Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar a possibilidade de o Poder Judiciário exercer controle sobre as políticas públicas desenvolvidas pelo Poder Executivo e aprovadas, no aspecto orçamentário, pelo Poder Legislativo, de modo a dar maior efetividade aos direitos garantidos constitucionalmente. Até a promulgação da Constituição de 1988, as políticas públicas eram estudas sob o aspecto estritamente político. A partir da redemocratização brasileira e com a evolução da sociedade moderna, o Judiciário passa a desempenhar importante tarefa de controle e execução das politicas afetas aos direitos fundamentais. Dessa inédita e recente função jurisdicional surgem diversas críticas e teorias acerca dos limites a que os magistrados estão submetidos.
Sumário: 1.Introdução. 2. Evolução dos direitos fundamentais. 3. Definição de políticas públicas. 4. A reserva do possível. 5. Ativismo judicial: críticas e limites. 6. Conclusão. 7. Referências bibliográficas.
1. Introdução
A Constituição Federal (artigo 5o, parágrafo 1o) estabelece que as normas definidoras dos direitos e garantias individuais têm aplicabilidade imediata, de modo que o Estado Social deve atuar e intervir em prol dos destinatários das diretrizes do bem-estar social. Por outro lado, é certo que um dos maiores desafios do Estado brasileiro é efetivar tais direitos mantendo o equilíbrio econômico-financeiro, evitando a expansão dos gastos públicos.
É por meio das políticas públicas que as determinações constitucionais saem do papel e se tornam utilidades aos administrados. Todavia, por exigirem atuação estatal positiva, dependem de recursos públicos orçamentários, o que pode inviabilizar ou obstaculizar sua plena efetivação.
Nos últimos anos, em especial a partir da promulgação da atual Constituição, o tema da judicialização das políticas públicas tornou-se recorrente nos tribunais pátrios. Ante a crise de efetividade dos direitos fundamentais, muitas vezes decorrente da omissão ou má atuação do Poder Legislativo e do Poder Executivo, cada vez mais as demandas apresentadas ao Poder Judiciário dizem respeito à concretização de tais direitos.
O presente artigo, com embasamento na doutrina e na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, pretende analisar e debater a evolução histórica da atuação do Judiciário como ente assecuratório de direitos constitucionais, o papel político desse Poder e os limites aos quais está submetido, levando-se em consideração o princípio da reserva do possível.
2. Evolução dos direitos fundamentais
Os direitos fundamentais são o núcleo de proteção da dignidade da pessoa humana, sendo a Constituição Federal o local adequado para a positivação das normas assecuratórias desse princípio. De acordo com Mendes (2013, p. 135): “os valores mais caros da existência humana merecem estar resguardados em documentos jurídico com força vinculativa máxima”.
A compilação dos direitos fundamentais no texto constitucional como normas obrigatórias e de aplicação imediata é fruto de um processo histórico, do qual destacam-se três fases importantes.
A primeira dimensão, impulsionada pelo pensamento liberal-burguês, cuja ideia de dignidade do homem ensejaria uma proteção especial, marca a passagem de um Estado autoritário para um Estado de Direito que respeita e efetiva as liberdades individuais. Neste primeiro momento, evidenciam-se os direitos referentes às liberdades públicas e aos direitos políticos, os quais são oponíveis ao Estado, que deveria atuar abstendo-se e não intervindo nos aspectos da vida privada dos cidadãos (LENZA, 2014, p.1056).
Diante do descaso estatal no tocante aos problemas de índole social, em especial as péssimas condições de trabalho, a partir da Revolução Industrial do século XIX, surgem movimentos sociais reivindicando melhorias nas condições de trabalho e normas no âmbito da assistência social. Essa perspectiva impõe ao Estado a intervenção na vida econômica, social e cultural dos indivíduos (LENZA, 2014, p. 1057). No entanto, de acordo com Bonavides (2010, p. 564), a segunda geração dos direitos fundamentais demandam prestações materiais do Estado, que podem ser limitados ou nem sempre exigíveis em virtude da escassez de recursos públicos.
A terceira dimensão dos direitos fundamentais, marcada por mudanças nacionais e internacionais, tem como principal característica a titularidade difusa ou coletiva daqueles direitos, pois não são concebidos para a proteção do homem de maneira isolada, mas sim da coletividade como um todo. Como exemplo dos direitos tutelados por esta dimensão podemos citar o direito à paz, ao meio ambiente equilibrado e à preservação do patrimônio histórico e cultural (MENDES, 2013, p. 138).
A fim de que os direitos não fossem apenas letra morta da Constituição ou que sua implementação só fosse efetivada a partir da atuação legislativa, estabeleceu-se no artigo 5o, parágrafo 1o, da Lei Maior, que tais normas têm aplicabilidade imediata.
Nas lições de Mendes (2013, p. 154): “os direitos fundamentais não são meramente normas matrizes de outras normas, mas são também, e sobretudo, normas diretamente reguladoras de relações jurídicas”.
Diante da omissão legislativa, a ação declaratória por omissão e o mandado de injunção são remédios aptos a combater a inefetividade do Estado. Além disso, cabe aos juízes aplicar diretamente as normas constitucionais nas demandas que apreciam, para que o litígio seja solucionado.
Nesse contexto, surge o denominado ativismo judicial, o qual autoriza os operadores do direito, mesmo diante da omissão legislativa, concretizar os direitos fundamentais previstos na Carta Magna (MENDES, 2013, p. 154).
Assim, a judicialização das políticas públicas é resultado das novas características dos direitos fundamentais, que cada vez mais demandam atuação efetiva do Estado, exigindo do Poder Judiciário maior atuação diante das omissões e abusos do Poder Legislativo e do Poder Executivo. Consoante ensinamento de Barboza e Kozicki (2012, p. 5):
“O caráter aberto e abstrato das normas constitucionais modifica o paradigma positivista de uma suposta previsão da norma a ser adotada ao caso concreto, passando os países que adotaram o constitucionalismo como forma de proteção dos direitos fundamentais contra as arbitrariedades estatais a se aproximar do common law, especialmente no que diz respeito à jurisdição constitucional. Como não há possibilidade de se apontar previamente qual o direito aplicado ao caso, caberá ao Judiciário densificar e dar significado a esses direitos, de acordo com o contexto histórico, social, político, moral e jurídico da sociedade naquele determinado momento. A norma, portanto, não existe no texto, mas apenas no caso concreto”.
Em decorrência desse movimento, o Judiciário tem sofrido severas críticas, haja vista não ser órgão constitucionalmente competente para tratar de questões políticas. Sua intervenção positiva por meio das políticas públicas é tema recorrente e que gera grandes debates.
3. Definição de políticas públicas
O protagonismo do Poder Judiciário na efetivação dos direitos fundamentais é processo aparentemente irreversível diante das demandas, cada vez mais numerosas, apresentadas àquele Poder e se é por meio das políticas públicas que os direitos garantidos constitucionalmente se concretizam, importante é a tarefa de defini-las.
As políticas públicas têm início com estudos realizados pelo Poder Executivo ou Poder Legislativo, bem como por projetos elaborados pela sociedade civil, por meio das quais são elaborados os projetos de governo.
De acordo com Boneti (2011, p. 18), política pública pode ser entendida como ação realizada pelo Estado em prol da coletividade ou ainda: “resultado da dinâmica do jogo de forças que se estabelece no âmbito das relações, relações essas constituídas pelos grupos políticos e demais organizações da sociedade civil”.
Para Emerique (2012):
“As políticas públicas podem ser conceituadas como instrumentos de execução de programas políticos baseados na intervenção estatal na sociedade com a finalidade de assegurar igualdade de oportunidades aos cidadãos, tendo por escopo assegurar as condições materiais de uma existência digna a todos os cidadãos".
As políticas públicas articulam, portanto, as ações governamentais à realização dos mandamentos constitucionais e legais, limitando a discricionariedade do agente público, consolidando o Estado Democrático de Direito (EMERIQUE, 2012).
Os direitos fundamentais de caráter prestacional possuem cunho econômico e exigem uma ação estatal positiva, esbarrando, muitas vezes, na reserva do possível e na falta de orçamento, o que impede sua imediata aplicação (EMERIQUE, 2012).
O Poder Executivo é o ente responsável pela elaboração da lei anual do orçamento público e pela previsão de políticas sociais que efetivem os direitos fundamentais, competindo ao Poder Legislativo sua aprovação. Ocorre que, reiteradamente, tais poderes permanecem inertes na concretização dos direitos, outras vezes, o processo de escolha e produção das políticas são ocasionais e episódicos, visando questões de cunho estritamente político.
Com a evolução da sociedade moderna, as relações sociais foram se tornando cada vez mais complexas, ocasionando o questionamento das políticas públicas adotadas pelos representantes populares, de modo que o Poder Judiciário é progressivamente acionado a se manifestar sobre os direitos existentes nas controvérsias políticas (EMERIQUE, 2012).
4. A reserva do possível
A cláusula da reserva do possível teve origem na Alemanha com o caso dos numerus clausus, onde estudantes que pretendiam ingressar em curso superior questionavam a limitação de vagas nos cursos de direitos e medicina nas universidades, indo de encontro à constituição alemã, que assegurava a livre escolha da profissão. Em defesa, o Estado Alemão alegou a teoria da reserva do possível, afirmando que não teria condições para oferecer o curso a todos os interessados, pois seus recursos financeiros eram limitados e finitos, além de não ser razoável que todos os estudantes se formassem em apenas duas áreas da ciência.
No Brasil, tal cláusula passou a ser relacionada à reserva do financeiramente possível, de modo que a disponibilidade financeira e a previsão orçamentária estariam ligadas à aplicação da teoria (ÁVILA, 2013). O fundamento inicial de análise do princípio da razoabilidade da pretensão exigida, no Brasil, foi deixada de lado, restringindo-se à disponibilidade ou não de recursos financeiros.
Desse modo, a teoria da reserva do possível tornou-se justificativa para ausência estatal no cumprimento do papel constitucional a ele deferido pela Constituição Federal de provedor das necessidades da sociedade, especialmente no tocante aos direitos fundamentais (ÁVILA, 2013).
A doutrina classifica a reserva do possível em fática e jurídica. Aquela estaria ligada a existência de recursos financeiros em caixa, assim, se houver disponibilidade financeira não estaria presente a reserva do possível. Por sua vez, a reserva jurídica estaria relacionada à previsão ou não da despesa na Lei Orçamentária Anual.
Para o Supremo Tribunal Federal tal cláusula não pode ser invocada pelo ente estatal com o objetivo de exonerar-se, dolosamente, do cumprimento de suas obrigações constitucionais, especialmente quando dessa conduta governamental negativa puder resultar nulificação ou aniquilação de direitos impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.
Conclui-se que a reserva do possível não pode ser invocada quando restar comprovado que a Administração Pública visa se esquivar da aplicação de determinados direitos, devendo ela ser rechaçada na órbita administrativa ou judicial, principalmente quando afeta o mínimo existencial dos cidadãos, que pode ser entendido como aquele conjunto de direitos indispensáveis à existência humana digna.
5. Ativismo judicial: críticas e limites
De acordo com o entendimento doutrinário e jurisprudencial, o ativismo judicial deve ser visto sob duas perspectivas. A ótica clássica, a qual antecede a Constituição Federal de 1988, compreende-se no regime militar, época em que não havia grande espaço para o Judiciário atuar na implementação das políticas públicas de caráter social. Neste período consolidou-se o entendimento segundo o qual não competia aos magistrados imiscuir-se no mérito administrativo, de modo que somente o legislador, por meio das políticas públicas, previsão orçamentária e edição de leis, poderia efetivar os direitos.
Em um segundo momento, diante do Estado Social, pós Constituição de 1988 e sob uma perspectiva mais moderna, amplia-se o papel do Poder Judiciário, ainda assim, o controle das políticas era visto como função excepcional. Neste período, o ente julgador só poderia implementar as políticas públicas desde que observasse os seguintes requisitos: a) razoabilidade na pretensão deduzida em juízo; b) quadro de manifesta abusividade e omissão estatal, que se prolonga no tempo, a ponto de configurar abuso de finalidade ou abuso de poder e c) observância da reserva do possível, ou seja, deveria haver previsão orçamentária e disponibilidade financeira para o Estado honrar com o compromisso social pleiteado. Uma vez ausente tal dotação, o Judiciário estaria de mãos atadas, sob pena de violar o princípio da legalidade da despesa. Desse modo, a escolha da política pública a ser levada a cabo estaria nas mãos do Poder Legislativo, definidor da Lei Orçamentária Anual.
Modernamente, em uma terceira fase do ativismo judicial, a atuação do Poder Judiciário é mais ampla, tendo como critério preponderante o princípio da razoabilidade, conforme fundamentado a seguir.
Barroso (2012, p. 6) tece as seguintes considerações sobre a judicialização políticas:
“A ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. A postura ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: (i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas”.
Em importante julgamento acerca do tema, o Supremo Tribunal Federal na ADPF 45 afirmou que a atribuição de formular e implementar políticas públicas não é função ordinária do Judiciário, entretanto, uma vez configurado o descumprimento dos encargos políticos-jurídicos pelo Estado, de modo que comprometa a eficácia e a integridade dos direitos individuais ou coletivos, a incumbência de protegê-los e aplicá-los recai sobre aquele ente.
Na mesma decisão, a Corte Suprema definiu que o desrespeito à Constituição pode ocorrer tanto por um comportamento quanto por uma omissão estatal. No primeiro caso, o Poder Público incorre em inconstitucionalidade quando, mediante um comportamento ativo, age ou edita normas em desacordo com as normas constitucionais, ofendendo, assim seus preceitos e princípios. Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização dos direitos fundamentais, incidirá em violação negativa do texto constitucional. Nos dois comportamentos cabe o controle judicial, desde que o faça de maneira ponderada e justa.
A seguir, transcreve-se parte da fundamentação do voto do Ministro Celso de Mello no julgamento da ADPF 45-DF, quando menciona a possibilidade de formulação e implementação das políticas públicas pelo Judiciário:
“Tal incumbe?ncia, no entanto, embora em bases excepcionais, podera? atribuir-se ao Poder Judicia?rio, se e quando os o?rga?os estatais competentes, por descumprirem os encargos poli?tico-juri?dicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a efica?cia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cla?usulas revestidas de conteu?do programa?tico. [...] Na?o obstante a formulac?a?o e a execuc?a?o de poli?ticas pu?blicas dependam de opc?o?es poli?ticas a cargo daqueles que, por delegac?a?o popular, receberam investidura em mandato eletivo, cumpre reconhecer que na?o se revela absoluta, nesse domi?nio, a liberdade de conformac?a?o do legislador, nem a de atuac?a?o do Poder Executivo. E? que, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoa?vel ou procederem com a clara intenc?a?o de neutralizar, comprometendo-a, a efica?cia dos direitos sociais, econo?micos e culturais, afetando, como decorre?ncia causal de uma injustifica?vel ine?rcia estatal ou de um abusivo comportamento governamental, aquele nu?cleo intangi?vel consubstanciador de um conjunto irreduti?vel de condic?o?es mi?nimas necessa?rias a uma existe?ncia digna e essenciais a? pro?pria sobrevive?ncia do indivi?duo, ai?, enta?o, justificar-se-a?, como precedentemente ja? enfatizado - e ate? mesmo por razo?es fundadas em um imperativo e?tico-juri?dico -, a possibilidade de intervenc?a?o do Poder Judicia?rio, em ordem a viabilizar, a todos, o acesso aos bens cuja fruic?a?o lhes haja sido injustamente recusada pelo Estado".
Ainda sobre o moderno papel do Judiciário controle Barboza e Kozicki (2012, p. 7) explicam que:
“[...] os juízes devem decidir os casos que lhes sa?o apresentados e não evitá-los, de modo a realizar a justiça, especialmente protegendo a dignidade da pessoa humana pela expansão da igualdade e da liberdade. Os juízes ativistas devem se comprometer a garantir soluções para os problemas sociais, principalmente utilizando-se de seu poder para dar conteúdo aos direitos e às garantias fundamentais que venham a realizar a justiça social. Ativistas não no sentido pragmático de ignorar a Constituicão ou os precedentes que lhe interpretaram, para impor seu pro?prio ponto de vista, mas no sentido de que devem estar eles preparados para responder às questões de moralidade política que lhe são apresentadas".
Assim, diante da crise de efetividade dos direitos fundamentais, não pode o Poder Público submeter a coletividade à omissão e à abusividade dos governantes e legisladores.
É certo que a reserva do possível deve ser considerada, mas não pode ser argumento absoluto para a inefetividade estatal. Sobre o tema, Bahia (2011) afirma que:
“O princípio da reserva do possível deve ser sempre analisado em confronto com o caso concreto, uma vez que estariam em contraposição princípios diferentes. Não se poderia permitir que uma decisão impusesse a um município o custeio de um tratamento a uma pessoa que significasse o exaurimento de todo o orçamento daquele município para a saúde – considerando que o orçamento anual tenha sido organizado de maneira devida. Por outro lado, não seria admissível alegar a reserva do possível para o caso de um administrado pleitear vaga em ensino fundamental para seu filho, uma vez constando no orçamento verbas consideráveis para publicidade. Como se percebe, trata-se de ponderar princípios, direitos e interesses em jogo, considerando principalmente as obrigações e direitos constitucionalmente previstos”.
O Judiciário é legitimado para o controle ‘político’ por dois fundamentos, um de natureza normativa e outro de natureza filosófica. O primeiro deles decorre da própria Constituição, pois expressamente determina que o Judiciário pode invalidar decisões emanadas por aqueles que exercem mandato político, em especial o Supremo Tribunal Federal, guardião máximo da Lei Maior. Assim, o magistrado, ao atuar em nome próprio e em conformidade com a lei consolida a vontade da maioria, promovendo a democracia (CARMONA, 2012).
A questão filosófica consiste no fato de que a Constituição da República realiza dois valores fundamentais, quais sejam: estabelece as regras do Estado Democrático de Direito e indica e protege os direitos e valores jurídicos fundamentais (CARMONA, 2012).
Por outro lado, muitas são as críticas ao protagonismo judicial, considerado um ‘governo de juízes’. Alega-se que os juízes não teriam competência para elaborar um novo direito, pois não representam o povo, não foram eleitos para tal função, de modo que o processo de ingerência interventiva judicial causaria ‘inevitável erosão da democracia representativa’ (CARMONA, 2012).
A corrente contramajoritária afirma que o Judiciário não possui legitimidade democrática para insurgir-se contra as leis elaboradas pelos representantes eleitos popularmente. O critério utilizado pelo magistrado seria subjetivo, pois sua vontade individual estaria expressa nas decisões prolatadas, realizando uma micro justiça em detrimento da macro justiça desejada por todos (CARMONA, 2012).
Crítico ferrenho do ativismo judicial, Streck entende que:
“Os juízes (e a doutrina também é culpada), que agora deveriam aplicar a Constituição e fazer filtragem das leis ruins, quer dizer, aquelas inconstitucionais, passaram a achar que sabiam mais do que o constituinte. Saímos, assim, de uma estagnação para um ativismo, entendido como a substituição do Direito por juízos subjetivos do julgador. Além disso, caímos em uma espécie de pan-principiologismo, isto é, quando não concordamos com a lei ou com a Constituição, construímos um princípio. (...) Tudo se judicializa. Na ponta final, ao invés de se mobilizar e buscar seus direitos por outras vias (organização, pressões políticas, etc.), o cidadão vai direto ao Judiciário, que se transforma em um grande guichê de reclamações da sociedade. Ora, democracia não é apenas direito de reclamar judicialmente alguma coisa. Por isso é que cresce a necessidade de se controlar a decisão dos juízes e tribunais, para evitar que estes substituam o legislador. E nisso se inclui o STF, que não é — e não deve ser — um super poder”.
A decisão singular, segundo os doutrinadores críticos ao ativismo, poderá, ainda trazer prejuízos não previsíveis quando da sua prolação à sociedade, pois não é possível antever os impactos sociais, políticos e econômicos delas.
Há de se estabelecer limites à atividade judicial quando atua em suas funções não ordinárias. É certo que dificuldades para restringir o ativismo são encontradas, considerando a amplitude e o conteúdo, especificamente nas demandas que versam sobre mínimo existencial. Barcellos (2011, p. 328) exemplifica alguns limites a serem impostos ao Judiciário:
“O primeiro versa sobre a aplicação judicial da tutela aos direitos pleiteados que menos impactem o orçamento público, ou seja, a opção do administrador público seria pela política que, com o menor dispêndio de valores atendesse o maior número de cidadãos. O segundo parâmetro propõe a formação das políticas públicas entendidas como parte do mínio existencial por prestações que todos do povo necessitem. A não identificação do mínimo existencial nos pleitos individuais, portanto, deve ser fundamento suficiente para o indeferimento da tutela não por questões pessoais de merecimento ou necessidade do requerente, mas porque o Estado, na situação de gestão atual, não consegue atender as necessidades da população para além do mínimo necessário para garantir condições de vida digna”.
O Supremo Tribunal Federal, analisando o tema em voga na retromencionada ADPF, entendeu que alguns requisitos devem ser analisados pelo julgador na análise de questões de cunho político, são eles: a) a omissão ou a política já implementada não oferecer condições mínimas de existência humana; b) se o pedido de intervenção for razoável; c) se do ponto de vista administrativo, a omissão ou a política seja desarroazoada. Tais critérios estabelecem verdadeiros limites ao Poder Judiciário, o que é importante para tornar o ativismo judicial objetivo e eficaz. Não obstante, se não for possível averiguar os requisitos nas demandas apresentadas, deve o magistrado ater-se à previsão dos recursos financeiros das políticas públicas na Lei Orçamentária Anual (MATSUURA, 2009).
Teixeira (2012), expondo limites ao ativismo judicial, elenca condutas que devem ser evitadas pelos magistrados, caso contrário, estariam lesionando o equilíbrio constitucional, são elas:
“1. Atuação como legislador positivo: é a forma mais flagrante de ativismo judicial nocivo, pois decorre de comportamento do Judiciário que tem por fim extrapolar sua condição de imparcialidade e produzir construções normativas incompatíveis até mesmo com o que as modernas técnicas hermenêuticas oferecem em termos de preenchimento de lacunas jurídicas e de resolução de conflitos entre normas.
2. Ofensa ao princípio da separação dos Poderes: ocorre quando o Judiciário vai além das suas prerrogativas funcionais e toma para si competências que são atinentes a outros Poderes. Embora seja uma modalidade sutil de ativismo judicial, uma vez que a quase totalidade das matérias que competem aos Poderes Públicos pode em algum momento ser objeto de exame pelo Judiciário, a conduta deste encontra limites que devem ser respeitados e muitas vezes estão postos pela própria natureza da causa em julgamento.
3. Desconsideração por precedentes jurisprudenciais: ocorre quando, sobretudo em se tratando de precedentes do mesmo Tribunal, a decisão desconsidera ou colide com entendimentos consolidados em jurisprudência firmada sobre matéria análoga ou idêntica, sem que, para tanto, tenha ocorrido alguma circunstância nova a ensejar mudança de orientação jurisprudencial. Trata-se também de espécie de ativismo judicial nocivo difícil de ser caracterizada, pois as decisões judiciais são o espaço adequado para que inovações possam surgir, mas tais inovações não podem carecer de sólida fundamentação normativa (não apenas legal) e adequação às exigências do caso concreto.
4. Decisões judiciais viciadas por decisionismo político: já expomos que essa é a modalidade mais nociva de ativismo judicial, pois, antes mesmo de se conhecer os pormenores do caso concreto, parte-se de predeterminações e predefinições que fogem dos limites da causa e buscam a satisfação de orientações morais, ideológicas ou políticas que o julgador possui. Ou seja, ocorre quando se busca encontrar qualquer fundamento legal ou jurisprudencial, por mais incompatível que seja com as exigências regulativas do caso concreto, apenas para justificar a adoção de uma decisão já predefinida ideologicamente.”
Com o reconhecimento do princípio da supremacia da Constituição como corolário do Estado Constitucional e, consequentemente, com a ampliação do controle judicial de constitucionalidade, nenhum assunto, quando suscitado à luz da Constituição, poderá estar previamente excluído da apreciação judicial, uma vez que a questão antes política torna-se jurídica.
6. Conclusão
O ativismo judicial amplia o espaço público de debate sobre questões atuais referentes à moralidade e à política no âmbito da sociedade brasileira, assumindo o Poder Judiciário importante papel na efetivação dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal.
Acima da crítica de que o protagonismo afrontaria a separação dos poderes estão o mínimo existencial, a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais, em especial aqueles referentes à saúde, que devem ser tutelados e concretizados, pois a saúde, a vida, a liberdade dos cidadãos são bens superiores, que não podem se submeter à má atuação, ineficiência e omissões dos gestores públicos.
No Estado Democrático de Direito, o Poder Judiciário deve ter um tem um papel mais atuante, em atenção às minorias, sem tomar para si a função de administrar ou legislar, dando ao caso concreto a solução mais adequada, em oposição a uma aplicação distante da realidade social. Considerando que as prioridades já estão definidas no corpo constitucional, na ausência de aplicabilidade das normas no mundo fático, o Judiciário não deve ficar de mãos atadas, mas sim empregar força normativa ao texto, priorizando as políticas públicas sociais por meio das demandas a ele apresentadas.
O ativismo judicial já é realidade. A judicialização da política traz ao Poder Judiciário matérias que antes eram consideradas políticas, fora do crivo e do controle jurisdicional, nesse sentido, tal ente assume papel inovador e relevante na concretização dos direitos fundamentais.
Competindo ao Estado, em especial ao Executivo e Legislativo nas suas funções ordinárias, colocar em prática os princípios, direitos e objetivos traçados pela Constituição, na sua omissão ou atuação em desconformidade com o ordenamento jurídico, cabe ao Judiciário essa tarefa, compelindo, ao menos temporariamente, o comportamento ilegal do Estado.
O controle judicial é alternativa crível para o correto cumprimento dos mandamentos constitucionais. As críticas e argumentos contrários ao controle das políticas não devem prosperar de forma plena, haja vista as novas exigências advindas do Estado Democrático de Direito no qual vivemos, não se olvidando dos limites estabelecidos pelo Supremo Tribunal Federal, caso contrário, estaríamos supervalorizando e atribuindo superpoderes àqueles que devem zelar pelo ordenamento jurídico.
Com o reconhecimento do princípio da supremacia da Constituição como corolário do Estado Constitucional e, consequentemente, com a ampliação do controle judicial de constitucionalidade, nenhum assunto, quando suscitado à luz da Constituição, poderá estar previamente excluído da apreciação judicial, uma vez que a questão antes política torna-se jurídica.
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Notas:
[1] BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz and KOZICKI, Katya.Judicialização da política e controle judicial de políticas públicas. Rev. direito GV [online]. 2012, vol.8, n.1, p. 5.
[2] EMERIQUE, Lilian Balmant; FERNANDES, Bárbara de Souza; GANDELMAN, Bernard ; SOUZA, Maíra Sirimaco Neves de. Reflexões sobre o exame jurisdicional de políticas públicas de direitos sociais. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XV, n. 103, ago 2012.
[3] BARROSO, Luiz Roberto. Jucialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática, p. 6.
[4] Voto proferido pelo ministro Celso de Mello no julgamento da ADPF45, p. 4 do acórdão.
[5] BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz and KOZICKI, Katya.Judicialização da política e controle judicial de políticas públicas. Rev. direito GV [online]. 2012, vol.8, n.1, p. 7.
[6] BAHIA, Gabriel Matos. Controle Jurisdicional é Realidade. Revista Consultor Jurídico, 2 de abril de 2011.
[7] Streck, Lênio Luiz. Compreender Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 57.
[8] BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 328.
[9] TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski. Ativismo judicial: nos limites entre racionalidade jurídica e decisão política. Rev. direito GV [online]. 2012, vol.8, n.1.
Pós-graduada em Direito Constitucional e Analista Processual do Ministério Público do Distrito Federal (MPDFT).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CASTRO, Pilar Jimenez. Ativismo judicial: controle de políticas públicas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 mar 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51469/ativismo-judicial-controle-de-politicas-publicas. Acesso em: 23 dez 2024.
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