RESUMO: As normas são produto da atividade exegética; logo, é possível que um mesmo texto seja interpretado de modo diferente em contextos históricos distintos, em se tratando de normas constitucionais, o fenômeno chama-se mutação constitucional.
PALAVRAS CHAVE: Mutação Constitucional. Interpretação. Texto. Norma.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1 – CONCEITO. 2 – LIMITES À MUTAÇÃO. 3 – A INTERPRETAÇÃO E A MUTAÇÃO. 4 - MEIOS DE MUDANÇA DA CONSTITUIÇÃO. 4.1 Interpretação. 4.2 Costume. 4.3 Mudança da Percepção do Direito. CONCLUSÕES. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
INTRODUÇÃO
A Constituição possui normas jurídicas cuja plasticidade permite que a cada geração haja uma releitura destas. Não que isso ocorra com data marcada, pois no dia a dia é possível dizer que a Carta modifica-se de modo lento e gradual e por vezes imperceptível, até que chegada a hora se revele em outra face.
C. Foulanges possui texto clássico (A Cidade Antiga) que trabalha com a diferença entre a liberdade dos antigos e a liberdade dos modernos[1]. Percebamos que há duas concepções de liberdade, mas há uma só palavra. Eis o poder, mudar de sentido sem mudar de forma. Cada palavra tem um dom genético de mimetismo, adaptando-se ao contexto em que é interpretada. Por contexto, entendemo-lo em sua acepção lata, abarcando o histórico, o social, o político, até mesmo o utente da linguagem.
Nos quatro primeiros artigos da Carta há inúmeros termos que possuem tal poder mimético: soberania popular, democracia, dignidade da pessoa humana, desenvolvimento nacional, soberania nacional … Não só esses, mas inúmeros outros termos deste escol animam todo o texto constitucional. Daí fica fácil perceber que pode a Constituição mudar de sentido, sem que as palavras sejam alteradas. Eis o fenômeno que passaremos a estudar e que se nomina de Mutação Constitucional.
Este texto tem enorme influência das lições de Luís Roberto Barroso, por meio da leitura de sua obra. Aproveita-se a oportunidade de consagrar a estima e respeito deste incipiente estudioso que vê nas obras deste autor fonte constante de pesquisa e leitura.
1 – CONCEITO
Por mutação constitucional entende-se a mudança informal da Carta, opondo-se à sua mudança formal, que estudamos como Poder Constituinte Derivado Reformador, de que surgem as emendas e revisões.
Se pela reforma formal atrelamos o conceito de Poder Derivado (apesar de todas as críticas a este termo), à reforma informal anexamos a noção de Poder Constituinte Difuso (Georges Burdeau). Tal conceito advém da ideia de que o Poder Constituinte, de que é titular o povo, continua presente no cotidiano das práticas institucionais e sociais, ainda que despercebido; há tão somente um estado de latência, que não significa anestesia ou sono. Eis o fundamento de validade da mutação. Ressalte-se que o fato de muitas vezes a mutação advir de instâncias do poder não macula tal fundamento, pois em virtude do art. 1º, p.u., da CF, adotamos um modelo de democracia representativa, que muitos classificam de semi-direta, por termos as figuras do plebiscito, referendo e iniciativa popular.
“A conclusão a que se chega é a de que além do poder constituinte originário e do poder de reforma constitucional existe uma terceira modalidade de poder constituinte: o que se exerce em caráter permanente, por mecanismos informais, não expressamente previstos na Constituição, mas indubitavelmente por ela admitidos, como são a interpretação de suas normas e o desenvolvimento de costumes constitucionais. Essa terceira via já foi denominada por célebre publicista francês “poder constituinte difuso”, cuja titularidade remanesce no povo, mas que acaba sendo exercido por via representativa pelos órgãos do poder constituído, em sintonia com as demandas e sentimentos sociais, assim como em casos de necessidade de afirmação de certos direitos fundamentais.”[2]
Georges Burdeau traz a seguinte lição:
“Há um exercício quotidiano do poder constituinte que, embora não esteja previsto pelos mecanismos constitucionais ou pelos sismógrafos das revoluções, nem por isso é menos real. (…) Parece-me, de todo modo, que a ciência política deva mencionar a existência desse poder constituinte difuso, que não é consagrado em nenhum procedimento, mas sem o qual, no entanto, a constituição oficial e visível não teria outro sabor que o dos registro de arquivo.”[3]
George Jellinek já havia notado tal distinção entre reforma e mutação, tanto que possui obra intitulada Reforma e Mutação da Constituição (1906). Note-se, a coisa é mais antiga do que a noção de Neoconstitucionalismo, de que adiante nos ocuparemos em tomo próprio.
2 – LIMITES À MUTAÇÃO
Defendemos, com base em boa doutrina (Konrad Hesse), que Realidade e Normatividade se intermedeiam de tal modo que há uma recíproca influência de uma sobre a outra. Daí a atenção para o fato de os textos não estarem descolados da realidade, prometendo o impossível; daí a necessidade de acreditar na força que possui a norma de influenciar a realidade, a mudança social, operando no microcosmo da mudança dos comportamentos. A mutação constitucional passeia nessa tensão entre realidade e normatividade.
“ … o Direito influencia a realidade e sofre influência desta. A norma tem a pretensão de conformar os fatos ao seu mandamento, mas não é imune às resistências que eles podem oferecer, nem aos fatores reais de poder. No caso das mutações constitucionais, é o conteúdo da norma que sofre o efeito da passagem do tempo e das alterações da realidade de fato.”[4]
A mutação opera-se seja pela via dos órgãos oficiais, seja pelas práticas políticas e sociais que passam a ser aceitas, produzindo-se consenso sobre elas, ainda que implícito. Eis as mudanças de paradigmas.
Contudo, não é ilimitado o poder constituinte difuso. Isso, pois sua legitimidade e sua operabilidade firmam-se sobre dois pilares do constitucionalismo contemporâneo: a rigidez constitucional e a plasticidade de suas normas.
A abertura semântica de muitos dos conceitos desenhados na Constituição já por nós foi tratada no início desse artigo. Tratam-se daqueles termos de estrutura aberta ao pensamento em diferentes tempos e espaços, tal como a liberdade. Pela rigidez constitucional, há limites a essa abertura semântica, fincada na estabilidade na ordem constitucional, pautada pela segurança jurídica. A legitimidade deste poder difuso reside em respeitar a identidade constitucional e preservar a democracia (mola propulsora de nossa Carta).
Além dos fundamentos de legitimidade, há de se analisar limites ao poder constituinte difuso, pautados em dois outros pilares: a) as possibilidades semânticas do relato da norma; e b) a preservação dos princípios fundamentais.
Toda estrutura linguística possui seu encadeamento lógico, de tal sorte que negar algo sempre será a negativa de alguma coisa, jamais a permissão. Aqui residem as normas proibitivas. Estas, por impossibilidade lógico-semântica, não podem ser interpretadas em inverso do inicialmente pretendido, transformando o negativo em positivo. É legítimo limitar o alcance, mas muitas vezes o sentido não pode ser modificável, por questões de lógica. Exemplo: dizer que aos militares é vedado o sindicalismo e a greve (art. 142, §3º, IV), não comporta dizer que podem eles, se quiserem, criar sindicatos militares e fazer greves parciais; fere a lógica, dado que o sentido da norma é a vedação. Contudo, entendemos que nada impede que normas preceptivas, em alguns casos possam ser interpretadas como normas permissivas, dado que o sentido é o mesmo (um fazer), mudando-se somente a clave da obrigatoriedade para a faculdade, abrindo-se uma exceção à regra. Mutações não podem ferir as possibilidades semânticas do texto, caso se queira inverter os sinais normativos, é mister convocar o Poder Reformador.
Os princípios fundamentais são a pedra fundamental do Direito, pois estes têm a eficácia irradiante aos demais setores da Constituição e do andar normativo infraconstitucional. Estes dão a identidade da Carta, logo, devem ser preservados, sendo os limites que se baseiam na legitimidade do poder constituinte difuso. A identidade da Constituição há de ser preservada, mormente nos seus pilares axiológicos, os princípios fundamentais, os direitos fundamentais e as cláusulas pétreas. Se se quiser mudar a essência da Constituição, há se tirar o Constituinte Originário de sua latência. Isso, pode o povo fazer quando lhe aprouver e juntar forças suficientes para o proceder.
O Direito é meio de mudança social; contudo, não é por ele que se operam as revoluções, por isso os limites às reformas formais e informais. Não se pode interpretar que as cláusulas pétreas deixaram de ser pétreas. O art. 60, §4º[5], pode ser interpretado no sentido de se permitir a reforma das cláusulas pétreas, a fim de acrescer direitos individuais, por exemplo, como já foi feito com a Emenda Constitucional nº 45. Jamais a palavra abolir poderá ser interpretada no sentido de ser permitida a supressão temporária de direitos individuais, por exemplo, fora do contexto do Estado de Sítio ou do Estado de Defesa (vide artigos 136 e 137). Isso é inviável. Há limites para este poder informal, assim como os há para o formal. Todos fincados nos seus parâmetros de legitimidade, quais sejam: a identidade constitucional e a preservação da democracia.
3 – A INTERPRETAÇÃO E A MUTAÇÃO
Tradicionalmente define-se que interpretar é determinar ou extrair o sentido e alcance de uma norma. De modo mais arrojado, alguns autores entendem que interpretar é construir a norma, daí porque se diferencia enunciado normativo de norma. A fórmula seria mais ou menos esta: enunciado (texto) + interpretação = norma.
Kelsen de há muito já o vira. Para este autor o texto da norma era a moldura possível que comportaria diversas pinturas em seu interior. Barroso nos traduz a ideia dizendo que o enunciado normativo nos fornece parâmetros, mas o sentido, as valorações as escolhas dentre os elementos possíveis de interpretação, quem o faz é o intérprete.
Apesar de haver instâncias oficiais de interpretação constitucional, havendo um órgão guardião, somos do entendimento de que a Constituição pode ser e é interpretada por toda a sociedade. É um texto aberto à participação democrática de diversas comunidades, possibilitando, pois, a sua modificação de modo paulatino, não somente pelas instituições oficiais de poder. A antropologia política defende ser possível a política existir sem o Estado, nós aqui pegando este gancho, pensamos que a interpretação da Carta independe do Estado ou mesmo de juristas. Eis umas das faces da democracia pluralista brasileira.
Tendo em conta isso, vemos que a mutação constitucional atua mediante o interpretar de suas normas. Interpretar é de fato construir as possibilidades normativas. A CF/88, após promulgada passou a sofrer correntes de interpretação das mais variadas, em que a doutrina qualifica como interpretação construtiva e interpretação evolutiva.
Vejamos o que diz o eminente Ministro L. R. Barroso sobre o tema:
“A interpretação construtiva consiste na ampliação do sentido ou extensão do alcance da Constituição … Já a interpretação evolutiva se traduz na aplicação da Constituição a situações que não foram contempladas quando de sua elaboração e promulgação, por não existirem nem terem sido antecipada à época. … A diferença essencial entre uma e outra é está em que na interpretação construtiva a norma alcançará situação que poderia ter sido prevista, mas não foi; ao passo que na interpretação evolutiva, a situação em exame não poderia ter sido prevista, mas, se pudesse, deveria ter recebido o mesmo tratamento.
“A mutação constitucional por via da interpretação, por sua vez, consiste na mudança de sentido da norma, em contraste com entendimento preexistente. Como só existe norma interpretada, a mutação constitucional ocorrerá quando se estiver diante da alteração de uma interpretação previamente dada. No caso da interpretação judicial, haverá mutação constitucional, quando, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal vier a atribuir a determinada norma constitucional sentido diverso do que fixara anteriormente, seja pela mudança da realidade social ou por uma nova percepção do Direito.”[6](destaques nossos)
O renomado autor entende que a mutação pode operar mudança de sentido da norma.
Data máxima vênia, entendemos que a mutação deve ser tratada de modo diferente em se tratando de regras ou princípios. Vejamos.
Cita-se a mutação pela qual se operou o foro por prerrogativa de função, art. 102, I, b, da CF/88, mais a súmula 394[7] do STF, esta superada em face da mudança de interpretação constitucional. Trata-se aqui de uma REGRA que estabelece que membros de poder, tais quais os parlamentares, serão julgado pelo STF, nos crimes comuns, por exemplo. Dantes imaginava-se que uma vez banhado por tal prerrogativa, sempre se estaria, de modo que cessado o mandato, não se cessava a tal garantia. Eis o alcance da súmula 394 do STF. Repare que falamos alcance e não sentido, uma vez que este (sentido) é claro: dotar alguns membros de poder de certas prerrogativas ratione muneris. O que o STF fez foi estabelecer o alcance da norma: “somente os titulares de cargo de poder ou também os ex-membros?” eis foi a questão. Optou-se por restringir o alcance da norma, de modo que o dito “foro privilegiado” alcance somente os titulares de cargos e não mais os ex-membros; mantendo-se o sentido, pois, como dissemos acima, há limites lógico-semânticos para se operar a mutação, de modo que um sentido positivo, estabelecido numa regra, não poderá inverter de polo (virar norma negativa). Assim, o foro por prerrogativa de função, hoje, após a mutação, alcança somente os parlamentares efetivos e não os ex-parlamentares, restringindo-se, pois, o alcance da norma. Não pode o STF entender que o dito foro ratione muneris é vedado pela Constituição, dado que ela é clara nesse sentido. A única possibilidade diante do atual texto é limitar o alcance da norma.
Também convém lembrar que no plano da interpretação administrativa o CNJ editou Resolução (nº.7), vedando o nepotismo no judiciário e na administração pública em geral, com base no PRINCÍPIO da moralidade (art. 37, da CF). A resolução foi declarada constitucional pelo STF, ADC-MC 12, e gerou a súmula vinculante de nº13. A exegese é a de que nomear para cargos em comissão parentes até o 3º grau civil é inconstitucional, pois viola a moralidade administrativa, além de violar a igualdade e impessoalidade. Tal vedação abarca a troca de favores, o chamado nepotismo cruzado, em que um titular de gabinete nomeia parente de outro, a fim de que este faça o mesmo. Isso fortalece nossa incipiente democracia, estabelecendo diferenças entre o público e o privado, entre o local de trabalho e nossas casas. O que dantes era tolerado, passou a ser vedado, mudando-se a direção, o sentido com que antes se interpretava a norma do art. 37 da CF. Mister frisar que esta é princípio e não regra. Os princípios possuem em sua estrutura maior plasticidade, possuindo conteúdos abertos. Eles indicam fins, sem, contudo, indicarem os meios; opostamente às regras. Por isso é possível falar que nos princípios há mudança de sentido operada pela mutação constitucional. Foi o caso em tela. Veda-se hoje o que dantes era tolerado ou mesmo permitido. Talvez fosse comum ouvir o seguinte: “mas meu sobrinho é qualificado estudou no estrangeiro!” Hoje, independentemente da qualificação do sobrinho, o fato é que este não pode trabalhar no gabinete de seu titio, ocupando cargos comissionados ou de confiança, sem antes ingressar na Administração Pública por meio de concurso para cargos efetivos.
Percebe-se que no plano da mutação é mister fazer duas distinções: a que ocorre sobre as regras e a que recais sobre os princípios. Sobre as regras a mutação é mais restrita, dado que estas, por sua natureza estrutural, estabelecem os meios que são norteados pelos princípios informadores de seu escopo. Em relação aos princípios, como não há caminhos predeterminados na norma, havendo somente a indicação do fim, é possível chegar-se ao mesmo resultado por caminhos diferentes. Em linguagem jocosa dizemos: ao Japão é possível chegar, partindo-se do Brasil, seja cruzando o Atlântico, seja cruzando o Pacífico.
Desta feita, as noções sobre interpretação evolutiva e construtiva, entendemos ser aplicadas às regras, pois elas atingem o alcance da norma, não sua direção, seu sentido. Aos princípios, por sua natureza propositadamente aberta, não há se falar em tais categorias, tal como se fala para com as regras, pois a cada interpretação destes pode-se dizer que se os constrói e se os evolui, sendo esta a sua natureza. Isso, pois há neles um núcleo intangível, que a todos nós conviventes do mesmo ethos social, é perceptível. Nós sabemos que torturar uma criança para ensiná-la é repugnante e fere o princípio da dignidade da pessoa humana e o da proporcionalidade. Contudo, se se falar que torturar um preso de guerra para falar do paradeiro do inimigo, em tempo de guerra, fere estes princípios, é possível encontrar vozes opostas. Eis um dissenso moral razoável, pois pessoas bem intencionadas e cultas podem produzir diferentes sentidos à norma da dignidade e da proporcionalidade para casos como esse. Há nos princípios um núcleo intangível e uma zona de penumbra em constante instabilidade, que se nos amostra a cada caso extremo como o imaginado linhas atrás (preso de guerra).
Por estas razões defendemos que a mutação opera-se de modo diferente para as regras e princípios. Naquelas não se pode mudar o sentido lógico-semântico da norma (tornar o proibido em permitido ou preceptivo e vice-versa). O que se muda é o alcance dantes dado a certa norma, como no caso da prerrogativa ratione muneris. Nada impede que uma reforma formal mude o seu sentido, com respaldo no organismo constitucional, observados os limites ao poder de reforma. Quanto aos princípios, por não possuírem caminhos pré-determinados, é mister documentar que os sentidos podem mudar pela mutação constitucional, dado que sua estrutura normativa permite isso. A vedação ao nepotismo (súmula vinculante nº 13) é exemplo clássico, pois aquilo que antes era tolerado, nomeação de parentes, passou a ser proibido, com base na leitura de um mesmo princípio, o da moralidade. Em suma: a mutação tem como objeto para as regras o alcance, para os princípios o sentido e alcance.
4 – MEIOS DE MUDANÇA DA CONSTITUIÇÃO
4.1 Interpretação
Vimos que a ferramenta da mutação é a interpretação. Esta pode operar-se via administrativa, v.g., a resolução nº.7 do CNJ, pode operar-se via jurisdicional, sobretudo pelo STF, v.g, a superação da súmula 394 da casa, ou ainda, pode operar-se via legislativa.
Nesta há comentários a fazer.
Ao legislador conferiu o constituinte o poder de desenvolver e concretizar a Carta, regulamentando suas normas. Uma norma pode abarcar mais de uma leitura válida possível e o legislador pode escolher dentre uma delas. Tal escolha é constitucional, embasada pelo art. 2º da CF.
É possível que o Legislativo opte por regulamentar determinada norma constitucional em sentido ou com alcance diverso da que foi dada por uma interpretação judicial, ainda que do STF. Isso, pois cabe o legislador realizar as escolhas políticas. Cabe ao judiciário um exercício de autocontenção e respeito à atividade do legislador.
O tema é controverso, tanto que na ADI 2797, o eminente Ministro Sepúlveda Pertence já lavrou ideia oposta, dizendo que a lei ordinária não pode opor-se o que decidido pelo STF ao interpretar a CF. A questão de fundo era a prerrogativa de foro por função. Declarou-se a inconstitucionalidade da Lei 10.628/02, no ponto em que se restabelecia a prerrogativa de função nos termos da súmula 394 do STF, que fora superada.
Barroso critica a posição do STF, pois ao seu ver houve certo desrespeito às atribuições constitucionais do Legislador. Não houve a chamada autocontenção do judiciário. Eis os problemas que enfrenta o juiz no seu mister constitucional, eis a dificuldade contramajoritária.[8]
Há argumentos fortes para os dois lados (a favor e contrário), para se defender o foro por prerrogativa de função, tanto que já fora tema sumulado. O fato de o legislador ter optado por uma opção possível, ainda que polêmica, merece ser respeitada. Isso, pois não se trata de inconstitucionalidade flagrante. Em casos como este há o judiciário se contentar com o seu papel institucional, contendo-se. Não queremos uma república de juízes. A república é antes do povo e de acordo com a Constituição, o povo exerce o Poder por meio dos representantes que são os membros do Legislativo e do Executivo, eleitos diretamente.
4.2 Costumes
Outro meio pelo qual se opera a mutação é a dos costumes. Há três modalidades de costume. O praeter legem (preenche lacunas), o contra legem (é oposto ao sentido lógico-semântico do texto) e o secundum legem (de acordo o sentido lógico-semântico do texto).
Entendemos que os costumes contra legem não podem ser tolerados, pois ferem a força normativa da constituição. Isso, pois a mutação, sobretudo em relação às regras, possui seus limites, residentes nas possibilidades lógico-semânticas do texto. Ademais, os outros são comuns, dado que textos não podem prever tudo.
Alguns exemplos. Pode o Chefe do executivo negar aplicação de lei que considere inconstitucional (isso não está escrito em lugar nenhum). Outro caso é o voto de liderança no Parlamento, sem submissão da matéria ao plenário, tal prática tem por escopo acelerar o processo legislativo, podendo ser enquadrado como praeter legem.
4.3 Mudança da Percepção do Direito
A realidade e o direito estão sempre em tensão. Logo, mudanças fáticas podem fazer operar mudanças informais do texto constitucional.
Um grupo determinado pode precisar hoje de ações afirmativas, mas no amanhã, não mais. Tal mudança pode mudar o sentido de se interpretar o princípio da igualdade para esses grupos.
“ … o Supremo Tribunal Federal reconhece a influência da realidade na determinação da compatibilidade de uma norma infraconstitucional com a Constituição. E, a contrario sensu, admitiu que a mudança da situação de fato pode conduzir à inconstitucionalidade de norma anteriormente válida. Citam-se a seguir dois precedentes. A corte entendeu que a regra legal que assegura aos defensores públicos a contagem em dobro dos prazo processuais deve ser considerada constitucional até que as Defensorias Públicas dos Estados venham a alcanças o nível de organização do Ministério Público. Em outra hipótese, o STF considerou que o art. 68 do Código de Processo Penal ainda era constitucional, admitindo que o Ministério Público advogasse em favor da parte necessitada para pleitear reparação civil por danos decorrentes de ato criminoso, até que a Defensoria Pública viesse a ser regularmente instalada em cada Estado.”[9]
CONCLUSÃO
Os limites do nosso mundo são os de nossa linguagem (Wittgenstein). Com efeito, os limites do que é o Direito, enquanto ciência, são dados pela interpretação, pelo sentido e alcance das normas num dado tempo e espaço. Um mesmo texto a depender do país em que interpretado pode ter interpretações diferentes.
Neste artigo, investigou-se a mudança de interpretação de normas constitucionais, o que implica a permanência do espaço, mas a mudança no tempo. Viu-se que mesmo sem se alterar a estrutura formal dos dispositivos da Constituição, o resultado normativo da atividade exegética pode ser diferente no transcorrer do tempo.
Ademais, pode-se defender que a mutação opera com intensidade diferente em se tratando de regras e de princípios, ambos espécimes do gênero norma jurídica. Para aquelas, devido à alta densidade normativa, dado que o sentido da norma (vedar, permitir, proibir) já está delimitado pelo Constituinte, há menos espaço para a mutação. Uma regra proibitiva não pode ser interpretada como permissiva. Em se tratando de princípios, a situação muda. Como estas normas possuem menor densidade normativa, embora maior carga axiológica, há mais espaços para a exegese. A vedação ao nepotismo é grande exemplo, pois num passado não tão distante era prática tolerada, hoje vedada. O princípio aplicado é o mesmo, o da moralidade, embora o resultado seja diferente, quando da concretização desta norma.
Fato é que os dispositivos constitucionais, meros textos, ganham vida com a intensa atividade interpretativa, não só dos órgãos formais, como é o Supremo Tribunal Federal, mas também pela sociedade, que acaba por influenciar os órgãos representativos. Assim, é correto entender que a Constituição continua aberta à exploração dos diversos sentidos e alcances que seus textos podem alcançar. Destarte, esse poder constituinte difuso é grande contribuidor para a manutenção da atualização e vigência da Constituição, dado que seu potencial normativo ganha ferramentas, para, através da atividade exegética, explorar toda a potencialidade do texto constitucional.
Os costumes e a mudança da percepção do direito também são elementos de auxílio da mutação constitucional. Entretanto, acabam sendo também itens auxiliares à interpretação, dado que estes acabam desembocando na mutação por meio da interpretação dos dispositivos constitucionais. A interpretação é, portanto, a chave para a ocorrência deste fenômeno – a mutação –, fato que expressa a verdade ínsita ao pensamento de Wittgenstein, pois a linguagem é o limite de nossos mundos. Assim, à medida que construímos significados aos signos (texto) da constituição por meio da linguagem, atualizamos o seu texto, ainda que influenciados por mudanças de costumes ou mudança do senso de justo.
Observados os limites da mutação, esta é um grande instrumento de concretização e vigência do potencial normativo da Constituição.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BARROSO, Luís Roberto Barroso. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora – 7.ed.rev. – São Paulo: Saraiva, 2009.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 26. ed. Malheiros. 2010.
CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional – Teoria do Estado e da Constituição e Direito Constitucional Positivo. Ed. Del Rey. 14ª edição. 2008.
FUSTEL DE COULANGES, NUMA DENIS, 1830-1889. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e de Roma / Fustel de Coulanges; tradução Roberto Leal Ferreira. – São Paulo: Martin Claret, 2009. – (Coleção a obra-prima de cada autor ; 2)
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Sergio Antonio Fabris Editor. 1991.
KELSEN, HANS, 1881-1973. Teoria pura do direito / Hans Kelsen; [tradução João Baptista Machado]. – 6ª ed. – São Paulo : Martins Fontes, 1998. – (Ensino Superior)
REALE, Miguel. Noções Preliminares de Direito / Miguel Reale. – 27. ed. ajustada ao novo código civil – São Paulo: Saraiva, 2002.
STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito / Lenio Luiz Streck. 8. ed. rev. Atual. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora. 2009.
WITTGENSTEIN, Ludiwig. Investigações filosóficas / Ludwig Wittgenstein; tradução de José Carlos Bruni. – 2. ed. – São Paulo: Abril Cultural, 1979.
____________. Tratacutus Logico-Philosophicus / Lugwig Wittgeinstein; Tradução, apresentação e estudo introdutório de Luiz Henrique Lopes dos Santos; [Introdução de Bertrand Russell]. – 3. ed. 2. Reimpr. – São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2010.
[1] A liberdade para os povos antigos – clássicos – consistia em participar da atividade política da polis. A liberdade para o homem moderno e pós-moderno consiste em não ter sua esfera de atividades turbada pela ação estatal.
[2] BARROSO, Luís Roberto Barroso. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo – 2. ed. – São Paulo: Saraiva. 2010.p.128.
[3] Burdeau, Georges, apud, BARROSO, Luís Roberto Barroso. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo – 2. ed. – São Paulo: Saraiva. 2010.p.128., nota de rodapé nº 15.
[4] BARROSO, Luís Roberto Barroso. Op. Cit.,p.127.
[5] § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I - a forma federativa de Estado;
II - o voto direto, secreto, universal e periódico;
[6] BARROSO, Luís Roberto Barroso. Op. Cit.,p.133.
[7] Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício.
[8] Pode ser assim sintetizada tal dificuldade: Como explicar que uma minoria anule a decisão de uma maioria? Os fundamentos da resposta positiva residem na defesa da democracia, na preservação dos direitos fundamentais das minorias e preservação da identidade constitucional.
[9] BARROSO, Luís Roberto Barroso. Op. Cit.,p.139
Advogado da União. Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo; Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus; Especialista em Direito Constitucional pela Damásio Educacional; Especializando-se em Direito Processual pela PUC-Minas (EAD).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARVALHO, Rafael Tawaraya Gualberto de. Mutação constitucional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 dez 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51187/mutacao-constitucional. Acesso em: 23 dez 2024.
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