Resumo: O presente artigo versa sobre os problemas que envolvem a execução provisória da pena no sistema processual penal brasileiro, especialmente no que concerne ao respeito à garantia constitucional da presunção de inocência, aqui visto sob seu cariz de valor político-constitucional. No atual contexto nacional em que se investe sobremaneira em relativizações de garantias fundamentais e em falsas soluções punitivistas, torna-se imprescindível que o processo penal se imponha desde os princípios consagrados na Carta Magna 1988. Dessa maneira, pretende-se demonstrar os novos contornos do posicionamento construído pelo Supremo Tribunal Federal sobre o tema, especialmente após a manifestação do Ministro Alexandre de Morais acerca da viabilidade da execução provisória pena, uma vez que o seu posicionamento ainda não era formalmente conhecido.
Palavras-chave: Processo Penal; Presunção de Inocência; Execução Provisória da Pena; Supremo Tribunal Federal.
O presente artigo busca analisar os efeitos da execução provisória da pena privativa de liberdade após o posicionamento exposto pelo Ministro Alexandre de Morais acerca da viabilidade da execução provisória pena, e a consequente violação do princípio da presunção de inocência, já advinda dos julgamentos do Habeas Corpus nº 126.292/SP e das Ações Declaratórias de Constitucionalidade nº 43 e nº 44.
Ao se verificar a constante flexibilização das garantias constitucionais e dos pressupostos de punição penal, estabelecemos como ponto nodal a ser analisado o princípio político-jurídico da presunção de inocência, garantia fundamental da Carta Constitucional de 1988, segundo a qual o indivíduo somente pode ser considerado culpado com o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Equivocado, portanto, estabelecer que “o núcleo da presunção de inocência, garantia indispensável ao próprio Estado democrático de Direito, não esbarra na necessidade do trânsito em julgado da decisão condenatória, mas tangencia o imperativo da comprovação da culpabilidade na forma da lei e o duplo grau de jurisdição”.[1] Se os últimos movimentos da Suprema Corte demonstram que o tema está longe de qualquer consenso, necessário seu trato de maneira academicamente robusta buscando contribuir com a discussão.
Dessa forma, a análise do tema, a seu modo, passa a configurar um movimento de resistência pela salvaguarda dos direitos do acusado, ambicionando minimizar a incidência de julgamentos precipitados cada vez mais frequentes no Poder Judiciário. Pretende-se, em suma, demonstrar que o clamor social pela punição de eventuais suspeitos não pode ser maior do que a preocupação de não submeter um inocente a uma injusta condenação. Razão pela denota-se a fragilidade do argumento de que a presunção de inocência “não pode ser interpretada ao pé da letra, literalmente, do contrário os inquéritos e os processos não seriam toleráveis, posto não ser possível inquérito ou processo em relação a uma pessoa inocente”.[2]
O Ministro Alexandre de Moraes finalmente manifestou-se formalmente acerca da execução provisória da pena, por oportunidade de julgamento realizado perante a Primeira Turma do STF no dia 06/02/2018. Como já vinha deixando transparecer em algumas declarações, o Ministro alinhou sua posição no sentido da viabilidade do instituto após a realização do julgamento de segunda instância (duplo grau de jurisdição).
De forma a justificar seu entendimento, o Ministro Alexandre de Moraes destacou que “para se afastar o princípio da presunção de inocência e permitir a prisão, é preciso que haja pelo menos dois julgamentos de mérito, na primeira e segunda instância”. Com o máximo respeito, a afirmação do eminente Ministro desconsidera por absoluto a previsão contida no art. 5º, LVII, da Constituição Federal de 1988, que estabelece que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
O trânsito em julgado se materializa quando a decisão judicial se torna imutável e, portanto, não sendo mais passível de ser revisada com a interposição de novos recursos. A partir desta compreensão é que o princípio da presunção de inocência caracteriza-se como uma basilar garantia do acusado no processo penal, pois enquanto a condenação não transitar em julgado, não é possível restringir a sua liberdade. A exceção de tal regramento constitucional se dá apenas nas situações em que estejam presentes os pressupostos da prisão preventiva (art. 312 do CPP), o que nada tem a ver com cumprimento antecipado de pena.
Sem qualquer dúvida, a partir de uma interpretação contrária a todo e qualquer limite semântico[3] do art. 5º, LVII, da Carta Magna de 1988, as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal em relação à execução provisória da pena, não só afrontam de maneira definitiva garantias fundamentais do acusado, mas frustram, também, todo um legado de conquistas democráticas da sociedade brasileira.[4] Por força disso, acaba-se por deturpar toda a estrutura do devido processo legal, ao passo que a prisão acaba tornando-se regra em detrimento da liberdade, e a presunção de culpa regra em detrimento da presunção da inocência.
Deve restar claro que o acesso aos recursos até o trânsito em julgado é uma garantia processual enraizada na Constituição, um direito fundamental inegociável de todo o acusado que se vê constantemente afetado por trajetórias jurisprudenciais oscilantes e flexibilizadoras de postulados de nosso ordenamento jurídico, ainda mais, quando alicerçados numa errônea interpretação do princípio da presunção de inocência.
No que concerne a análise comparativa de ordenamentos jurídicos, no mínimo, deve ser considerada inadequada. E mesmo que, por aços, tais apontamentos fossem verdadeiros (ocorrência da execução provisória da pena como regra após o duplo grau de jurisdição), eles jamais poderiam servir para a demolição de tão relevante garantia do sistema constitucional brasileiro. Raciocinar dessa forma, sem dúvida, é no mínimo ignorar que a toda nação corresponde uma tradição jurídica e que isto representará desdobramentos singulares, em especial na estruturação de suas respectivas Cartas Constitucionais. Em última análise, para além de estabelecerem os direitos e garantias dos cidadãos, tais pactos políticos asseguram que as especificidades sociais, políticas, econômicas e jurídicas de determinado povo sejam respeitadas.
Diante disso, parece pertinente questionar: “quantas liberdades garantidas pela Carta Política precisarão ser comprometidas para legitimar o julgamento plenário do Supremo Tribunal Federal que, ao instituir artificial antecipação do trânsito em julgado, frustrou, por completo, a presunção constitucional de inocência?”.[5]
Ademais de todo dito acerca do desrespeito técnico-jurídico das posturas consolidadas pelo STF, cabe se interrogar em que horizonte se colocam os posicionamentos de uma Suprema Corte que deveriam ser o primeiro anteparo às violações constitucionais? Que sintoma indicam quanto a anemia democrática sinalizada politicamente nos dias que correm? Será exatamente em tempos de urgência de violência punitiva, aparentemente irrefreáveis, que um gesto de resistência se impõe a todos, nem que seja pelo resto de vergonha que ainda nos sobreviva.[6]
Fica a esperança que algum dos Ministros favoráveis à viabilidade da execução provisória da pena reconsidere, como aliás vem sendo noticiado, o entendimento firmado no HC 126.292/SP, de modo a deixar de lado a insistência em não reconhecer (de uma vez por todas) que o aludido instituto é inconstitucional.
De forma sucinta, podemos apontar que o acesso aos recursos até o trânsito em julgado é uma garantia processual enraizada na Constituição, um direito fundamental inegociável de todo o acusado. Diante de tal compreensão, evidencia-se a grave insegurança jurídica resultante das decisões da maioria dos Ministros da Suprema Corte, que a partir de uma errônea interpretação acerca do princípio da presunção de inocência, bem como de uma inadequada comparação com ordenamentos jurídicos de outros países, acabaram por fulminar a indispensável presunção de inocência do cidadão no processo penal.
Ao “resgatar” a execução provisória da pena privativa de liberdade, a posição majoritária do Supremo Tribunal Federal enfraqueceu a previsão contida no art. 312 do Código de Processo Penal, uma vez que se torna desnecessário justificar e fundamentar a necessidade de o acusado ser preso preventivamente antes de transitar em julgado a sentença condenatória. Assim sendo, resta escancarada a possibilidade de a segregação se tornar regra em detrimento da liberdade, e a presunção de culpa regra em detrimento da presunção da inocência.
Desse modo, prevalecendo a posição manifestada pelo Ministro Alexandre de Moraes, o que fica é o prenúncio da pá de cal na presunção de inocência.
[1] SUXBERGER, Antonio Henrique Graciano; AMARAL, Marianne Gomes de. A execução provisória da pena e sua compatibilidade com a presunção de inocência como decorrência do sistema acusatório. Revista de Direito Brasileira, São Paulo, vol. 16, n. 7, p. 186-210, jan./abr. 2017. p. 193.
[2] LIMA, Gabriel Pantaroto; BEZERRO, Eduardo Buzetti Eustachio. A execução provisória da pena privativa de liberdade e sua compatibilização com o princípio da presunção da inocência. Colloquium Socialis, Presidente Prudente, v. 01, n. Especial, p. 453-458, jan/abr 2017. p. 454.
[3] STRECK, Lenio. Os limites semânticos e sua importância na e para a democracia. Revista da AJURIS, Porto Alegre, v. 41, n. 135, p. 173-187, set. 2014.
[4] Cf. CASARA, Rubens R. R. Mitologia Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 292 ss.
[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADC 43, Tribunal Pleno. Relator Ministro Marco Aurélio. Brasília, DF, julgamento em 05 de outubro de 2016.
[6] AMARAL, Augusto J.; CALEFFI, Paulo S. P. Pré-ocupação de inocência e execução provisória da pena: uma análise crítica da modificação jurisprudencial do STF. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 3, n. 3, set./dez. 2017. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v3i3.102.
Advogado. Mestre e Especialista em Ciência Criminais pela PUCRS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CALEFFI, Paulo Saint Pastous. O prenúncio da pá de cal na presunção de inocência Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 fev 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51350/o-prenuncio-da-pa-de-cal-na-presuncao-de-inocencia. Acesso em: 23 dez 2024.
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