RESUMO: O conceito de norma jurídica e a definição de suas espécies é tema constantemente debatido por juristas. No Brasil, a doutrina recepcionou os modelos de separação qualitativa de Dworkin e Alexy, mas não se desvencilhou da definição dos princípios de acordo com o grau de generalidade e fundamentalidade. Propõe-se, no presente artigo, uma análise crítica das teorias defendidas por três grandes doutrinadores brasileiros.
PALAVRAS-CHAVES: Normas jurídicas. Princípios e regras. Distinção de grau. Distinção lógica. Doutrina brasileira.
ABSTRACT: The concept of juridical norms and the definition of its species is constantly debated by jurists. In Brazil doctrine received logical separation of Alexy and Dworkin, but are not disengaged from the definition of principles according to the degree of generality and fundamentality. This article proposes a critical analysis of the theories espoused by three major Brazilian scholars.
KEYWORDS: Juridical norms. Principles and rules. Distinction of degree. Logical distinction. Brazilian doctrine.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. A distinção segundo Luís Roberto Barroso. 3. Teoria dos Princípios de Humberto Ávila: distinção segundo o grau de abstração. 4. Virgílio Afonso da Silva e o Sincretismo Metodológico. 5. Considerações finais.
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho se propõe a discutir a visão brasileira da distinção entre regras e princípios. Para tanto, ao longo dele, serão apresentadas três das mais relevantes abordagens feitas por doutrinadores brasileiros acerca dessa separação.
A crítica feita por Virgílio Afonso da Silva ao que ele denomina sincretismo metodológico impulsionou este estudo. Diz o renomado professor da Universidade de São Paulo que, no Brasil, é comum a adoção de teorias incompatíveis como se complementares fossem.
Não se pretende aqui construir nova teoria, tampouco apresentar solução definitiva ao problema proposto[1], mas suscitar discussão sobre tema que, conquanto relevante, é negligenciado e pouco aprofundado em muitos de nossos cursos jurídicos. Salientamos que é inaceitável que o estudo da teoria dos princípios em nossas universidades se reduza à repetição de frases como “princípios são mandamentos de otimização, ao passo que regras são aplicadas na base do tudo ou nada”, como se bastante fosse. Não que a afirmação seja incorreta. Não o é. Mas não se pode tratar como óbvio e desmerecedor de reflexão tema tão polêmico e rico em discussões. A distinção entre regas e princípios não pode se resumir a um modismo, à reprodução pouco refletida de frases soltas como se, de tão óbvias, não exigissem reflexão e aprofundamento.
O presente estudo foi organizado da seguinte forma: a) a distinção entre princípios e regras segundo o Curso de Direito Constitucional Contemporâneo de Luís Roberto Barroso; b) Teoria dos Princípios de Humberto Ávila; c) Virgílio Afonso da Silva e o sincretismo metodológico; d) considerações finais.
Num primeiro momento, será apresentada a visão adotada por Luís Roberto Barroso em seu Curso de Direito Constitucional. A escolha pelo manual de Barroso se justifica por ser obra bastante difundida em nossos dias, que servirá de base para a compreensão do “modo brasileiro” de ver os princípios.
Em seguida, a exposição da Teoria de Humberto Ávila nos permite um olhar a partir de tese que em muitos pontos se opõe à teoria de Robert Alexy. Ávila desenvolveu uma curiosa divisão tripartite, fundada em critérios distintos daqueles adotados pela separação lógica ou qualitativa de Dworkin e de Alexy.
Por fim, as objeções feitas por Virgílio Afonso da Silva ao que ele denomina sincretismo metodológico abrem espaço para a compreensão da diferença entre o conceito de princípios tradicionalmente adotado no Brasil e o de Robert Alexy. A partir da crítica do professor titular de Direito Constitucional da USP, será possível apresentar algumas outras considerações a respeito da doutrina brasileira diante da teoria dos princípios.
2. A DISTINÇÃO SEGUNDO LUÍS ROBERTO BARROSO
Ensina Luís Roberto Barroso que, hoje, após longo processo evolutivo, consolidou-se, na Teoria do Direito, a ideia de que as normas jurídicas são gênero, do qual são espécies as regras e os princípios. Os princípios teriam vivido vertiginoso processo de ascensão, que os levou de fonte subsidiária do Direito, à qual se recorria em caso de lacuna legal, ao centro do sistema jurídico. Os princípios seriam, pois, a porta pela qual os valores passam do plano ético para o mundo jurídico (BARROSO, 2009, p. 203-204).
Em análise da “ascensão dos princípios” no Direito brasileiro, Barroso leciona que os princípios eram fonte secundária e subsidiária do Direito. É o que se extrai da redação do art. 4º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro[2], que sequer considerava os princípios como normas jurídicas, mas como fonte integradora do Direito. Hoje, os princípios são centro do sistema jurídico, de onde se irradiam por todo o ordenamento, influenciando a interpretação e aplicação das normas jurídicas em geral e permitindo a leitura moral do Direito.
Conforme veremos adiante, mais adequado seria mencionar a grande diferença existente entre os princípios a que se refere o artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e os princípios que são aplicados mediante ponderação. Estes não constituem forma evoluída daqueles. São espécies que, apesar de homônimas, fundam-se em bases teóricas distintas.
Prosseguindo em sua narração do ascender dos princípios à categoria de normas, destaca que alguns autores já davam maior relevância ao papel dos princípios, mas foi somente com os escritos de Ronald Dworkin, que se difundiram no Brasil a partir do final da década de 1980, que o tema teve um desenvolvimento mais apurado. Posteriormente, Robert Alexy ordenou a teoria dos princípios em categorias mais próximas da perspectiva romano-germânica.
Barroso, cita como exemplo de regras constitucionais, dentre outros, a aposentadoria compulsória do servidor público aos 70 anos (art. 40, §1º, II). Como exemplo de princípio constitucional explícito, o da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), e implícito o da razoabilidade.
Diz que são critérios para distinção entre princípios e regras: a) o conteúdo; b) a estrutura normativa; c) o modo de aplicação. O primeiro critério tem natureza material. Os demais, formal. Nesse ponto Barroso, ressalta que tais critérios não são complementares nem tampouco excludentes.
De acordo com o conteúdo, princípios seriam decisões políticas fundamentais (como a República e a Federação), valores a serem observados em razão de sua dimensão ética (como a dignidade da pessoa humana e a razoabilidade) ou fins públicos a serem realizados (a exemplo do desenvolvimento nacional e erradicação da pobreza). Princípios podem se referir a direitos individuais ou interesses coletivos.
Barroso adverte que é frequente a inclusão das normas definidoras dos direitos fundamentais na categoria dos princípios. Às vezes, no entanto, o termo é utilizado, de forma atécnica, para realçar a importância de determinadas prescrições que não são, a rigor, princípios. É o que ocorre quando se faz referência ao “princípio” da licitação. Na verdade é regra decorrente do princípio da moralidade, da impessoalidade e da isonomia.
Segundo o constitucionalista, as regras jurídicas, por sua vez, são comandos objetivos, prescrições que expressam diretamente um preceito, uma proibição ou uma permissão. Elas não remetem valores ou fins públicos porque são a concretização destes, de acordo com a vontade do constituinte ou do legislador, que não transferiram ao intérprete – como no caso dos princípios – a avaliação das condutas aptas a realizá-los.
Quanto à estrutura normativa, Barroso faz os seguintes comentários. Princípios normalmente apontam para estados ideais a serem buscados, sem que o relato da norma descreva de maneira objetiva a conduta a ser seguida. É característica dos princípios a indeterminação de sentido a partir de certo ponto, assim como a existência de diferentes meios para a sua realização. É que princípio é norma predominantemente finalística. O princípio da dignidade humana, por exemplo, pode ser fomentado de diversas formas[3].
Ainda quanto à estrutura normativa, explica Barroso que as regras são normas descritivas de comportamentos, havendo maior ou menor grau de ingerência do intérprete na atribuição de sentidos e na identificação de hipóteses de aplicação. Em suma, são normas predominantemente descritivas.
Por fim, Luís Roberto Barroso nos apresenta as diferenças entre regras e princípios quanto ao modo de aplicação. Os princípios seriam normas que se aplicam na direção de um valor. Numa ordem jurídica pluralista, a Constituição abriga princípios que apontam em direções diversas. Como todos esses princípios têm o mesmo valor hierárquico, a prevalência de um sobre o outro não pode ser determinada em abstrato, mas somente à luz dos elementos do caso concreto. Caberá ao intérprete proceder à ponderação dos princípios e fatos relevantes. São mandados de otimização. Os direitos neles fundados são direitos prima facie – poderão ser exercidos em princípio e na medida do possível.
Princípios são referencial geral para o intérprete. Seu conteúdo aberto permite a atuação integrativa e construtiva do intérprete, capacitando-o a produzir a melhor solução para o caso concreto, assim realizando o ideal de justiça.
Adverte Barroso que um modelo exclusivo de princípios aniquilaria a segurança jurídica. O autor considera que no Brasil, a superação do positivismo foi impulsionada por alguns exageros principialistas na doutrina e na jurisprudência.
Segundo o ilustre professor da UERJ, a principal diferença entre regras e princípios reside no modo de aplicação. Regras se aplicam na modalidade tudo ou nada: se os fatos que a regra estipular ocorrerem, ela deverá incidir produzindo o efeito previsto. Ex.: aposentadoria compulsória. Se não for aplicada a sua hipótese de incidência, a norma estará sendo violada. Ao intérprete caberá aplicar a regra mediante subsunção. São mandados ou comandos definitivos: uma regra somente deixará de ser aplicada se outra regra a excepcionar ou se for inválida.
O principal valor subjacente às regras seria a segurança jurídica: elas são determinação objetiva de conduta, expressam a materialização de decisões políticas tomadas pelo legislador ou pelo constituinte, que procederam às valorações e ponderações que consideram cabíveis. A tarefa do intérprete, embora não seja mecânica, não envolve maior criatividade ou subjetividade.
Segundo Barroso, como o direito gravita entre os valores segurança jurídica e justiça, uma ordem jurídica democrática e eficiente deve trazer em si o equilíbrio necessário entre regras e princípios. Um modelo exclusivo de regras supervaloriza a segurança jurídica e impede a comunicação do ordenamento com a realidade, frustrando, por falta de abertura e flexibilidade, em muitas situações, a realização da justiça. Assim, a decisão do constituinte de empregar princípios ou regras não é aleatória.
A abertura dos princípios constitucionais permitiria ao intérprete estendê-los a situações que não foram originariamente previstas, mas que se inserem logicamente no raio de alcance dos mandamentos constitucionais. Porém, onde o legislador constituinte tenha reservado a atuação para o legislador ordinário, não seria legítimo pretender, por via de interpretação constitucional, subtrair do órgão de representação popular as decisões que irão realizar os fins constitucionais, aniquilando o espaço de deliberação democrática.
Depois de expor sua distinção entre princípios e regras, em que menciona a estabelecida por Robert Alexy, Barroso afirma que os princípios constitucionais podem ser classificados em fundamentais, gerais e setoriais (2009, p.317-318). Os primeiros expressam as decisões fundamentais mais importantes e são os de maior grau de abstração, a exemplo do Estado Democrático de Direito. Os gerais são pressupostos ou especificações das decisões fundamentais, como a legalidade e a isonomia. Os “princípios gerais” teriam maior aplicabilidade concreta. Os setoriais, por sua vez, regem determinados subsistemas abrigados pela Constituição. São exemplos a livre concorrência e a moralidade administrativa.
Dúvidas podem surgir quando Barroso trata das modalidades de eficácia dos princípios constitucionais, que pode ser direta ou indireta. Esta se subdivide em interpretativa e negativa.
Pela eficácia direta, o princípio incide sobre a realidade à semelhança de uma regra: enquadra-se o fato relevante na proposição jurídica contida no princípio constitucional, sem intermediação legislativa. Como exemplo cita a hipótese de alguém exonerar-se do pagamento de um tributo, sob o fundamento de inobservância da reserva legal.
Na verdade, é difícil imaginar a reserva legal tributária como um princípio. Trata-se de norma que ou vale e é aplicada em sua inteireza, ou não vale e, portanto, não é aplicada. Pouco provável encontrar uma situação em que se pode aplicar na maior medida possível a obrigatoriedade de previsão legal. Ou se exige que lei preveja o tributo, ou não se exige. Impossível conceber uma realização menos ampla da obrigatoriedade de o tributo ser instituído por lei.
Tradicionalmente, a reserva legal foi tratada como princípio no Brasil. Não se pode dizer que classificá-la como princípio seja incorreto. Mas é preciso ter o cuidado de perceber que se trata de princípio enquanto norma nuclear, que não guarda correspondência com a distinção entre regras e princípios proposta por Alexy.
Barroso ensina, ainda, que a eficácia indireta interpretativa dos princípios constitucionais consiste em que o sentido e o alcance das normas jurídicas devem ser fixados tendo em conta os valores e fins abrigados nos princípios constitucionais, que seriam vetores interpretativos, de modo que, entre duas interpretações possíveis, deve-se preferir aquela que melhor prestigiar o princípio constitucional[4] (BARROSO, 2009, p. 318 e s). Merece ser reproduzido o seguinte trecho:
Em suma: a eficácia dos princípios constitucionais, nessa acepção, consiste em orientar a interpretação das regras em geral (constitucionais e infraconstitucionais), para que o intérprete faça a opção, dentre as possíveis exegeses para o caso, por aquela que realiza melhor o efeito pretendido pelo princípio constitucional pertinente. (BARROSO, 2009, p. 319)
Por fim, Luís Roberto Barroso trata da eficácia indireta negativa, que é a paralização da eficácia de qualquer norma ou ato jurídico que seja contrário ao princípio constitucional.
Feitas essas considerações, prosseguiremos à exposição da Teoria dos Princípios de Humberto Ávila.
3.TEORIA DOS PRINCÍPIOS DE HUMBERTO ÁVILA: DISTINÇÃO SEGUNDO O GRAU DE ABSTRAÇÃO
Humberto Ávila, ao propor sua dissociação entre princípios e regras, que talvez seja a mais importante na doutrina brasileira, explica que são duas as finalidades fundamentais da distinção entre essas categorias normativas. A primeira consiste em antecipar características das espécies normativas de modo que o intérprete ou aplicador, ao encontrá-las, tenha facilitado o processo de interpretação ou aplicação. A segunda, em aliviar o ônus de argumentação do aplicador, permitindo minorar a sobrecarga argumentativa que sobre ele pesa.
Humberto Ávila tem como premissa básica de sua teoria a distinção entre texto e norma. Em suas palavras: “normas não são textos nem conjunto deles, mas sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos”. E continua: “os dispositivos se constituem no objeto de interpretação; e as normas, no seu resultado”. Segundo o autor, interpretar é construir a partir de algo; significa, portanto, reconstruir.
O autor distingue construção de reconstrução, de modo a evitar o equívoco de se imaginar que não há significado algum antes do término do processo de interpretação. Na verdade, haveria traços de significado mínimos incorporados ao uso ordinário ou técnico da linguagem. Assim, o intérprete usa como ponto de partida os textos normativos e tem nele seus limites. É que, ainda que algumas expressões tenham significação indeterminada, possuem núcleos de sentido que permitem, ao menos, indicar quais as situações em que certamente não se aplicam. Assim, por exemplo, provisória não é aquela medida que produz efeitos ininterruptos.
A desconsideração desses limites cria um descompasso entre a previsão constitucional e o direito constitucional concretizado. Segundo Ávila, essa constatação explica as críticas efusivas da doutrina a determinadas decisões do Supremo Tribunal Federal.
Humberto Ávila conclui essa distinção preliminar afirmando:
Enfim, é justamente porque as normas são construídas pelo intérprete a partir dos dispositivos que não se pode chegar à conclusão de que este ou aquele dispositivo contém uma regra ou um princípio. Essa qualificação normativa depende de conexões axiológicas que não são incorporadas ao texto nem a ele pertencem, mas são, antes, construídas pelo intérprete. (...) O ordenamento jurídico estabelece a realização de fins, a preservação de valores e a manutenção ou busca de determinados bens jurídicos essenciais à realização daqueles fins e à preservação desses valores. (2010, p. 34)
O intérprete não pode desprezar esses pontos de partida, pois, como dito acima, a tese defendida é a de que seu trabalho é de reconstrução da norma. Considerando a colaboração do intérprete no processo de reconstrução, conclui-se que a qualificação de determinada norma como princípio ou como regra não se dá a partir de seu texto puro, mas, antes, depende da colaboração do intérprete.
Feitas essas considerações, Ávila parte para um panorama da evolução da distinção entre princípios e regras. Analisa os critérios de distinção utilizados por Josef Esser, Karl Larenz, Canaris, Dworkin e Alexy. No presente trabalho, não temos o objetivo de esgotar a obra de Humberto Ávila. Portanto, serão apresentados apenas os comentários que o ilustre mestre faz sobre as teorias de Dworkin e de Alexy, cujas obras são bastante difundidas no Brasil atualmente. Isso nos permitirá estabelecer comparações com a visão de Luís Roberto Barroso e de Virgílio Afonso da Silva, também analisadas neste trabalho.
Ávila explica que a finalidade de Dworkin foi fazer um ataque geral ao positivismo, sobretudo ao modo aberto de argumentação permitido pela aplicação do que ele viria a definir como princípios. As regras seriam aplicadas ao modo all-or-nothing (tudo ou nada). Assim, se a hipótese de incidência de uma regra é preenchida, abrem-se duas possibilidades: a) ou a regra é válida e a consequência normativa deve ser aceita; b) ou ela não é considerada válida. No caso de colisão entre regras, uma delas deve ser considerada inválida. Por outro lado, os princípios não determinariam absolutamente a decisão, devendo ser conjugados com outros fundamentos provenientes de outros princípios. Teriam, portanto, uma dimensão de peso, demonstrável na hipótese de colisão entre os princípios. O com peso relativo maior se sobreporia ao outro, sem que este perca a validade. Assim, leciona Humberto Ávila, a distinção feita por Dworkin é uma diferenciação quanto à estrutura lógica, e não de grau.
Ensina que Alexy, por sua vez, define os princípios como espécie de norma jurídica por meio da qual se estabelecem deveres de otimização aplicáveis em vários graus, segundo as possibilidades normativas (a aplicação dos princípios depende dos princípios e regras que a eles se contrapõem) e fáticas (o conteúdo dos princípios só pode ser determinado diante dos fatos). No caso de colisão entre princípios, não se determina imediatamente qual prevalece sobre o outro. É estabelecida uma ponderação entre os princípios colidentes: um deles, em determinadas circunstâncias do caso concreto, prevalecerá. Os princípios possuiriam, assim, uma dimensão de peso e não determinariam as consequências normativas de forma direta, ao contrário das regras. Somente diante do caso concreto os princípios se concretizariam, sendo aplicados também ao modo do tudo ou nada. Os princípios instituem obrigações prima facie, que podem ser superadas ou derrogadas em função dos princípios colidentes, ao passo que as regras instituem obrigações absolutas. O que distingue os princípios das regras seria o modo com a tensão é resolvida. Quanto às regras se verifica se estão dentro ou fora da ordem jurídica. Em relação aos princípios, o conflito já se dá dentro de determinada ordem jurídica.
Ávila aponta as teorias desenvolvidas por Alexy e Dowrkin como distinções fortes. Apesar de considerar importantes para a distinção os critérios utilizados, a eles tece críticas incisivas. São os seguintes os critérios de distinção: caráter hipotético-condicional, modo final de aplicação e conflito normativo.
Quanto ao critério do caráter hipotético-condicional, Ávila defende que se trata de critério impreciso. A partir de tal critério é que se costuma afirmar que as regras possuem um elemento frontalmente descritivo, ao passo que os princípios apenas estabelecem uma diretriz, indicam um primeiro passo para encontrar a regra. Ocorre que, segundo Humberto Ávila, o conteúdo normativo de qualquer norma depende de possibilidades normativas e fáticas a serem verificadas no processo de aplicação pelo intérprete. Não seria a existência de hipótese normativa a distinção entre regras e princípios, uma vez que algumas normas qualificadas como princípios segundo esse critério podem ser reformuladas de modo hipotético. De outro lado, em qualquer norma, mesmo havendo hipótese de incidência seguida de consequência, há referência a fins. O critério seria, portanto, mais uma confusão entre dispositivo e norma.
O critério do modo final de aplicação é aquele segundo o qual regras são aplicadas no modo tudo ou nada, tratando-se de obrigações definitivas, ao passo que os princípios são obrigações prima facie. Ávila diz que apesar de ter chamado a atenção para aspectos importantes das normas jurídicas, o critério precisa ser reformulado. Primeiro, porque o modo de aplicação não está determinado pelo texto objeto de interpretação, mas decorre de conexões axiológicas construídas pelo intérprete. A obrigação tida por absoluta pode ser superada por razões contrárias não previstas pela regra. Cita como exemplo o HC nº 73.662-9-MG, julgado pelo STF em 1996, que absolveu réu condenado por estupro com violência presumida – contra menor de quatorze anos – proclamando como causa da absolvição o consentimento da vítima, que apesar de contar com apenas doze anos de idade, apresentava aparência física e mental de pessoa mais velha. Assim, a obrigação, havida como absoluta pelo antigo artigo 224 do Código Penal, foi superada por razões não previstas na norma e até contrárias a ela. É certo, entretanto, que a consideração de elementos específicos da situação dependeu de ônus de argumentação capaz de superar as razões para cumprimento da regra.
Segue explicando que a consideração de circunstâncias concretas e individuais diz respeito à aplicação, e não à estrutura das normas. Além disso, há regras que contêm expressões cujo âmbito de aplicação não é total e previamente delimitado, cabendo ao intérprete, diante do caso concreto, decidir pela aplicação ou não da norma. Conclui, assim, que a vagueza não é traço distintivo dos princípios. As regras, para que sejam implementadas suas consequências, também precisam de um processo prévio – e muitas vezes longo e complexo – de interpretação. As consequências não são automáticas.
Infere que, quanto ao modo de aplicação, regras e princípios, em vez que de se extremarem, aproximam-se. Ávila defende que a única diferença constatável continua sendo o grau de abstração anterior à interpretação:
(...) no caso dos princípios o grau de abstração é maior relativamente à norma de comportamento a ser determinada, já que eles não se vinculam abstratamente a uma situação específica (...); no caso das regras, as consequências são de pronto verificáveis, ainda que devam ser corroboradas por meio do ato de aplicação. Esse critério distintivo perde, porém, parte de sua importância quando se constata, de um lado, que a aplicação das regras também depende da conjunta interpretação dos princípios que a elas digam respeito (por exemplo, regras do procedimento legislativo em correlação com o princípio democrático) e, de outro, que os princípios normalmente requerem a complementação de regras para serem aplicados. (2010, p. 48)
Como dito no exemplo da violência sexual presumida, a consideração de aspectos individuais e concretos depende de fundamentação (ônus da argumentação). A ponderação é, assim, necessária. Desse modo, o traço distintivo, para Ávila, não é o tipo de obrigação instituído pela estrutura condicional da norma, se absoluta ou relativa, mas o modo como o intérprete justifica a aplicação dos significados preliminares dos dispositivos, se frontalmente finalístico ou comportamental.
Defende que não é coerente afirmar, como Dworkin e Alexy, que se a hipótese prevista por uma regra ocorrer no plano dos fatos, a consequência normativa deve ser diretamente implementada. Há casos em que a regra pode ser aplicada sem que suas condições de aplicabilidade sejam satisfeitas, bem como casos em que as condições de aplicabilidade das regras são preenchidas e, mesmo assim, a regra não é aplicada. E cita dois exemplos bastante convincentes: o caso da aplicação analógica de regras e o do cancelamento da razão justificadora da regra por razões consideradas superiores diante do caso concreto. Na primeira hipótese, conquanto as condições de aplicabilidade das regras não tenham sido implementadas, ainda assim, elas são aplicadas, porque os casos não regulados se assemelham aos da hipótese normativa. No segundo caso, as regras não são aplicadas apesar de suas condições terem sido satisfeitas.
O suposto caráter absoluto das regras pode ser validamente ultrapassado, bem assim pode haver consideração a aspectos concretos e individuais pelas regras se a consideração for validamente fundamentada.
Ademais, o critério do modo final de aplicação, por só poder ser verificado após a aplicação, não cumpre o escopo de facilitar a aplicação de normas por meio da antecipação de qualidades normativas e da descarga argumentativa. Segundo Bergmann Ávila, mostra-se, pois, inconsistente.
Por fim, o critério do conflito normativo é aquele segundo o qual o conflito entre regras é solucionado com a declaração de invalidade de uma delas ou com a criação de exceção, ao passo que na colisão entre princípios a solução é estabelecida em função de uma ponderação que atribui uma dimensão de peso a cada um deles, de modo que, em determinadas circunstâncias concretas, um princípio recebe prevalência sobre o outro.
Ávila não considera correto afirmar que a ponderação é método privativo de aplicação dos princípios, nem que os princípios possuem uma dimensão de peso. Ensina que as regras que abstratamente convivem podem entrar em conflito concretamente. E cita, entre outros muitos exemplos, o conflito entre a regra que proíbe a concessão de liminar contra a Fazenda Pública que esgote o objeto litigioso e a regra determina que o Estado deve fornecer, de forma gratuita, medicamentos excepcionais para pessoas que não possam prover essas despesas. Tem-se, portanto, de um lado, uma regra que proíbe ao juiz determinar o fornecimento de medicamento por meio de liminar, e de outro, uma regra que obriga o juiz a determinar, inclusive por liminar, o fornecimento de remédios. Essas regras, que instituem comportamentos contraditórios, ultrapassam o conflito abstrato mantendo sua validade. Cabe ao julgador, analisando o conflito concreto, atribuir um peso maior a uma das duas regras, em razão da finalidade que cada uma delas visa preservar. A solução não está no plano de validade, mas na aplicação.
Desse modo, Humberto Ávila considera necessário aperfeiçoar o entendimento de que o conflito de regras é necessariamente abstrato, e que quando duas regras entram em conflito deve-se declarar a invalidade de uma delas ou abrir uma exceção.
Ademais, mesmo nas hipóteses de relação entre uma regra e suas exceções, é mediante ponderação de suas razões que o aplicador deverá decidir se há mais razões para aplicar a hipótese normativa da regra ou a de sua exceção. E, no caso de a exceção não estar prevista no ordenamento, será constituída mediante processo de valoração de argumentos e contra-argumentos, ou seja, ponderação.
A ponderação também se verifica nas regras na delimitação de hipóteses normativas semanticamente abertas ou de conceitos jurídico-políticos, como Estado de Direito ou democracia.
Acrescenta que não é consistente a afirmação de que no caso das regras e de suas exceções há aplicação de uma só norma, ao passo que no imbricamento de princípios há aplicação de ambas. É que, segundo defende, quando o aplicador atribui uma dimensão de peso maior a um dos princípios, ele deixa de aplicar o outro, do mesmo modo que na relação entre regra e exceção.
Em breve síntese, Ávila entende que o relacionamento entre regras gerais e excepcionais e entre princípios que se imbricam não difere quanto à existência de ponderação de razões, mas quanto à intensidade da contribuição institucional do aplicador na determinação concreta dessa relação e quanto ao modo de ponderação. Na relação entre regras gerais e excepcionais, o aplicador possui menor âmbito de apreciação, já que deve delimitar o conteúdo normativo da hipótese se e enquanto esse for compatível com a finalidade que a sustenta. Na hipótese de imbricamento entre princípios, diversamente, por prevalecer o estabelecimento de um estado de coisas a ser buscado, o aplicador possui maior espaço de apreciação, devendo delimitar o comportamento necessário à realização ou preservação do estado de coisas.
Entende, ainda, que a dimensão de peso não é algo que esteja já incorporado a um determinado tipo de norma. Os princípios em si não possuem uma dimensão de peso. Quem a possui são as razões e os fins aos quais eles fazem referência. A dimensão de peso é, na verdade, o resultado de juízo valorativo do aplicador. É, portanto, relativa ao aplicador e ao caso, e não à norma em si.
Ávila discorda também da afirmação de que os princípios são deveres de otimização e que seu conteúdo deve ser aplicado na máxima medida. Para ele, é preciso esclarecer que existem diferentes espécies de colisão entre princípios.
Na primeira, o fim instituído por um princípio leva à realização do fim estipulado pelo outro princípio. Nesse caso, não há limitação recíproca, mas reforço entre eles. Não há o dever se realização na máxima medida, mas o de realização na medida necessária à implementação do fim instituído pelo outro princípio.
Na segunda espécie, a realização do fim instituído por um princípio exclui a realização do fim estipulado pelo outro. Nessa hipótese, a colisão só pode ser solucionada com a rejeição de um deles, de modo semelhante ao que ocorre com as regras. Não haverá limitação e complementação recíproca, mas aplicação integral.
Na terceira hipótese, um princípio leva à realização de parte do fim estipulado pelo outro. Nesse caso, sim, ocorrem limitação e complementação recíprocas de sentido na parte objeto de imbricamento.
Na quarta espécie, a realização do fim instituído por um princípio não interfere na realização do fim instituído pelo outro.
A partir das considerações acima expostas, Ávila conclui que a diferença entre princípios e regras não está no fato de que as regras devam ser aplicadas no todo e os princípios só na máxima medida. Ambas devem ser aplicadas de modo que seu conteúdo seja totalmente realizado. A única distinção é quanto à determinação da prescrição da conduta a ser seguida. Os princípios não a determinam diretamente, mas estabelecem os fins normativos relevantes. A sua concretização depende de modo mais intenso do ato institucional de aplicação, que deverá encontrar a conduta necessária à promoção do fim disposto. De outro lado, as regras dependem de modo menos intenso de um ato de aplicação nos casos normais, tendo em vista que o comportamento já está previsto.
Acrescenta que os princípios em si não são mandados de otimização. Estes dizem respeito ao uso de um princípio. É que o conteúdo do princípio deve ser otimizado no procedimento de ponderação.
Assim, infere que também o critério do conflito normativo é inadequado para uma classificação abstrata, na medida em que depende de elementos que só com a consideração de todas as circunstâncias podem ser corroborados. Desse modo, é também inconsistente, pois não facilita a aplicação da norma, mas, assim como o critério do modo de aplicação, pode funcionar como obstáculo à construção de sentido das normas.
Ainda analisando o que denominou de distinção forte, capitaneada pelos estudos de Dworkin e Alexy, Humberto Ávila apresenta-nos outro problema: o de saber qual norma deve prevalecer se houver conflito entre um princípio e uma regra de mesmo nível hierárquico. Em regra, a doutrina afirma que deve prevalecer o princípio.
Nesse ponto, a crítica feita por Ávila provoca a necessária reflexão sobre os efeitos das classificações desenvolvidas pela doutrina. Em respeito à preciosa lição, a reproduziremos ipse litteris:
O tiro saiu pela culatra: a pretexto de aumentar a efetividade da norma, a doutrina denomina-a de princípio, mas, ao fazê-lo, legitima a sua mais fácil flexibilização, enfraquecendo a sua eficácia; com a intenção de aumentar a valoração, a doutrina qualifica determinadas normas de princípios, mas, ao fazê-lo, elimina a possibilidade de valoração das regras, apequenando-as; com a finalidade de combater o formalismo, a doutrina redireciona a aplicação do ordenamento para os princípios, mas, ao fazê-lo sem indicar os critérios minimamente objetiváveis para sua aplicação, aumenta a injustiça por meio da intensificação do decisionismo; com a intenção de difundir uma aplicação progressista e efetiva do ordenamento jurídico, a doutrina qualifica aquelas normas julgadas mais importantes como princípios, mas, ao fazê-lo com a indicação de que os princípios demandam aplicação intensamente subjetiva ou flexibilizadora em função de razões contrárias, lança bases para que o próprio conservadorismo seja legitimado. (2010, p. 90-91)
Humberto Ávila defende um modelo de dissociação que qualifica como heurística. Considera que as normas sejam (re)construídas pelo intérprete a partir dos dispositivos e do seu significado usual. O próprio intérprete constrói conexões axiológicas, que não estão incorporadas ao texto nem a ele pertencem. A distinção proposta por Ávila, segundo ele, privilegia o valor heurístico, na medida em que funciona como modelo ou hipótese provisória de trabalho para uma posterior reconstrução de conteúdos normativos, sem assegurar qualquer procedimento estritamente dedutivo de fundamentação ou decisão a respeito dos conteúdos.
Ávila afirma que sua proposta é diferente das demais porque admite a coexistência das espécies normativas em razão de um mesmo dispositivo. Ele define sua classificação como aquela que alberga alternativas inclusivas. Desse modo um mesmo dispositivo pode servir de ponto de partida para a construção de uma regra, se o caráter comportamental for privilegiado em detrimento da finalidade que lhe dá suporte, bem como pode proporcionar a construção de um princípio, se o aspecto valorativo for autonomizado para alcançar também comportamentos inseridos noutros contextos, necessários à sua realização. Importante, no entanto, destacar que a consideração acima se aplica desde que o dispositivo seja analisado sob perspectivas diversas. Um mesmo dispositivo não pode, ao mesmo tempo e sob os mesmo aspectos, ser um princípio e uma regra.
Além do modelo dual de separação regras/princípios, a proposta de Ávila inova ao dispor um modelo tripartite de dissociação regras/princípios/postulados. Definidos como instrumentos normativos metódicos, ou seja, como categorias que impõem condições a serem observadas na aplicação das regras e dos princípios, com eles não se confundindo, os postulados seriam uma terceira espécie normativa, ao lado das regras e dos princípios. Não se localizariam no mesmo plano das regras e dos princípios, mas num metaplano. Ávila qualifica os postulados como normas de segundo grau ou normas de aplicação.
Feitas essas considerações sobre o inovador modelo proposto por Humberto Ávila, é possível apresentar as contundentes críticas de Virgílio Afonso da Silva.
4.VIRGÍLIO AFONSO DA SILVA E O SINCRETISMO METODOLÓGICO
Inegáveis a pertinência e brilhantismo das reflexões de Virgílio Afonso da Silva em seus artigos “Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção” e “Interpretação constitucional e sincretismo metodológico”. A leitura desses artigos deve ser feita em conjunto. É que os equívocos e mitos acerca da distinção entre princípios e regras são parte de um fenômeno que o autor denominou de sincretismo metodológico, muito bem explicado em seu artigo sobre a interpretação constitucional.
Em breve síntese, Virgílio Afonso da Silva afirma que a doutrina brasileira muitas vezes recebe de forma pouco ponderada as teorias desenvolvidas no exterior. Estaríamos, pois, imersos num estado de torpor e deslumbramento diante daquilo que vem de fora e também diante do novo. O sincretismo, dessa forma, consiste na recepção e utilização conjunta de métodos incompatíveis como se complementares fossem. Os métodos são apenas resumidamente explicados sem que se chegue a qualquer conclusão acerca da relação entre diversos os métodos, sua aplicabilidade e compatibilidade entre eles. Nas palavras do autor, a mais importante manifestação do sincretismo metodológico consiste na “utilização conjunta – ou a ideia de que essa possibilidade existe – da teoria estruturante do direito e do sopesa mento de direitos fundamentais” (SILVA, 2010, p. 133-136).
Em seu artigo “Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção”, Virgílio Afonso da Silva discute algumas impropriedades metodológicas na forma como foi recebida a teoria dos direitos fundamentais de Robert Alexy no Brasil.
O autor nos lembra que Dworkin e Alexy são os responsáveis pela força atual do problema da distinção entre princípios e regras. Como representantes da separação qualitativa, Dworkin e Alexy partem de uma distinção de caráter lógico. Lembra-nos, ainda, que é possível estabelecer uma distinção de grau de generalidade, sendo esta a tese mais difundida no Brasil. Por fim, existem aqueles que rejeitam a utilidade ou a possibilidade da distinção entre princípios e regras
Virgílio Afonso da Silva faz breve explicação sobre a proposta de Alexy. Ensina que princípios são mandamentos de otimização, normas que estabelecem que algo deve ser realizado na maior medida possível, diante das possibilidades fáticas e jurídicas presentes no caso concreto. Havendo colisão, ou seja, se um princípio obstar a realização completa de outro, deve-se proceder ao sopesamento, a fim de alcançar um resultado ótimo, que sempre dependerá das variáveis do caso concreto. Em razão da possibilidade de, diante das condições, haver limitação de um ou outro ou de ambos os princípios é que se diz que expressam direitos e deveres prima facie.
As regras, ao contrário, expressam direitos e deveres definitivos. Em outras palavras, sendo a regra válida, deve ser realizado exatamente o que ela prescreve.
Até aqui, pode parecer que o autor não trouxe nada além do que habitualmente é explanado nos manuais de direito constitucional. A inovação trazida por Virgílio Afonso da Silva consiste, basicamente, numa reflexão crítica sobre a confusão terminológica, que gera dificuldades na aplicação prática, e que é expressão do que ele denomina sincretismo metodológico.
Esclarece que o conceito de princípios de Alexy é muito diferente dos mandamentos nucleares ou disposições fundamentais, tradicionalmente denominados princípios na literatura jurídica brasileira. Os princípios desde há muito são tratados pela doutrina brasileira como as normas mais fundamentais do sistema, ao passo que as regras seriam a concretização dos princípios e teriam caráter mais instrumental.
Na teoria de Alexy, o conceito de princípio não guarda relação com a fundamentalidade da norma, mas com a estrutura normativa. Assim, é comum que o que tradicionalmente é denominado princípio na doutrina brasileira deva ser chamado de regra na distinção proposta pelo autor alemão. Exemplo claro é o “princípio” da legalidade e da nulla poena sine lege. Infere que a superioridade formal dos princípios, defendida por parcela da doutrina brasileira, é incompatível com a distinção proposta por Alexy.
Virgílio Afonso da Silva não busca dizer qual classificação é mais ou menos adequada, mas alertar para a necessidade de coerência ao se adotar uma ou outra classificação.
O caso é que, devido à definição dos princípios como normas fundamentais do sistema, criou-se na doutrina brasileira uma tese de supremacia normativa dos princípios, mesmo entre aqueles que dizem adotar os critérios propostos por Alexy. Virgílio Afonso da Silva entende que, se se adota a teoria de Alexy, não há como não se chegar à conclusão de que há regras tão ou mais importantes que muitos princípios, a exemplo da legalidade e da nulla poena sine lege.
O conceito de princípio, na teoria de Alexy, é axiologicamente neutro. Seu uso não expressa opção por uma ou outra disposição fundamental, nem por um ou outro tipo de constituição.
Virgílio Afonso da Silva critica, ainda, a distinção entre regras e princípios segundo Humberto Ávila. Afirma que este usa com imprecisão o termo “tudo ou nada”, como sinônimo de imediatidade, bem como desconsidera a distinção entre texto e norma.
O trecho a que Virgílio Afonso da Silva se refere é aquele em que Bergmann Ávila critica o critério do modo final de aplicação como critério distintivo de princípios e regras. Conforme analisado acima, Ávila defende que as regras não são aplicadas seguindo o modelo “tudo ou nada” porque também elas, para que sejam implementadas suas consequências, precisam de um processo prévio – e muitas vezes longo e complexo – de interpretação. As consequências não seriam automáticas.
Virgílio Afonso da Silva, por sua vez, sustenta que todo texto, enquanto enunciado linguístico, necessita de interpretação. Como produto da interpretação do texto, tem-se a norma. A distinção entre regras e princípios é distinção de normas, e não de dois tipos texto. Desse modo, é natural que tanto regras quanto princípios exijam interpretação prévia, mas isso não significa que tenham a mesma estrutura. Uma vez interpretada, a regra jurídica é já subsumível, ao passo que os princípios ainda poderão entrar em colisão com outros, necessitando-se, pois, que se proceda a um sopesamento, a fim de harmonizá-los.
Virgílio Afonso da Silva discorda, ainda, da afirmação de Ávila de que a colisão entre os princípios só poderia ser uma colisão aparente. Bergamann Ávila entende que a colisão é apenas aparente porque o problema que surge na aplicação dos princípios reside muito mais em saber qual dos princípios será aplicado e qual a relação que mantêm entre si. Virgílio Afonso da Silva defende que a afirmação acima equivale a dizer que depois de resolvida a colisão, esta se revelou apenas aparente. Nesse sentido, com exceção apenas das colisões irresolúveis, todas as colisões são aparentes.
Para Virgílio Afonso da Silva, o problema é mais complexo. Cuida-se da distinção entre deveres prima facie e deveres definitivos. Assim, a característica que distingue regras e princípios não é a existência de uma consequência determinada ou de vagueza. Princípios também possuem consequências abstratamente determinadas. A diferença é que regras expressam deveres definitivos, ao passo que princípios expressam deveres prima facie.
Humberto Ávila e Virgílio Afonso da Silva também divergem quanto à caracterização dos princípios como mandamentos de otimização. De acordo com o primeiro, princípios nem sempre devem ser realizados na máxima medida. Conforme o exposto anteriormente, Ávila apresenta quatro espécies de colisão entre princípios.
Na primeira, o fim instituído por um princípio leva à realização do fim estipulado pelo outro princípio. Não há limitação recíproca, mas reforço entre eles. Não há, portanto, o dever se realização na máxima medida, mas de realização na medida necessária à implementação do fim instituído pelo outro princípio.
Na segunda espécie, a realização do fim instituído por um princípio exclui a realização do fim estipulado pelo outro. A colisão só pode ser solucionada com a rejeição de um deles, de modo semelhante ao que ocorre com as regras. Não haverá limitação e complementação recíproca, mas aplicação integral.
Na terceira hipótese, um princípio leva à realização de parte do fim estipulado pelo outro.
Na quarta espécie, a realização do fim instituído por um princípio não interfere na realização do fim instituído pelo outro.
Segundo Virgílio Afonso da Silva, salta aos olhos que, dentre as quatro espécies apresentadas por Bergmann Ávila, somente a segunda é realmente uma colisão de princípios. Afirma que, se não há colisão, não há motivo para realização na máxima medida.
Quanto à segunda espécie, Virgílio Afonso da Silva afirma que a rejeição de um dos princípios a que se refere Ávila em nada se aproxima à solução dada ao conflito entre regras, tendo em vista que o princípio afastado permanece válido, não deixando de pertencer ao ordenamento jurídico. Ademais, afirma que não é o conteúdo do dever ser dos princípios que estará sendo realizado no todo, mas somente o conteúdo do dever ser de uma regra que terá surgido como produto do sopesamento entre princípios colidentes. Frisa que essa regra só valerá para aquele determinado caso concreto ou para casos cujas possibilidades fáticas e jurídicas sejam idênticas. Conclui que o dever que os princípios expressam continuará sendo um dever apenas prima facie.
Entretanto, faz-se necessário acrescentar que Ávila, ao sustentar que quando o aplicador atribui uma dimensão de peso maior a um dos princípios, ele deixa de aplicar o outro, do mesmo modo que na relação entre regra e exceção, não está afirmando que o princípio afastado é invalidado.
Na verdade, Bergmann Ávila busca defender que é necessário aperfeiçoar o entendimento de que o conflito de regras é necessariamente abstrato, e que quando duas regras entram em conflito deve-se declarar a invalidade de uma delas ou abrir uma exceção. Ensina que regras que abstratamente convivem podem entrar em conflito concretamente. Caberia, assim, ao julgador, analisando o conflito concreto, atribuir um peso maior a uma das duas regras, em razão da finalidade que cada uma delas visa preservar. A solução não estaria, pois, no plano de validade, mas na aplicação. Mesmo nas hipóteses de relação entre uma regra e suas exceções, seria mediante ponderação de suas razões que o aplicador deveria decidir se há mais razões para aplicar a hipótese normativa da regra ou a de sua exceção.
Assim, não afirma que, no caso de colisão, o princípio afastado é invalidado, mas sim que as regras também são objeto de ponderação, não sendo esta uma característica distintiva entre regras e princípios.
Em suas objeções à teoria desenvolvida por Humberto Ávila, Virgílio Afonso da Silva não rebate a existência de ponderação entre as regras nem os exemplos de regras que, entrando em conflito, continuam a coexistir validamente no ordenamento.
Virgílio Afonso da Silva, em seu artigo dedicado à distinção entre princípios e regras, critica, ainda, os dois critérios suplementares apresentados por Ana Paula de Barcellos. O primeiro relaciona-se à indeterminação de seus efeitos; o segundo, à multiplicidade de meios para atingi-los. Em relação ao primeiro, afirma que em muito se assemelha àquilo que Humberto Ávila defende. Quanto ao segundo, defende que não se trata de uma característica dos princípios, mas de qualquer norma que não imponha uma omissão, mas uma ação, uma prestação ou o alcance de uma finalidade.
Cabe aqui recordar que também Luís Roberto Barroso entende ser característica inerente aos princípios a indeterminação de sentido a partir de certo ponto, assim como a existência de diferentes meios para a sua realização. E justifica afirmando serem os princípios normas predominantemente finalísticas. Como exemplo, cita o princípio da dignidade humana, que pode ser fomentado de diversas formas.
Virgílio Afonso da Silva, por sua vez, entende que quase todas as normas de direitos fundamentais impõem tanto uma ação quanto uma omissão, e cita como exemplo o direito à vida. O Estado deve abster-se de matar, ao passo que deve também garantir que a vida do cidadão não seja ameaçada.
Infere que a multiplicidade de meios para atingir efeitos pretendidos é uma característica apenas parcial dos princípios, ou seja, aplicável somente no âmbito positivo deles. Desse modo, um princípio que imponha uma omissão, uma proibição, implica a vedação de todos os atos que venham a violá-lo. Assim, a multiplicidade de meios para atingir os efeitos não estaria presente no aspecto negativo dos princípios, como no direito à liberdade de manifestação do pensamento, que é direito de defesa.
Se existem princípios que não apresentam tal característica, ou seja, sendo essa uma característica dispensável, não poderia ser usada como critério distintivo de regras e princípios.
Virgílio Afonso da Silva conclui o artigo em análise dando como exemplo do fenômeno sincretismo metodológico a recepção da distinção entre regras e princípios e a recepção da teoria estruturante do direito, difundida no Brasil através da obra de Friedrich Müller. A teoria estruturante do direito, segundo a qual não existe norma antes do confronto com os fatos, tem como consequência a rejeição expressa do sopesamento como método de aplicação do direito. A distinção entre princípios e regras, por sua vez, tem como característica exigibilidade de sopesamento como forma de aplicar os princípios. [5]
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As críticas de Virgílio Afonso da Silva à falta de coerência metodológica são irretocáveis. De fato, uma teoria não pode ser considerada sólida, do ponto de vista metodológico, se construída sobre base incoerente, adotando argumentos incompatíveis como se complementares fossem.
Por outro lado, a qualidade da teoria dos princípios de Humberto Ávila não pode ser desprezada. Sua tese é original e independente, além de rica em exemplos colhidos do próprio Direito Brasileiro. E sua originalidade é, desde o início, escancarada pelo autor, que se propõe a erigir algo novo.
Ávila não se limita a importar teorias e conceitos desenvolvidos no exterior. Não se deixa conduzir pelo estado de torpor e deslumbramento diante daquilo que vem de fora[6]. Enquanto muitos dizem adotar a distinção desenvolvida por Alexy, ao mesmo tempo em que se reportam a critérios com ela incompatíveis, Ávila, critica e desconstrói a teoria de origem alemã.
Impossível conciliar as duas teses. A distinção de grau é, de fato, incompatível com a distinção lógica. Mas, apesar das profundas divergências quanto aos critérios de distinção, Humberto Ávila e Virgílio Afonso da Silva convergem ao condenar a reprodução irrefletida de teorias. Aproximam-se, ainda, ao combater o mito da supremacia dos princípios sobre as regras.
Luís Roberto Barroso também se mostra temeroso em relação aos “exageros principialistas” na doutrina e jurisprudência brasileiras. Ao que parece, o único consenso, quando se trata da distinção entre princípios e regras, é o temor em relação efeitos que a aplicação inadequada pode causar.
Efeito muito difundido consiste na colaboração dos princípios para o retorno do decisionismo. Humberto Àvila, por exemplo, afirma que ao redirecionar a aplicação do ordenamento para os princípios sem indicar os critérios minimamente objetiváveis para sua aplicação, a doutrina “aumenta a injustiça por meio da intensificação do decisionismo”. Ávila entende que a aplicação intensamente subjetiva ou flexibilizadora lança as bases para que o conservadorismo seja legitimado.
Não é nosso objetivo de eleger a teoria mais adequada, mas tão somente esclarecer que o tema não é unânime, ao contrário do que possa parecer diante da euforia que circunda a tese de Alexy no Brasil.
De todo o exposto, é inevitável inferir que o mínimo que se pode exigir do intérprete e operador do direito é que seja rigoroso ao indicar a teoria e os respectivos critérios que adota para distinguir princípios de regras. Não se deve conferir ares de unanimidade a um tema que é objeto de vultosas controvérsias.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 11ª Edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2010.
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 1ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2009.
BRASIL. Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, RJ, 9 set. 1942. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657compilado.htm>. Acesso em 20 mai. 2012.
SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In: SILVA, Virgílio Afonso da (Org.). Interpretação constitucional. 1ª Edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2005. p. 115-143. Disponível em: < http://direitoesubjetividade.files.wordpress.com/2010/01/019-interpretacao-constitucional-virgilio-afonso-da-silva.pdf>. Acesso em 13 mai. 2012.
SILVA, Virgílio Afonso da. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais nº 01. Jan/Jun, 2003. p. 607-630. Belo Horizonte, Del Rey. Disponível em: <http://xa.yimg.com/kq/groups/19604888/1457260705/name/Virg%C3%ADlio%20Afonso%20da%20Silva%20-%20Princ%C3%ADpios.pdf>. Acesso em 13 mai. 2012.
[1] Mesmo Virgílio Afonso da Silva não se propõe a oferecer soluções definitivas, mas apenas a colaborar para que a discussão continue.
[2] Art. 4º. Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
[3] Virgílio Afonso da Silva, conforme se verá adiante, discorda.
[4] Mais uma vez, os princípios aparecem como normas mais fundamentais do sistema, e as regras como concretização dos princípios, apesar de se dizer adotar a distinção de Alexy. Virgílio Afonso da Silva denomina tal fenômeno de sincretismo metodológico.
[5] Foge ao objeto do presente trabalho analisar uma possível adoção da teoria estruturante do direito por Humberto Ávila.
[6] A expressão é de Virgílio Afonso da Silva, que se refere ao estado de deslumbramento em que estaria imersa a doutrina brasileira.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Piauí; pós-graduada em Direito Tributário pela Universidade Cândido Mendes; Analista Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado do Pará.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEREIRA, Clarissa de Cerqueira. A distinção entre princípios e regras segundo a doutrina brasileira Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 jan 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51211/a-distincao-entre-principios-e-regras-segundo-a-doutrina-brasileira. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: WALKER GONÇALVES
Por: Benigno Núñez Novo
Por: Mirela Reis Caldas
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
Precisa estar logado para fazer comentários.