RESUMO: Este estudo pretende abordar a aplicação da justa causa, condição imprescindível ao exercício do direito de Ação na esfera penal, no ramo do direito penal-tributário. Aborda-se as peculiaridades dos delitos tributários e a necessidade de observação do devido processo legal pelo Parquet, mormente em momentos que antecedem a deflagração da persecução criminal. Ganham destaque lições doutrinárias de estudiosos de ambos os ramos jurídicos, bem como a consolidação do entendimento do Supremo Tribunal Federal, no enunciado nº 24 da sua Súmula Vinculante.
Palavras-Chave: Justa causa para ação penal. Direito penal-tributário. Condições da ação. Súmula Vinculante nº 24.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Limites ao Poder de Denunciar. 3. Da Justa Causa. 4. Alcance e dimensão dos crimes tributários. 5. Da materialidade nos crimes tributários. 6. Constituição do crédito como requisito para configuração do crime material tributário. 7. Conclusões. REFERÊNCIAS.
1. INTRODUÇÃO
Segundo o velho brocardo latino “ubi societas, ibi jus”, que se traduz na máxima “onde há sociedade, há direito”. Ocorre que para estabelecer tais normas em sociedade o homem necessitou de uma entidade com força superior para fazê-las valer: o Estado.
Qualquer que seja a concepção adotada, unitário, federal, entre outras, certo é que o Estado desenvolve atividade financeira, buscando alcançar objetivos políticos, necessitando de recursos financeiros para tanto.
A principal forma de obter, gerir e aplicar tais recursos vem da tributação, notadamente nas economias capitalistas. Sem o tributo, o Estado não poderia realizar seus fins sociais e econômicos. Daí vem o poder de tributar atribuído a este ente superior soberano, com vistas a realizar serviços primordiais à sociedade, subsidiar investimentos para consecução do desenvolvimento da nação.
Se afigura imprescindível, portanto, que os indivíduos forneçam ao Estado os recursos de que necessita, para consecução dos objetivos sociais e econômicos, o que demonstra a importância fundamental da tributação como forma de manutenção do Estado.
Assim, todo arcabouço normativo que envolve essa atividade arrecadadora e fiscalizatória dos recursos imprescindíveis ao Estado é objeto do Direito Tributário. Tal ciência jurídica serve como uma garantia dos cidadãos contra o ius imperii do Estado, evitando arbitrariedades na arrecadação tributária.
Ocorre que muitas vezes os cidadãos não se sentem totalmente à vontade de patrocinar a manutenção do Estado com recursos provenientes de seus bolsos, isso porque já consideram elevada a carga tributária que recai sobre eles, ou excessivo o ônus imposto ao contribuinte, dentre outros fatores. Assim, é natural a reação do indivíduo em evitar a incidência da lei que lhe impõe encargos tributários.
Certo é que há pessoas que, diante dessa situação, buscam se locupletar às custas do Estado, não pagando os tributos devidos, ou omitindo informações, de modo a reduzir o quantum devido ao fisco ou mesmo isentar-se desse pagamento tributário. É o que configura ilícito tributário.
Diante disso, coube ao legislador criar ferramentas que inibam a prática antijurídica desse comportamento, a fim de que todos sejam atingidos isonomicamente pela norma tributária.
Acontece que há ações que causam maiores prejuízos ao Estado, dependendo do bem jurídico atingido. Como os tributos possuem considerável importância para manutenção estatal, o fato de não pagá-los pode acarretar consequências civis, administrativas e, quando de elevada ofensividade, penais.
Para tanto, o ordenamento jurídico pátrio estabeleceu normas destinadas a regulamentar a repressão dos atos que o legislador entendeu como ilícitos, que vai ao encontro do interesse do Estado-fiscal, havendo, portanto, implicância sancionatória para quem o desobedece.
Assim, a partir do momento em que se encontra tipificada uma conduta como crime, sancionando-a com uma pena restritiva de direito de liberdade pessoal, há de se trazer toda carga principiológica da seara penal.
Por ser o Direito Penal a ultima ratio, guiado pelos princípios da subsidiariedade e fragmentariedade, que lhe impõe a proteção dos bens jurídicos mais importantes à sociedade, apenas quando os outros ramos do direito não forem suficientes pra fazê-lo deve o legislador adotar cautelas quando da configuração do ilícito penal. Isso porque pode submeter o cidadão-contribuinte à dura sanção penal da usurpação da liberdade.
Assim é que, quando da acusação pelo parquet, há de se respeitar todos os requisitos, condições, estabelecidos em lei, a fim de evitar um tormentoso processo àquele contribuinte.
É nesse diapasão que a justa causa se configura imprescindível para propositura da ação penal em decorrência de crime tributário: deverá esta ser elucidada em cada caso concreto, buscando-se precisar seu exato conteúdo, bem assim o lastro probatório mínimo para que se possa incutir em alguém o peso de um processo penal.
2. LIMITES AO PODER DE DENUNCIAR
A vestibular acusatória, que é a expressão inicial do direito de ação - direito de pleitear junto ao órgão jurisdicional competente para que este satisfaça a pretensão punitiva do Estado - inaugura o processo e deve conter a imputação de alguma conduta típica formulada pelo órgão acusador ao acusado.
A peça inaugural, no crimes de ação penal pública, são de competência constitucional privativa do Ministério Público, e recebe o nome de denúncia. Os requisitos para o oferecimento da denúncia encontram-se no art. 41 do Código de Processo Penal:
Art. 41. A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol de testemunhas.
As "circunstâncias" do fato criminoso estão em uma acepção genérica e ampla, englobando tanto as causas de aumento como os agravantes. Por óbvio, como a denúncia é peça de acusação, não faz sentido serem expostas as causas de diminuição e as atenuantes.
Quanto à qualificação do acusado ou esclarecimento pelos quais se possa identificá-lo, é preciso que sejam descritos na denúncia os dados documentais: nome, dia do nascimento, filiação, endereço, além de outros dados possíveis.
Interessante notar que a falta desses dados não constituem limite ao poder de denunciar. A peça inicial acusatória também pode ser feita com a descrição das características físicas que permitam a individualização do acusado.
No tocante a classificação do crime, para a melhor doutrina, o entendimento dominante é de que o juiz está restrito aos fatos expostos na denúncia, e não à tipificação realizada. Desta forma, a simples classificação incorreta do crime não acarreta, por si só, empecilho para o recebimento da denúncia pelo juiz. Isso porque o Código de Processo Penal conferiu ao magistrado o poder de, na fase de sentença, corrigir a classificação incorreta (emendatio libeli) ou se não tiver descria alguma circunstância elementar do crime dar baixa ao Ministério Público para aditar a inicial acusatória (mutatio libeli).
Ressalta-se que a denúncia tem como núcleo a imputação que se faz ao acusado. A imputação é condição de validade, é por meio dela que o Ministério Público, após descrever minuciosamente todos os fatos da conduta delituosa, delimita o pedido.
É sobre a imputação que é realizado o contraditório processual e a sua deficiência acarreta afronta direta ao princípio constitucional da ampla defesa, o que, evidentemente, acarretaria a nulidade absoluta da denúncia.
3. DA JUSTA CAUSA
Preliminarmente à análise sobre o significado essencial de Justa Causa, é relevante lembrar que em razão dos Princípios da Fragmentariedade e da Subsidiariedade, o Direito Penal fica adstrito a tutelar os bens jurídicos mais preciosos à sociedade.
Devido ao alto grau de reprobabilidade das condutas tipificadas como crime, a ação penal, pelas consequências devastadoras que traz ao indivíduo, só pode ser utilizada como ultima ratio[1].
As condutas descritas como ilícito penal são consideradas tão graves para a sociedade de uma forma geral, que o "simples" fato do indivíduo estar respondendo a um processo criminal já causa repercussão social negativa: uma dúvida é colocada sobre a reputação daquela pessoa. Por isso, a ação penal não pode ser utilizada como uma aventura jurídica, lançando-se no polo passivo desta qualquer pessoa, sem embasamento suficiente. Para a deflagração de uma ação penal é necessário que sejam atendidas algumas condições.
A ação penal - direito público subjetivo do Estado a aplicação do direito penal nos casos concretos - é pautada em algumas condições fundamentais, denominadas de condições da ação. São elas: a possibilidade jurídica do pedido, considerada como o respaldo legal para a ação penal; o interesse de agir, que decorre do trinômio: necessidade, adequação e utilidade; a legitimidade, que se refere a titularidade do polo ativo para propositura da ação, sendo em regra o Ministério Público; e a justa causa, que consiste na reunião de um arcabouço mínimo de indícios de autoria e materialidade delitiva para a propositura da petição inicial criminal.
O ato do juiz de receber a exordial acusatória, por si só, já traz várias consequências: o início do processo, a transformação do suspeito em réu/acusado, a interrupção da prescrição e a fixação da prevenção.
Esses efeitos decorrentes do recebimento da denúncia já atingem o status dignitatis do demandado, o que não pode ser permitido sem um lastro mínimo de provas (a palavra "mínimo" empregada não significa "poucas", mas sim provas que realmente deem embasamento para o oferecimento da inicial acusatória). Daí urge o princípio da Justa Causa para a propositura da ação penal.
Neste diapasão, sobre a Justa Causa, é salutar trazer à lume os dizeres de Afrânio Silva Jardim, in verbis:
"torna-se necessário ao regular exercício da ação penal a demonstração, prima facia, de que a acusação não é temerária ou leviana, por isso que lastreada em um mínimo de prova. Este suporte probatório mínimo se relaciona com os indícios de autoria, existência material de uma conduta típica e alguma prova de sua antijuridicidade e culpabilidade."[2]
Corroborando esse entendimento, o próprio artigo 395 do Código de Processo Penal, onde consta um rol de possibilidades para a rejeição da denúncia ou queixa, apresenta em seu inciso terceiro a falta de justa causa como uma das hipóteses do não recebimento da inicial acusatória.
Quando se fala em Justa Causa, invariavelmente, pelo próprio nome, percebe-se que a ela está diretamente ligada a noção de justiça, sendo necessária para aferi-la a utilização de critérios de proporcionalidade.
A questão central sobre a existência de Justa Causa, pois, está diretamente relacionada a um conflito entre os princípios da Dignidade da Pessoa Humana e o do Direito de ação. É saber qual é realmente o lastro probatório mínimo necessário para que possa ser exercido o direito de ação.
4. ALCANCE E DIMENSÃO DOS CRIMES TRIBUTÁRIOS
Analisados os institutos inerentes ao direito material e processual penal, volvemo-nos neste instante a sua aplicação aos crimes contra à ordem tributária.
Inicialmente, há de se observar que os crimes que vão de encontro à ordem tributária não atingem apenas o Estado arrecadador. Em decorrência da imprescindibilidade dos recursos tributários para manutenção do Estado, vê-se que uma simples conduta que atinge a economia atinge “o coletivo”. O direito coletivo ao desenvolvimento nacional é malferido em sua órbita econômica, política e social, sendo certo que não apenas os cofres públicos são vilipendiados, mas a sociedade como um todo.
Na contemporaneidade tornou-se comum a notícia de elevadas cifras desviadas dos cofres públicos para mãos particulares. O legislador, no decorrer dos anos, atento a essa desídia, expandiu a tutela penal sobre esses bens jurídicos de valores socioeconômicos, pertencentes à toda coletividade. Com efeito, a criminalização das condutas infracionais da ordem tributária começou a ganhar mais espaço.
Nesse panorama, com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil, o ordenamento jurídico pátrio passou a conter princípios aplicáveis no âmbito do direito penal tributário, servindo como vetores na aplicação e interpretação da lei, com vistas a assegurar o Estado Democrático de Direito.
Dentre os princípios desse ramo do direito que possuem mais relevo, convém citarmos o da legalidade, tipicidade, irretrotatividade. O da legalidade impõe que ninguém poderá ser punido sem lei anteriormente predefinida, com estipulação da cominação prévia. Definida em lei, diz-se que a conduta criminosa está tipificada. Assim, sendo determinado fato não estipulado em lei, tem-se que é atípico.
Essas linhas do direito penal são totalmente aplicáveis aos crimes tributários, de modo que cabe ao legislador tipificar todas as condutas que afrontem bem jurídico relevante no direito penal, descrevendo os delitos e os tributos com especificações que permitam ao intérprete e ao aplicador da lei determinar com precisa?o os fatos juri?genos e suas conseque?ncias.
Nessa batuta, um crime tributário deve estar previsto como um fato típico, tendo, portanto, como requisitos uma conduta, um resultado, um nexo causal e a tipicidade. Além de constituir um fato típico, o crime tributário deve ser também antijurídico, isto é, ir de encontro às normas jurídicas, ou seja, consistir num ilícito.
Nesse ponto encontramos uma importante distinção: o que se entende por ilícito tributário e ilícito penal tributário. O primeiro é conhecido por ilícito fiscal, de caráter administrativo; o segundo, ao seu turno, é o ilícito de caráter penal.
Essa ilicitude, se for estabelecida por lei de menor importa?ncia, sera? tratada como ili?cito administrativo. Nessa hipótese, sempre que o descumprimento de uma obrigac?a?o (quer seja principal ou acesso?ria) de Direito Tributa?rio na?o se caracterize como crime, sera? tratada apenas entre a Administrac?a?o Pu?blica e o sujeito passivo da obrigac?a?o. Não haverá a incidência do Direito Penal, punindo-se com aplicação de multa, apreensão de mercadorias, interdição de estabelecimentos, dentre outras medidas.
Na perspectiva histórica do ordenamento jurídico pátrio, foi editada em 1990 a Lei nº 8.137, que trouxe a figura dos crimes contra a ordem tributária. Ao longo do tempo, a legislac?a?o tributa?ria sofreu várias modificac?o?es no tocante a? punibilidade, na busca de uma forma mais eficiente de assegurar a arrecadac?a?o tributa?ria e preservar o patrimo?nio estatal.
Como se sabe, os crimes contra a ordem tributária são de ação penal pública incondicionada, sendo esse, inclusive, o entendimento pacificado na súmula do Supremo Tribunal Federal, conforme enunciado de n.º 609, in verbis: “É pública incondicionada a ação penal por crime de sonegação fiscal”.
Outrossim, também nos crimes tributários, a responsabilidade penal depende de culpa ou dolo do agente, sendo, pois, sempre objetiva e pessoal. Sobre esse ponto, assevera Hugo de Brito Machado:
Não vale o argumento segundo o qual a individualização da conduta pode ser feita no curso da ação penal. Tal individualização há de ser prévia, sem o que estará fortemente cerceado o direito de defesa, pois o acusado não saberá do que está sendo acusado, e assim não terá como defender-se (2010, p. 521).
Todavia, a polêmica exsurge quando da análise da materialidade do crime tributário, conforme se abordará no tópico seguinte.
5. MATERIALIDADE NOS CRIMES TRIBUTÁRIOS
A justa causa nos crimes tributários se apresenta de forma relevante para configuração do ilícito tributário e sua materialidade. Conforme ensina Napoleão Nunes Maia Filho,
esses tipos penais têm a sua materialidade, em princípio, apurada fora da instância penal, criando algumas situações desafiadoras, que devem ser equacionadas à luz dos preceitos jurídicos garantidores da liberdade, por maiores que sejam as dificuldades que enfrentem. (2011, p. 232)
Os crimes definidos na Lei 8.137/90 podem ser materiais (de resultado, vale dizer, só estaria consumado se houver caracterizada a materialidade do fato) ou formais (de mera conduta, isto é, restam consumados independentemente do resultado).
Assim, são materiais as condutas previstas no art. 1º da mencionada lei:
Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:
I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;
II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;
III - falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável;
IV - elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato;
V - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação.
Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
Por outro lado, são formais as condutas insculpidas no art. 2º, vejamos:
Art. 2° Constitui crime da mesma natureza:
I - fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo;
II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;
III - exigir, pagar ou receber, para si ou para o contribuinte beneficiário, qualquer percentagem sobre a parcela dedutível ou deduzida de imposto ou de contribuição como incentivo fiscal;
IV - deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou parcelas de imposto liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento;
V - utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita ao sujeito passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa daquela que é, por lei, fornecida à Fazenda Pública.
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Em que pese a existência de crimes tributários materiais e formais, certo é que, segundo a doutrina especializada, prepondera os da primeira espécie: “os tipos penais tributários configuram, normalmente, crimes materiais ou de resultado, pressupondo o inadimplemento de tributo devido” (PAULSEN, 2011, p. variável[3])
Há de se ressaltar que havendo dúvida sobre algum dos elementos do crime tributário ou sobre qual seja a penalidade aplicável, a solução deverá ser aquela mais favorável ao acusado do cometimento do ilícito, em decorrência do princípio do Direito Penal insculpido no art. 112 do Código Tributário Nacional brasileiro, que assim dispõe:
Art. 112 - A lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades, interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado, em caso de dúvida quanto:`3
I - à capitulação legal do fato;
II - à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão dos seus efeitos;
III - à autoria, imputabilidade, ou punibilidade;
IV - à natureza da penalidade aplicável, ou à sua graduação.
A materialidade do ilícito no crime tributário, segundo Napoleão Nunes Maia Filho consiste
em lesionar diretamente os superiores interesses do Fisco, mediante a adoção de condutas de variado conteúdo, mas das quais resulta, objetivamente, a evasão de receitas fiscais, sob a forma de supressão ou de redução de tributo ou de contribuição social ou qualquer acessório dessas exações (2011, p. 263).
O que se extrai do que foi anteriormente exposto no decorrer desse tópico é que para a apuração da materialidade nos crimes tributários será imprescindível a análise na seara administrativa fiscal, que é a competente para inferir acerca da exigibilidade ou inexigibilidade do crédito tributário reduzido ou suprimido. Assim, o encaminhamento de representação do Ministério Público fica condicionado ao prévio exaurimento do processo administrativo fiscal, consoante se explanará no tópico seguinte.
6. CONSTITUIÇÃO DO CRÉDITO COMO REQUISITO PARA CONFIGURAÇÃO DO CRIME MATERIAL TRIBUTÁRIO
Erigido diante dos ditames constitucionais, o sistema tributário brasileiro é alicerçado por vários limites e garantias ao poder desempenhado pelo Estado, dentre os quais destacamos o princípio da competência.
Segundo tal preceito, cada ente político deve limitar-se às competências tributárias que lhe foram outorgadas pelo Poder Constituinte, trazendo aos contribuintes o resguardo de não sofrerem exações diferentes daquelas prescritas na Lei Maior[4].
De outro lado, a designação da competência tributária a um certo ente acaba por elegê-lo como o único sujeito capaz de instituir e majorar aquele respectivo tributo, sob pena de supressão da competência constitucionalmente coferida a si.
Destarte, ao fisco competente resta o dever de, verificando a ocorrência do fato gerador previsto em lei, constituir o crédito tributário através do lançamento: atividade privativa da autoridade administrativa e vinculada.
São estes os temos do artigo 142 do Código Tributário pátrio, in verbis:
Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.
Superada tal premissa, insta trazer à baila questão muito debatida na academia jurídica, a saber: a concretização do crédito tributário para a configuração do ilícito penal.
O assunto ganha relevância principalmente nos dias hodiernos, nos quais a ocorrência de ilícitos penais na esfera tributária tem se tornado cada vez mais frequente, bem como em razão da crescente atuação do Ministério Público na defesa da ordem jurídica.
Adotando a visão atual do entendimento jurisprudencial pátrio, na seara dos crimes tributários a denúncia deve ser posterior ao exaurimento do processo administrativo fiscal responsável pelo lançamento do tributo.
A priori, não se faz necessária a submersão no tema para corroborar com o entendimento oposto.
Ora, o tributo passa a existir quando a autoridade (constitucionalmente) competente para sua instituição efetua, vinculadamente, o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador daquela exação e dos demais aspectos referentes a ela, constituindo o crédito tributário através do seu lançamento.
Desse modo, para figuração de um crime tributário, como a sonegação fiscal, mister a análise administrativa pelo ente responsável acerca daquela possível infração, haja vista ser ele o único responsável por apurar o cabimento daquela exação ou não.
Pensar diferente seria deixar ao crivo do Ministério Público a possibilidade de embasar denúncia de crime fiscal sem o aval do ente administrativo responsável por recolher o tributo. Ou seja, em caso de condenação ao pagamento daquele tributo, surgiria uma constituição de crédito tributário não abrangido pelo sistema constitucional/legal brasileiro[5].
Pacificando completamente o entendimento sobre o caso, o Colendo Supremo Tribunal Federal editou a súmula vinculante nº 24, cujo teor transcrevemos agora:
Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo.
O procedimento tributário administrativo revela-se, ainda, essencial por outros motivos: a necessidade de participação do contribuinte no processo constitutivo do tributo e a possibilidade de pagamento daquela quantia devida antes mesmo de qualquer incitação de crime fiscal.
Intentar a denúncia sem qualquer participação da administração pública tributante, bem como do contribuinte, consolidaria uma afronta ao direito constitucional da ampla defesa (inclusive no processo administrativo) e um sepultamento de uma garantia legal, enumerada no artigo 34 da Lei nº 9.249/95[6].
Ou seja, ao contribuinte deve ser dada a possibilidade de defender-se daquela constituição de crédito tributário e, também, de pagar o tributo apurado com vistas a não sofrer a persecução criminal, sendo certo que a única possibilidade de ocorrência destas situações ocorre somente se existente um processo administrativo de lançamento.
Portanto, para concluir o tópico, trazemos valiosas lições doutrinárias (MACHADO, 2012, p. 517):
A questão essencial, na verdade, consiste em saber se é juridicamente válido o uso da ação penal como instrumento de coação para obrigar o contribuinte a pagar tributos sem direito de questionar a legalidade destes. E o STF merece aplausos da comunidade jurídica pela resposta a ela oferecida, com a qual contribui positivamente para a construção, no Brasil, de um Estado Democrático de Direito.
7. CONCLUSÕES
A sincronia entre os diversos ramos do Direito sempre foi uma realidade dos sistemas jurídicos. Um ramo do Direito, por mais autônomo que seja, não satisfaz todas as possíveis ocorrências concretas da sociedade somente com suas lições. Ao revés: cada vez mais se mostra necessária a interface entre os diferentes institutos jurídicos para solução das lides cotidianas.
Nesse contexto, o Direito Penal e o Direito Tributário relacionam-se frequentemente para a solução de crimes praticados contra a ordem tributária, o que não poderia ser diferente.
Trazendo a base dos preceitos referentes aos crimes e suas consequências, ao Direito Penal cabe o estudo das condutas consideradas mais ofensivas à sociedade (ultima ratio), assim como a enumeração de consequências e caminhos aos que optarem pelo ilícito.
Assim, sendo certo que a tributação constitui receita ordinária da manutenção do maquinário estatal, certas condutas praticas contra a exação estatal foram elevadas à patamares criminais, visto trazerem consequências financeiras graves ao maquinário estatal e à sociedade.
Esquematizar e sistematizar a aplicação de penas nos crimes tributários revela, portanto, condição essencial ao bem estar social, fazendo com que as práticas realizadas neste sentido sejam reprimidas e intimidadas.
Todavia, a verificação dos crimes contra a ordem tributária demanda uma série de análises a ser feita, principalmente, pelo titular da Ação Penal: o Ministério Público.
Isto porque o legislador brasileiro prescreveu garantias ao contribuinte quando da configuração do ilícito tributário, dentre as quais destacamos, por exemplo, a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo devido.
O fato do legislador brasileiro ter elegido o pagamento como causa de extinção da punibilidade criminal deve ser respeitada e verificada pelo Promotores/Procuradores de Justiça, Juízes, Advogados e cidadãos, sob pena de desrespeito aos ditames jurídicos postos à nossa disposição.
Sendo assim, a persecução criminal na seara tributária deve permear os estudos e pensamentos dos defensores da ordem democrática, não se olvidando, porém, os limites e seguranças impostas pela lei.
Antes de promover a denúncia de ilícito tributário, cabe ao Ministério Público analisar a materialidade do crime, verificando sua ocorrência e, principalmente, aguardando o desfecho do procedimento administrativo instaurado para apuração do tributo.
O presente estudo buscou, portanto, angariar as diferentes lições dos ramos penalista e tributário do Direito, mesclando suas ideias e aplicando-as em conjunto, buscando uma orientação doutrinária coesa acerca da Justa Causa para a Ação Penal nos crimes contra a ordem tributária.
REFERÊNCIAS
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. Versão disponível em iBooks.
CINTRA, Marcos. Globalização, Modernização e Inovação Fiscal. In: VASCONCELLOS, Roberto França de. Direito Tributário: Política Fiscal. São Paulo: Saraiva, 2009. Cap. 3, p. 66-154. (GVlaw). Versão disponível em iBooks.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 11ª ed. Rio de Janeiro: Impetrus, 2009
MAIA FILHO, Napoleão Nunes. Da Justa Causa para a Ação Penal Nos Crimes Contra a Ordem Tributária. In: ELALI, André. Direito Tributário: Estudos em Homenagem a Hugo de Brito Machado. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p. 229-276
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
______. Curso de Direito Tributário. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2012.
PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário Completo. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. Versão disponível em iBooks.
RAMOS FILHO, Carlos Alberto de Moraes. Curso de Direito Financeiro. São Paulo: Saraiva, 2012. Versão disponível em iBooks.
SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. Versão dispon;ivel para iBooks.
TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico. São Paulo: Editora Método, 2003.
TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal, 7ª ed. Bahia: Editora JusPodivm, 2012.
[1] Sobre o Princípio da ultima ratio ou da Intervenção Mínima, o ilustre Prof. Rogério Greco (in Curso de Direito Penal. 11ª ed. Rio de Janeiro: Impetrus, 2009, p. 49) afirma que: " O Direito Penal deve, portanto, interferir o menos possível na vida da sociedade, devendo ser solicitado somente quando os demais ramos do Direito, comprovadamente, não forem capazes de proteger aqueles bens considerados da maior importância.".
[2] JARDIM, Afrânio Silva. Direito Processual Penal. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 97 apud TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal, 7ª ed. Bahia: Editora JusPodivm, 2012. p. 11-12
[3] Versão digitalizada (e-book).
[4] Acerca deste princípio constitucional, leciona Hugo de Brito Machado (in Curso de Direito Tributário. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 39)
“O princípio da competência obriga a que cada entidade tributante se comporte nos limites da parcela de poder impositivo que lhe foi atribuída. Temos um sistema tributário rígido, no qual as entidades dotadas de competência tributária têm, definido pela Constituição, o âmbito de cada tributo, vale dizer, a matéria de fato que pode ser tributada”.
[5] “Sem a prévia apuração, na via administrativa competente, da existência de ilícito fiscal, não se possibilita o trâmite a denuncia de crime contra a ordem tributária, pois, se assim fosse, se estaria admitindo, obliquamente, que o Ministério Público, com exercício da ação penal, quando delastreada em Procedimento Administrativo fiscal, exercesse, também, a potestade do lançamento, dizendo, na denúncia, todos os elementos da obrigação (sujeitos ativo e passivo, base de cálculo, fato gerador e alíquota). (in. MAIA FILHO, Napoleão Nunes. Da Justa Causa para a Ação Penal Nos Crimes Contra a Ordem Tributária. In: ELALI, André. Direito Tributário: Estudos em Homenagem a Hugo de Brito Machado. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p. 268)
[6] Art. 34. Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e na Lei nº 4.729, de 14 de julho de 1965, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LEONARDO ANDRADE LIMA VIDAL DE ARAúJO, . Da justa causa para a ação penal nos crimes contra a Ordem Tributária Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 maio 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51635/da-justa-causa-para-a-acao-penal-nos-crimes-contra-a-ordem-tributaria. Acesso em: 23 dez 2024.
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