RESUMO: A dignidade da pessoa humana encontra-se no centro da proteção jurídica do ordenamento jurídico brasileiro, sendo a tutela dos direitos fundamentais o norte interpretativo para aplicação das normas jurídicas. O presente trabalho objetiva destacar o papel da mutação constitucional, exercido pelo poder constituinte difuso, na máxima efetividade dos direitos fundamentais.
PALAVRAS-CHAVE: Poder constituinte. Mutação constitucional. Reforma Trabalhista.
SUMÁRIO: 1. Introdução 2. Desenvolvimento 3. Conclusão 4. Referências Bibliográficas.
1. Introdução
A Constituição da República de 1988 reinaugurou a ordem jurídica democrática adotando a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CR/88) como pedra fundamental da sistematicidade normativa pátria.
A efetivação dos direitos fundamentais compreendidos em suas variadas dimensões (individuais, sociais e coletivos) orienta a aplicação da norma jurídica.
O teor normativo não se exaure na literalidade do dispositivo legal,submetendo-se à análise principiológica e fenomenológica dos efeitos de sua aplicação.
Nesse sentido, a constante atualização do texto constitucional, conforme a evolução da sociedade traduz garantia de preservação da própria norma fundamental, uma vez que possibilita a identificação do destinatário da norma com os valores legitimamente por ela tutelados.
Assim, a fim de atribuir maior efetividade aos direitos fundamentais, inerente à condição de dignidade humana, é necessário que o texto constitucional comporte interpretações para além do sentido literal de suas disposições, almejando alcançar a maior tutela possível do patamar de dignidade mínimo da humanidade.
A doutrina constitucionalista, referenciada pelo Supremo Tribunal Federal, vislumbra na mutação constitucional, exercida pelo poder constituinte difuso, mecanismo informal de atualização da Constituição.
Nestes termos, será abordado no presente artigo o papel desempenhado pelo poder constituinte difuso na efetivação dos direitos fundamentais.
2. Desenvolvimento
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 classifica-se quanto à alterabilidade como sendo do tipo rígida, ou seja, a modificação das normas constitucionais depende da atenção a um processo legislativo mais dificultoso do que o exigido para as normas infraconstitucionais (art. 60, §2º, CR/88).
O processo legislativo solene, formal, para alteração da Constituição é exercido pelo poder constituinte derivado, o qual conforme LENZA (2015), caracteriza-se por ser “limitado e condicionado” aos parâmetros impostos pelo poder constituinte originário.
A sociedade contemporânea, por sua vez, marcada pela velocidade das informações, pela globalização e o fluxo de interação cada vez mais frequente nos meios virtuais, apresenta-se com constantes transformações, fruto da dinamização das relações sociais.
Nesse sentido, o ordenamento jurídico demanda a existência de mecanismos eficientes a se adaptarem a tais transformações, sob pena de perda de legitimidade social.
Como assevera Raul Machado Horta, “A permanência da Constituição é a ideia inspiradora do constitucionalismo moderno” (HORTA, 2002, p.97).
A questão que se põe é, portanto, como assegurar o atendimento das demandas fruto da transformação dos sociais, atentando-se à necessária ideia de permanência da Constituição como instrumento de segurança jurídica?
A este respeito, a partir da inspiração da experiência jurídica alemã, Luís Roberto Barroso, expõe:
“Com efeito, a modificação da Constituição pode dar-se por via formal e por via informal. A via formal se manifesta por meio da reforma constitucional, procedimento previsto na própria Carta disciplinando o modo pelo qual se deve dar sua alteração. Tal procedimento, como regra geral, será mais complexo que o da edição da legislação ordinária. De tal circunstância resulta a rigidez constitucional. Já a alteração por via informal se dá pela denominada mutação constitucional, mecanismo que permite a transformação do sentido e do alcance de normas da Constituição, sem que se opere, no entanto, qualquer modificação do seu texto. A mutação está associada à à plasticidade de que são dotadas inúmeras normas constitucionais.” (BARROSO, 2010, p 147)
Por sua vez Uadi Lammêgo Bulos denomina a mutação constitucional como sendo:
“o processo informal de mudança da Constituição, por meio do qual são atribuídos novos sentidos, conteúdos até então não ressaltados à letra da Constituição, quer através da interpretação, em suas diversas modalidades e métodos, quer por intermédio da construção (construction), bem como dos usos e dos costumes constitucionais”(BULOS, 2000, pg.22-23)
Tendo em vista que a alteração normativa da Constituição exige a manifestação do poder constituinte, a doutrina denominou como “poder constituinte difuso” (LENZA, 2015) a manifestação do poder de fato que serve como sustentação para a configuração da mutação constitucional.
Desta forma o poder constituinte difuso é o mecanismo capaz de, a partir das transformações sociais, políticas, culturais e econômicas promover a constante atualização dos sentido extraído das normas constitucionais, ainda que preservado o seu texto.
Observa-se, assim, que a mutação constitucional é sobretudo um fenômeno hermenêutico e, como tal, deve pautar-se pelos critérios estabelecidos para a interpretação constitucional, dentre eles o princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais.
Segundo CANOTILHO, o princípio da máxima efetividade trata-se de:
“um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese da atualidade das normas programáticas (THOMA), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais” (CANOTILHO, 1993, pg 227)
O Supremo Tribunal Federal tem admitido a adoção da mutação constitucional promovendo a atualização semântica da Constituição da República em alguns julgados, como, por exemplo, nas paradigmáticas Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132/RJ e Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277 acerca do reconhecimento da união estável entre casais homoafetivos, em que se fixou o seguinte precedente:
“EMENTA: 1. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF). PERDA PARCIAL DE OBJETO. RECEBIMENTO, NA PARTE REMANESCENTE, COMO AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. UNIÃO HOMOAFETIVA E SEU RECONHECIMENTO COMO INSTITUTO JURÍDICO. CONVERGÊNCIA DE OBJETOS ENTRE AÇÕES DE NATUREZA ABSTRATA. JULGAMENTO CONJUNTO. Encampação dos fundamentos da ADPF nº 132-RJ pela ADI nº 4.277-DF, com a finalidade de conferir “interpretação conforme à Constituição” ao art. 1.723 do Código Civil. Atendimento das condições da ação.
2. PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS EM RAZÃO DO SEXO, SEJA NO PLANO DA DICOTOMIA HOMEM/MULHER (GÊNERO), SEJA NO PLANO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DE CADA QUAL DELES. A PROIBIÇÃO DO PRECONCEITO COMO CAPÍTULO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. HOMENAGEM AO PLURALISMO COMO VALOR SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAL. LIBERDADE PARA DISPOR DA PRÓPRIA SEXUALIDADE, INSERIDA NA CATEGORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO, EXPRESSÃO QUE É DA AUTONOMIA DE VONTADE. DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA. CLÁUSULA PÉTREA. O sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. Proibição de preconceito, à luz do inciso IV do art. 3º da Constituição Federal, por colidir frontalmente com o objetivo constitucional de “promover o bem de todos”. Silêncio normativo da Carta Magna a respeito do concreto uso do sexo dos indivíduos como saque da kelseniana “norma geral negativa”, segundo a qual “o que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido”. Reconhecimento do direito à preferência sexual como direta emanação do princípio da “dignidade da pessoa humana”: direito a auto-estima no mais elevado ponto da consciência do indivíduo. Direito à busca da felicidade. Salto normativo da proibição do preconceito para a proclamação do direito à liberdade sexual. O concreto uso da sexualidade faz parte da autonomia da vontade das pessoas naturais. Empírico uso da sexualidade nos planos da intimidade e da privacidade constitucionalmente tuteladas. Autonomia da vontade. Cláusula pétrea.
3. TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE QUE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO EMPRESTA AO SUBSTANTIVO “FAMÍLIA” NENHUM SIGNIFICADO ORTODOXO OU DA PRÓPRIA TÉCNICA JURÍDICA. A FAMÍLIA COMO CATEGORIA SÓCIO-CULTURAL E PRINCÍPIO ESPIRITUAL. DIREITO SUBJETIVO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. INTERPRETAÇÃO NÃO-REDUCIONISTA. O caput
do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos. A Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão “família”, não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Família como instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica. Núcleo familiar que é o principal lócus institucional de concreção dos direitos fundamentais que a própria Constituição designa por “intimidade e vida privada” (inciso X do art. 5º). Isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos que somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Família como figura central ou continente, de que tudo o mais é conteúdo. Imperiosidade da interpretação não-reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil. Avanço da Constituição Federal de 1988 no plano dos costumes. Caminhada na direção do pluralismo como categoria sócio-político-cultural. Competência do Supremo Tribunal Federal para manter, interpretativamente, o Texto Magno na posse do seu fundamental atributo da coerência, o que passa pela eliminação de preconceito quanto à orientação sexual das pessoas.
4. UNIÃO ESTÁVEL. NORMAÇÃO CONSTITUCIONAL REFERIDA A HOMEM E MULHER, MAS APENAS PARA ESPECIAL PROTEÇÃO DESTA ÚLTIMA. FOCADO PROPÓSITO CONSTITUCIONAL DE ESTABELECER RELAÇÕES JURÍDICAS HORIZONTAIS OU SEM HIERARQUIA ENTRE AS DUAS TIPOLOGIAS DO GÊNERO HUMANO. IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS CONCEITOS DE “ENTIDADE FAMILIAR” E “FAMÍLIA”. A referência constitucional à dualidade básica homem/mulher, no §3º do seu art. 226, deve-se ao centrado intuito de não se perder a menor oportunidade para favorecer relações jurídicas horizontais ou sem hierarquia no âmbito das sociedades domésticas. Reforço normativo a um mais eficiente combate à renitência patriarcal dos costumes brasileiros. Impossibilidade de uso da letra da Constituição para ressuscitar o art. 175 da Carta de 1967/1969. Não há como fazer rolar a cabeça do art. 226 no patíbulo do seu parágrafo terceiro. Dispositivo que, ao utilizar da terminologia “entidade familiar”, não pretendeu diferenciá-la da “família”. Inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico. Emprego do fraseado “entidade familiar” como sinônimo perfeito de família. A Constituição não interdita a formação de família por pessoas do mesmo sexo. Consagração do juízo de que não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um legítimo interesse de outrem, ou de toda a sociedade, o que não se dá na hipótese sub judice . Inexistência do direito dos indivíduos heteroafetivos à sua não-equiparação jurídica com os indivíduos homoafetivos. Aplicabilidade do §2º do art. 5º da Constituição Federal, a evidenciar que outros direitos e garantias, não expressamente listados na Constituição, emergem “do regime e dos princípios por ela adotados”, verbis: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
5. DIVERGÊNCIAS LATERAIS QUANTO À FUNDAMENTAÇÃO DO ACÓRDÃO. Anotação de que os Ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso convergiram no particular entendimento da impossibilidade de ortodoxo enquadramento da união homoafetivanas espécies de família constitucionalmente estabelecidas. Sem embargo, reconheceram a união entre parceiros do mesmo sexo como uma nova forma de entidade familiar. Matéria aberta à conformação legislativa, sem prejuízo do reconhecimento da imediata auto-aplicabilidade da Constituição.
6. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL EM CONFORMIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (TÉCNICA DA “INTERPRETAÇÃO CONFORME”). RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO FAMÍLIA. PROCEDÊNCIA DAS AÇÕES. Ante a possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de “interpretação conforme à Constituição”. Isso para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva.” (ADPF 132 Relatoria do Min. Ayres Britto)
A decisão do Supremo Tribunal Federal priorizou a efetivação dos direitos fundamentais dos casais homoafetivos, alargando o aspecto protetivo e o teor normativo do 226 da Constituição Federal, o que demonstra a fundamentalidade do processo de mutação constitucional na promoção da dignidade humana.
3. Conclusão
A partir do exposto, extrai-se a imprescindibilidade de consonância dos valores normativos tutelados pela Constituição da República com a realidade social para legitimação do ordenamento jurídico.
Nesse sentido, a atualização informal, decorrente do poder de fato, caracterizador da mutação constitucional surge como instrumento fundamental para atribuir o real sentido às normas constitucionais.
A partir da adoção do princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais, adota-se a promoção da dignidade da pessoa humana como norte interpretativo e, por consequência, diretriz hermenêutica do poder constituinte difuso.
Conclui-se, assim, que a mutação constitucional, fruto do exercício deste poder, exerce papel fundamental na efetivação dos direitos fundamentais, tal como fixado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 132/RJ eADI 4.277/DF.
4. Referências Bibliográficas
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628633
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito Constitucional Contemporâneo – Os conceitos Fundamentais e a construção do Novo Modelo. Editora Saraiva. 2ª Ed. 2010.
BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. São Paulo: Saraiva, 2000.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 6. ed. rev.Coimbra: Almedina, 1993 (7. ed., 2003).
HORTA, Raul Machado. Permanência e mudança na Constituição, in Curso de direito constitucional. Ed. Forense. 3ªed. 2014
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. Ed. Saraiva. 2015
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GANEM, Leandro Wehdorn. O Papel do Poder Constituinte Difuso Para a Máxima Efetividade dos Direitos Fundamentais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 maio 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51646/o-papel-do-poder-constituinte-difuso-para-a-maxima-efetividade-dos-direitos-fundamentais. Acesso em: 23 dez 2024.
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