KARINE ALVES GONÇALVES MOTA
(Orientadora)[1]
RESUMO:O conceito de família vem evoluindo a partir das mudanças sociais. O vínculo afetivo tem sido reconhecido tanto quanto o vínculo biológico para os efeitos legais. Nesse contexto, a problemática da presente pesquisa pode ser representada pela indagação: é possível o reconhecimento da múltipla filiação, constando os pais biológicos e os pais afetivos no assento de nascimento? O objetivo é analisar os aspectos constitucionais da multiparentalidade. A pesquisa foi desenvolvida pelo método dedutivo dialético, a partir da legislação, doutrinas, artigos científicos e análise jurisprudencial.
PALAVRAS CHAVES: Multiparentalidade; Família; Aspectos Constitucionais.
SUMÁRIO: Resumo. Abstract. Introdução. 1. Da Família - 1.1. Evolução Histórica da Família - 1.2. Conceito e Pressupostos do Instituto Famílias - 1.2.1. Modelos Contemporâneos de Família; 2. Os Princípios Constitucionais e do Direito de Família Aplicáveis na Multiparentalidade; 3. Quando a biparentalidade se torna múltipla; 4. Filiação; 5. Multiparentalidade - 5.1. Tentativa conceitual - 5.2. Efeitos e análise jurisprudencial da multiparentalidade; 6. A existência da interpretação da multiparentalidade na Constituição Federativa do Brasil; Considerações finais; Referências.
ABSTRACT: The concept of family has evolved from social changes. The affective bond has been recognized as much as the biological link to the legal effects. In this context, the problem of this research can be represented by the inquiry: Is it possible to recognize the multiple affiliation, by providing the biological parents and the affective parents in the birth seat? The goal is to analyze the constitutional aspects of multiparenting. The research was developed by the dialectical deductive method, from the legislation, doctrines, scientific articles and judicial analysis.
KEYWORDS: Multiparenting; Family; Constitutional aspects.
INTRODUÇÃO
A multiparentalidade é o reconhecimento concomitantemente das filiações socioafetivas com as filiações biológicas. O direito procura projetar ao ordenamento jurídico tudo aquilo que vem das relações humanas, fatos sociais e o costume formador da base da sociedade, ou seja, a família. O presente artigo possui como finalidade demonstrar as mudanças no escopo familiar e na parentalidade, especificamente dos aspectos constitucionais da família multiparental. As pesquisas realizadas ensejam esclarecer o conceito da família multiparental, tendo a exposição doutrinária acerca do tema, tal como suas interpretações constitucionais e jurisprudências, apresentar os princípios aplicáveis ao tema, avaliando os seus aspectos mais controversos. Desta forma, busca analisar onde inicia a relação multiparental, delimitando assim as diferentes modalidades de famílias, características e pressupostos, a fim de obter-se a compreensão mais ampla deste instituto, para passar a analisar a multiparentalidade e seus aspectos constitucionais, seus limites e suas peculiaridades. Verificando-se a aplicação principiológica do direito de família e direito constitucional.
1. DA FAMÍLIA
1.1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA FAMÍLIA
A família é vista como o pilar da organização social, sendo mais antiga do que o próprio Estado, e vem evoluindo gradativamente, desde os tempos mais remotos até a atualidade.
Apesar de que a família aparece como um fato natural e espontâneo, a sua evolução histórica se encontra fortes traços de cultura. Como expõe Recaséns Siches, (1965, p. 552) “o fato de que a família se origine primariamente nesse fenômeno natural de nenhum modo significa que seja simples produto da natureza”.
A história da família brasileira é encontrada no modelo de origem da família romana. Na antiga Roma a família tinha como base a sociedade patriarcal, onde no poder estava o pai como chefe da comunidade. Este era uma pessoa que chefiava todo o resto da família, que vivia sobre seu comando, sendo assim, a primeira e última palavra sempre era a dele. O direito romano forneceu ao Direito brasileiro elementos básicos da família como unidade jurídica, econômica e religiosa, fundada na autoridade de um chefe.
Segundo Paulo Lôbo (2009, p. 40-41), sob o ponto de vista do ordenamento jurídico, o direito de família brasileiro pode ser dividido em três períodos: o primeiro era do direito de família canônico, no qual predominou o modelo de família patriarcal, abrangendo a Colônia e o Império; o segundo período é chamado de direito de família laico, instituído com a proclamação da República em 1889, onde houve a redução progressiva do modelo patriarcal, perdurando até a Constituição de 1988; e, por fim, o direito de família igualitário e solidário, instituído pela Constituição Federal de 1988.
Aproximadamente no século V, o poder de Roma foi repassado para as mãos do chefe da Igreja Católica Romana. A Igreja era totalmente contrária à dissolução do casamento por entenderem que não podiam os homens dissolver a união realizada por Deus e, portanto um sacramento.
Maria Helena Diniz aduz que:
No Brasil, por muito tempo, a Igreja Católica foi titular quase que absoluta dos direitos matrimoniais; pelo Decreto de 3 de novembro de 1827 os princípios do direito canônico regiam todo e qualquer ato nupcial, com base nas disposições do Concílio Tridentino e da Constituição do Arcebispado da Bahia. (DINIZ, p. 51, 2008).
Mesmo com o passar do tempo, as normas do código civil de 1916 e as novas cartas constitucionais manteve a estrutura patriarcal, o casamento como forma exclusiva de formação da família, o expresso tratamento discriminatório dado aos filhos nascidos fora do casamento e aos havidos por adoção e a ausência de referências ao companheirismo, seja ela na forma de união estável, seja na forma do concubinato.
Nota-se mesmo com tantas alterações legislativas a única instituição reconhecida como familiar era o casamento, enquanto a união estável e o concubinato eram ignorados pelo legislador e pela sociedade, e a adoção era deixada para segundo plano por meio de expressar diferenças de direitos e de tratamento entre os filhos sanguíneos e os adotados, sendo de pouca relevância jurídica o afeto nas relações familiares.
A entidade familiar de início é composta pela figura do marido e da mulher. A família é uma sociedade natural formada por laço de sangue (consanguinidade) ou de afinidade. Os laços de sangue resultam da descendência (filhos, neto, bisnetos, etc.). A afinidade se dá com a entrada dos cônjuges e seus parentes que se agregam à entidade familiar pelo casamento.
Com o passar do tempo e a evolução a que passou a sociedade, o modelo familiar mudou, pois, a família passou a ser vista como um instrumento de desenvolvimento pessoal de cada indivíduo, e não mais como uma instituição o casamento, que já não era mais o único aspecto para criação de família. Sendo assim as legislações e a constituição foram aceitando aos poucos novos modelos de famílias, como uniões estáveis que podem constituir família, que há a família monoparental (mãe ou pai solteiro) e que há família na união de pessoas do mesmo sexo.
1.2 CONCEITO E PRESSUPOSTOS DO INSTITUTO FAMÍLIAS
É importante para a compreensão deste artigo, a abordagem e um estudo sobre o conceito de entidade familiar.
Família etimologicamente, deriva do latim familia, e significava “grupo doméstico” ou o conjunto das propriedades de alguém, isso incluía os escravos e os servos. De acordo com Rodrigo da Cunha Pereira (p. 287, 2015) Família vem da expressão famulus ou famuli no plural, e significava “Servo ou escravo doméstico”.
O conceito de família não é definido claramente no Código Civil atual, no entanto, como regra geral o Código Civil considera membros da família as pessoas unidas por relação conjugal ou de parentesco.
Sílvio de Salvo Venosa observa a entidade familiar como:
Importa considerar a família em conceito amplo, como parentesco, ou seja, o conjunto de pessoas unidas vínculo jurídico de natureza familiar [...] em conceito restrito, família compreende somente o núcleo formado por pais e filhos que vivem sob pátrio poder ou poder familiar (VENOSA, p. 18, 2005).
Venosa esclarece que sob o conceito sociológico considera se família, pessoas que vivem sob o mesmo teto com autoridade sendo seguida por um titular, levando ainda em consideração a posição de pater familias do direito Romano. O jurista Ulpiano entende que família se qualifica pelo plural de pessoas que, pela natureza ou pelo direito, que vive sob o poder de outra, essa definição se enquadra na visão do Código Civil de 1916.
No entendimento do Código Civil de 1916, a família era compreendida como sendo “o conjunto de pessoas que descendem de tronco ancestral comum, ou seja, unidos por laços de sangue. Em sentido estrito, a família representa o grupo formado pelos pais e filhos, unida entre si pelo matrimônio, pela filiação e pela adoção”. Com isso só eram reconhecidos às uniões originados pelo casamento civil, bem como somente os filhos oriundos dessa relação, sendo por consanguinidade ou adoção.
Em meados do século XX, a família patriarcal foi perdendo gradativamente seu destaque, e o Direito de Família foi se aprimorando, dando espaço, por exemplo, a igualdade entre os cônjuges e entre os filhos.
Já o Código Civil de 2002 não oferece apenas um conceito da família, como se observa que os arts. 1.829 e 1.839, que faz dimensão sobre a linha sucessória, conferem sentido amplo de família, que abrange os parentes em linha reta (pais, filhos, netos) e os em linha colateral até o quarto grau (irmãos, tios e sobrinhos, primos). Em sentido estrito, tem-se a chamada família primária, constituída por pais e filhos, considerada na disposição do art. 1.568.
A família atual não está baseada em tabus e formas como antigamente, mas em afetividade, pois pode ser considerada como família qualquer relação de afeto (DIAS, 2010, p. 44). Como a família multiparental é o reconhecimento concomitantemente das filiações socioafetivas com as filiações biológicas.
A partir do momento em que as relações matrimoniais deixaram de ser reconhecidas como a única pela sociedade, aumentou-se o conceito de entidade familiar. Percebe-se que as entidades familiares compostas por um elo de afetividade eram ignoradas do âmbito da juridicidade (DIAS, 2010). Flávio Tartuce (2016, p.1.383) aduz que “os vínculos familiares são complexos, não cabendo um modelo fechado para resolver os numerosos problemas que surgem na realidade contemporânea”.
A família pode ser aquela formada pelo casamento que gera uma relação matrimonial, pelo vínculo de afinidade que vem a ligar um dos cônjuges aos parentes do outro, e também pode se formar através da adoção, de afinidade ou de parentesco (OLIVEIRA, 2004, p. 10).
De acordo com Paulo Lôbo (2009, p. 79-80), em todos os tipos de famílias há características comuns, sem as quais não se configuram como entidades familiares. São elas: a afetividade, que é fundamento e finalidade da família; a estabilidade, excluindo, portanto, os relacionamentos casuais ou descomprometidos; e a convivência pública e ostensiva, pressupondo uma unidade familiar que se apresente assim publicamente.
A Lei Maria da Penha (Lei 11.3 40/2006) dispõe em seu artigo 5o, inciso II, seguindo a mesma linha de raciocínio da doutrina majoritária e de forma clara ensina que família é compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa.
Sob o ponto de vista do direito, Paulo Lôbo (2009, p.2) expos que a família é feita de duas estruturas associadas: os vínculos e os grupos. Há três sortes de vínculos, que podem coexistir ou existir separadamente: vínculos de sangue, vínculos de direito e vínculos de afetividade. A partir dos vínculos de família é que se compõem os diversos grupos que a integram: grupo conjugal, grupo parental (pais e filhos), grupos secundários (outros parentes e afins).
Família para o ordenamento jurídico é estabelecida na organização social formada a partir de laços sanguíneos, jurídicos ou afetivos.
A ideia de família cada vez se afasta da definição de casamento. Pois com a possibilidade de divórcio que trás no CC 2002, estabeleceu novas formar de convívio, que transformaram as entidades matrimoniais. A possibilidade de reconhecimento de filhos havidos fora do casamento, no qual demonstra uma transformação na própria família. Sendo assim, para verificar o conceito de entidade familiar tem que ter uma visão pluralista, para ignorar o grande desafio dos dias de hoje, que é a permissão e inserção de um conceito mais amplo de família.
1.2.1. Modelos contemporâneos de família
Vários doutrinadores, como, Maria Berenice Dias e Washington de Barros Monteiros, exemplificam inúmeros tipos de famílias, na qual alguns estão previstos expressamente na Constituição Federal e em outras leis. Deixam claramente que devido a mudança da estrutura da sociedade, os tipos de famílias expresso na Constituição é meramente exemplificativos.
Com isso, denomina se Família unilinear quando a origem da criança descende somente de uma linha, seja ela biológica ou afetiva, no qual isso acontece por opção do genitor.
É denominada Família nuclear a moldagem mais antiga e frequente no contexto social. Essa entidade familiar é construída por laços sanguíneo, formada pelos genitores e seus descendentes.
A Família conjugal ou matrimonial é constituído pelo casamento da igreja e solenizado pelo Estado. Surgiu no Concílio de Trento em 1563, através da Contrarreforma da Igreja. Em meados de 1988, só existia o casamento como entidade familiar reconhecida no país. Monteiro (2004, p. 22) explica o significado de casamento, como a “[...] união permanente entre homem e mulher, de acordo com a lei, a fim de se reproduzirem, de se ajudarem mutuamente e de criarem os filhos”. Já para o entendimento de Pereira (2007, p. 53) “[...] o casamento é a união de duas pessoas de sexo diferente, realizando uma integração psíquica permanente”. O casamento durante muito tempo era o único considerado como entidade familiar pela sociedade. Porém com o passar dos anos a união estável foi conquistando espaço e ganhou a proteção estatal, deixando claro que o casamento não é mais o único responsável pela criação de família.
Família monoparental é aquela em que um único genitor convive e é responsável pelos seus filhos biológicos ou adotivos. É uma das entidades familiar claramente reconhecida pela Constituição Federal, como pode ser observado no artigo “226 § 4° Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”. De acordo com Maria Berenice Dias (2010, p. 48) tal entidade familiar recebeu em sede doutrinária como família monoparental, como forma de ressaltar a presença de somente um dos pais na titularidade do vínculo familiar.
De acordo com artigo 69 § 2° do Projeto do Estatuto das Famílias: “§ 2° Família pluriparental é a constituída pela convivência entre irmãos, bem como as comunhões afetivas estáveis existentes entre parentes colaterais”. No entanto, maior parte dos autores, como Maria Berenice Dias chama este tipo de família de anaparental, ou seja, constituída por afeto familiar, baseada por uma comunidade por parentes ou irmãos, sem a presença dos pais. Esclarece Maria Berenice Dias (2010, p. 48) “A convivência entre parentes ou entre pessoas, ainda que não parentes, dentro de uma estruturação com identidade de propósito, impõe o reconhecimento da existência de entidade familiar batizada com o nome de família anaparental.” O Superior Tribunal de Justiça, inclusive, no julgado do Resp 159.851, reconheceu a impenhorabilidade do imóvel em que vivia uma família anaparental: “Os irmãos solteiros que residem no imóvel comum constituem uma entidade familiar e por isso o apartamento onde moram goza de proteção de impenhorabilidade, prevista na Lei n. 8.009/90, não podendo ser levado a penhorado na execução de dívida assumida por um deles.”.
Já a Família edeumonista é a convivência entre pessoas por laços afetivos e solidariamente mútuos, como casos de amigos que vivem juntos no mesmo lugar.
Família reconstituída ou recomposta é uma das famílias mais comum hoje na sociedade, na qual, pode ser vista após a separação ou o divórcio, surge então a chance de uma nova família. Além de juntar homem e mulher de uma relação anterior, também os filhos provenientes destas relações, no qual todos passam a conviver sob o mesmo teto. Essa família pode ser proveniente de um novo casamento ou união estável, os filhos sempre terão origem distinta quanto à paternidade biológica. A Família multiparental é uma família reconstituída, onde existe um vínculo de convivência entre diferentes pais ou mães no qual o objetivo comum é o bem estar da criança, e essa criança tem um vínculo de afinidade muito grande com o padastro ou madastra, considerando os mesmos, como se fosse seus próprios pais.
Por fim, mas, não menos importante a Família homoafetiva ocorre quando há uma união de pessoas do mesmo sexo, com o objetivo de constituir família. De acordo com o artigo 68 da Lei 2285/07 “É reconhecida como entidade familiar a união entre duas pessoas de mesmo sexo, que mantenham convivência pública, contínua, duradoura, com objetivo de constituição de família, aplicando-se, no que couberem, as regras concernentes à união estável”.
2. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E DO DIREITO DE FAMÍLIA APLICÁVEIS NA MULTIPARENTALIDADE
A aplicação dos novos princípios constitucionais atinge interpretativamente o direito civil e regulando simultaneamente com o direito de família, o qual se observa que o casamento não é mais a única entidade familiar, protegida pelo Estado. Diante disso, na evolução social surgiram novos tipos de famílias, junto a ela a multiparentalidade, na qual não está inserida expressamente no texto constitucional. No entanto, através de uma interpretação extensiva ou até mesmo por analogia pode ser observada a multiparentalidade presente nos princípios Constitucionais, como o princípio da igualdade que se refere que todos são iguais perante a lei, sendo assim, a família multiparental não pode ser excluída da sociedade, muito menos ser excluída do campo jurídico e não deve ser tratada diferente dos demais tipos de família existente e aceita pela Constituição.
No Direito das Famílias onde pode constatar o reflexo mais abrangente dos princípios que a Constituição Federal consagra, como os valores sociais fundamentais, que não se deve distanciar visão atual concepção de família, no qual seu conceito a se desdobrou em múltiplos ângulos. Devem servir como alicerces os princípios da solidariedade e da afetividade em todos os momentos em que for analisar questões que envolva família.
Não é fácil apontar todos os princípios inerentes ao direito de família. Não há consenso doutrinário, pois cada autor norteia princípios diferentes, não tendo uniformidade entre eles.
Convém destacar alguns princípios norteadores na multiparentalidade.
Da dignidade da pessoa humana, se encontra expressamente no artigo 1°, inciso III, da constituição Federal, sendo um dos principais fundamentos de um Estado democrático de direito. Maria Berenice Dias (2010, p. 62) explica que o princípio da dignidade da pessoa humana é o mais universal de todos os princípios. É um macroprincípio do qual se irradiam todos os demais: liberdade, autonomia privada, cidadania, igualdade e solidariedade, uma coligação de princípios éticos.
Na mesma luz de conhecimento, Carlos Roberto Gonçalves (2009, p. 7) aduz que o princípio da dignidade forma a base da comunidade familiar, já que garante o pleno desenvolvimento de todos os seus membros, especificamente da criança e do adolescente.
Assim, a multiparentalidade não pode ser compreendida como regra, mas como a probabilidade de proteção à pessoa humana. Sendo assim, o reconhecimento da pluralidade dos vínculos parentais está vinculado ao princípio da dignidade da pessoa humana, pois se ignorar lá estará abrindo mão da tutela da pessoa humana, será como descumprir um dos princípios constitucionais. Neste caso, o judiciário não pode se impor aos fatos novos, devendo assim trabalhar com os princípios da Constituição, imputando-os de caráter normativo, com a admissão das cláusulas gerais para enfim ajustar o reconhecimento da família multiparental.
Em virtude disso, a multiparentalidade deve ser reconhecida pelo judiciário com o intuito de garantir a dignidade dos envolvidos, bem como a sua proteção e promoção. Tendo a família multiparental o direito da formalidade do registro civil para que se possa garantir a produção de todos os efeitos jurídicos.
Pelo submetido, o princípio da dignidade da pessoa humana, protege todo e qualquer tipo de entidade familiar, principalmente os filhos, desprezando assim, qualquer tipo de distinção entre eles, mesmo não possuindo a mesma ascendência.
Princípio da solidariedade familiar, previsto na CF/88 em seu artigo 3º, inciso I, é um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. É um princípio proveniente do vínculo afetivo, solidariedade e fraternidade. Esclarece Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2010, p. 27), a solidariedade repercute nas relações familiares, já que é tendente a promover o desenvolvimento da personalidade de seus membros. Um dos aspectos deste princípio é a acepção fraternal, possibilitando o pleno desenvolvimento dos membros de uma família, defendendo a aceitação das mais variadas formas de família, não ficando de lado a multiparentalidade. Para Maria Goreth (2016, p. 51) a solidariedade é de suma importância para multiparentalidade, já que mais de um pai ou uma mãe pode ser responsável juridicamente por um único filho, ampliando assim a proteção jurídica tanto dos filhos como dos pais.
Princípio do pluralismo das entidades familiares, como já explicado anteriormente as estruturas de famílias sofreram novos contornos, e o casamento passou a não ser a única base da sociedade, sendo assim, esse princípio passou a ser reconhecido pelo Estado devido à existência de vários padrões familiares. Mesmo que não indicadas de forma expressa a família multiparental foi reconhecida como família pela justiça. Maria Berenice Dias (2010, p.67) deixa claro que a exclusão do âmbito da juridicidade entidades familiares que se compõem a partir de um elo de afetividade e que geram comprometimento mútuo e envolvimento pessoal e patrimonial é simplesmente chancelar o enriquecimento injustificado, é afrontar a ética, é ser conivente com a injustiça.
Princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, apesar de não ser encontrado no artigo 5° da Constituição Federal, é fundamental aos direitos da criança e do adolescente, tendo responsabilidade pelos mesmos não só a família, mas também a sociedade e Estado, como elenca a Constituição Federal em seu artigo 227 e artigo 4° do ECA. A família tem um dos papéis primordiais no cuidado dos menores, em razão que é onde eles aprendem os valores que devem levar para a vida. Devendo os pais lhe oferecerem atenção necessária, e exercer a paternidade com responsabilidade para a edificação de um futuro digno para os filhos.
A criança, para o pleno e harmonioso desenvolvimento de sua personalidade, deve crescer no seio da família, em um ambiente de felicidade, amor e compreensão. (PEREIRA, p. 419, 2007).
As mudanças na organização da sociedade ponderam, por exemplo, que a multiparentalidade será uma das formas pelo Judiciário para demonstrar o princípio do melhor interesse da criança. Para Pereira (2007, p. 161) para se encontrado o princípio do melhor interesse da criança, deve ser abandonado o preconceito e se livrar de concepções morais e estigmatizastes.
Princípio da igualdade filial, previsto na Constituição Federal em seu artigo 227, § 6°, que proíbe qualquer indicação discriminatória com relação aos filhos existentes ou não da relação matrimonial ou por adoção. A filiação, assim como a família não pode ser enxergada como se padrão ou moldura tivessem. Como antes, o reconhecimento unitário do casamento, não excluía o surgimento dos filhos fora dessa relação, por um grande período o Estado, os ignoraram, considerados filhos sem pai, sobrepondo assim, os direitos de uma criança. A questão é se a biologia é hoje preceito para delinear a paternidade. Na visão de Maria Goreth Macedo Valadares (apud BOEIRA, 1999, p. 53), “a paternidade passou a ser vista como uma relação psicoafetiva, existente na convivência duradoura e presente no ambiente social, capaz de assegurar o filho não só o um nome de família, mas, sobretudo afeto, amor, dedicação e abrigo assistencial (...), capaz de identificar a verdadeira paternidade”. O reconhecimento do pai biológico por exame de DNA, não assegura uma paternidade responsável, mas não o excluem dos efeitos jurídicos, como os direitos sucessórios e o dever alimentar e sustento.
A parentalidade jurídica pode ser biológica, presumida ou afetiva, assim a coexistência de dois pais ou mães terão que ter todos os direitos e deveres decorrentes de uma relação parental, como esclarece Valadares (p. 46, 2016) “o contrário do que se estabelece como padrão jurídico e social: a possibilidade de cumulação das parentalidades, com a produção de efeitos jurídicos”, ou seja a família multiparental, unilateral, todos os tipos de família existente deverão ter os mesmos efeitos jurídicos, como direitos e deveres.
3. QUANDO A BIPARENTALIDADE SE TORNA MÚLTIPLA
Como já observado, ocorreram várias mudanças no ordenamento jurídico do direito das famílias, em especial na busca de um direito mais igualitário que possa atender o melhor interesse dos envolvidos. Nessa linha de raciocínio, com o fim da unicidade do casamento como única forma de família, com a igualdade dos filhos, independentemente de sua origem, o reconhecimento das uniões homoafetivas, entre outras inovações que quebrarão o padrão de uma família ancestral.
Para Moraes a família de hoje é denominada democrática e solidária, senão vejamos:
Em contraposição ao modelo tradicional propõe-se atualmente ao modelo da família democrática, onde não há direitos sem responsabilidades, nem autoridade sem democracia, e onde se busca pôr em prática o slogan outrora revolucionário: igualdade, liberdade e solidariedade. (MORAES, p.617, 2006).
Contudo, a biparentalidade (que significa um pai e uma mãe para cada filho) não deve ser vista como padrão de família, essa visão deve ser quebrada pelo judiciário, que precisará de acordo com os princípios da dignidade da pessoa humana e da isonomia, reconhecer os mesmos direitos e deveres de uma família tradicional e uma família multiparental, não podendo fechar os olhos a nova realidade fática.
Nosso entendimento é que os efeitos da múltipla vinculação parental operam da mesma forma e extensão como ocorre nas tradicionais famílias biparentais. Por força do princípio da isonomia, não há hierarquia entre os tipos de parentesco. Portanto, com o estabelecimento do múltiplo vínculo parental, serão emanados todos os efeitos de filiação e de parentesco com a família estendida, pois, independente da forma como esse vínculo é estabelecido, sua eficácia é exatamente igual, principalmente porque irradia do princípio da solidariedade, de modo que instrumentaliza a impossibilidade de diferença entre suas consequências. (MORAES, p.617, 2006).
O autor Belmiro Pedro Welter (2009, p. 222) defende também a possibilidade de cumulação das parentalidades e de seus efeitos jurídicos, pois adota a teoria tridimensional do direito de família, na qual, o ser humano tem direito a três mundos, genético, afetivo e ontológico.
Seguindo o entendimento, não há previsão expressa que exige que a parentalidade seja una, ou seja, biológica, socioafetiva ou presumida, se houvesse essa exigência na legislação, não haveria nenhum sentido a discussão sobre a multiplicidade de vínculos.
A unicidade de parentalidade com o tempo foi abrindo espaço para a multiplicidade, pois, a socioafetividade aos poucos é reconhecida pelo ordenamento jurídico juntamente com as outras duas parentalidade.
Assim, não mais se pode dizer que alguém só pode ter um pai e uma mãe. É possível que as pessoas tenham vários pais. Identificada a pluriparentalidade ou multiparentalidade, é necessário reconhecer a existência de múltiplos vínculos de filiação. Todos os pais devem assumir os encargos decorrentes do poder familiar, sendo que o filho desfruta de direitos com relação a todos. (DIAS, p. 409, 2015).
Sendo assim, é uma obrigação constitucional quebrar o paradigma da biparentalidade, e com isso reconhecer a coexistência de vínculos parentais afetivos e biológicos ou apenas afetivos. Preservando assim, os direitos fundamentais dos envolvidos, como a dignidade da pessoa humana.
4. FILIAÇÃO
A filiação ocorre com a relação de parentesco entre duas pessoas, onde uma é a titular da autoridade parental e a outra se prende pela origem biológica ou afetiva. “Filiação procede do latim filiatio, que significa procedência, laço de parentesco dos filhos com os pais, dependência, enlace.” (Lôbo, p. 211, 2017).
A família constituída pelo casamento era a única que possuía reconhecimento proteção estatal. Assim como a filiação quando referida pela lei, trata se exclusivamente aos filhos havidos no casamento.
É notável que a Constituição Federal consagrasse como fundamental o direito de convivência familiar, bem como a proteção integral das crianças e adolescentes, a dignidade da pessoa humana, deixando para trás a feição patrimonialista da família. Deixa nítido também, a vedação de qualquer discriminação de filiação, sendo obrigatório tratar os filhos nascidos ou não da relação de casamento e aos filhos adotivos com os mesmos direitos e qualificações, devendo todos serem tratados iguais independentemente de sua origem.
Assim como a definição de família foi modificada de acordo com a cultura e mutação da sociedade, a filiação também ocorreu modificação, pois passou a ser identificado o vínculo afetivo paterno – filial. Como esclarece Maria Berenice Dias:
Todas essas mudanças se refletem na identificação dos vínculos de parentalidade, levando ao surgimento de novos conceitos e de uma nova linguagem que melhor retrata a realidade atual: filiação social, filiação socioafetiva, estado de filho afetivo etc. [...] A paternidade deriva do estado de filiação, independentemente de sua origem, ser biológica ou afetiva. A ideia da paternidade está fundada muito mais no amor do que submetida a determinismos biológicos. (DIAS, p. 349, 2010).
O vínculo da parentalidade não pode mais ser vista exclusivamente na situação genética, pois a sociedade traz ao judiciário situações totalmentes diferentes. A posse de estado de filho é a que gera a relação de parentesco criando assim a responsabilidade paternal.
O parentesco deixou ser unicamente o vínculo consanguíneo, isso pode ser visto com o fato real da sociedade como a adoção, a fecundação heteróloga e a filiação socioafetiva (família multiparental). Com isso, como aponta Maria Berenice Dias, pai não é só aquele que dar o sobrenome, ou que tem o exame de DNA como positivo, o verdadeiro pai é aquele que age como pai, quem dá afeto, quem assegura proteção e garante a sobrevivência.
Como já explicado não existe mais só a filiação biológica, como trazia o Código Civil de 1916, porém, para muitos quando se fala em filiação e em reconhecimento de filho se veem logo como referência a filiação genética. No entanto, os legisladores deixaram de reconhecer o casamento como única faceta de família, abrindo se espaço para a constituição de família pela afetividade, com isso, passou se afetividade ser também como elo de identificador para filiação. Surgiram vários outros tipos de filiação, como a registral, que possui presunção de veracidade, tornando o público e incontestável, ficando o responsável encarregado a todos os efeitos legais do filho. Porém com a inexistência de registro, para a filiação prevalece o princípio da aparência, onde ocorre a posse do estado de filho que acontece pela convivência familiar.
A filiação também aparece na reprodução assistida, a revolução da biotecnologia alcançou as estruturas familiares, ao ponto que os avanços tecnológicos chegaram a auxiliar na reprodução humana, ajudando o casal que possui dificuldades na concepção natural. A reprodução assistida de acordo com artigo 1.597 do Código Civil possui a característica de presunção da paternidade assim como da filiação. A reprodução homóloga por sua vez, é uma espécie de reprodução assistida na qual não há necessidade de autorização do marido para que possa ocorrer, o filho neste caso também é gerado pelo marido ou companheiro, na qual assumirá todos os encargos decorrentes do poder familiar. Já a reprodução assistida heteróloga, ocorre com o procedimento reprodutivo de sêmen doado por terceira pessoa, onde esse terceiro é afastado de todos os encargos legais da paternidade, ocorrendo assim à filiação legal, como explica Dias (2010, p. 364) “A manifestação do cônjuge ou companheiro corresponde a uma adoção antenatal, pois revela, sem possibilidade de retratação, o desejo de ser pai. Ao contrário das demais hipóteses, a fecundação heteróloga gera presunção juris et de jure, pois não a filiação não pode ser impugnada. Trata-se de presunção absoluta de paternidade socioafetiva”.
Falando em socioafetividade, existe também a filiação socioafetiva que decorre do afeto, que não resulta necessariamente do vínculo genético, mas sim, da afetividade, deixando nítido o velho ditado “que pai é quem cria e não essencialmente quem procria”, como segue o pensamento de Dias:
Pai afetivo é aquele que ocupa, na vida do filho, o lugar do pai, desempenha a função de pai. É uma espécie de adoção de fato. É aquele que ao dar abrigo, carinho, educação, amor ao filho, expõe o foro mínimo da filiação, apresentando-se em todos os momentos, inclusive naqueles em que se toma a lição de casa e ou verifica o boletim escolar. (DIAS, p. 653,2015).
O reconhecimento da filiação socioafetividade gera responsabilidades pessoais e patrimoniais que lhe pertencem. O registro da filiação socioafetiva já pode ser feita aqui no Brasil diretamente no Cartório do Registro Civil de acordo com o provimento n° 63 de 14 de novembro de 2017, sem necessário de propositura de ação judicial.
Finalmente, a filiação multiparental, que é ligada pelo afeto, que hoje é a principal característica para a definição de vínculos parentais. Para que possa ser vista a filiação multiparental, basta notar a presença dos vínculos de filiação com mais de duas pessoas, em que no ponto de vista do filho passa a ter dois ou mais pais ou mães, com isso coexistindo vínculos parentais afetivos e biológicos. Esta é uma realidade que os legisladores começaram a admitir, não podendo mais se dizer que alguém só pode ter um pai e uma mãe, é possível que tenham vários pais, reconhecendo assim a existência de vários vínculos de filiação. Ficando assim os pais coobrigados assumir os encargos do poder familiar, e o filho desfruta de direitos em relação a todos.
É notório, que não mais existe apenas a filiação biológica, que atualmente,as presunções ou apenas laços biológicos não bastam e não são suficientes para demonstrar a verdadeira paternidade, pois o que é mais importante é a exteriorização do afeto por meio dos atos de cuidar, assistir e educar, ocorrendo assim a elaboração dos efeitos jurídicos.
5. MULTIPARENTALIDADE
5.1 TENTATIVA CONCEITUAL
A multiparentalidade é um aspecto de que demonstra que muitos paradigmas foram quebrados, o qual a denominação de família atual é claramente democrática, e isso fica notório com o fim da unicidade do casamento como exclusiva forma de família, a igualdade dos filhos independente de sua origem, bem como o reconhecimento das uniões homoafetiva.
A pluriparentalidade ou a multiparentalidade acontece quando um filho estabelece uma relação de paternidade ou maternidade com mais de um pai e ou mais de uma ma?e, como ocorre, por exemplo, na relação de padastro ou madastra, que quando exercem função materna ou paterna, ou até mesmo a substituição a eles.
Assim, independente da filiação biológica, a paternidade e a maternidade deverão ser exercidas em prol do desenvolvimento da criança e do adolescente, e atualmente é notório o exercício da paternidade socioafetiva em conjunto com a biológica ou presumida, que são situações onde essas funções são exercidas em prol da criança, a qual são realizadas simultaneamente por dois pais ou duas mães.
Surge então, a família multiparental, cujo se conceito amplia os vínculos de filiação para além da biparentalidade, ocorrendo assim à possibilidade jurídica de um filho ter múltiplos pais.
Belmiro Pedro Welter, afirma que:
Não reconhecer as paternidades genética e socioafetiva, ao mesmo tempo, com a concessão de TODOS os efeitos jurídicos, é negar a existência tridimensional do ser humano, que é reflexo da condição e da dignidade humana, na medida em que a filiação socioafetiva é tão irrevogável quanto a biológica, pelo que se deve manter incólumes as duas paternidades, com o acréscimo de todos os direitos, já que ambas fazem parte da trajetória da vida humana. (WELTER, p. 122, 2009).
Assim, surge um novo aspecto para as relações familiares, nos quais a parentalidade se destaca com uma origem tríplice: presumida, biológica ou afetiva. O fenômeno da afetividade surge como umas das principais características de relação de família, não se sucedendo mais o caráter biológico como critério exclusivo na formação do vínculo familiar. Com o mesmo sentido Maria Berenice Dias (2015) destaca que é no direito das famílias em que mais se sente o reflexo dos princípios que a Constituição da República Federativa do Brasil consagra como valores sociais fundamentais, e que não podem se distanciar da atual concepção da família, com sua feição desdobrada em múltiplas facetas, encontrando-se princípios especiais que são próprios das relações familiares e devem servir de norte na hora de apreciar qualquer vínculo que envolve questões de família, no qual faça surgir entre eles os princípios da solidariedade e da afetividade.
Percebe-se que não é muito rara a possibilidade de encontrar a existência de pessoas possuindo o vínculo parental afetivo e o biológico (ou consanguíneo) concomitantemente, por exemplo, pela separação dos genitores como pela morte de algum deles, ou até mesmo pela adoção. Ocorre a multiparentalidade quando filho possui uma relação com uma pessoa diferente da do genitor ou genitora, que o mesmo a considera como pai ou mãe, e que exerce o papel de filho, e que esse papel seja reconhecido pela sociedade. O princípio da dignidade humana tem total importância no aspecto multiparental, como observa Maria Goreth Macedo Valadares:
O reconhecimento jurídico da multiparentalidade é uma medida que se atenta à dignidade dos envolvidos. Ignorar essa nova realidade é deixar de tutelar a pessoa humana, é descumprir a determinação prevista na Carta Magna (VALADARES, p. 31, 2016).
O vínculo multiparental de acordo com o site do STF é tema de Repercussão Geral número 622, de relatoria do Ministro Luiz Fux, sendo aprovado com o seguinte: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”. O teor deixa claro que não há hierarquia entre a paternidade afetiva e a biológica, e as mesmas podem ser reconhecidas cumulativamente.
A multiparentalidade apareceu para efetivar as relações já existentes na sociedade. Zarpando do princípio do livre planejamento familiar, no qual atualmente é o princípio da afetividade que aparece nas famílias, sendo compreensiva como justa a possibilidade do registro dessas relações.
Assim, os filhos que possuem mais de um pai e/ou mais de uma mãe, em razão dos eventos da vida, não podem ficar sem amparo jurídico, eles não podem ser excluídos e muito menos os legisladores podem fechar os olhos para a realidade, isso por falta de lei que seja capaz de os encaixarem na realidade jurídica.
5.2 EFEITOS E ANÁLISE JURISPRUDENCIAL DA MULTIPARENTALIDADE
A multiparentalidade terá todos os efeitos jurídicos inerentes à biparentalidade, assim como atingirão os aspectos pessoais e patrimoniais. Ao que se refere aos efeitos jurídicos decorrentes ao conhecimento da filiação multiparental, implicará toda a série de relação de parentesco, obrigações, direitos, deveres e vínculos que são estabelecidos que atingem diversos membros da família, se do eles deveres individuais, mas também recíprocos, com aduz Leila Maria Torraca de Brito.
Desta feita, a múltipla filiação por se tratar de reconhecimento judicial, ocorre comprometimento no parentesco, no nome, no dever de sustentar, cuidar e proteger, entre outros.
O princípio da igualdade entre os filhos presente na Constituição Federal no artigo 227, § 6º, bem como o artigo 1.596 do Código Civil, proibiu qualquer discriminação entre os filhos havidos ou não da relação matrimonial.
Por exemplo, ocorre a múltipla filiação, quando tem uma dupla filiação paterna, onde serão inerentes todos os direitos, deveres e obrigações, como se os pais fossem únicos, sendo assim, ambos deverão exercer a função paterna.
Por decisão do CNJ, por ato administrativo do provimento n° 63 de 14 de novembro de 2017, já é possível a inserção voluntária dos nomes dos pais afetivos no campo filial, sem necessidade de entrar com ação perante o judiciário, isso pode ser realizado diretamente no Cartório de Registro Civil. No entanto, a decisão só ajudou a deixar claro sobre a existência da filiação socioafetiva, porém, vedou expressamente a possibilidade do registro da multiparentalidade, ou seja, vetou a alternativa de inserção no campo FILIAÇÃO do registro do filho, a introdução de duas mães e ou de dois pais, sendo assim, o CNJ totalmente contrário ao que vem acontecendo no Judiciário brasileiro. Como pode ser observado na decisão do Tribunal de Justiça do RS, que reconheceu a existência da multiparentalidade:
Ementa: APELAÇÃO. DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. RELAÇÃO DE PARENTESCO. AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE. ANULAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. MULTIPARENTALIDADE. RECONHECIDA A EXISTÊNCIA DE DOIS VÍNCULOS PATERNOS, CARACTERIZADA ESTÁ A POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE. TEMA Nº 622 DA REPERCUSSÃO GERAL DO STF. EM JUÍZO DE RETRATAÇÃO, DERAM PROVIMENTO AO RECURSO. (Apelação Cível Nº 70073977670, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Liselena Schifino Robles Ribeiro, Julgado em 12/12/2017).
Assim, no que tange aos efeitos da multiparentalidade estabelecidos pelos vínculos parentais, alguns julgados que reconhecem a múltipla filiação, os fizeram pelo reconhecimento da paternidade socioafetiva, sem prejudicar a paternidade biológica, mantendo assim no registro de nascimentos ambos os pais.
Como outro caso que ocorreu no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, onde foi novamente reconhecido o caso da multiparentalidade, quando o julgado decidiu a inclusão da madrasta (mãe socioafetiva) no registro civil de sua enteada, mantendo assim também a mãe biológica falecida, ocorrendo assim juridicamente o reconhecimento de duas mães para um único filho.
EMENTA: MATERNIDADE SOCIOAFETIVA. Preservação da Maternidade Biológica Respeito à memória da mãe biológica, falecida em decorrência do parto, e de sua família - Enteado criado como filho desde dois anos de idade. Filiação socioafetiva que tem amparo no artigo 1.593 do Código Civil e decorre da posse do estado de filho, fruto de longa e estável convivência, aliado ao afeto e considerações mútuos, e sua manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que se trata de parentes - A formação da família moderna não consanguínea tem sua base na afetividade e nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade. Recurso provido (TJSP, 1. ª Câmara de Direito Privado, Registro: 2012.0000400337. Apelação Cível n. 0006422-26.2011.8.26.0286, Comarca de Itu, Relator: Desembargador Alcides Leopoldo e Silva Júnior).
Há situações em poderá ser visto facilmente pelos julgadores, que os pais socioafetivos têm direito sobre o filho, como quando ocorre em que o filho foi ignorado a vida toda pelos pais biológicos. Porém poderá ter outras ocasiões, como casos de troca ou roubo de bebê de maternidade, e com isso a jurisprudência tem dado mais importância ao laço de sangue. No entanto, há situações que o juiz não terá como excluir nenhuma filiação, devendo assim optar pela multiparentalidade, para que não possa prejudicar a criança ou o adolescente.
Podem ser encontradas inúmeras decisões na jurisprudência sobre a filiação multiparental, porém, ainda muitos julgados possuem receio em atacar a tese, por não haver lei prevista sobre o caso, pois até o momento as decisões favoráveis se baseiam nos princípios do direito. Esses julgadores que não reconhecem a possibilidade de múltiplos pais, além de está ferindo os princípios da Constituição Federal, não estão levando em conta quem em Repercussão geral do Supremo Tribunal Federal n° 622, o relator Ministro Luiz Fux, decidiu que uma pessoa poderia ter concomitantemente vínculos filiatórios diferentes.
Como os filhos que receberem direitos de terem mais de um pai ou mãe, os terão todos os direitos e deveres de uma pessoa que tem um único pai, inclusive com base os direitos sucessórios. Neste modo, deverá aos juízes e tribunais, analisar cada caso, utilizando dos meios jurídicos disponíveis para identificar se os filhos estão abusando da boa-fé. Não podendo assim generalizar ou deixar de garantir o direito, com prerrogativa da má-fé de alguns casos.
6. A EXISTÊNCIA DA INTERPRETAÇÃO DA MULTIPARENTALIDADE NA CONSTITUIÇÃO FEDERATIVA DO BRASIL
A multiparentalidade é hoje um fato existente que não pode ser desconsiderada pelo Direito. Pois pelas mudanças apresentadas pelo Direito das Famílias não há motivos que impeçam que uma pessoa tenha dois ou mais pais, onde esta relação seja simultânea ou em período distinto de sua vida.
A certidão de nascimento é um documento que pressupõe a veracidade do registro, sendo assim o entendimento de quem será o responsável legal pelo filho, é aquele que consta como pai no documento registral, mesmo que exista outra pessoal no exercício do papel paternal, sendo ela independente ou em conjunto com o pai registral. É perceptível que no registro civil de nascimento consta o nome de um pai, sendo ele socioafetivo, presumido ou biológico. O efeito desse fato é o costume da biparentalidade, que possui a ideia que o correto é que cada pessoa tenha um pai e uma mãe.
No entanto, esse paradigma deve ser rompido, em vista que, para respeitar e não deixar de lado a dignidade humana dos envolvidos, muitas vezes os juristas terão que recorrer como medida a multiparentalidade. Dessa maneira, se o filho possui mais de um pai ou mãe, sua certidão deverá amparar a filiação multiparental.
O que se defende por alguns juristas, como o Juiz Fernando Nóbrega da Silva, que a coexistência de mais de uma forma de parentalidade em pessoas distintas é um fato jurídico e, submete se ao caso concreto, e com isso, sem a exclusão um do outro, todos responderão pelos efeitos materiais, sociais e econômicos em face do filho.
Como aduz Maria Goreth, que se é admitida uma tríplice fonte de parentalidade, sem qualquer hierarquia ou sem predomínio uma da outra, e como já foi observado a multiparentalidade já é admitida pelo ordenamento jurídico, e como efeito produz direitos e deveres de todos os envolvidos.
A família brasileira atualmente é solidária, democrática e plural, sendo a multiparentalidade um fato jurídico desse fato, e devido essa filiação não ter norma expressa que determine nada impede que seja reconhecida pelo ordenamento jurídico, respeitando assim a complexidade da vida humana.
A lei não possui a força ainda de acompanhar a evolução da sociedade, porém, isso não é justifica para que o Estado fique inerte para os novos fatos jurídicos, devendo soluciona-los por meio dos aplicadores do Direito, onde não devem ficar presos na cultura da biparentalidade. Sendo assim, quando se é comprovado o fato de que o filho engloba em sua vida vários pais, não pode o aplicador Direito ficar inativo, sob a justificativa que não há dispositivo expresso em lei, assim estaria contrariando vários Princípios Constitucionais.
A lei não prevê nenhuma forma especial para o reconhecimento de um filho, sendo as possibilidades que estão expressos no artigo 1.609 com o art. 1.605 do Código Civil é exclusivamente exemplificativo, isso é óbvio pelo simples fato de que a jurisprudência e os doutrinadores enxergam e concederam a paternidade socioafetiva. Com uma ampla análise do Código Civil, em conjunto com a Constituição Federativa do Brasil, principalmente em seu artigo 226, é percebido que há diferentes formas de manifestar a vontade de reconhecimento de paternidade. Podendo ela ocorrer por meio de uma declaração de vontade, ou quando há algum impedimento para que isso ocorra, por exemplo, quando o pai não quer assumir espontaneamente o filho, a única solução é uma imposição social.
As pessoas que vivem em situação de multiparentalidade não podem ser consideradas invisíveis, principalmente porque elas não estão excluídas da Constituição Federal, basta que o aplicador do direito interprete de maneira integrada com as normas do sistema jurídico para que possa ver a sua admissibilidade. Foi o que ocorreu na decisão do STF ao admitir a possibilidade da família multiparental. Com essa decisão o STF não fechou os olhos para realidade, acolheu outra forma de família que já existe na prática e não prevista expressamente na legislação.
Para que se possa reconhecer a múltipla filiação registral, é necessário trabalhar com os princípios jurídicos. Como forma de garantir a promoção humana, deve se admitir e permitir que a pessoa tenha uma família que retrate a sua vida real, como é o caso da multiparentalidade.
Ademais, não se encontra no ordenamento jurídico qualquer norma que disponha sobre a maior ou menor importância de uma ou outra parentalidade, bem como inexiste que vede a possibilidade de múltipla filiação (VALADARES, 2016, p. 106).
Quando ocorrer a hipótese, por exemplo, de um filho ter um pai biológico e outro afetivo, porém na sua certidão como de costume terá apenas um, no campo de filiação ao lado do nome da mãe. Nessa hipótese como várias outras, o registro de nascimento não traz a realidade daquela família, bem como não respeita o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, por não respeitar os nomes dessa família, assim explica Belmiro:
Os nomes dos pais afetivos e genéticos devem ser preservados, em atendimento a dignidade e a condição humana tridimensional do filho e de seus pais sociológicos e genéticos, já que todos os eventos da existência precisam ser cumulados na trajetória da vida humana. (WELTER, 2009, p. 230).
Belmiro em seu livro na Teoria tridimensional do direito de família especifica que para que se possa conhecer a múltipla relação registral, é necessário atender sempre os direitos fundamentais Constitucionais, bem como os princípios da afetividade, da cidadania, da dignidade da pessoa humana, entre outros.
O nome de acordo com a Constituição Federal faz parte do direito da personalidade do indivíduo, já o sobrenome reflete sobre a família a qual este indivíduo pertence. Para admitir que se possa ter mais de um vínculo parental para um filho, terá que aceitar assim dois sobrenomes advindos de duas famílias distintas, respeitando assim o direito da personalidade do indivíduo.
Enfim, a Constituição Federal auxiliou com as mudanças ocorridas no regime familiar, principalmente no que concerne na família multiparental, aplicando para seu conhecimento inúmeros princípios como é o caso do princípio da dignidade da pessoa humana, afetividade e solidariedade, juntamente com interpretação das normas jurídicas. Por fim, não resta dúvida da possibilidade jurídica do reconhecimento da família multiparental.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em vista dos argumentos apresentados, a multiparentalidade deixou de ser uma situação abstrata para se tornar um fato jurídico. Como fato novo no ordenamento jurídico e não está expresso na Constituição, não podem os aplicadores das normas dela se omitir com a justificativa de que a biparentalidade seria a regra. A multiparentalidade não pode ser compreendida como regra, mas como a probabilidade de proteção à pessoa humana. Sendo assim, o reconhecimento da pluralidade dos vínculos parentais está vinculado ao princípio da dignidade da pessoa humana, pois se ignorar lá estará abrindo mão da tutela da pessoa humana, será como descumprir um dos princípios constitucionais. Neste caso, o judiciário não pode se impor aos fatos novos, devendo assim trabalhar com os princípios da Constituição, imputando-os de caráter normativo, com a admissão das cláusulas gerais para enfim ajustar o reconhecimento da família multiparental. Em virtude disso, a multiparentalidade deve ser reconhecida pelo judiciário com o intuito de garantir a dignidade dos envolvidos, bem como a sua proteção e promoção. Tendo a família multiparental o direito da formalidade do registro civil para que se possa garantir a produção de todos os efeitos jurídicos.
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Artigo elaborado: Palmas – TO, 03 de maio de 2018.
[1]Professora do Curso de Direito da Faculdade Católica do Tocantins; doutora em Direito pela Universidade de Marília e doutoranda em Tecnologia Nuclear IPEN/USP; orientadora deste artigo de conclusão de curso; [email protected].
Bacharelanda do Direito pela Faculdade Católica do Tocantins.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Maristella Lorrane Pereira de. Os aspectos constitucionais da família multiparental Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 maio 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51653/os-aspectos-constitucionais-da-familia-multiparental. Acesso em: 23 dez 2024.
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