Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar a possibilidade das entidades religiosas proibirem o uso de certas vestimentas em seu ambiente interno, contrapondo com a ideia de Estado laico e liberdade religiosa, trazendo, ainda, discussões no âmbito doutrinárias.
Palavras-chave: Direito Religioso. Proibições de certas vestimentas. Estado Laico. Liberdade Religiosa.
Sumário: Resumo. 1. Introdução. 2. Desenvolvimento. 3. Conclusão. Referências.
1.INTRODUÇÃO
Trata-se o presente artigo de um estudo acerca da possibilidade das organizações religiosas proibirem o uso de certas vestimentas em seu ambiente interno. Como restará demonstrado mediante uma análise sistemática do Código Civil, é possível o exercício da liberdade organizacional das entidades religiosas, por regulamentos próprios, baseados pelos dogmas e costumes religiosos. Neste sentido, as questões que se colocam são: O que é liberdade religiosa? É possível a restrição pelas entidades religiosas do uso de certas vestimentas em seu ambiente interno? Em caso positivo, há necessidade de afixar as normas de limitação ao uso de trajes que não condizem aos costumes da entidade na entrada da entidade? São essas o objeto de estudo deste artigo. Ao final, buscaremos construir uma conclusão sobre a temática.
2 DESENVOLVIMENTO
2.1 LIBERDADE RELIGIOSA E ORGANIZACIONAL DAS ENTIDADES RELIGIOSAS
Consoante o art.5º, inciso VI, da Constituição Federal de 1988, que assim dispõe: “é inviolável a liberdade de consciência e crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”, verifica-se que a nossa Lei Maior consagrou a liberdade religiosa, prescrevendo que o Brasil é um país laico. Na verdade, a liberdade de religião nada mais é que um desdobramento da liberdade de pensamento e manifestação.
Por sua vez, o inciso I do art. 19 da Carta Maior, determina a neutralidade do Estado, no sentido de não subvencionar ou não adotar cultos religiosos, bem como não embaraçar-lhes o funcionamento, proibindo qualquer dependência ou aliança entre os cultos e seus representantes, ressalvando, apenas, na forma da lei, a colaboração de interesse público.
Assim, da análise dos dispositivos acima, verifica-se, com segurança, a adoção, no Brasil, da separação entre Estado e Religião, já que, apesar de admitir os cultos religiosos, determina a sua neutralidade.
A liberdade de crença e de culto no Brasil permitiu a constituição de organizações religiosas que funcionam como pessoa jurídica de direito privado, nos termos do art.44, inciso IV do Código Civil, sendo assegurado, ainda, em seu § 1º, a livre criação, organização, estruturação interna e funcionamento destas. Veja-se:
Art. 44. São pessoas jurídicas de direito privado:
I – as associações;
II – as sociedades;
III – as fundações.
IV – as organizações religiosas; (Incluído pela Lei nº 10.825, de 22.12.2003);
V – os partidos políticos. (Incluído pela Lei nº 10.825, de 22.12.2003).
§ 1o São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento. (Incluído pela Lei nº 10.825, de 22.12.2003)
Criou-se, portanto, a figura de uma verdadeira instituição religiosa, que, com respaldo legal, pode promover sua gerência e organização de forma totalmente individualizada, com base nos seus princípios, doutrina e visão.
Neste sentido, com a alteração do Código Civil, promovida pela Lei nº.10.825, de 22 de dezembro de 2003, não há mais a obrigatoriedade das Igrejas terem que estabelecer seus ordenamentos e sua forma de organização com base nas diretrizes elencadas nos artigos 53 a 61 do Código Civil, já que deixaram de ser meras Associações. Isto significa que as Igrejas podem ser constituídas e organizadas de forma extremamente específica, mediante estatuto social e regulamento interno próprio, garantindo a verdadeira liberdade religiosa apregoada em nossa Carta Magna.
Sobre a liberdade organizacional e o regimento interno das organizações religiosas, Dr. Gilberto Garcia[1], em palestra promovida no STF sobre o tema “Direito Religioso”, esclarece que “o regimento interno deve ser elaborado de acordo com a natureza da entidade, de seu caráter, fisionomia, de seus objetivos e do 'carisma' que a tonifica, que a impulsiona a promover a coletividade, pois cada entidade é um ser que possui suas próprias características, peculiaridades e dificuldades.”
Diante disso, as organizações religiosas podem, conforme previsão no regimento interno próprio, dispor sobre as regras organizacionais do estabelecimento de forma livre, não podendo o Estado interferir, salvo se atentarem contra a ordem jurídica vigente, nas imposições da referida entidade religiosa, por apresentarem caráter interna corporis.
Como reflexo desse questionamento, frequentemente o judiciário é instado a se manifestar sobre o tema. Em pesquisa jurisprudencial, constata-se a unicidade de posicionamento dos nossos tribunais estaduais no sentido de vedar o Estado a interferir em questões interna corporis previstas nos regulamentos internos das organizações religiosas, quando não afrontem direitos constitucionais. Veja-se, por exemplo, os arestos seguintes, da lavra dos Tribunais de Justiça de São Paulo e do Espírito Santo:
“(…) Desde 1889, com o advento da república, o Estado brasileiro passou a ser não confessional (laico ou secular), com o que se separou, de forma definitiva, das organizações religiosas.
Deveras, deve o Estado manter uma neutralidade sob o ponto de vista religioso, o que garante a simetria da liberdade religiosa e a pluralidade das religiões. Sem interferir nas questões relativas ao exercício de seu mister, o atual Código Civil estabelece que são livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, pessoas jurídicas de direito privado (artigo 44, IV, e § 1º, incluídos pela Lei nº 10.825/03).
Considerando, portanto, a liberdade de auto-organização que lhes confere o ordenamento jurídico, não há meios de o Estado – ainda que por intermédio do Poder Judiciário –interferir nas questões interna corporis, quando não se constata a violação de direitos consagrados constitucionalmente. (...)” (TJSP, Processo Nº 0000054-30.2011.8.26.0244, Guilherme Henrique dos Santos Martins, 22/09/2011)
APELAÇÃO CÍVEL – PROCESSUAL CIVIL E CONSTITUCIONAL - CONVENÇÃO – AÇÃO DE ANULAÇÃO DE ATO JURÍDICO CUMULADA COM DESFAZIMENTO DE CONSTRUÇÃO – CONFLITO ENTRE IGREJAS EVANGÉLICAS ASSEMBLEIA DE DEUS – CONFLITO ENTRE CO-IRMAO - SOLUÇÃO PREVISTA NO ESTATUTO – MATÉRIA INTER NA CORPORIS - INSTANCIAS ADMINISTRATIVAS NÃO ESGOTADAS-DESCONSTITUIÇÃO DE ATOS – IMPOSSIBILIDADE – APELAÇÃO CONHECIDA E PROVIDA - IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO.
1.- ESTANDO PREVISTO NO ESTATUTO DAS IGREJAS EVANGÉLICAS A SOLUÇÃO PARA O CONFLITO ENTRE CO-IRMÃOS, NÃO PODERÃO RECORRER A JUSTIÇA ANTES DE ESGOTAR TODAS AS INSTANCIAS ADMINISTRATIVAS.
2.- TRATA-SE DE ASSUNTO "INTERNA CORPORIS", CABENDO A JUSTIÇA ACATAR NORMAS ESTATUTÁRIAS DAS REFERIDAS CONVENÇÕES, NÃO PODENDO ASSIM DESCONSTITUIR ATOS DE CRIAÇÃO DE IGREJA QUE NÃO ERAM DE SUA COMPETÊNCIA.
3.- CONHECE-SE DA APELAÇÃO, DANDO-LHE PROVIMENTO E JULGA-SE IMPROCEDENTE O PEDIDO. (TJES, AC 48930012256 ES 048930012256, Orgão Julgador PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL, Publicação 01/10/2006, Relator ARIONE VASCONCELOS RIBEIRO).
Doutra Sorte, a Corte Superior de Justiça também já teve a oportunidade de se pronunciar sobre o tema, na ocasião em que Dr. Edson Vidigal, ex presidente do Superior Tribunal de Justiça, declarou na mídia nacional que:“O Estado brasileiro não pode interferir em normas internas da igreja, porque é laico, não tem religião.”[2] O comentário do ex Ministro surgiu em decorrência de um caso em que o judiciário interveio numa questão “interna corporis” da Organização Religiosa, determinando a realização de cerimônia de casamento de um membro, que não atendia aos preceitos religiosos com relação ao pacto divino que é o casamento.
Desse modo, assenta-se a jurisprudência na impossibilidade do Estado interferir em assuntos internos, de cunho meramente organizacional e estrutural de uma organização religiosa.
E, sendo a mera limitação do uso de certas vestimentas no local, onde se pratica a religião, questão interna corporis, precisa ser enxergada sob a ótica da liberdade organizacional da entidade religiosa, não sendo capaz de contrariar a ordem jurídica vigente, sobretudo, por se tratar de um ato regulamentar e interno da organização religiosa que, diante dos seus dogmas e costumes, impõem o traje adequado ao bom andamento e funcionamento da prática e do respeito religioso in loco.
Sendo assim, entende-se ser possível um ente privado religioso estabelecer normas comuns de vestimentas para o ingresso no local.
2.2 Necessidade de haver um comunicado afixado na entrada do estabelecimento quanto às vestimentas ou se poderia a conduta de proibição se valer de regras de costumes e do padrão médio de moralidade da sociedade.
A resposta a tal questionamento perpassa necessariamente pela temática da aplicação, ou não, das regras consumeristas à prestação de um serviço espiritual.
O Art. 3º, do CDC, define fornecedor como sendo toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
Por sua vez, o art. 3º, §2º, do Código de Defesa do Consumidor, conceitua serviço como sendo: qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.
Por outro lado, o mesmo regramento legal, no seu art. 6º, III, estabelece como direito básico do consumidor a informação clara e adequada sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem. In verbis:
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
III – a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem; (Redação dada pela Lei nº 12.741, de 2012)
Dos dispositivos legais mencionados, podemos inferir que o direito à informação previsto acima deve ser aplicado a toda relação consumerista em que o prestador de serviço ou produto se encaixe no conceito de fornecedor do art. 3º do CDC, bem como, que os seus serviços sejam remunerados de acordo com o §2º do mesmo regramento.
Em se tratando de entidade filantrópica ou religiosa que não visa lucro, isto é, não cobre do usuário qualquer importância vinculada à prestação do fornecimento de serviço ou produto, entendemos que esta não pode ser considerada fornecedora de serviços, nos termos do art. 3º do Código de Defesa do Consumidor. Isso porque, em tese, não há contraprestação entre o serviço religioso prestado por tais entidades e uma remuneração vinculada e obrigatória paga pelos seus fiéis.
Nesse sentido, o Tribunal de Justiça do Paraná decidiu que, em regra, as entidades religiosas, quando exercem suas atividades institucionais não devem ser consideradas fornecedoras para fins do Direito do Consumidor. Veja-se:
RECURSO INOMINADO - AÇÃO DE DANOS MORAIS E MATERIAIS - FURTO DE VEÍCULO EM ESTACIONAMENTO DE IGREJA ? INEXISTÊNCIA DO DEVER DE GUARDA ? NÃO CARACTERIZAÇÃO DE CONTRATO DE DEPÓSITO ? AUSÊNCIA DE LUCRO, AINDA QUE INDIRETO ? NÃO SE PODE EQUIPARAR O OFERECIMENTO GRATUITO DE VAGAS DE ESTACIONAMENTO, POR TEMPLO RELIGIOSO, À RELAÇÃO DE CONSUMO EXISTENTE COM SHOPPING CENTERS, FARMÁCIAS, SUPERMERCADOS E LANCHONETES, INEXISTINDO O DEVER DE GUARDA. EM REGRA, AS ENTIDADES RELIGIOSAS, NO EXERCÍCIO DE SUAS ATIVIDADES INSTITUCIONAIS, NÃO SE CARACTERIZAM COMO FORNECEDORAS. ENTIDADE FILANTRÓPICA. INEXISTÊNCIA DE DEVER DE INDENIZAR. CONDENAÇÃO AFASTADA - SENTENÇA REFORMADA.
Recurso conhecido e provido. Ante o exposto, esta Turma Recursal resolve, por maioria, conhecer e dar provimento ao recurso interposto, nos exatos termos deste vot (TJPR - 1ª Turma Recursal - 0010300-34.2014.8.16.0026/0 - Campo Largo - Rel.: Fernando Swain Ganem - Rel.Desig. p/ o Acórdão: Aldemar Sternadt - - J. 02.02.2016)
Portanto, tem-se que a natureza filantrópica e voluntária das entidades religiosas afastam a existência de uma relação contratual permeada por normas relativas à relação de consumo entre a igreja e os seus fiéis, não se aplicando, portanto, as normas consumeristas às relações dogmáticas religiosas.
Sendo assim, entende-se que uma igreja com fins filantrópicos não é obrigada a afixar em seu ambiente interno normas de limitação ao uso de trajes que não condizem aos costumes da entidade. No entanto, nada impede que o faça, como forma de definição de padrão comportamental que entenda ser relevante e em respeito aos seus fiéis.
3 CONCLUSÃO
Em face do exposto, o art. 44, IV, do CC, possibilita o exercício da liberdade organizacional das entidades religiosas, por regulamentos próprios, baseados pelos dogmas e costumes religiosos. Nessa perspectiva, as entidades religiosas podem estabelecer suas normas internas organizacionais de forma livre, desde que não violem o ordenamento jurídico vigente.
Da mesma forma, acrescenta-se que nenhuma pessoa é obrigada a permanecer em uma entidade religiosa quando não concorde com suas regras e dogmas, tendo total liberdade de buscar outra que se aproxime dos seus ideais religiosos e morais.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Código Civil, Processo Civil, Penal e Processo Penal. In Vade Mecum compacto. 3. ed. atual. eampl. São Paulo: Saraiva, 2010.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
CIFUENTES, R.L. Relações entre a Igreja e o Estado. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.
GARCIA, Gilberto. ESTADO LAICO: FUNDAMENTO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Em: http://www.institutojetro.com/artigos/legislacao-e-direito/estado-laicofundamento-da-republica-federativa-do-brasil.html. Publicado em 05.09.2016.
GRINOVER, Ada Pellegrini. Código de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 9. ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
SORIANO, Aldir. Liberdade Religiosa no Direito Constitucional e Internacional. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESPIRITO SANTO, AC 48930012256 ES 048930012256. Orgão Julgador PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL, DJ. 01/10/2006.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO PARANÁ. 1ª Turma Recursal. 0010300-34.2014.8.16.0026/0 - Campo Largo - Relator: Fernando Swain Ganem. DJ. 02.02.2016.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO, Processo Nº 0000054-30.2011.8.26.0244. Guilherme Henrique dos Santos Martins, DJ. 22/09/201.
[1] Advogado, Pós-Graduado e Mestre em Direito. Especialista em Direito Religioso, Professor Universitário e Membro do IAB - Instituto dos Advogados Brasileiros. Autor dos Livros: "O Novo Código Civil e as Igrejas", "O Direito Nosso de Cada Dia", Editora Vida, e, "Novo Direito Associativo", e, Co-Autor na Obra-Coletiva: "Questões Controvertidas - Parte Geral do Código Civil", Editora Método, e, do DVD-"Implicações Tributárias das Igrejas", Editora CPAD.
[2] GARCIA, Gilberto. ESTADO LAICO: FUNDAMENTO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Em: http://www.institutojetro.com/artigos/legislacao-e-direito/estado-laicofundamento-da-republica-federativa-do-brasil.html. Publicado em 05.09.2016. Acesso em: 09 de maio de 2017.
Servidora Pública formado pela Centro Universitário do Rio Grande do Norte. Pós-graduado em Direito Civil e Empresarial pelo Centro Universitário do Rio Grande do Norte.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Heloisa Pessoa Teles de. Direito religioso: liberdade religiosa e limites internos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 jan 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51291/direito-religioso-liberdade-religiosa-e-limites-internos. Acesso em: 22 dez 2024.
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