LILIANE BORGES
(Orientador)[1]
RESUMO: A origem do ativismo judicial perpassa historicamente pela redemocratização e novos modelos constitucionais, filosoficamente com a superação do positivismo – ao que a doutrina chama de pós-positivismo -, e teoricamente ao se reconhecer a força normativa da Constituição. Podendo ser conceituado como a conduta que rompe com os precedentes dos tribunais ou ainda como a conduta do julgador que se afasta dos mecanismos usualmente utilizados na hermenêutica, fato é que nos últimos anos o Supremo Tribunal Federal tem exercido o ativismo sempre que necessário, eis que o Poder Judiciário não pode furtar-se de entregar a tutela jurisdicional. Enquanto manifestação do Poder Judiciário, o ativismo pode ou não significar a ruptura da independência funcional e da harmonia que devem existir entre os três poderes da União. Mas a experiência revela que o ativismo também está presente na praxe forense dos Estados estrangeiros, sendo que algumas cortes estrangeiras como a de Warren nos Estados Unidos da América, foi fundamental para o reconhecimento de alguns direitos sociais antes suprimidos. Também é possível observar que seus efeitos transcendem o processo enquanto instrumento responsável pela entrega satisfativa da tutela das partes, sendo necessário neste ponto a imparcialidade e técnica do julgador para que sua decisão não seja dotada de cunho político.
Palavras chave: Ativismo Judicial; Poderes; Supremo Tribunal Federal.
ABSTRACT: The origin of judicial activism has historically been through a new democratization and new constitutional models, philosophically with overcoming of positivism - to what the lecture calls post-positivism -, and theoretically by recognizing the normative force of the constitution. It can be wrtiten by the conduct that breaks with the precedents of the courts or even as the conduct of the judge who departs from the mechanisms commonly used in hermeneutics, fact is that in recent years the Federal Supreme Court has exercised the activism whenever necessary, The Judiciary cannot shy away from delivering judicial protection. As a manifestation of the Judiciary, activism may or may not mean the breakdown of the functional independence and harmony that must exist between the three powers of the Union. But experience shows that activism is also present in the forensic practice of foreign states, with some Foreign courts such as Warren in the United States of America was instrumental in the recognition for some previously suppressed social rights. It is also possible to see that its effects transcend the process as an instrument responsible for the satisfactory delivery of the trusteeship of the parties, being necessary in this point the impartiality and technique of the judge so that its decision is not ends with political character.
Keywords: Judicial Activism; Strength; Federal Court of Justice.
1 INTRODUÇÃO
O presente projeto de pesquisa subsidiará vindouro artigo de conclusão de curso superior, o qual tratará do ativismo judicial no Brasil e em linhas gerais no direito comparado sob a ótica constitucional da independência e harmonia dos três Poderes.
No estudo buscará analisar, de início, o poder judiciário, atentando-se para a noção de Estado Democrático de Direito e Democracia e do sistema de jurisdição adotado no Brasil, que diverge do contencioso administrativo adotado em países como França, para finalmente adentrar-se no objeto principal do estudo a ser feito.
Sabendo que a autonomia de cada um dos poderes da União é garantida pela própria Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB/88, seria possível admitir-se a existência e a prática do ativismo judicial sem que com isso as decisões emanadas do poder judiciário eventualmente adquiram um caráter político e violador da democracia, bem como desatendam ao seu propósito de prestar efetivamente a tutela jurisdicional aos jurisdicionados?
Percebe-se que ao lado de intervenções necessárias e meritórias, algumas extrapolam certos limites, vindo dotadas muitas vezes de sobrecarga emocional como em casos que tratam de medicamentos e terapias. Assim, põem em risco a própria continuidade como princípio que deve ser seguido pela administração pública enquanto prestadora de serviços públicos, que podem comprometer o manejo dos já escassos recursos públicos.
Assim, seja fazendo uso do ativismo judicial ou na própria autocontenção, poder-se-ia estar diante de decisão de cunho meramente político. Contudo, para os otimistas, os juízes e tribunais em exercício não extrapolam suas competências. Antes disto, traduzem a assumida e fundamental participação da magistratura, em conjunto com o legislador, de construir e dizer o direito aplicável à espécie.
Às vezes a sociedade anseia por decisões que envolverão temas ainda não regulamentados em lei, e neste ponto a própria inércia do poder legislativo pode servir de combustível para o ativismo judicial brasileiro.
Sendo certo que o ativismo apresenta seus pontos positivos e negativos, é preciso coibir um ativismo judicial exagerado que flagrantemente invade a esfera dos outros poderes; é necessário que o poder seja repartido. Mas não basta a Constituição dizer que o poder é repartido, é necessário que existam mecanismos de freios e contrapesos e que estes mecanismos sejam respeitados para que funcionem efetivamente.
Neste sentido serão estudadas a missão, funções e competência de algumas entidades, sendo elas: O Conselho Nacional do Ministério Público e o próprio Ministério Público enquanto garantidor do regime democrático e do próprio Conselho Nacional de Justiça enquanto zelador do estatuto da magistratura, dos princípios do Art. 37 da CRFB/88, e dos atos administrativos praticados por órgãos do poder judiciário. Na mesma linha, a própria Ordem dos Advogados do Brasil enquanto guardiã da CRFB/88.
Antes das considerações iniciais acerca do que é o ativismo judicial no Brasil com a exemplificação e citação de algumas jurisprudências pontuais sobre o tema bem como no direito comparado, expondo suas principais características, e serão introduzidas as feições do Poder Judiciário no ordenamento jurídico brasileiro.
O ativismo judicial, ao contrário do que se possa imaginar, não é fenômeno meramente político e isolado. Em verdade faz parte da ascensão do Poder Judiciário advinda do novo modelo constitucional adotado na Carta Política de 1988 e nas Constituições de outros países. Modelo que sofreu inúmeras mudanças no que tange ao modo de pensar e aplicar o Direito. Luís Roberto Barroso (2009) aponta três marcos fundamentais responsáveis por esta mudança: histórico, filosófico e teórico.
Historicamente, após a Segunda Guerra Mundial, e em países como Espanha e Portugal, houve uma redemocratização e a adoção de novos modelos constitucionais, inclusive no Brasil com a CRFB/88. Deixa-se de lado o bem-estar de um estado intervencionista e passa-se a uma maior efetivação das garantias e direitos fundamentais, bem como se nota maior preocupação com a democracia e o Estado Democrático de Direito.
Filosoficamente tem-se a superação do positivismo, adentrando no pós-positivismo, em face do reconhecimento de princípios que hoje norteiam o ordenamento jurídico, em especial o da dignidade da pessoa humana que edificou a teoria dos direitos fundamentais. Não se trata de desprezo ao texto legal, mas interpreta-se o direito com o fito de se obter justiça atribuindo valor normativo aos princípios (ARAÚJO, 2015).
Por fim, teoricamente, reconheceu-se que a Constituição tem força normativa assim como os princípios, de modo que a jurisdição constitucional foi ampliada e surgiram novas categorias interpretativas constitucionais – diretas ou indiretas. Ao se falar em jurisdição constitucional, é preciso ter em mente que o termo é fruto da redemocratização da Constituição pós – segunda guerra mundial que transformou as Constituições em centros do ordenamento jurídico e não mais apenas num mero documento político. Desta forma surgiram Tribunais Constitucionais que passaram a exercer controle difuso de constitucionalidade e a última palavra passou a ser do Judiciário – princípio da inafastabilidade da jurisdição -.
Em breve análise dos três elementos mencionados acima pode se dizer que o direito evoluiu com vistas a alcançar a justiça social. Na análise histórica percebe-se a preocupação com os direitos fundamentais, deixando-se o Estado em segundo plano. Filosoficamente e teoricamente houve modernização e estabelecimentos de novos métodos de interpretação com o pós-positivismo, sobretudo o axiológico. Mas como ficaria o ativismo judicial de acordo com cada sistema jurídico?
Quando se fala em sistemas jurídicos, famílias do direito, logo nos vem à mente dois principais sistemas: o de commom law, tendo seu principal expoente os Estados Unidos da América, e o romano-germânico, tendo como um de seus expoentes o Brasil. Em ambas o direito se propõem a solucionar conflitos, orientar os aspectos da vida social e dar soluções a processos.
Pode se dizer que no sistema romano-germânico, mais adstrito à literalidade das normas e erigidos piamente pela regra escrita, o ativismo judicial seria uma situação alheia e até mesmo conflitante com a realidade jurídica de determinado sistema. Os juristas devem se apegar à lei para a solução do caso concreto. Mas o conceito legal é mais amplo do que se percebe num primeiro momento. Para Souza Junior, apud Carlos Eduardo Dieder Reverbel (2009), agrega-se à legalidade “alguns adjetivos importantes, como, por exemplo, igual, prospectiva, controlável (razoável, proporcional). Pode soar estranha, mas não deixa de ser o princípio da legalidade juridicamente devida, ou seja, da legalidade com certas qualificações jurídicas mínimas.”
Carlos Eduardo Dieder Reverbel (2009, p. 43) vai além ao dispor que:
[...] em um sistema que tem por base a lei – a percepção do ativismo judicial parece ser um mal maior. Mas certamente este ativismo judicial, ao menos no Brasil, possui raízes mais profundas, como o desprestígio da lei, a ineficiência do executivo, a desestruturação do sistema, a irracionalidade das instituições, a ausência de uma boa política, a falta de consenso sobre pontos fundamentais.
Ou seja, além do amplo conceito sobre o que seja legalidade, e que garante a atuação adstrita de juízes a este respeito nos países que tem por base a lei, para o autor o ativismo não seria de todo o mal. Haveria no Brasil quase que um clamor ao Judiciário para que este resolva questões que o Poder Executivo e o legislativo não conseguem.
Ainda de acordo com Luís Roberto Barroso (2009), no Brasil a judicialização é causada pelo sistema brasileiro híbrido de controle de constitucionalidade, pela constitucionalização abrangente e pela redemocratização do país.
O sistema é híbrido, pois tem traços do sistema americano incidental e difuso, onde o juiz no caso concreto se pronuncia sobre a constitucionalidade de determinado tema. Também tem traços do sistema europeu, onde o controle é por ação direta. Com este sistema híbrido, o poder Judiciário é dotado de bastante poder e abre-se o leque de suas possibilidades de interferência nas políticas públicas. A interferência poderá traduzir-se em ativismo judicial.
Já por constitucionalização abrangente, tem-se a inclusão de matérias no texto constitucional, transformando política em direito. Desta forma traz-se para a esfera da jurisdição diversos temas como política, religião, moral, ciência, dentre outros.
Portanto, as mudanças de paradigma no direito constitucional sob a ótima histórica, teórica e filosófica apresentada por Luís Roberto Barroso, aliado à Constitucionalização abrangente do Direito e o sistema híbrido de controle de constitucionalidade, judicializaram as relações sociais, de forma a abrir caminho à atitude ativista dos Ministros do Supremo Tribunal Federal.
Ainda no tocante as causas do ativismo judicial, citando a omissão, ineficiência e inoperância do Poder Legislativo como causa do ativismo judicial, Milton F. Lamanuskas (2009, p.240) dispõe em sua dissertação de mestrado que:
Entre essas, destacam-se a inoperância e a ineficiência dos Poderes Legislativo e Executivo em suprirem as necessidades socioeconômicas ao Estado de Direito. A sociedade parece ter encontrado seu salvador contra a paralisia do sistema público-estatal. De um lado, um Poder Executivo cujo braço operacional é a Administração Pública, caracterizada pela lentidão, burocracia, ineficiência, incapacidade e demais defeitos da tão difamada máquina administrativa. De outro lado, o Poder Legislativo, que de longa data vem perdendo espaço para o Executivo, agora cede lugar ao Judiciário. Parece sim guardar íntima culpa pela efervescente produção jurisdicional – mormente em matéria eleitoral – observada nos últimos anos em nossa nação. Talvez não a justifique, mas certamente é listada como uma das principais causas do ativismo do Poder Judiciário a lacuna deixada pelo Legislativo.
Não se fala aqui que as causas do ativismo judicial se esgotam nas citadas em linhas pretéritas, e é importante salientar que a judicialização das relações sociais não se confunde com o ativismo propriamente dito, mas a expansão da jurisdição constitucional e as novas formas interpretativas mantém estreita correlação com o ativismo judicial.
Judicializar as relações sociais significa colocar nas mãos do Poder Judiciário os mais diversos conflitos, quando, por ineficácia ou omissão, os poderes executivos e legislativos não o fazem. Além desta ineficácia, é preciso que haja democracia e separação de poderes para garantir a atuação independente do Judiciário.
Em outras palavras, pode-se dizer que para que haja ativismo judicial é necessário que haja a judicialização das relações sociais, mas a recíproca não é verdadeira, de modo que nem sempre que houver o fenômeno da judicialização haverá ativismo judicial.
Identificar no caso concreto se há ou não ativismo judicial não é tarefa fácil. Vanice Regina Lírio do Valle (2009, p.21), explica que:
[...] o parâmetro utilizado para caracterizar uma decisão como ativismo ou não reside numa controvertida posição sobre qual é a correta leitura de um determinado dispositivo constitucional. Mais do que isso: não é a mera atividade de controle de constitucionalidade – consequentemente, o repúdio ao ato do Poder Legislativo – que permite a identificação do ativismo como traço marcante de um órgão jurisdicional, mas a reiteração dessa mesma conduta de desafio aos atos de outro poder, perante casos difíceis.
É necessário também que os grupos interessados por essa atuação e judicialização busquem a tutela de seus interesses junto ao Poder Judiciário que decidirá sobre os direitos desses interessados de maneira imperativa e fundamentada. O Poder Judiciário deve agir sempre que provocado, sendo que havendo necessidade, haverá judicialização. Mas o ativismo por sua vez, é faculdade de atuação do juiz, que discricionariamente decide se vai ou não praticar o ativismo judicial.
Quando a sociedade experimenta o ativismo judicial, em especial no Supremo Tribunal Federal muitos são os seus efeitos. Com a judicialização das relações sociais, cada vez mais são trazidas ao Poder Judiciário algumas situações jurídicas ainda não previstas em lei, eis que impossível para o legislador prever todas as hipóteses possíveis de litígios e controvérsias que podem surgir no seio social.
Antes de analisarmos as vantagens e desvantagens do ativismo judicial, cumpre dizer que a reprovação do mesmo enquanto potencialmente ofensiva à separação de poderes não é compartilhada pela maioria. E neste sentido, válida a lição de Mauro Cappelleti apud Inocêncio Mártires Coelho (2010), para quem o Supremo Tribunal Federal seria um órgão que não se encaixa em nenhum dos três poderes em virtude de sua distinta missão constitucional, senão veja-se:
Em relação aos tribunais constitucionais, o juízo de reprovação do ativismo judicial enquanto conduta que seria ofensiva ao dogma da separação de poderes, não é compartilhado por muitos juristas de expressão, como é o caso de Mauro Cappelletti, por exemplo, para quem, pela singular posição institucional de que desfrutam – situadas fora e acima da tradicional tripartição dos poderes –,as cortes constitucionais não podem ser enquadradas nem entre os órgãos jurisdicionais, nem entre os legislativos, nem muito menos entre os órgãos executivos, porque a elas pertence de fato uma função autônoma de controle constitucional, que não se identifica com nenhuma das funções próprias de cada um dos Poderes tradicionais, antes se projeta de várias formas sobre todos eles, para reconduzi-los, quando necessário, à rigorosa obediência das normas constitucionais.
Portanto, para o autor citado alhures, não se falaria jamais em violação à independência funcional e harmonia entre os poderes da União pelo simples fato de que o Supremo Tribunal Federal enquanto ativista sequer faz parte de um dos três poderes. Isto pois, na visão do autor, o tribunal atua fora e acima da tradicional divisão tripartida em virtude de sua função autônoma de controle constitucional.
Não há dúvidas de que o que causou mais convulsão social dentre os mencionados seja a ADPF n 54 de Relatoria do Ministro Marco Aurélio. Antes do pronunciamento do Supremo Tribunal Federal nesta ADPF, milhares de outros casos correlatos foram decididos por juízes de todo o Brasil.
Trata-se da questão do aborto de feto anencéfalo, onde na ADPF nº 54 buscou-se a declaração da inconstitucionalidade da interpretação dos Arts. 124, 126 e 128, I e II do Código Penal que impedisse a antecipação terapêutica do parto de feto anencéfalo. Buscou-se uma interpretação de acordo com a Constituição que assegurasse todos os direitos fundamentais da gestante envolvidos na questão como o direito à saúde, autonomia da vontade, liberdade e dignidade da pessoa humana.
No caso da ADPF em questão, o Supremo Tribunal Federal foi ativista quando provocado, e o foi por omissão legislativa. A tipificação do aborto de feto anencéfalo se fazia pela interpretação dada ao dispositivo, que não se coadunava com a Constituição Federal. A interpretação até então classificava tal conduta como criminosa nos dispositivos legais do Código Penal.
Para Rodrigo de Souza Tavares, et al (2008) “uma Corte ativista pode ser caracterizada como tal pelo afastamento dos cânones de hermenêutica jurídica (sobretudo constitucional) partilhados pela comunidade de intérpretes –, e portanto, do desenvolvimento de uma atividade que se poderia qualificar como normogênica”. E foi o que ficou evidenciado no caso, em que a interpretação dada pelo STF divergiu daquela empregada por quem tipificava a conduta, alcançando a decisão determinado fim social.
Entretanto não se fala em falta de correção material, pois apesar de entender que a interpretação não se dava de acordo com a Constituição, a interpretação era lógica e racional, portanto válida e justificável nos campos da moral e da ética. Portanto seria o caso de se adequar a interpretação conferida ao tema à realidade social e aos direitos fundamentais em questão, e de fato declarando inconstitucional a interpretação de que a interrupção da gestação neste caso seria tipificada como aborto.
Para fundamentar o caso, analisa-se a condição e situação do anencéfalo frente ao Estado Democrático de Direito e à possibilidade de tutela de seus interesses e concretização de seus direitos.
No início de seu voto, o Relator Min. Marco Aurélio faz alusão à laicidade do Estado brasileiro, não o reconhecendo como religioso e nem ateu, mas neutro. Enquanto Estado neutro, o Ministro critica as mensagens religiosas contidas nas cédulas de papel moeda do real e se manifesta contrário aos símbolos religiosos apregoados nas paredes das repartições públicas brasileiras, sob pena de se prestigiar o cristianismo em detrimento de outras religiões.
Esta introdução feita pelo Relator é importante porque demonstra a necessidade de se separar o Estado da igreja, em que pesem as tradições. Assim, é salutar para o relator que não seja usado como fundamento qualquer argumento que tenha condão religioso em manifestações contrárias à declaração de inconstitucionalidade da interpretação dos dispositivos do Código Penal aludidos acima no sentido de tipificar a conduta da antecipação terapêutica do parto de feto anencéfalo.
No voto, enfatiza o Ministro Marco Aurélio:
Se, de um lado, a Constituição, ao consagrar a laicidade, impede que o Estado intervenha em assuntos religiosos, seja como árbitro, seja como censor, seja como defensor, de outro, a garantia do Estado laico obsta que dogmas da fé determinem o conteúdo de atos estatais. Vale dizer: concepções morais religiosas, quer unânimes, quer majoritárias, quer minoritárias, não podem guiar as decisões estatais, devendo ficar circunscritas à esfera privada. A crença religiosa e espiritual – ou a ausência dela, o ateísmo – serve precipuamente para ditar a conduta e a vida privada do indivíduo que a possui ou não a possui. Paixões religiosas de toda ordem hão de ser colocadas à parte na condução do Estado. Não podem a fé e as orientações morais dela decorrentes ser impostas a quem quer que seja e por quem quer que seja. Caso contrário, de uma democracia laica com liberdade religiosa não se tratará, ante a ausência de respeito àqueles que não professem o credo inspirador da decisão oficial ou àqueles que um dia desejem rever a posição até então assumida. [...]A questão posta neste processo – inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual configura crime a interrupção de gravidez de feto anencéfalo – não pode ser examinada sob os influxos de orientações morais religiosas. Essa premissa é essencial à análise da controvérsia.
O relator continua trazendo em seu voto definições e considerações sobre anencefalia. A anencefalia seria a má formação do tubo neural do feto, caracterizado pela ausência parcial do encéfalo e do crânio. Verifica-se a ausência dos hemisférios cerebrais, do cerebelo e verifica-se um tronco cerebral rudimentar.
É uma doença letal em 100% (por cento) dos casos. Não há potencialidade de vida extrauterina. Não há o desenvolvimento de nenhuma sensibilidade ou emoção, consciência, cognição e vida relacional.
A antecipação terapêutica do parto de feto anencéfalo diferencia-se do aborto eugênico que é criminalizado, feito quando apesar de constatada deficiências há a possibilidade de vida extrauterina. A diferença entre um e outro é sintetizada no voto do Relator Marco Aurélio:
Cumpre rechaçar a assertiva de que a interrupção da gestação do feto anencéfalo consubstancia aborto eugênico, aqui entendido no sentido negativo em referência a práticas nazistas. O anencéfalo é um natimorto. Não há vida em potencial. Logo não se pode cogitar de aborto eugênico, o qual pressupõe a vida extrauterina de seres que discrepem de padrões imoralmente eleitos. Nesta arguição de descumprimento de preceito fundamental, não se trata de feto ou criança com lábio leporino, ausência de membros, pés tortos, sexo dúbio, Síndrome de Down, extrofia de bexiga, cardiopatias congênitas, comunicação interauricular ou inversões viscerais, enfim, não se trata de feto portador de deficiência grave que permita sobrevida extrauterina. Cuida-se tão somente de anencefalia. Na expressão da Dra. Lia Zanotta Machado, “deficiência é uma situação onde é possível estar no mundo; anencefalia, não”52 . De fato, a anencefalia mostra-se incompatível com a vida extrauterina, ao passo que a deficiência não.
Em verdade, constatada a anencefalia, nenhum direito fundamental assegurado constitucionalmente às crianças e adolescentes poderia ser entregue ao portador da anencefalia, pois esta é uma condição incompatível com a própria vida. Assim assevera o Ministro Marco Aurélio
Do mesmo modo, revela-se inaplicável a Constituição Federal no que determina a proteção à criança e ao adolescente, devendo a eles ser viabilizado o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, ficando a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Ora, é inimaginável falar-se desses objetivos no caso de feto anencéfalo, presente a impossibilidade de, ocorrendo o parto, vir-se a cogitar de criança e, posteriormente, de adolescente.
Muito se discutiu à época se a manutenção compulsória da gravidez nesses casos se justificaria pelo princípio da solidariedade, ante a possibilidade de doação de órgãos do anencéfalo e se seria violado seu direito à vida no caso de interrupção antecipada da gravidez. Aliás, os inúmeros direitos fundamentais das gestantes, dentre eles: dignidade da pessoa humana, liberdade, autodeterminação, autonomia, saúde e privacidade; ficariam em conflito como esses mesmos direitos do anencéfalo.
No primeiro caso ficou constatada a impossibilidade de doação de órgãos do anencéfalo. E mesmo que a possibilidade fosse realidade, entendeu o Ministro Marco Aurélio que a condição de ser humano da mulher seria posta em segundo plano, coisificando a mulher que seria apenas meio e não fim em si mesma, hipótese que jamais se justificaria.
Quanto à violação do direito à vida, é uma hipótese que escapa da realidade. Conforme já dito, o anencéfalo não é dotado de potencialidade de vida, não se fala em vida extrauterina porque os casos sempre são letais. Então o que num primeiro momento pode mostrar-se como um conflito de direitos fundamentais – direito à vida, saúde e dignidade da pessoa humana da gestante x direito à vida, saúde e dignidade da pessoa humana do anencéfalo – na verdade não passa de conflito aparente.
Inescapável é o confronto entre, de um lado, os interesses legítimos da mulher em ver respeitada sua dignidade e, de outro, os interesses de parte da sociedade que deseja proteger todos os que a integram – sejam os que nasceram, sejam os que estejam para nascer – independentemente da condição física ou viabilidade de sobrevivência. O tema envolve a dignidade humana, o usufruto da vida, a liberdade, a autodeterminação, a saúde e o reconhecimento pleno de direitos individuais, especificamente, os direitos sexuais e reprodutivos de milhares de mulheres. No caso, não há colisão real entre direitos fundamentais, apenas conflito aparente. [...]Anencefalia e vida são termos antitéticos. Conforme demonstrado, o feto anencéfalo não tem potencialidade de vida. Trata-se, na expressão adotada pelo Conselho Federal de Medicina e por abalizados especialistas, de um natimorto cerebral. Por ser absolutamente inviável, o anencéfalo não tem a expectativa nem é ou será titular do direito à vida, motivo pelo qual aludi, no início do voto, a um conflito apenas aparente entre direitos fundamentais. Em rigor, no outro lado da balança, em contraposição aos direitos da mulher, não se encontra o direito à vida ou à dignidade humana de quem está por vir, justamente porque não há ninguém por vir, não há viabilidade de vida
A mulher por outro lado experimenta situações devassas e mórbidas, física e psicologicamente falando. Fala-se em aumento de hemorragias, hipertensão, diabetes, partos prematuros e ainda casos de gravidez prolongada; depressão, transtornos psicológicos graves e tendências suicidas também são mencionados no voto do Relator.
Sob pena de se privilegiar direitos de um ser natimorto sem nenhuma expectativa de vida e atributos psíquicos dignos de um ser humano em detrimento de uma pessoa já detentora de direitos e deveres na vida civil, a reprovação moral à interrupção prematura em casos de feto anencéfalo não deve ceder a uma indignação seletiva, a uma falsa moral. Assim, por maioria, o Tribunal decidiu pela admissão da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54.
O caso traz à baila alguns aspectos já tratados neste trabalho. Não havia dispositivo legal que regulasse expressamente a matéria em flagrante lacuna legislativa, ineficiência e ineficácia legislativas, e atribuía-se aos artigos correlatos do Código Penal uma interpretação que como se viu afrontava a Constituição Federal e os Direitos Fundamentais da Mulher.
Com sua inconstitucionalidade declarada, a interpretação que tipificava a conduta de interrupção antecipada da gestação em caso de fetos anencefálicos perdeu espaço no nosso ordenamento jurídico. Portanto tal interpretação, além de ser dotada de ineficácia social, já que o clamor público e o bem-estar social clamavam pela legalização da interrupção da gravidez, travestiu-se de ilegalidade após o julgamento da ADPF nº 54, para não dizer inconstitucionalidade, configurando presentes os parâmetros autorizadores do ativismo judicial.
Outro caso interessante que merece destaque é o julgamento da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade nº 2.649/DF, questionando a constitucionalidade da Lei 8.899/94 que estabelece transporte coletivo interestadual às pessoas portadoras de deficiência comprovadamente carentes. Sob o argumento de violar a propriedade privada, a livre iniciativa e a isonomia, a ação foi julgada improcedente sob o fundamento da preponderância do princípio da solidariedade, e da Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.
As próprias súmulas vinculantes editadas pelo Supremo Tribunal Federal são exemplos de ativismo. Dentre elas, a súmula vinculante nº 11 que restringiu o uso de algemas, só podendo ser permitido o uso em caso de resistência, receio de fuga ou periculosidade por parte do preso ou de terceiros. A permissão deve ser justificada por escrito sob pena de responsabilização da autoridade, do agente e do Estado, bem como nulidade da prisão ou ato processual a que se refere.
A súmula vinculante nº 25 que trata da vedação da prisão do depositário infiel é outro exemplo. Tendo havido uma virada jurisprudencial neste sentido, em razão do Brasil ser signatário do Pacto de San José da Costa Rica que restringe a prisão por dívida no caso de descumprimento inescusável de prestação alimentícia, hoje no Brasil a única hipótese de prisão civil admitida é esta.
Ainda se tratando do ativismo presente nas súmulas vinculantes, a súmula nº 13 que trata do nepotismo nos três poderes. A questão foi inicialmente levantada no julgamento da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade nº 12, validando a resolução nº 07 do Conselho Nacional de Justiça que tratava da vedação do nepotismo no Poder Judiciário. Posteriormente no julgamento do Recurso Extraordinário nº 579951, a vedação estendeu-se aos demais poderes.
Mesmo não sendo poder constituído pelo voto popular, é certo que o Poder Judiciário exerce poder político sobre os outros dois. Isto decorre de autorização constitucional para tanto, sendo esta a justificativa normativa para que exista o ativismo no nosso meio. E se existe, é porque no quadro histórico e recente não só do Brasil, mas também de outros países, existe uma dificuldade contra majoritária que exibe claramente as dificuldades enfrentadas pelo Poder Judiciário.
Desta forma, o Judiciário garante seu papel de transformador da sociedade, judicializando relações antes meramente sociais, atribuindo valor principiologico e político às suas decisões. Quanto à questão da judicialização das relações sociais e constitucionalização do direito, Bruno de Souza Lopes, et al (2010, p. 54) tem-se a jurisdição constitucional como instituto que:
define, através da interpretação, os valores que os três Poderes devem seguir, baseados sempre, nos preceitos constitucionais. Em consequência, segundo as observações de Vianna (1999, p.21), o Poder Judiciário, por meio da jurisdição constitucional, deixa de ser uma instituição politicamente neutra, para assumir um papel importante de garantidor de direitos constitucionais, exercendo um controle sobre os demais poderes. De acordo com Dworkin (2001, p. 102), o controle de constitucionalidade feito pelos tribunais, em específico a revisão judicial – meio pelo qual a Suprema Corte declara a inconstitucionalidade de leis contrárias a Constituição – possibilita que problemas sobre moralidade política sejam discutidos como: “questões de princípio e não apenas de poder político, uma transformação que não pode ter êxito no âmbito da própria legislatura. Com efeito, a jurisdição constitucional não se restringe à aplicação das normas. Ao contrário, através do controle de constitucionalidade, interfere diretamente nas decisões políticas tomadas pelo Executivo e Legislativo, tendo em vista que não admite leis e atos normativos antagônicos à Constituição.
Aqui vale citar novamente as causas do ativismo judicial compostas pela inoperância e ineficiência dos poderes legislativo e executivo. Com a atuação multifacetada do Poder Executivo, tem-se entre suas funções a entrega de direitos fundamentais insculpidas no Artigo 5º da Constituição Federal, muitas vezes defeituosa e necessariamente controlada pelo Poder Judiciário.
O Estado, além de suas missões institucionais de arrecadar tributos, construir obras, exercer poder de política, também entrega (ou não) a tutela de direitos do indivíduo, especialmente dos conferidos no Artigo 5º da Constituição. Quanto maior a tarefa governamental, maior a necessidade de controle pelo Judiciário. Silvio Dobrowolski (1995) fala dessa necessária e inafastável correção pelo Poder Judiciário:
A Carta de 1988 acompanha essa tendência que se complementa pela defesa internacional dos direitos humanos, com ativa atuação de organismos internacionais, nesse campo, inclusive com o funcionamento de Cortes Internacionais de Justiça voltadas a condenar as violações a direitos. No plano interno, a função protetora, embora atribuída ao Estado, nos termos dos artigos 1º, III, da Constituição, que coloca “a dignidade da pessoa humana”, como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, e em razão de figurarem entre seus objetivos, segundo o artigo 3º, o de construir uma sociedade livre, justa e solidária (inciso I) e o de promover o bem de todos (inciso II), cabe, em última instância ao Poder Judiciário, conforme resulta do mencionado inciso XXXV, do artigo 5º, da Carta Fundamental. A Justiça erige-se, desse modo, em baluarte da defesa dos direitos individuais, mesmo e principalmente, quando as violações resultarem da atuação administrativa estatal.
Já o Poder Legislativo, que tem como função precípua a de editar normas, acaba muitas vezes por editar normas contraditórias, antagônicas, de baixa qualidade e de constitucionalidade questionável. Com vistas a corrigir tais defeitos, o Poder Judiciário faz verdadeiro malabarismo ao atuar em meio a tamanho conteúdo legiferante, ao mesmo tempo em que corrige tais defeitos, interpretando e pronunciando-se sobre a constitucionalidade e aplicabilidade das normas no caso concreto. É esta ineficácia social que, conforme já dito, embasa e serve de parâmetro para o ativismo judicial.
Vive-se numa sociedade cada vez mais globalizada e inter-relacionada, e além dos interesses individuais que merecem a devida tutela jurisdicional efetiva, surgem direitos e interesses meta-individuais como os coletivos e difusos. As mesmas causas e consequências do ativismo judicial que acometem os direitos individuais também acometem esses direitos difusos e coletivos, o que clama ainda mais pelos posicionamentos altivos e ativos do Judiciário. Nas palavras de Silvio Dobrowolski (1995, p. 54):
[...] o Judiciário, nos tempos atuais não pode propor-se a exercer função apenas jurídica, técnica, secundária, mas deve exercer papel ativo, inovador da ordem jurídica e social, com decisões de natureza e efeitos marcadamente políticos. Sem pretender um “governo de juizes”, observando, todavia, as normas legisladas e a separação dos poderes, a Justiça tem de elevar-se à condição do autêntico poder, cumprindo essas tarefas ao modo especificado. De outra forma, não conseguirá controlar os excessos do Legislativo e do Executivo avantajados no Estado social, nem reprimir os abusos dos superpoderes econômicos e sociais da sociedade tecnológica de massas.
A importância do ativismo judicial é histórica, já tendo servido em Estados estrangeiros de ferramenta de ampliação de direitos, garantias e liberdades sociais. É o que fez a Corte Norte Americana de Warren nas décadas de 50 e 60 do século passado, a qual ampliou os direitos civis e políticos dos cidadãos americanos. Foi considerada a corte mais ativista da história americana.
Inocêncio Mártires Coelho (2010, p. 58) leciona que:
aquilo que se chama, criticamente, de ativismo judicial – no Brasil, como alhures –, não configura nenhum extravasamento de juízes e tribunais no exercício das suas atribuições, antes traduz a indispensável e assumida participação da magistratura na tarefa de construir o direito de mãos dadas com o legislador, asseverando-lhe os passos, quando necessário, porque assim o exige um mundo que se tornou complexo e rápido demais para reger-se por fórmulas ultrapassadas.
Assim, o juiz que para Montesquieu era um ente inanimado, passa a ser importante para a evolução do direito, é a alma do progresso jurídico. A lei quando incompleta dependeria da doutrina, mas também da jurisprudência para ser louvável e aplicada.
O ativismo também serve para efetivar os direitos fundamentais com a devida liberdade e igualdade. Em que pese a separação dos poderes, o princípio democrático garante a proteção judicial dos direitos sociais. Assim a maioria permanente representada na promulgação da Constituição Federal de 1988 pela Poder Constituinte Originário é protegida contra a atuação de uma maioria eventual representada pela legislatura dos políticos. Para Sérgio Cabral dos Reis (2012, p. 67):
Nesse campo, a democracia, que não significa apenas o governo da maioria, não repele, ao contrário, reclama pronta atuação do Judiciário, que deve atuar como guardião da dinâmica representação majoritária versus pensamento minoritário.
Em países menos desenvolvidos e carentes de efetividade dos direitos sociais, em que a corrupção está enraizada no cotidiano da atividade política, o ativismo se mostra, além de possível, crucial, sendo alcançado não apenas por uma linha de pensamento lógico formal, mas também sensata, humana e sensível à realidade local.
O ativismo neste caso aflora o sentimento de democracia e Estado Democrático de Direito. Nas palavras de Sérgio Cabral dos Reis (2012, p. 68):
A efetivação dos direitos sociais, desse modo, como fator responsável pelo aprimoramento da própria democracia, depende de uma postura crítica do interprete quanto à força normativa da Constituição, a qual deve ser de sensibilidade psicológica, sensatez e humanismo, algo que transcende uma linha de pensamento meramente lógico-formal ou de tecnicismos desconectados com a realidade. Em países carentes de políticas sociais efetivas, além de marcados pela forte corrupção no processo político e na realização dos fins estatais, como é o caso do Brasil, é fundamental a presença de juízes comprometidos com o “sentimento constitucional”, especialmente em relação ao adequado sentido dos textos que tratam das normas de direitos sociais.
A necessidade do ativismo por parte do Judiciário também se mostra sob a seguinte perspectiva: O processo eleitoral no Brasil é democrático apenas do ponto de vista formal. Isto faz com que haja uma crise de confiança nas instituições políticas, sobretudo em âmbito executivo e legislativo por causa da maneira como se dá o processo eleitoral. Desta maneira Antonio Carlos Wolkmer, apud Sérgio Cabral dos Reis (2012, p. 89) sintetiza em sua obra:
O processo eleitoral, no Brasil, somente é democrático sob o ponto de vista formal. As eleições são extremamente caras, de modo que a maior parte do povo, destituída de recursos, não tem condições de participá-lo em condições reais de vitória. Geralmente, os compromissos assumidos em relação ao financiamento da campanha eleitoral comprometem o exercício do mandato em favor dos excluídos, mas sim dos grandes grupos que “investiram” no candidato, especialmente por influência dos grandes meios de comunicação.
Assim, promessas não são cumpridas, falta transparência aos governos e há uma verdadeira crise de representatividade, sobretudo nos países subdesenvolvidos, em que a participação da sociedade na política é mais discreta, como é o caso do Brasil.
É a lição de Eurico Zecchin Maiolino, apud Sérgio Cabral dos Reis (2012):
O aparecimento dos direitos sociais, como se sabe, encontra-se atrelada à reivindicação de grupos em relação a uma política emancipatória envolvendo temas como saúde, educação, trabalho, assistência e previdência social e moradia, dentre outros, cujos meios e instrumentos de concretização são eleitos pelo Legislador e efetivados pelo Administrador, normalmente, como forma de respeito ao princípio da isonomia e promoção da dignidade humana. Nos países em via de desenvolvimento, todavia, nem sempre o Estado, por meio dessas funções (legislativa e administrativa), desincumbe-se desta missão de concretizar os direitos sociais através de políticas públicas, especialmente pelo fato de que os mesmos encontram-se deduzidos em normas (“programáticas”) de textura aberta e vaga, o que reclama uma pronta atuação do Judiciário.
Tudo isto aliado ao surgimento de diversos direitos sociais insculpidos na Constituição Federal torna necessário que haja uma proteção judicial desses direitos.
O argumento dos autores que não concordam com a conduta ativista, além da quebra da independência funcional e harmonia que circunda os poderes da república, gira em torno de eventual quebra dos limites normativos à soberania popular por meio das eleições. Mesmo que bem-intencionado, o Poder Judiciário lançaria mão de exercer suas atividades e invadiria a competência do Poder Legislativo. Gisele Cittadino afirma que agindo desta maneira autorizar-se-ia que os tribunais, em especial o Supremo Tribunal Federal, atuaria como profeta com decisões intangíveis e inesperadas, ao que a doutrina chama de “teologia constitucional”. Assim, a função jurisdicional extrapolaria os limites impostos pelo ordenamento jurídico.
Seriam ainda três as principais consequências negativas geradas pelo ativismo judicial. Haveria risco para a legitimidade democrática, risco de politização da justiça e a capacidade institucional do Judiciário e seus limites.
Neste ponto, válido lembrar a diferença entre jurisdição constitucional e judicialização das relações sociais; e ativismo judicial. Judicializar a relação social significa colocar nas mãos do Poder Judiciário os mais diversos conflitos, quando, por ineficácia ou omissão, os poderes executivos e legislativos não o fazem. Já o ativismo é a discricionariedade adotada pelo membro do Judiciário – juiz, desembargador ou ministro – que decide se vai ou não praticar o ativismo judicial.
Nada impede – e faz bem para o país enquanto união e Estado – que se pratique a jurisdição constitucional. Entretanto o ativismo judicial pode ser prejudicial se desmedido for colocando em cheque a harmonia e separação de poderes que por sua vez encontram guarida constitucional.
Se o STF não for deferente para com as deliberações do parlamento, sendo ativista apenas em situações essenciais para garantir os direitos fundamentais, o ativismo será prejudicial. Desta feita, exercerá influência política como protagonista da vida política, usurpando a competência outorgada por meio do sufrágio universal aos poderes executivo e legislativo.
Quanto à segunda consequência negativa exposta acima, tem-se que o Direito tem ligação com a política, mas com ela jamais pode se confundir. Assim, para Luis Roberto Barroso (2009, p. 81):
Direito é política no sentido de que (i) sua criação é produto da vontade da maioria, que se manifesta na Constituição e nas leis; (ii) sua aplicação não é dissociada da realidade política, dos efeitos que produz no meio social e dos sentimentos e expectativas dos cidadãos; (iii) juízes não são seres sem memória e sem desejos, libertos do próprio inconsciente e de qualquer ideologia e, consequentemente, sua subjetividade há de interferir com os juízos de valor que formula
E completa:
juízes não podem ser populistas e, em certos casos, terão de atuar de modo contra majoritário. A conservação e a promoção dos direitos fundamentais, mesmo contra a vontade das maiorias políticas, é uma condição de funcionamento do constitucionalismo democrático. Logo, a intervenção do Judiciário, nesses casos, sanando uma omissão legislativa ou invalidando uma lei inconstitucional, dá-se a favor e não contra a democracia
Portanto, sob pena de ser política e não técnico-jurídica, a subjetividade que cada decisão judicial e juízo de valor formulado pelos juízes carrega devem ficar em segundo plano. Se a motivação e convencimento racional do juiz não forem embasados na prova, na processualística, nos métodos interpretativos admitidos em direito e muito bem sopesadas, serão populistas e atenderão meramente ao clamor popular, de forma que a democracia não seria enriquecida, mas sim fragilizada.
Quanto à dificuldade de se medir o grau de politização das decisões, Carlos Eduardo Dieder Reverbel (2009, p. 87):
A realidade brasileira – e não só ela – os países ibero-americanos que misturam Estado, governo e administração, que não separam jurisdição constitucional de jurisdição ordinária, e que não preservam instituições que facilitem o desenvolvimento de maioria governamental37, mesmo querendo, não conseguirão distinguir, com clareza, o que é jurídico do que é político. Quando se confunde o campo jurídico com o campo político, a consequência é fatal: o julgador acaba fazendo uma má política, por meios jurídicos. Os exemplos, em nossos tribunais, apresentam-se aos borbotões38. Talvez, o mais maléfico deles seja as liminares que concedem internações em hospitais que não possuem vagas. O juiz decide, “juridicamente” um problema de política pública: leitos escassos para pacientes em demasia
Por fim, a capacidade institucional do Judiciário e seus limites seriam ultrapassados. Todo poder exerce suas funções típicas e atípicas. No intuito de promover o devido equilíbrio e harmonia, respeitando o princípio da separação de poderes, os poderes usam de um mecanismo chamado de sistema de freios e contrapesos.
No atual arranjo adotado no Brasil, em tese, sempre que há divergência legal ou constitucional a apreciação será do Poder Judiciário. Em tese porque algumas matérias merecem apreciação diversa, valendo-se de estudos científicos e de especialidades dos outros dois poderes. É o que a doutrina chama de efeitos sistêmicos e capacidade institucional. Nas palavras de Luis Roberto Barroso (2009, p. 4):
Ao lado de intervenções necessárias e meritórias, tem havido uma profusão de decisões extravagantes ou emocionais em matéria de medicamentos e terapias, que põem em risco a própria continuidade das políticas públicas de saúde, desorganizando a atividade administrativa e comprometendo a alocação dos escassos recursos públicos. Em suma: o Judiciário quase sempre pode, mas nem sempre deve interferir. Ter uma avaliação criteriosa da própria capacidade institucional e optar por não exercer o poder, em autolimitação espontânea, antes eleva do que diminui.
As implicâncias do ativismo quando praticado por Cortes eleitorais também merecem respaldo. Milton F. Lamanuskas em sua dissertação de mestrado cita casos em que, apesar de respeitar o prazo para regular as eleições, o TSE vai além, alterando as regras do processo eleitoral e provocando instabilidade e insegurança jurídica às instituições e ao certame eleitoral. A conduta ativista ocorre porque o poder regulamentar do Tribunal não encontra limites, usurpando a competência do Poder Legislativo e incidindo em ilegalidade quando utiliza atos normativos secundários para regular o que apenas atos normativos primários poderiam.
Nas palavras de Milton F. Lamanuskas (2012, p. 32):
A observância da vinculação vertical das coligações passou a ser obrigatória para as eleições de 2002, a partir da decisão tomada pelo TSE em resposta à Consulta N. 715/02 supra analisada. A regulamentação do instituto constou do Artigo 4, §1º., Instrução N.55 do TSE, veiculada pela Resolução N. 20.993/02, com base na decisão resumida na Resolução N. 21.002/02 da mesma Corte. [...] O Tribunal havia introduzido, ainda que por meio da atividade hermenêutica, novo entendimento ou nova espécie a alterar as regras do jogo eleitoral, em momento que os partidos já haviam formatado, ainda que incipientemente, seu quadro de candidatos e ajustes políticos nos estados e no país. A mudança de entendimento – como será enfaticamente repetido neste trabalho – causa extrema confusão e insegurança jurídica às instituições democráticas. [...] agiu a Corte Eleitoral da mesma maneira em que atuou na limitação ao número de Vereadores durante o ano eleitoral de 2004, ignorando o dispositivo do Artigo 16 da CF/88, e mais: utilizou-se de ato normativo secundário para criar nova norma a regular o pleito eleitoral, sobrepondo-se às funções do legislador, ferindo a legalidade estrita, pela qual somente o ato normativo primário, de competência do Legislativo, deve produzir normas.
Ainda firmando posicionamento contrário, o Milton F. Lamanuskas tece críticas ao ativismo causado pelo clamor popular, pautado na omissão e falta de qualidade da atividade legislativa.
Assim, segundo o autor (2012, p. 33)
Técnica e juridicamente falando, nenhuma das razões apontadas justificam a invasão do Judiciário no campo dos outros Poderes. Todavia, certas decisões acabam por agradar a população em termos gerais, pos esta anseia cada vez mais por algum grau de efetividade das políticas públicas e de suas leis. Tanto assim é que, quando decide a Corte Maior que a Administração deve agir, por exemplo, provendo remédios à população, pouco temor causam ao cidadão comum tanto uma eventual quebra de orçamento, de um lado, quanto, de outro, a intromissão nos elementos discricionários das políticas públicas pelo Judiciário. O julgamento mais recente da fidelidade partidária é típico exemplo de atuação voltada a atender os desejos da população por moralização e ética na política, que retirou do Legislativo – ao menos momentaneamente – a competência para regulamentar a questão. Desta feita, novamente adentra-se no mérito da proporcionalidade e razoabilidade das normas do ordenamento, escapando à função estrita de julgamento quanto à legalidade ou constitucionalidade. Esta sim, atribuição precípua fornecida pelo texto constitucional à Corte Suprema.
Tendo como causa, a burocracia, lentidão, ineficiência, omissão e inoperância do Poder Legislativo, juntamente com a qualidade questionável das leis produzias – que muitas vezes se conflitam e dificultam a aplicação do direito positivo -, o ativismo judicial serviria para agradar a população. Apesar de efetivar as políticas públicas, o julgamento seria pautado pela proporcionalidade e razoabilidade em detrimento da legalidade e constitucionalidade que deveriam observar os tribunais em suas decisões.
Pode se concluir que a inevitável criatividade dos juízes – não só inevitável, mas necessária – aplica-se tanto à família da common law quanto à família da civil law. Salienta-se que, sob pena de por em cheque a ordem jurídica e os preceitos fundamentais insculpidos na carta política, o ativismo judicial deve ser sopesado.
Antes do ativismo ou da contenção judicial, deve prevalecer ainda a ideia de um Judiciário ativo e imparcial, desprendido na medida do possível do cenário político. É que muitas vezes o ativismo ou até mesmo a contenção podem transparecer que certas decisões judiciais apenas querem beneficiar o sistema, desenvolvendo situações jurídicas pré-moldadas.
Percebe-se que ao lado de intervenções necessárias e meritórias, algumas extrapolam certos limites, vindo dotadas muitas vezes de sobrecarga emocional como em casos que tratam de medicamentos e terapias. Assim, põem em risco a própria continuidade como princípio que deve ser seguido pela administração pública enquanto prestadora de serviços públicos, que podem comprometer o manejo dos já escassos recursos públicos.
Assim, seja fazendo uso do ativismo judicial ou na própria autocontenção, poder-se-ia estar diante de decisão de cunho meramente político.
Contudo, para os otimistas, os juízes e tribunais em exercício não extrapolam suas competências. Antes disto, traduzem a assumida e fundamental participação da magistratura, em conjunto com o legislador, de construir e dizer o direito aplicável à espécie (CAMBI,2013).
Às vezes a sociedade anseia por decisões que envolverão temas ainda não regulamentados em lei, e neste ponto a própria inércia do Poder Legislativo pode servir de combustível para o ativismo judicial brasileiro.
Porém, talvez nunca se veja o momento em que se tenha a vontade do legislador perfeitamente compreendida e abrangida pela lei. Tampouco o momento em que esta seja sinônima do conceito de direito, sendo certo que para o desenvolvimento do direito e da justiça social o ativismo judicial será relevante, senão fundamental na sociedade (CAMARGO, 2015).
Sendo certo que o ativismo apresenta seus pontos positivos e negativos, é preciso coibir um ativismo judicial exagerado que flagrantemente invade a esfera dos outros poderes; é necessário que o poder seja repartido. Mas não basta a Constituição dizer que o poder é repartido, é necessário que existem mecanismos de freios e contrapesos e que estes mecanismos sejam respeitados para que funcionem efetivamente.
Se a postura de juízes ou desembargadores se revestir em ativista, o próprio sistema recursal do nosso ordenamento ou ainda meios diversos de impugnação de decisões judiciais podem socorrer o jurisdicionado, sob o argumento da decisão carecer de fundamento e/ou embasamento legal. Entretanto, em sendo o Supremo Tribunal Federal o responsável pelo ativismo judicial, teriam as instituições brasileiras poder para coibir esta conduta, ou somente as cortes internacionais atingiriam tais decisões?
Neste diapasão, cabe a alguns conselhos e entidades de classe o cumprimento de sua missão constitucional de zelaram pela democracia e suas características. Abaixo serão abordados alguns conceitos e a competência destas entidades no que tange a democracia, sendo elas: Conselho Nacional do Ministério Público, Conselho Nacional de Justiça, e a Ordem dos Advogados do Brasil.
O sistema da separação de poderes, bem como o da separação das funções devem ser repensados em nosso ordenamento jurídico. Cumular no Poder Judiciário ordinário e no Supremo Tribunal Federal a possibilidade de declarar a inconstitucionalidade das leis favorece o ativismo judicial. Separar e delimitar as funções políticas e as funções jurídicas ajudaria a estabelecer um cenário mais racional de desenvolvimento do Estado de Democracia e de Direito.
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[1] Professora do curso de Direito da Faculdade Serra do Carmo.
Bacharelando em Direito da Faculdade Serra do Carmo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FOLHA, Guilherme Henrique Ferreira. Ativismo judicial sob o enfoque da excessiva intervenção do Judiciário nos demais Poderes Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 nov 2017, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51047/ativismo-judicial-sob-o-enfoque-da-excessiva-intervencao-do-judiciario-nos-demais-poderes. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: WALKER GONÇALVES
Por: Benigno Núñez Novo
Por: Mirela Reis Caldas
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
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