativa funcional destinada a resguardar o regular exercício do cargo público ou um privilégio assegurado a determinadas autoridades públicas, de apenas serem submetidas a julgamento em instâncias de grau superior, ao contrário do cidadão comum, sujeito a julgamento pelo Poder Judiciário comum, ou seja, perante magistrados de primeira instância.
1. CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA
O Instituto do Foro por Prerrogativa de Função, se da através da competência em razão da pessoa (ratione personae), estabelecida pela própria Constituição Federal de 1988. A competência em razão da pessoa, “consiste no poder que se concede a Órgãos Superiores da Jurisdição de processarem e julgarem determinadas pessoas”. (TOURINHO FILHO, 2003, p. 129)
Segundo Frederico Marques, aludida competência originária dos Tribunais constitui uma garantia:
No Processo Penal, o que se ensina é que, em lugar de privilégio, o que se contém nessa competência ratione personae constitui, sobretudo, uma garantia. Os dispositivos que a estabelecem, como dizia o Professor Beleza dos Santos, nas lições proferidas em Coimbra em 1919, longe de representarem um favor, muito ao contrário exprimem um dever de justiça. É o que também ensina Alcallá-Zamora, para que não se cuida na espécie de um privilégio odioso, e sim de elementar precaução para amparar a um só tempo o acusado e a justiça e ainda para evitar por esse meio à subversão resultante de que inferiores julgassem seus superiores. (apud DELGADO, 2004, p. 10).
Fundada em uma espécie de competência originária que determinados órgãos de jurisdição superior possuem para conhecer, processar e julgar determinados cargos e funções públicas, esse instituto sobrepõe-se às demais espécies de competência previstas no ordenamento jurídico brasileiro em razão de sua especialidade.
Deste modo, é a importância do cargo público que está resguardada pela prerrogativa de foro e não o sujeito que a desempenha.
A prerrogativa de foro está ligada a função desempenhada, tanto que, ao cessar o desempenho desta, seja por aposentadoria, por término do mandato ou por exoneração, finda também os efeitos do mecanismo. E assim o indivíduo que ocupava o cargo que gozava desse dispositivo passa a ser julgado pelo juiz de primeira instância.
O legislador constituinte atribuiu essa garantia alguns cargos e funções públicas, com o objetivo de dar a eles em um possível julgamento, uma maior segurança nascida do fato de que passam a ser julgados por um órgão colegiado, o qual os magistrados que o compõem são mais experientes, já que em tese os juízes de primeira instância estariam mais pretensos a pressões políticas. Eugênio Pacelli de Oliveira ao comentar as regras que dispõem sobre Foro por Prerrogativa afirmou:
Tendo em vista a relevância de determinados cargos ou funções públicas, cuidou o constituinte brasileiro de fixar foros privativos para o processo e julgamento de infrações penais praticadas pelos seus ocupantes, atentando-se para as graves implicações políticas que poderiam resultar das respectivas decisões judiciais. (OLIVEIRA, Eugênio Pacelli, de Curso de Processo Penal, 2015, p. 179).
O Foro por Prerrogativa de Função tem o caráter imperativo, devido a essa natureza jurídica ele não pode ser renunciado por aquele que goza dos seus efeitos, muitos menos, pode ser preterido por anseio de outros.
2. ORIGEM E EVOLUÇÃO HISTÓRICA
Segundo os historiadores o foro por prerrogativa de função tem origem no Antigo Egito, onde se existia um tribunal composto por setenta juízes que eram responsáveis pelo julgamento de senadores, profetas, chefes militares, cidades e tribos rebeldes. Esse tribunal ficou conhecido como Sinédrio.
Depois disso, as notícias sobre esse dispositivo remontam a última fase do Império Romano no século V, no qual, sob a forte influência da igreja católica, senadores eram julgados por seus pares e os eclesiásticos pelas jurisdições superiores. José Augusto Delgado leciona que:
“a Igreja Católica influenciou (...) as regras do processo criminal, incentivando o foro privilegiado para determinadas pessoas, no século V, no fim do Império Romano. Defendeu e fez prevalecer à ideia de que os ilícitos criminais praticados por senadores fossem julgados pelos seus iguais. Os da autoria dos eclesiásticos processados e julgados, igualmente, por sacerdotes que se encontrassem e maior grau hierárquico. Os reis, a partir do século XII, começaram a lutar para que a influência da Igreja Católica fosse afastada nos julgamentos de pessoas que exerciam altas funções públicas. (...) [A] legislação processual daquela era passou a adotar foros privilegiados ‘não sobre natureza dos fatos, mas sobre a qualidade das pessoas acusadas, estabelecidos em favor dos nobres, dos juízes, dos oficiais judiciais, abades e priores etc., fidalgos e pessoas poderosas, casos esses que se confundiam muitas vezes com os casos reais. (...) Durante o século XII ao XV, em Portugal, enquanto vigorou as Ordenações Filipinas, ‘os fidalgos, os desembargadores, cavaleiros, doutores, escrivães da Real Câmara, e suas mulheres, ainda que viúvas, desde que se conservando em honesta viuvez, deputados da Real Junta do Comércio e da Companhia Geral da Agricultura das vinhas do Alto Doiro’ (...) tinham o privilégio do relaxamento da prisão quando pronunciados, embora a lei determinasse que deveria se proceder a captura dos réus em tal situação, tudo em razão da qualidade pessoal que possuíam, ficando, apenas, à disposição do Juízo, sob promessa de cumprir as suas ordens”.7. 7 DELGADO, José Augusto. “Foro por prerrogativa de função. Conceito. Evolução histórica. Direito comparado. Súmula 349 do STF. Cancelamento. Enunciados”. In Estudos em Homenagem a Carlos Alberto Menezes Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 329-30.
Dessa forma, percebe-se que as Ordenações asseguravam aos nobres privilégios, pois impediam que estes fossem sujeitados ao tormento (um tipo de interrogatório onde se empregava o método da tortura até que o réu confessasse a verdade ou aquilo que eles queriam ouvir).
Com a proclamação da primeira Constituição Política do Império do Brasil, em 25 de março de 1824 chegou ao fim as Ordenações do Reino, com isso estava extinto o foro privilegiado e surgia o Foro por Prerrogativa de Função, mais próximo dos moldes que conhecemos hoje. O art. 179, inciso XVII da Constituição do Império é expresso ao banir os privilégios pessoais.
Art. 179. A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade, são garantidos pela Constituição do Império, pela maneira seguinte:
17.º À exceção das causa, que por sua natureza pertencem a Juízes particulares, na conformidade das Leis, não haverá fôro privilegiado, nem Comissões especiais nas causas cíveis ou crimes. (ALMEIDA, 1959, p.158)
Com isso, pois se fim ao julgamento de indivíduos levando em consideração as suas características pessoais.
A Constituição do Império criou o Tribunal de Justiça (art. 163) e previa a prerrogativa de foro em seu art. 164, ao dizer que: “A êste (sic) tribunal compete: §2º Conhecer dos delitos e erros de ofício que cometerem os seus ministros, os das Relações, os empregados do Corpo Diplomático e os Presidentes das Províncias” (ALMEIDA, 1959, p.157).
Esta Carta Magna, em seu art. 47, concedia foro por prerrogativa aos membros da Família Imperial, Ministros de Estado, Conselheiros de Estado, Senadores e Deputados, estes durante o mandato, bem como, aos Secretários e Conselheiros de Estado para os crimes de responsabilidade. Essas pessoas, em razão do relacionamento que tinham com o Estado, eram julgadas pelo Senado, conforme o artigo mencionado da referida Constituição.
A Constituição de 1824 determinou, ainda, privilégio absoluto à pessoa do Imperador; este não estava sujeito a nenhum tipo de responsabilidade. (art. 99).
A Constituição de 24 de fevereiro de1891, a primeira Constituição Republicana, previa que competia ao Senado julgar o Presidente da República nos crimes de responsabilidade e ao Supremo Tribunal Federal nos crimes comuns, cabendo, nos dois casos, à Câmara dos Deputados a acusação (art. 53 c/c 29 e 59, I, a).
A Constituição de 1934 não mais deu competência ao Senado para julgar o Presidente da República nos crimes de responsabilidade. Em tal caso, o julgamento seria feito por um Tribunal Especial, constituído para esse fim (art. 58). Ela determinou, ainda, que a Corte Suprema, nome dado ao hoje Supremo Tribunal Federal, seria a competente para processar e julgar, pela prática dos crimes comuns: Presidente da República, Ministros da Corte Suprema, Ministros de Estado, Procurador-Geral da República, Juízes dos Tribunais Federais e das Cortes de Apelação dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, Ministros do Tribunal de Contas, Embaixadores e Ministros diplomáticos.
A Carta de 10 de novembro de1937 foi inovadora. Deu competência originária a um denominado Conselho Federal, órgão composto por representantes dos Estados e por dez membros nomeados pelo Presidente da República (art. 50), para processar e julgar o Presidente da República por crimes de responsabilidade (art. 86).
A partir da Constituição Federal de 1946, em face do processo de democratização, foram configuradas várias situações de foro por prerrogativa, as quais permanecem hoje definidas, expressamente, na Constituição Federal de 1988.
O foro por prerrogativa de função deu origem à Súmula n° 394 do STF, que o alongava ao ex-agente público, para os casos de fatos ilícitos penais tentados ou consumados durante o exercício do mandato, ainda que o inquérito ou a ação penal fossem iniciados após a cessação daquele exercício. A referida Súmula resultou de interpretação dada pela jurisprudência aos artigos 59, I, 62, 88, 92, 100, 101, a, b e c, 104, II, 108, 119, VII, 124, IX e XII, da CF de 1946, e, ainda, das Leis n° 1.079/50 e n° 3.258/59.
Em 1967, foi outorgada uma nova Constituição que foi renovada pela Emenda Constitucional nº. 1, de 17 de outubro de 1969, criando a Constituição da República Federativa do Brasil. Umas das inovações trazidas por essa Carta, foi em relação ao rito do processo e julgamento nos casos de competência originária do Supremo Tribunal Federal, que passou a ser fundado em seu regimento interno, e outra advindo da aprovação da Emenda Constitucional nº. 7, de 13 de abril de 1977, que distribuiu a competência penal originária ao Tribunal Federal de Recursos, passando este a ser competente para processar e julgar os juízes federais, do trabalho e os membros dos Tribunais Regionais do Trabalho, bem como dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal e os do Ministério Público da União nos crimes comuns e de responsabilidade.
Com o fim do Regime Militar, deu se a promulgação da Constituição Federal de 1988. Que tem como características marcantes a democracia e o caráter garantista. A CF de 1988 delimitou o Poder Judiciário. Instituiu o Superior Tribunal de Justiça e os Tribunais Regionais Federais, os quais substituíram o Tribunal Federal de Recursos e deu ao Supremo Tribunal Federal o título de guardião supremo.
A CF 1988 trouxe todas as possibilidades e os tribunais que gozam de competência originária para, julgar as autoridades públicas que possuem a prerrogativa de foro dada função que exercem. A mesma manteve a jurisdição extraordinária dos órgãos políticos, atribuindo ao Senado Federal à competência originária de processar e julgar o Presidente, o Vice-Presidente da República pelos crimes comuns e de responsabilidades e os Ministros de Estado, os Comandantes das Forças Armadas nos crimes de mesma natureza conexos com aqueles. Também previu a competência originária para o julgamento dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União.
Atribui ao Senado Federal a competência para julgar os membros do Congresso Nacional pela prática de crimes de responsabilidade.
3. O FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO DIANTE DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
Para que a lei surta o efeito desejado para o qual ela foi criada, é de fundamental importância que esteja em consonância com os valores mais pertinentes que norteiam as regras de convivência da sociedade a qual ela foi destinada. Isso se faz necessário porque nem sempre o interesse do legislador coincide com os anseios da sociedade, muitas vezes contaminado pela corrupção ou por desejos que beneficiam apenas uma pequena parte privilegiada da população.
Dessa forma, os princípios buscam a garantia dos anseios sociais, orientando e ponderando o trabalho do legislador.
Um ordenamento jurídico que não esteja pautado nos princípios basilares de sua nação está condenado ao fracasso. De fato, os princípios são fundamentos nucleares que, por sua superioridade, influenciam em todo o sistema jurídico, difundindo seu conteúdo sobre as demais normas. Ao comentar sobre a importância dos princípios, Celso Antônio Bandeira de Mello diz que:
[...] mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio, 2002, p. 807-808).
A existência dos princípios garante a solução de casos difíceis, ao qual o direito positivado, em determinadas circunstâncias não consegui suprir os vazios jurídicos não abrangidos pela letra da lei. Desta forma, os princípios proporcionam variadas soluções que a exercício do direito exige para os casos mais complexos.
3.1. PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Para a criação e a manutenção de um Estado Democrático de Direito, se faz necessário e indispensável, a aplicação do princípio da igualdade. Esse é um dos princípios basilares para a criação de um ordenamento jurídico harmonioso, onde as leis possam ser aplicadas indistintamente a todos. O legislador constituinte estabeleceu na Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, caput, o preceito de que “todos são iguais perante a lei”.
Conforme esse princípio, todas as pessoas são iguais perante a lei em direitos e deveres, sendo inadmissível qualquer discriminação em razão de sexo, raça, crença religiosas e política. No entanto, a regra preceituada, não quer dizer que o legislador ao criá-la, quis que todos fossem tratados igualmente de forma indeterminada.
Para uma conclusão acerca desse princípio, se faz necessário uma análise sob dois aspectos. Dessa forma, encontraremos ao fundo o real sentimento que o legislador constituinte quis nos passar ao promulgar tal fundamento.
Em seu sentido formal, todos devem ser tratados de forma isonômica diante da lei, não havendo espaço para distinções entre os cidadãos. Isso fica evidente na redação do caput do art. 5º da Constituição Federal. Deste modo, sob seu aspecto formal, o princípio da igualdade procura evitar que o legislador, ao produzir alguma lei, promova desigualdades entre os cidadãos.
Porém, para extrairmos tudo o que se faz necessário para a aplicação correta desse princípio, se faz necessário à análise sob seu aspecto material, ou seja, buscar uma verdadeira efetivação da igualdade, afastando-a do seu caráter formal e conduzindo-a para um julgamento diante do caso concreto.
Ao publicar a redação que trata do principio da igualdade na Constituição Federal, o legislador cuidou para que todas as normas que fossem criadas posteriormente, também obedecessem ao preceito que procura a constante efetivação dos direitos e garantias dos indivíduos, o que nada mais é do que a busca por sanar as desigualdades. Segundo Alexandre de Moraes,
O princípio da igualdade consagrado pela constituição opera em dois planos distintos. De uma parte, frente ao legislador ou ao próprio executivo, na edição, respectivamente, de leis atos normativos e medidas provisórias, impedindo que possam criar tratamentos abusivamente diferenciados a pessoas que se encontram em situações idênticas. Em outro plano, na obrigatoriedade ao intérprete, basicamente, a autoridade pública, de aplicar a lei e atos normativos de maneira igualitária, sem estabelecimento de diferenciações em razão de sexo, religião, convicções filosóficas ou políticas, raça, classe social. (MORAES, Alexandre de, 2006, p. 32).
Na busca para desenvolver critérios com o objetivo de facilitar o reconhecimento de possíveis violações ao princípio da igualdade, diversos doutrinadores criaram alguns conceitos que auxiliam nesse trabalho. Um deles, Alexandre de Moraes (2005, p. 32), sobre o assunto, ensina reconhecer a desigualdade pautando-se nas noções de razoabilidade e de proporcionalidade, sustentando que sua transgressão ocorre quando o tratamento desigual escapa a um critério objetivamente justificável. Em suas palavras:
Para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, cuja exigência deve aplicar-se em relação à finalidade e efeitos da medida considerada, devendo estar presente por isso uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionalmente protegidos. (MORAES, Alexandre de, 2005, p. 32).
Posto isso, para uma aplicação efetiva do referido princípio, não basta apenas tratar de igual maneira a todos, levando em consideração apenas a norma positivada. Faz se necessária uma análise diante do aspecto fático. Pois, apesar de criada para regulamentar as relações de seres de uma mesma espécie, os homens não são iguais. Dessa forma, se o sistema jurídico desse tratamento igualitário a pessoas distintas, por inúmeros fatores como, educação, condições financeiras, sociais, dentre outras. Nada mais estaria a fazer, do que apenas promover maiores desigualdades. Como é sabido, Aristóteles já dizia que a igualdade entre os homens somente poderia ser alcançada pelo tratamento igual para os iguais e pelo tratamento desigual para os desiguais, na medida de suas desigualdades. No mesmo sentido, destaca Alexandre de Moraes:
Dessa forma, o que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de Justiça [...] (MORAES, Alexandre de, 2006, p. 30).
Diante de tais ensinamentos, fica evidente que o Instituto do Foro por Prerrogativa de Função não viola o princípio da igualdade. Pois, os cargos e funções que gozam de tal garantia que é atribuída pela própria Constituição Federal, são de extrema relevância para a organização do Estado Democrático de Direito. Desse modo, é impossível dar aos indivíduos que ocupam esses cargos, o mesmo tratamento dado a um cidadão comum.
Outro ponto que comprova isso é o fato de apenas o cargo ou função está revestido de tal prerrogativa. De modo que, ao cessar ou extinguir-se o cargo ou função, finda também os efeitos desse dispositivo e a remessa da ação é enviada para o juízo de primeiro grau. Neste sentido temos a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que culminou no cancelamento da Súmula 394.
PRERROGATIVA DE FORO - EXCEPCIONALIDADE - MATÉRIA DE ÍNDOLE CONSTITUCIONAL - INAPLICABILIDADE A EXOCUPANTES DE CARGOS PÚBLICOS E A EX-TITULARES DE MANDATOS ELETIVOS - CANCELAMENTO DA SÚMULA 394/STF - NÃO INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA "PERPETUATIO JURISDICTIONIS" - POSTULADO REPUBLICANO E JUIZ NATURAL - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. - O postulado republicano – que repele privilégios e não tolera discriminações - impede que prevaleça a prerrogativa de foro, perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, mesmo que a prática delituosa tenha ocorrido durante o período de atividade funcional, se sobrevier a cessação da investidura do indiciado, denunciado ou réu no cargo, função ou mandato cuja titularidade (desde que subsistente) qualifica-se como o único fator de legitimação constitucional apto a fazer instaurar a competência penal originária da Suprema Corte (CF, art. 102, I, "b" e "c"). Cancelamento da Súmula 394/STF (RTJ 179/912-913). - Nada pode autorizar o desequilíbrio entre os cidadãos da República. O reconhecimento da prerrogativa de foro, perante o Supremo Tribunal Federal, nos ilícitos penais comuns, em favor de exocupantes de cargos públicos ou de ex-titulares de mandatos eletivos transgride valor fundamental à própria configuração da ideia republicana, que se orienta pelo vetor axiológico da igualdade. - A prerrogativa de foro é outorgada, constitucionalmente, "ratione muneris", a significar, portanto, que é deferida em razão de cargo ou de mandato ainda titularizado por aquele que sofre persecução penal instaurada pelo Estado, sob pena de tal prerrogativa - descaracterizando-se em sua essência mesma - degradar-se à condição de inaceitável privilégio de caráter pessoal. Precedentes. Inq 1376 AgR / MG - MINAS GERAIS. AG.REG.NO INQUÉRITO. Relator(a): Min. CELSO DE MELLO. Julgamento: 15/02/2007. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: DJ 16-03-2007 PP-00021 EMENT VOL-02268- 01 PP-00110
Deste modo, percebe que o judiciário ao encontrar evidências de que o sentido do instituto está sendo desvirtuado, ele se manifesta para que não acabe a se transformar num “Foro Privilegiado”. Portanto, nota-se que não há ofensa ao princípio da igualdade, pois, o tratamento igual aos iguais, e desigual aos desiguais visa uma maior igualdade a todos os cidadãos.
3.2. PRINCÍPIO DO JUÍZ NATURAL
O Princípio do Juiz Natural previsto de forma implícita na Constituição Federal de 1988 consiste na necessidade de o ordenamento jurídico assegurar, anteriormente ao caso concreto, qual será o órgão judiciário competente para julgar o autor de um crime.
Segundo Nelson Nery Júnior (2009, p. 126), “o princípio do juiz natural tem uma característica tridimensional, sendo: a) não haverá juízo ou tribunal de exceção; b) todos terão direito a ser submetido a julgamento por juízes previamente constituídos na forma da lei e c) o juízo tem que ser imparcial”.
Portanto, para que um órgão jurisdicional esteja de acordo com o princípio do juiz natural, é necessário que ele seja previsto anteriormente ao acontecimento do fato, de forma genérica e abstrata, definindo qual autoridade judiciária irá julgar determinados fatos. O referido princípio tem como objetivo evitar a criação de foros privilegiados, com julgamentos parciais.
É importante ressaltar que não se podem confundir Tribunais de exceção com Justiças especiais e foro por prerrogativa da função. As Justiças especiais, como a Justiça Eleitoral, são previamente previstas na Constituição Federal, de forma genérica e abstrata, instituídas para o processamento e julgamento de matérias específicas.
Com isso, não há que se falar em ofensa ao princípio do juiz natural, pois as Justiças especializadas não constituem tribunais de exceção, por serem antecipadamente asseguradas antes da ocorrência do fato. Neste sentido:
Assim como o poder do Estado é um só (as atividades legislativa, executiva e judiciária são formas e parcelas do exercício desse poder), a jurisdição também é. E para a facilitação do exercício dessa parcela de poder é que existem as denominadas justiças especializadas. Portanto, a proibição da existência de tribunais de exceção, ad hoc, não abrange as justiças especializadas. (NERY JÚNIOR, Nelson, 2009, p. 127).
Da mesma forma, a prerrogativa de foro em razão da função e a garantia do juiz natural coexistem harmonicamente. A prerrogativa de foro em razão da função, assim como as demais espécies de competência, está prevista na Constituição Federal e em alguns diplomas legais infraconstitucionais de forma prévia, genérica e abstrata no ordenamento jurídico.
Portanto, permanecendo à prerrogativa de foro em consonância com a característica tridimensional do princípio do juiz natural, não há como cogitar sua afronta a esse princípio constitucional.
3.3. PRINCÍPIO DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
O princípio do Duplo Grau de Jurisdição adotado pelo ordenamento jurídico pátrio tem natureza Constitucional, tanto de forma implícita no texto normativo, quanto de forma explicita no Tratado de São José da Costa Rica. Como é sabido, a Constituição da Federal assegura que, “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes as emendas constitucionais”, o que acontecera.
Sua principal característica se da pela reanálise do processo, ainda que esse reexame aconteça na mesma jurisdição que proferiu o ato ora questionado.
O Supremo Tribunal Federal tem entendimento pacificado de que, com a ratificação da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, o duplo grau de jurisdição foi constituído expressamente no ordenamento jurídico brasileiro como norma infraconstitucional. Neste sentido, advém a decisão no HC nº 79785, relatada pelo então Ministro Sepúlveda Pertence:
Duplo grau de jurisdição no Direito brasileiro, à luz da Constituição e da Convenção Americana de Direitos Humanos. 1. Para corresponder à eficácia instrumental que lhe costuma ser atribuída, o duplo grau de jurisdição há de ser concebido, à moda clássica, com seus dois caracteres específicos: a possibilidade de um reexame integral da sentença de primeiro grau e que esse reexame seja confiado à órgão diverso do que a proferiu e de hierarquia superior na ordem judiciária. 2. Com esse sentido próprio - sem concessões que o desnaturem - não é possível, sob as sucessivas Constituições da República, erigir o duplo grau em princípio e garantia constitucional, tantas são as previsões, na própria Lei Fundamental, do julgamento de única instância ordinária, já na área cível, já, particularmente, na área penal. 3. A situação não se alterou, com a incorporação ao Direito brasileiro da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José), na qual, efetivamente, o art. 8º, 2, h, consagrou, como garantia, ao menos na esfera processual penal, o duplo grau de jurisdição, em sua acepção mais própria: o direito de "toda pessoa acusada de delito", durante o processo, "de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior". 4. Prevalência da Constituição, no Direito brasileiro, sobre quaisquer convenções internacionais, incluídas as de proteção aos direitos humanos, que impede, no caso, a pretendida aplicação da norma do Pacto de São José: motivação. II. A Constituição do Brasil e as convenções internacionais de proteção aos direitos humanos: prevalência da Constituição que afasta a aplicabilidade das cláusulas convencionais antinômicas. 1. Quando a questão - no estágio ainda primitivo de centralização e efetividade da ordem jurídica internacional - é de ser resolvida sob a perspectiva do juiz nacional - que, órgão do Estado, deriva da Constituição sua própria autoridade jurisdicional - não pode ele buscar, senão nessa Constituição mesma, o critério da solução de eventuais antinomias entre normas internas e normas internacionais; o que é bastante a firmar a supremacia sobre as últimas da Constituição, ainda quando esta eventualmente atribua aos tratados a prevalência no conflito: mesmo nessa hipótese, a primazia derivará da Constituição e não de uma apriorística força intrínseca da convenção internacional. 2. Assim como não o afirma em relação às leis, a Constituição não precisou dizer-se sobreposta aos tratados: a hierarquia está ínsita em preceitos inequívocos seus, como os que submetem a aprovação e a promulgação das convenções ao processo legislativo ditado pela Constituição e menos exigente que o das emendas a ela e aquele que, em consequência, explicitamente admite o controle da constitucionalidade dos tratados (CF, art. 102, III, b). 3. Alinhar-se ao consenso em torno da estatura infraconstitucional, na ordem positiva brasileira, dos tratados a ela incorporados, não implica assumir compromisso de logo com o entendimento - majoritário em recente decisão do STF (ADInMC 1.480) - que, mesmo em relação às convenções internacionais de proteção de direitos fundamentais, preserva a jurisprudência que a todos equipara hierarquicamente às leis ordinárias. 4. Em relação ao ordenamento pátrio, de qualquer sorte, para dar a eficácia pretendida à cláusula do Pacto de São José, de garantia do duplo grau de jurisdição, não bastaria sequer lhe conceder o poder de aditar a Constituição, acrescentando-lhe limitação oponível à lei como é a tendência do relator: mais que isso, seria necessário emprestar à norma convencional força ab-rogante da Constituição mesma, quando não dinamizadoras do seu sistema, o que não é de admitir. III. Competência originária dos Tribunais e duplo grau de jurisdição. 1. Toda vez que a Constituição prescreveu para determinada causa a competência originária de um Tribunal, de duas uma: ou também previu recurso ordinário de sua decisão (CF, arts. 102, II, a; 105, II, a e b; 121, § 4º, III, IV e V) ou, não o tendo estabelecido, é que o proibiu. 2. Em tais hipóteses, o recurso ordinário contra decisões de Tribunal, que ela mesma não criou, a Constituição não admite que o institua o direito infraconstitucional, seja lei ordinária seja convenção internacional: é que, afora os casos da Justiça do Trabalho - que não estão em causa - e da Justiça Militar - na qual o STM não se superpõe a outros Tribunais -, assim como as do Supremo Tribunal, com relação a todos os demais Tribunais e Juízos do País, também as competências recursais dos outros Tribunais Superiores - o STJ e o TSE - estão enumeradas taxativamente na Constituição, e só a emenda constitucional poderia ampliar. 3. À falta de órgãos jurisdicionais ad quo, no sistema constitucional, indispensáveis a viabilizar a aplicação do princípio do duplo grau de jurisdição aos processos de competência originária dos Tribunais, segue-se a incompatibilidade com a Constituição da aplicação no caso da norma internacional de outorga da garantia invocada. RHC 79785 / RJ. Relator (a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE. Julgamento: 29/03/2000. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: DJ 22-11 2002 PP-00057. EMENT VOL-02092-02 PP-00280. RTJ VOL-00183-03 PP-01010Parte(s).
Desse modo, percebe-se que o nosso ordenamento jurídico recebeu e deu previsão expressa ao princípio do duplo grau de jurisdição, e que essa garantia possui natureza infraconstitucional. Com isso, observa-se que a prerrogativa de foro em razão da função não afronta o duplo grau de jurisdição. Por ter como característica a infraconstitucionalidade, o referido princípio não está em desacordo com uma norma de natureza constitucional sob a pena de inconstitucionalidade.
Por fim, é importante salientar que há possibilidade dos ocupantes de cargos revestidos com a prerrogativa de foro em razão de função, interporem recursos das decisões que os julgam. Neste sentido já se pronunciou o Supremo Tribunal Federal:
Entretanto, não poderá haver limitação ao cabimento do recurso especial ou extraordinário, como era permitido no sistema revogado (CF/1969 119, §1º), porque a atual Constituição Federal não estipulou nenhuma restrição. Os requisitos estão no próprio texto constitucional e somente eles devem ser exigidos do recorrente para que sejam conhecidos os recursos extraordinário e especial. (NERY JÚNIOR, Nelson, 2009, p. 280/281).
Com isso, é possível concluir que não é admissível para aqueles que gozam dos efeitos de tal prerrogativa, interporem recursos ordinários que tem por objetivo a revisão do mérito do processo. Nada obstante, é inteiramente possível o oferecimento de recursos que tenham por finalidade evitar ofensa à lei federal e à Constituição Federal, no caso em tela, o recurso especial e o extraordinário.
4. ATUAL CENÁRIO DO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO
As hipóteses de foro por prerrogativa de função elencadas na Constituição Federal são distribuídas conforme o órgão jurisdicional competente, levando em consideração o princípio da simetria, ou seja, levando o individuo que o ocupa o cargo com referida prerrogativa a ser julgado por autoridades com nível hierárquico igual ou superior ao que ele ocupa.
A Constituição Federal de 1988 deu competência ao Senado Federal para julgar o Presidente da República, o Vice-Presidente, os Ministros do STF, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União, nos crimes de responsabilidade, que são às infrações político-administrativas cometidas no desempenho da função (art. 52, I e II). Ao STF cabe julgar o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República nos crimes comuns e, nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado, os membros dos Tribunais Superiores (STJ, TST, TSE e STM), do Tribunal de Contas da União e chefes de missão diplomática de caráter permanente (art. 102, I, “b” e “c”).
Ao Superior Tribunal de Justiça cabe julgar, nos crimes comuns, os Governadores de Estados e do Distrito Federal e, nestes e nos de responsabilidade, os Desembargadores dos Tribunais de Justiça, os membros de Tribunais de Contas dos Estados, TRFs, TRTs, TREs, Conselhos e Tribunais de Contas dos Municípios e agentes do Ministério Público que atuem nos Tribunais (art. 105, I, “a”). Aos Tribunais Regionais Federais atribui-se o julgamento, nos crimes comuns e de responsabilidade, dos Juízes Federais, Juízes do Trabalho, Juízes Militares e Procuradores da República, da área de sua jurisdição (art. 108, I, “a”).
Ao Tribunal Superior Eleitoral cabe julgar os Juízes dos Tribunais Regionais Eleitorais e, a estes, julgar os Juízes Eleitorais, nos crimes de responsabilidade. Finalmente, aos Tribunais de Justiça cabe o julgamento dos Prefeitos (CF, art. 29, VIII) dos Juízes de Direito e Promotores de Justiça, Secretários de Estado e outras autoridades conforme previsão nas Constituições Estaduais.
Em todos esses casos é importante salientar que os crimes comuns alcançam desde os crimes dolosos contra a vida, até mesmo as contravenções penais, desde que a prerrogativa de função não esteja prevista em Constituição Estadual, em lei processual ou em normas de organização judiciária. Nesses casos, deverá prevalecer a norma constitucional. Nas outras hipóteses o Tribunal do Júri tem a competência jurisdicional para julgar.
No entanto, quando se trata de crimes eleitorais a jurisprudência pacificada do STJ, entende que à competência recaí sobre Justiça Eleitoral. O Tribunal Superior Eleitoral é o órgão jurisdicional competente para conhecer, processar e julgar o delito.
Destarte, é importante ressaltar que os crimes cometidos por aqueles que gozam da prerrogativa de função sempre serão julgados pelo tribunal competente, não levando em consideração o local onde o delito foi cometido.
É importante salientar que em caso de concurso de pessoas, a prerrogativa de foro também alcançara os indivíduos que não aproveitam dos efeitos do referido dispositivo, haja vista os arts. 77, I, e 78, III, do CPP. No entanto, conforme a jurisprudência, se a acusação em face da autoridade que frui dos efeitos desse instituto for renunciada, os demais envolvidos que não são apreciados originalmente, serão processados e julgados pela justiça comum.
O artigo 85 do Código de Processo Penal garante o foro especial por prerrogativa de função a pessoas que originariamente dele não poderiam usufruir. Isso acontece numa possível ação movida contra autoridade que desfruta da prerrogativa de foro, porém, numa situação oposta o processo corre na justiça comum. Isso ocorre para os casos de calúnia, pois na injúria não se admite a exceção de verdade e na difamação, ainda que admitida, não há imputação de fato definido como crime, mas apenas de fato ofensivo à reputação.
Como já foi dito, a competência por prerrogativa de função tem a finalidade de garantir o cargo ou função que a autoridade ocupe ou exerça, dessa forma os delitos praticados após o cessar do exercício da função ou cargo, serão julgados pela justiça comum, conforme a Súmula 451 do STF.
5. A INCAPACIDADE DOS TRIBUNAIS DIANTE DA PRERROGATIVA DE FORO
Com o desenrolar da maior operação de combate à corrupção na história do Brasil, a Operação Lava Jato, criada para investigar os esquemas de desvio de dinheiro e o pagamento de propinas em contratos na Petrobras. Vieram à tona informações que mostram o quanto o Instituo do Foro por Prerrogativa de Função teve a sua finalidade desvirtuada, transformando-se num verdadeiro “foro privilegiado”.
Segundo levantamento da Consultoria Legislativa do Senado, existem hoje cerca de 55 mil autoridades no Brasil que possuem foro especial por prerrogativa de função. Sendo aproximadamente 38,5 mil casos na esfera federal e 16,5 mil na esfera estadual. Não há no mundo nenhum outro país que prevê tantas hipóteses de foro por prerrogativa de função igual ao Brasil.
Deltan Dallagnol, procurador chefe da Operação Lavajato, afirma ainda que “Enquanto a Suprema Corte Americana julga aproximadamente 100 processos por ano, nossa Suprema Corte brasileira julga 100 mil processos por ano. O que mostra que não existem condições operacionais para que isso seja processado em uma Corte tão especial. O Supremo Tribunal Federal deveria ser reservado para assuntos mais restritos”.
Com o surgimento das delações premiadas feitas por executivos de empreiteiras e ex-diretores da Petrobrás no desenvolvimento das investigações da Lava Jato, os debates a respeito do foro por prerrogativa ganharam força.
O juiz federal Sérgio Moro, titular das ações em primeira instância da Operação Lava Jato em Curitiba, expressou à posição de grande parte do Poder Judiciário, antagônica ao instituo. Segundo Sérgio Moro, “na avaliação da magistratura federal, o foro privilegiado é instrumento de impunidade. É um resquício aristocrático e acaba tornando o sistema penal ineficiente. (...) Os juízes federais, por meio da Ajufe, são absolutamente contra qualquer tentativa de ampliação do foro privilegiado. Se houvesse algum movimento no sentido de modificar o foro privilegiado, deveria ser no sentido ou de eliminá-lo ou de extingui-lo, mas jamais de ampliá-lo”.
Em 30 de janeiro, a ministra Cármen Lúcia, a presidente do STF, homologou os 950 depoimentos, de 77 delatores, da maior empreiteira do Brasil, a Odebrecht. Delações quem podem embasar a denúncia de um grande número de autoridades que gozam de prerrogativa de foro, que tem o Supremo Tribunal Federal como o órgão jurisdicional competente para julgá-los. Uma corte que foi criada para julgar recursos e a constitucionalidade das normas, não tem capacidade para suportar o grande número de processos, ficando assim, comprometido o julgamento dos envolvidos. Sob o risco da prescrição dos crimes cometidos pelos indiciados.
É consensual entre os ministros do Supremo Tribunal Federal, o entendimento de que da forma que está à prerrogativa de foro se transformou num foro privilegiado, perdendo totalmente a essência do fim para qual foi criado. Os ministros Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia defendem a limitação do foro, pois entendem que refugia pessoas demais, muitas interessadas em tirar proveito da morosidade que os processos correm e assim praticarem crimes.
O ministro Alexandre de Moraes, na sabatina do Senado que avaliou sua indicação ao Supremo Tribunal Federal, também reiterou a necessidade de mudanças, segundo ele o país é “extremamente generoso com o foro privilegiado”. Já os ministros Celso de Mello e Marco Aurélio Mello são críticos ferrenhos a esse mecanismo, defendem que é necessário extinguir tal dispositivo do ordenamento jurídico brasileiro no que tange a matéria criminal. “Não se julga o cargo, julga-se o ocupante do cargo que cometeu o desvio de conduta”, diz Marco Aurélio. “Todos são iguais perante a lei”, diz Celso de Mello. “Não há razão para tratamento diferenciado.”
Posto isso, diante da demanda de processos fica evidente a falta de estrutura dos órgãos jurisdicionais competentes para processar e julgar feitos de natureza penal. Por estarem distantes da localidade onde o crime foi cometido os tribunais, tem pouca agilidade, o que implica na morosidade das decisões, dessa forma, atrasando os atos da instrução criminal.
Ciente dessa lentidão, as partes envolvidas impetram diversos recursos com o intuito de protelar ainda mais o processo, delongando as decisões sobre ato. De 2001 até julho de 2016, segundo estudo técnico da Câmara dos Deputados, o Supremo Tribunal Federal recebeu cerca de 560 casos. Em 2003, o Tribunal levava em média 277 dias para julgar ações penais contra autoridades detentoras de foro privilegiado. Em 2016, esse prazo ultrapassa 1.200 dias, num aumento de 346%. Esse quadro é ainda mais agravado quando se tem em conta que o número de novas ações que chegaram à Corte aumentou em 132%.
Em 2014, o STF, com intuito de dar celeridade aos processos, definiu que essas pessoas poderiam ter seus processos apreciados pelas Turmas. Tal decisão foi inútil, o prazo aumentou de 1.396 dias, em 2014, para 1.536, em 2015. Em 2016, o STF findou o primeiro semestre com 59 inquéritos, 11 denúncias e 38 denunciados apenas em relação à Operação Lava-Jato, havendo já 134 pessoas investigadas com foro no Tribunal. Quase como regra, o prazo médio para recebimento de uma denúncia no STF é de 617 dias, enquanto em um juízo de primeiro grau a média é de uma semana.
O que acabada por violar o princípio da razoável duração do processo, consagrado pelo art. 5º, LXXVIII da Constituição Federal. Essa demora em muitos casos gera impunidade aos acusados, e graves prejuízos aos cofres públicos, pois seus crimes acabam prescrevendo.
6. A PEC 10/2013 E A NECESSIDADE DE MUDANÇAS
Ao longo dos últimos anos, várias foram as propostas de emendas a Constituição (PECs). Contudo, nenhuma delas esteve tão próxima de ser aprovada como a PEC 10/2013, de autoria do senador Álvaro Dias (PV-PR) e relatoria do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP).
Por se tratar de uma emenda a constituição é necessária a sua aprovação em dois turnos do senado e da câmara dos deputados. No Pleno do Senado Federal a proposta já foi aprovada em dois turnos, agora é necessária a aprovação em dois turnos de votação pelo Plenário da Câmara dos Deputados.
A PEC 10/2013 tem por objetivo a modificação do instituto do foro por prerrogativa de função, conhecido popularmente como foro privilegiado. Desta forma, caso seja aprovada, a emenda extinguiria a prerrogativa de foro em caso de crimes comuns para diversas autoridades, dentre elas, deputados, senadores, ministros de estados, governadores, ministros de tribunais superiores, desembargadores, embaixadores, comandantes militares, integrantes de tribunais regionais federais, juízes federais, membros do Ministério Público, procurador-geral da República e membros dos conselhos de Justiça e do Ministério Público.
Depois de aprovada em dois turnos na câmara dos deputados, e em seguida sancionada pelo presidente. As autoridades e agentes públicos agraciados pela prerrogativa de foro passaram a ter seus processos iniciados na primeira instância da justiça comum. Resguardada a prerrogativa para os crimes cometidos no decorrer do exercício do cargo ou função pública, os chamados crimes de reponsabilidade, como os contra o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; a segurança interna do país; a probidade na administração; a lei orçamentária; e o cumprimento das leis e das decisões judiciais, entre outros.
“Art. 102 [...]
c) nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no inciso I do art. 52, os membros dos Tribunais Superiores e do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente;
“Art. 105 [...]
a) nos crimes de responsabilidade, os membros dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais, dos Tribunais Regionais do Trabalho e dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios, bem como os membros do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais;
A PEC manteve a prerrogativa de foro para os chefes dos três poderes e o vice-presidente da República. Na sua redação original a PEC não previa a manutenção do foro para essas autoridades. Contudo, através de uma emenda proposta pelo senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES), preservou-se o foro privilegiado para os presidentes da República, do Senado, da Câmara e do STF nos exercícios dos mandatos.
“Art. 102.
I – [...]
b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o VicePresidente da República, o Presidente da Câmara dos Deputados, o Presidente do Senado Federal e o Presidente do Supremo Tribunal Federal;
No decorrer da sua tramitação no senado a PEC passou por algumas alterações, a mais importante foi a retirada do texto inicial, do trecho que versava sobre a prisão de parlamentares após condenação em segunda instância. A PEC também manteve a prerrogativa que cabe ao Congresso Nacional decidir sobre o relaxamento de prisão de senador ou deputado preso nos casos de flagrante por crime inafiançável. O texto aprovado manteve o parágrafo 2º do artigo 53 da Constituição Federal, que prevê que parlamentares não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Em casos como esses, os autos devem ser remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa Legislativa respectiva, para que, pelo voto da maioria dos integrantes, resolva sobre a prisão.
A PEC vedou expressamente ao incluir no art. 5º da Constituição a proibição de que seja instituído qualquer outro foro por prerrogativa de função no futuro.
“Art. 5º
LIII-A – é vedada a instituição de foro especial por prerrogativa de função;
A quem diga que, o fato de levar políticos do alto escalão a serem julgados na justiça comum de seus estados, não trará a solução para o problema da impunidade que foi gerada ao longo dos anos devido à desvirtualização do referido dispositivo. Pois, segundo a corrente que pensa dessa forma, devido a influência desses políticos nas primeiras instâncias de seus estados, os processos que os envolvam poderiam levar mais tempo ainda para serem julgados, além de estarem expostos a fortes pressões políticas regionais.
No entanto, para aqueles que defendem a PEC os tribunais superiores estão sucateados, devido ao grande numero de processos, o que acaba por muitas vezes terminando na prescrição dos crimes, pois, os tribunais superiores não tem estrutura para julgar crimes comuns.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Criado com o intuito de resguardar o exercício de determinadas funções ou cargos que, na Constituição vigente, a de 1988, foi instituído o Instituto do Foro por Prerrogativa de Função. Com esse dispositivo, visava-se resguardar isenção a julgamentos e evitar instabilidades no País. Porém, o atual cenário do nosso país é desolador, envolto a grandes esquemas de corrupção, o sistema político passa por uma profunda crise ética e moral. Em meio a esse panorama de desconfiança total da classe política, o papel desse dispositivo tem sido alvo de controvérsias, sob o argumento de que teria efeito contrário ao motivar a impunidade.
A maior crítica recebida pelo Instituto do Foro por Prerrogativa de Função, é que esse, na verdade, constitui um privilégio conhecido popularmente como “Foro Privilegiado”, pois, tem como interesse a proteção da classe política, que dessa forma, estão sujeitos há um julgamento por uma espécie de tribunal de exceção, já que esse dispositivo é conhecido pela morosidade em que os seus processos tramitam e também pelo alto índice de absolvição. Levando a crer que a lei não é aplicada da mesma maneira aos que gozam da referida prerrogativa. Desta forma, violando princípios fundamentais da nossa Constituição Federal, como o princípio da igualdade.
Com tamanha impunidade, o foro privilegiado contribui para o crescimento da corrupção. O que tem prejudicado em muito o desenvolvimento do nosso país. Pois, ao analisarmos os casos que envolvam autoridades que gozam desse privilégio, a grande maioria saiu ilesa, livre de qualquer acusação, em muitos casos nem chegaram a ser julgadas, pois seus crimes prescreveram.
Por outra senda, há cargos ou funções públicas que representam grande importância para o sistema político e administrativo do nosso país, dessa forma, num possível julgamento em que as pessoas que ocupam esses postos sejam submetidas à justiça comum, poderiam existir fatores externos ligados à inexperiência do magistrado que os julga, ou pressões políticas causadas por subversões que tem por objetivo prejudicar a imagem da autoridade em tese, o que causaria um dano não só a imagem da pessoa, más também acarretaria prejuízos à imagem do país, por exemplo, o cargo de Presidente, de Ministro e de Governador na esfera estadual.
Por todo exposto, faz se necessário uma análise profunda do referido instituto, a fim de encontrar eventuais irregularidades que estão a causar tamanha revolta da opinião pública. É chegada a hora de uma mudança, na busca de uma Constituição moderna, onde não haja espaço para privilégios individuais ou de determinadas classes, porém, respeitando o princípio da igualdade, passando pelo ideal pregado por Aristóteles “Devemos tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade”.
Na conclusão da presente obra, entendemos que para a aplicação correta do instituto do foro por prerrogativa de função, passa pela aprovação da PEC 10/2013. Desta forma, estaremos a resgatar o sentido para qual esse dispositivo foi criado.
REFERÊNCIAS
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[1] Professor orientador da Faculdade Católica do Tocantins; Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário Ritter dos Reis (Canoas - RS - 1996), é especialista em Direito e Estado pela Universidade do Vale do Rio Doce (Governador Valadares - MG), é Mestre em Ciências do Ambiente pela Fundação Universidade Federal do Tocantins (Palmas - TO). É doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Bacharelando do Curso de Direito pela Faculdade Católica do Tocantins (FACTO)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MENEZES, Tiago Costa. Foro por prerrogativa de função, privilégio ou garantia? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 nov 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51016/foro-por-prerrogativa-de-funcao-privilegio-ou-garantia. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Nathalia Sousa França
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