É comum que a cada notícia de ato violento praticado por menores de 18 anos surjam vozes defendendo a necessidade de redução da maioridade penal. Não à toa, tramitam no Congresso diversos projetos de emenda constitucional objetivando tal redução, os quais são apontados como solução para os índices de violência no Brasil.
Mas partindo diretamente ao ponto que interessa, e sem maiores rodeios: a redução da maioridade penal é inviável sob o aspecto jurídico, ineficaz do ponto de vista de redução da criminalidade, além de significar a assunção, pelo Estado e pela sociedade, do fracasso na proteção e promoção dos direitos e garantias de crianças e adolescentes.
Sob o aspecto jurídico, são dois os obstáculos: o fato de o artigo 228 da Constituição Federal (que prevê a maioridade penal a partir dos 18 anos) ser cláusula pétrea, e o princípio da vedação do retrocesso, aplicável quando envolvidos Direitos Humanos.
Aos que não são da área jurídica, importante esclarecer que cláusulas pétreas são aquelas matérias que, por determinação do próprio constituinte originário, não poderão ser abolidas, sendo que eventuais propostas de emenda constitucional com tais fins não devem prosperar. É o que determina o §4º do artigo 60 da Constituição Federal, o qual dispõe que não serão sequer objeto de deliberação as propostas de emenda tendentes a abolir a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; os direitos e garantias individuais.
E gostem ou não, a previsão do artigo 228 da Constituição se apresenta como garantia individual, no sentido de assegurar que menores de 18 anos não serão criminalmente responsabilizados, reservando a eles a sujeição à legislação específica, que no caso tem o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8069/1990) como principal diploma.
Semelhante é o entendimento dos doutrinadores Alexandre Morais da Rosa e Ana Christina Brito Lopes, que também defendem a inviabilidade da redução da maioridade penal, pois “há um impeditivo constitucional. Além de ser uma cláusula pétrea (CR, art. 60, IV), ou seja, impossível de modificação pelo constituinte derivado, a cláusula da idade penal (18 anos), implicou no estabelecimento de um direito subjetivo inscrito na tradição.” [1]
Como já adiantado no início, também se entende que quando se está a tratar de direitos e garantias individuais, incide o princípio da vedação do retrocesso. Isso significa que atingido determinado patamar de proteção a direitos e garantias individuais, não é lícito ao Estado voltar atrás, impondo limitações àqueles direitos e garantias. É justamente o caso da maioridade penal: uma vez fixada em 18 anos pela Constituição Federal, assegurando a todos os que não tenham atingido tal idade tratamento especial quando da prática de fatos penalmente típicos, não se mostra possível que tal garantia seja suprimida mediante a redução da idade mínima para a responsabilização criminal. Novamente citando Alexandre Morais da Rosa e Ana Christina Brito Lopes, “inscrito no contexto brasileiro um marco divisório da responsabilização, a redução implicaria em retrocesso social, cuja factibilidade encontra barreira na Teoria da Constituição de viés democrático”.[2]
Portanto, qualquer proposta de redução da maioridade penal na verdade configura a mais pura e irresponsável falácia, medida oportunista utilizada para iludir a população, já que inviável do ponto de vista jurídico. E caso uma emenda deste teor chegue a tramitar e a ser aprovada no Congresso, tende – ao menos é o que se espera - a ser fulminada pelo Supremo Tribunal Federal em provável ação direta de inconstitucionalidade.
Por outro lado, também entende-se que a redução da maioridade penal não será útil do ponto de vista prático, visto que não se prestará a reduzir a violência. Afinal, não passa de ilusão a ideia de que a criminalização de condutas ou o aumento das penas sejam ferramentas eficientes no combate ao crime. Diversamente do que se pensa, tais medidas não inibem a prática das condutas proibidas, servindo apenas para incremento de um sistema punitivo desproporcional, seletivo, excludente, e, ele sim, criminógeno.
A título de exemplo, ainda que a Indonésia – que chegou a se tornar “modelo” de país para parte do curioso povo brasileiro – puna com a morte o tráfico de drogas, estimativas indicam que o consumo delas por lá aumentará em 45% em 2015 [3]. Da mesma forma, estudos realizados em 2004 nos Estados Unidos indicavam taxa média de homicídios nos estados que aplicavam a pena de morte no patamar de 5,71 por 100.000 habitantes, sendo que os estados que não a aplicavam apresentavam índices de 4,02 homicídios por 100.000 habitantes[4]. Ou seja: se nem mesmo a pena capital serve para prevenção da criminalidade, o que dirá da mera inclusão de jovens abaixo de 18 anos no rol dos penalmente imputáveis. Outro detalhe interessante diz respeito ao fato de que não houve redução da criminalidade em países onde se deu a redução da maioridade penal, sendo que Espanha e Alemanha chegaram a voltar atrás após promoverem tal redução.[5]
Como se não bastasse, estatisticamente o adolescente está longe de ser o grande vilão da criminalidade. Em um interessante momento de lucidez da grande mídia, no programa “Profissão Repórter” da Rede Globo de Televisão [6], exibido em agosto de 2014, o repórter Caco Barcellos comprovou através da demonstração de estatísticas que no ano de 2005, na cidade de São Paulo, os menores de 18 anos foram responsáveis por apenas 1,9% dos 3233 crimes em que houve morte, o que equivale a 69 ocorrências, ao passo que os adultos deram causa a 98,1% deles (3172 crimes). Já em 2013 os números não sofreram grande alteração: dos 1530 delitos com resultado morte ocorridos na cidade de São Paulo, 94% foram praticados por maiores de idade, ao passo que apenas 6% o foram por menores de 18 anos. Portanto, chega a ser aberrante atribuir aos adolescentes a culpa pela violência nas cidades brasileiras.
Também de se frisar que ao reduzir a maioridade penal o Estado retirará jovens do sistema socioeducativo para jogá-los em outro cuja falência se mostra notória há décadas: o sistema prisional, com todos os seus conhecidos problemas de superlotação, violência, tortura, facções criminosas e tantos outros, os quais matam qualquer já remota chance de ressocialização dos detentos. Logo, se os que defendem a redução da maioridade penal o fazem cientes do inferno em que atirarão adolescentes de 16 anos – ou menos -, que tenham a dignidade de assumir que seu objetivo é única e exclusivamente punição e vingança, já que não conseguirão inibir a prática de novas infrações e tampouco recuperar esses jovens.
Por fim, reduzir a maioridade penal significa que o Estado e a sociedade assumiram o seu fracasso na proteção às crianças e adolescentes, mas imputando cinicamente a estes últimos a responsabilidade por isso. O fato de o constituinte originário ter fixado em 18 anos a maioridade penal evidencia uma opção de política criminal que obriga o próprio Estado, seus agentes e a sociedade. A mensagem passada pela Constituição é a de que crianças e adolescentes até tal idade devem ser protegidos, sem retrocessos. Firmou-se um marco civilizatório a partir do qual só pode ser admitida a evolução. Embora seja indiscutível a existência da violência e da criminalidade, e de um número considerável de adolescentes ligados a elas, tais questões precisam ser enfrentadas de forma adequada, e não punindo ainda mais esses jovens. É obrigação do Estado e da sociedade dar condições para que adolescentes de 12 a 18 anos tenham condições dignas de vida, longe das drogas e da violência. Tenham estudo, saúde, e moradia. Porque outro detalhe também é indiscutível: a esmagadora maioria dos jovens que são penalizados com medidas socioeducativas pertencem às classes mais pobres, cujos pais em grande parte das vezes passaram pelos mesmos percalços. Ou seja: são todos tristes personagens de um já antigo ciclo de abandono, repressão e violência.
Logo, é preciso trabalhar para que esses adolescentes não sejam perdidos, o que obviamente ocorrerá caso atirados ao sistema prisional. O Estado precisa assumir suas responsabilidades e se fazer presente de outras formas, que não apenas a policial, repressiva. Deve levar educação, saúde e saneamento às áreas periféricas. Proporcionar assistência às famílias destes jovens, propiciando o seu desenvolvimento e permitindo que possam formá-los e educá-los dignamente. De nada adianta um adolescente que passou dois ou três anos internado retornar para o mesmo local desestruturado em que vivia, e que só conhece a vertente violenta do Estado.
Por isso pode-se afirmar sem qualquer receio que a redução da maioridade penal é o Estado admitir seu fracasso, e ao invés de tentar superá-lo, optar pela desistência, e o que pior, penalizando justamente quem ele deveria proteger, como se culpado fosse. É como se dissesse: “Falhamos. Somos incompetentes. Não soubemos lidar com os jovens. Então, a partir de agora, com 16 anos responderão criminalmente.” É o caminho mais fácil (“não sei o que fazer com o problema, então o trancafio no presídio”), mas indiscutivelmente o mais deplorável de todos. Qual seria o próximo passo? Depois de um tempo reduzir para 14 anos a maioridade penal, e depois para 12, até chegar o dia em que haveria crianças criminalizadas?
Não se pode esquecer que recrudescer o sistema penal como um todo, criminalizando novas condutas, aumentando penas, e reduzindo a maioridade penal, é medida covarde e fácil. Difícil é o caminho correto, mas que precisa ser seguido por imposição constitucional: lutar pela construção de uma sociedade justa e solidária, sem pobreza e com reduzida desigualdade social, o que passa pelo acolhimento da juventude, e não por sua punição.
Em suma: além de juridicamente impossível, ao reduzir a maioridade penal o Estado e a sociedade assumem seu fracasso (gerado por suas próprias falhas), desistem de reverter esse quadro, e jogam a culpa nos adolescentes. Cinismo maior, impossível.
NOTAS:
[1] LOPES, Ana Christina Brito; ROSA, Alexandre Morais da. Redução da Idade Penal: “Vale a ‘pena’ ver de novo” in http://justificando.com/2014/09/12/reducao-da-idade-penal-vale-pena-ver-de-novo/.
[2] Idem
[4] http://www.amnistia-internacional.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=77:mitos-e-factos-sobre-a-pena-de-morte-&catid=18:mitos-e-factos&Itemid=76 . Acesso em 04/02/2015
[5] http://www.pragmatismopolitico.com.br/2014/04/todos-os-paises-que-reduziram-maioridade-penal-nao-diminuiram-violencia.html
Defensor Público do Estado de São Paulo. Colaborador do Núcleo Especializado de Combate à Discriminação, Racismo e Preconceito da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Graduado em Direito pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) - Campus Franca. Especialista em Ciências Penais.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BAGHIM, Bruno Bortolucci. Redução da maioridade penal e o cinismo de quem não assume os seus erros Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 jan 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51293/reducao-da-maioridade-penal-e-o-cinismo-de-quem-nao-assume-os-seus-erros. Acesso em: 23 dez 2024.
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