RESUMO: O presente artigo busca apresentar uma discussão acadêmica acerca da repercussão da prescrição do crédito tributário no processo penal de crimes contra ordem tributária. Tece-se comentários acerca da separação estéril das instâncias jurídicas. Em seguida, expõe-se sobre a materialidade dos crimes previstos no art. 1o da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990. Então analisa-se a aplicação jurisprudencial do tema para se apresentar uma conclusão.
Palavras-chave: Crime Tributário, prescrição tributária, independência de esferas, crime material, Lei no 8.137/97.
Introdução
O Direito contemporâneo é um Direito sobretudo compartimentado. Desde o Iluminismo, tem sido pensado e concebido através da lógica da separação das esferas ou instâncias jurídicas (Direito Penal, Direito Civil, Direito Administrativo etc.). Uma lógica, com efeito, praticamente erigida à condição de verdadeiro dogma no Direito hodierno.
A prenunciada independência entre os diversos setores do ordenamento baseia-se, fundamentalmente, no aparente contraste entre as funções e a natureza de cada uma das esferas que compõem a ordem jurídica. Assim, por exemplo, o Direito Penal se distinguiria do Direito Civil e Administrativo – que constituem, na óptica de Günther Stratenwerth,[1] o “elenco mínimo de normas sociais” – pela inegável gravidade dos fatos que disciplina e das sanções que comina, além da proeminência dos bens jurídicos que tutela; cabendo ao segundo a regulação das relações privadas e, ao terceiro, fixar normas sobre o modo e os limites de atuação da administração e do agente público no trato da coisa (res) pública.[2]
Daí a consequente necessidade de “criar” mecanismos jurídicos e construções teóricas (ou retóricas) que preservem ao máximo a independência entre os ramos. Em especial, destacam-se as construções em torno de uma alegada autonomia entre as instâncias oficiais encarregadas de apurar e julgar infrações civis, administrativas e penais, cujas decisões, dentro da lógica separatista e com raras exceções, são concebidas sob o signo da incomunicabilidade.
Não obstante, trata-se de uma lógica que tem contribuído para a estruturação de uma ordem jurídica demasiadamente ramificada e desconexa, e que parece confundir a autonomia científica, própria e necessária a cada um dos setores do ordenamento, com a inviabilidade de diálogo, não menos científico e regido por regras pré-fixadas, entre esses mesmos setores. Ademais, essa concepção separatista parece não se compatibilizar, no limiar do século XXI, com a ideia de organicidade do sistema jurídico. A mesma concepção, com efeito, sob a qual se sustenta, por exemplo, a teoria do tipo (ou tipicidade) conglobante de Zaffaroni.
Ainda que timidamente, alguns mecanismos jurídicos têm sido elaborados no sentido de prestigiar a organicidade do Direito e do próprio sistema normativo. Tanto do ponto de vista normativo, quanto jurisprudencial e doutrinário. Entre nós, por exemplo, a lei prevê casos em que decisões tomadas em uma das esferas repercutem em outras. Um dos exemplos típicos disso, no âmbito criminal, é a sentença absolutória penal por negativa de autoria, que faz coisa julgada no cível, impedindo a reapreciação da matéria para efeito de indenização, conforme disciplinam o Código de Processo Penal e o Código Civil brasileiros. Mais recentemente, no campo jurisprudencial, tem-se a orientação adotada pela Suprema Corte no sentido de condicionar o oferecimento de denúncia por crime tributário à conclusão do procedimento administrativo fiscal e o respectivo lançamento do crédito tributário. Essa orientação, com efeito, produziu uma verdadeira reviravolta jurídica em torno dos crimes fiscais, notadamente em torno do crime tipificado no art. 1.º, da Lei 8.137/90. Desde aquele julgamento, fixou-se o entendimento de que o oferecimento de denúncia, pelo crime previsto no art. 1.º da Lei 8.137/90, condiciona-se ao esgotamento prévio da esfera administrativo-fiscal, através do lançamento do respectivo crédito tributário. Essa orientação foi recentemente sumulada, através da Súmula Vinculante n.º 24.
A compreensão subjacente à necessidade de esgotamento na esfera administrativa, como verdadeira condição de procedibilidade, assenta-se na conclusão de que o crime previsto no art. 1.? da Lei 8.137/90, sendo material, apenas se configura quando evidenciado o dano ou lesão ao bem jurídico tutelado, qual seja, a arrecadação de tributos. Referido dano, no caso, estaria configurado a partir do momento que o Estado, por meio do lançamento do crédito tributário, identifica o sujeito ativo, a incidência do fato gerador e respectivo tributo, bem como fixa a responsabilidade tributária do agente. Enfim, com o lançamento do crédito tributário, tem-se a confirmação, mercê do devido processo legal, de que o sujeito ativo efetivamente deixou de recolher, injustificadamente, o(s) tributo(s) que devia ao Estado.
À luz da legislação penal em vigor, o crime fiscal, configurado com o lançamento do crédito tributário, deixa de ser punível caso haja o adimplemento integral do débito. Trata-se, com efeito, de causa extintiva da punibilidade.
Questão de extrema importante é saber, entretanto, se uma vez configurada a tipicidade do crime fiscal através do lançamento do crédito tributário essa mesma tipicidade pode ser afastada diante da superveniência de fato juridicamente relevante para outro ramo do direito. Como, por exemplo, em razão de posterior extinção do crédito tributário decorrente da incidência de alguma ou algumas das hipóteses previstas no art. 156 do Código Tributário Nacional – CTN.
Com efeito, a decadência tributária diz com a perda do direito de constituir o crédito tributário em razão do decurso do prazo de cinco anos previsto no art. 173, do CTN. Neste ponto, dúvida não há no sentido de que a decadência do crédito tributário, ao impedir a constituição do crédito, obstaculiza o próprio lançamento que, para o direito penal tributário, representa a conditio sine qua non para a configuração do crime fiscal e, consequentemente, condição para o exercício do jus puniendi pelo Estado.
Não obstante, no caso da prescrição tributária seria diferente. É que esse instituto se opera depois de lançado o crédito tributário, conforme preceitua o art. 176 do CTN. Não obstante, tal como ocorre com a decadência, a prescrição opera a extinção do crédito tributário. Em realidade, representa muito mais do que a simples perda do direito de cobrança do crédito tributário. Ela atinge, em realidade, o próprio crédito tributário, vale dizer, a relação material tributária, como salienta o magistério doutrinário de Hugo de Brito Machado[3]:
“(...) Assim, nos termos do Código, a prescrição não atinge apenas a ação para a cobrança do crédito tributário, mas o próprio crédito, vale dizer, a relação material tributária. Essa observação, que pode parecer meramente acadêmica, tem, pelo contrário, grande alcance prático. Se a prescrição atingisse apenas a ação para cobrança, mas não o próprio crédito tributário, a Fazenda Pública, embora sem ação para cobrar seus créditos depois de cinco anos de definitivamente constituídos, poderia recusar o fornecimento de certidões negativas aos respectivos sujeitos passivos. Mas como a prescrição extingue o crédito tributário, tal recusa obviamente não se justifica.” (g.n.)
Daí o questionamento: a prescrição tributária, com a consequente extinção do crédito tributário, é capaz de conduzir à extinção da persecução penal do contribuinte?
Este, com efeito, é o problema objeto do presente artigo. Noutras palavras, propõe-se a discutir e analisar, mediante a superação do paradigma da separação das esferas, a possibilidade de jurídica da prescrição tributária repercutir na seara jurídico-penal, notadamente para efeito de extinguir o processo-crime correlato.
1. A repercussão da prescrição tributária nos processos penais de crimes fiscais
Conforme preconiza o art. 156, V do Código Tributário Nacional (CTN), a prescrição constitui causa de extinção do crédito tributário, operando-se mediante a passagem de 5 anos entre a constituição definitiva do crédito e a respectiva ação de cobrança (CTN, art. 174). E não se trata, propriamente, de mera extinção do direito de cobrar o crédito. Como sustenta Hugo de Brito Machado,[4] ela extingue “o próprio crédito, vale dizer, a relação material tributária.” Como consequência, a extinção do crédito tributário pela prescrição tributária torna o próprio crédito (ou tributo) inexigível.[5] É justamente, aí, que reside a inextrincável relação e repercussão na esfera penal.
Essa orientação, diga-se de passagem, está em perfeita sintonia com a jurisprudência assentada pelo Supremo Tribunal Federal, in verbis:
(...)a ação incriminada no art. 1.º da Lei 8.137/90 só pode ser supressão ou redução do crédito tributário devido, ou seja, definitivamente constituído, líquido, certo e exigível, nos termos de lançamento definitivo (cf. HC 84.555/RJ, rel. Min. Cezar Peluso, DJ 14.09.2007) (g.n.)
Assim, também, a jurisprudência firmada pelo Superior Tribunal de Justiça, segundo excerto:
(...)crédito tributário prescrito não pode dar ensejo à instauração de inquérito policial para apurar crime contra a ordem tributária, pois é patente a atipicidade da conduta. (cf. HC 37.418/RJ, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe 30.04.2007) (g.n.)
Tais paradigmáticos demonstram, inequivocamente, a dependência das instâncias penal e fiscal, mormente pela materialidade de parte dos crimes tributários.
2. Materialidade da sonegação fiscal
É sabido que o crime previsto no art. 1.º, da Lei 8.137/90 é material, isto é, consuma-se mediante a produção do resultado, qual seja, a efetiva supressão ou redução de tributo, contribuição social e qualquer acessório. Certo, ainda, que o objeto jurídico do tipo, é dizer, o bem jurídico tutelado pela norma, é a arrecadação tributária, como ensina Guilherme de Souza Nucci.[6]
Diante disso, parece irrespondível que uma vez desaparecendo a relação material tributária através da extinção do próprio crédito tributário – bem jurídico tutelado pela norma penal – não há falar em ofensa à arrecadação tributária estatal, sabido que ela, a arrecadação, constitui a seu turno o específico “objeto jurídico” do tipo descrito no art. 1.º, II, da Lei 8.137/90.[7]
Em outras palavras, não havendo mais crédito tributário soa no mínimo ilógico supor a subsistência de crime tributário, por “sonegação”, em relação a algo que já não existe no cenário jurídico, não sendo nem mesmo reconhecido à luz do Direito Tributário. O que se dirá, então, do Direito Penal?
A questão, outrossim, gira em torno, de um lado, da ausência de um das elementares do tipo de sonegação fiscal (o tributo) e, de outro, da observância do princípio da ofensividade como limite do ius poenale.[8]
Sob a perspectiva do dano, alguns autores de nomeada se predispuseram a enfrentar o tema. Neste sentido, confira-se, por exemplo, o que acentua Andrei Zenkner Schmidt, um dos mais proeminentes juristas da atualidade, in litteris:
[...] se numa determinada hipótese ocorrer de o tributo decair ou prescrever segundo a lei tributária, impossível será falar-se em crime de sonegação fiscal, ante a extinção do crédito tributário, mesmo no caso da prescrição penal não ter ocorrido. A partir do momento em que a lei penal retira, da lei tributária, o conceito de tributo para tipificar os delitos de sonegação fiscal, teremos de reconhecer que as causas extintivas do crédito tributário (prescrição e decadência, por exemplo) afastam o interesse estatal na prevenção do delito e, consequentemente, a sua punibilidade. Aqui, ao contrário das modalidades de pagamento lato sensu, se a decadência ou a prescrição verificarem-se antes da ação penal ter início, ou durante a sua tramitação, a extinção do crédito tributário faz desaparecer o interesse político criminal na repressão do injusto penal respectivo.[9] (Grifamos)
Ives Gandra da Silva Martins,[10] por sua vez, também é um dos fiéis partidários dessa linha de pensamento. Para o citado jurista, não pode o sujeito passivo da relação tributária (seja ele quem for) ser condenado por crime fiscal relacionado a processo em que inexista qualquer responsabilidade de natureza tributária. Do contrário, adverte: “seria admitir que alguém fosse condenado por crime de homicídio, estando a vítima assassinada assistindo ao julgamento”.
Não é outra, aliás, a posição adotada por Celso Ribeiro Bastos e de Francisco de Assis Alves, segundo os quais:[11]
Os crimes descritos na Lei 8.137/90 são crimes de dano e não mais de mera conduta, como era na vigência da Lei 4.729/65. Isto significa que a imputabilidade penal do contribuinte só resultará configurada, quando este causar efetivo prejuízo aos cofres públicos. Com efeito, o bem jurídico protegido pela atual lei tributária é o recebimento integral de cada tributo. De conseguinte quando a própria Administração ou o Poder Judiciário declarem inexistir qualquer responsabilidade de natureza tributária, desconfigura o crime fiscal. Vale dizer, havendo manifestação do credor, que é o fisco, dizendo que não há dívida, isto, sem dúvida, afeta o conteúdo da decisão criminal.
Assim, também, as opiniões de Gustavo Miguez de Mello, João Mestieri, Gabriel Lacerda Troianelli e Rafael Atalla Medina,[12] verbis:
Sob a égide da lei anterior, a 4.729/65, não hesitaríamos em responder afirmativamente à pergunta sobre poder o sujeito passível da relação tributária ser condenado por crime fiscal relacionado a processo em que a própria Administração ou o Poder Judiciário venham declarar inexistir qualquer responsabilidade de natureza tributária. É que sendo os tipos ali previstos de mera conduta, o prejuízo ao fisco ou a existência ou não de dívida em nada importariam para a plena realização do tipo. Irrelevantes, pois, o prejuízo como a própria existência da dívida. Contudo, não é este o caso sob o império da Lei 8.137/90. Como tivemos ensejo de observar, os delitos previstos em seu art. 1.º são materiais e de dano, e não simplesmente formais, o que vale dizer ser insuficientes para a plena configuração do tipo a realização das condutas previstas em seus incisos sem que haja, como resultado, efetiva lesão, aos cofres públicos.
E concluem: “Assim, no que tange às figuras desse art. 1.º, se não há dívida a saldar, se não há responsabilidade tributária do acusado, não há falar-se em delito”. Neste mesmo sentido: Plínio José Marafon e Maria Helena Tavares de Pinho Tinoco Soares.[13]
3. Posicionamento jurisprudencial
Porém, não é esse o entendimento que vem sendo adotado por nossos tribunais, contrariando todas as teses expostas, insistindo na separação incomunicável dos ramos de Direito e olvidando a ultima ratio do Direito Penal bem como seu princípio da ofensividade, em acórdão unânime da 5a Turma, decide o Superior Tribunal de Justiça:
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA (ART. 1º DA LEI N. 8.137/90). PRESCRIÇÃO. INDEPENDÊNCIA DAS ESFERAS CÍVEL, ADMINISTRATIVO-TRIBUTÁRIA E PENAL. ACÓRDÃO RECORRIDO EM CONSONÂNCIA COM A JURISPRUDÊNCIA DO STJ. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO.
1. As instâncias administrativo-tributária, cível e penal são independentes, o que reflete no reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva estatal. Desse modo, a extinção do crédito tributário pela prescrição não implica, necessariamente, a extinção da punibilidade do agente. Precedentes do STJ.
2. Agravo regimental improvido
Por fim, recentemente, solidificando de vez sua jurisprudência em prol da persecução penal a despeito da extinção do próprio crédito tributário, o STJ publica informativo no 579, in verbis:
O reconhecimento de prescrição tributária em execução fiscal não é capaz de justificar o trancamento de ação penal referente aos crimes contra a ordem tributária previstos nos incisos II e IV do art. 1° da Lei n. 8.137/1990. Isso porque a constituição regular e definitiva do crédito tributário é suficiente para tipificar as condutas previstas no art. 1º, I a IV, da Lei n. 8.137/1990, não influindo o eventual reconhecimento da prescrição tributária. De fato, são independentes as esferas penal e tributária. Assim, o fato de ter escoado o prazo para a cobrança do crédito tributário, em razão da prescrição - fato jurídico extintivo do crédito tributário -, não significa que o crime tributário não se consumou, pois a consumação dos delitos de sonegação fiscal se dá por ocasião do trânsito em julgado na esfera administrativa. É dizer, uma vez regular e definitivamente constituído o crédito tributário, sua eventual extinção na esfera tributária, pela prescrição (art. 156 do CTN), em nada afeta o jus puniendi estatal, que também resta ileso diante da prescrição para a ação de cobrança do referido crédito (art. 174 do CTN). Precedente citado do STJ: AgRg no AREsp 202.617-DF, Quinta Turma, DJe 16/4/2013. Precedente citado do STF: HC 116.152-PE, Segunda Turma, DJe de 7/5/2013. RHC 67.771-MG, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 10/3/2016, DJe 17/3/2016.
Os julgados citados olvidam uma questão fulcral, em razão da extinção do crédito tributário pela prescrição, a Fazenda não pode sequer cobrar ou receber o respectivo crédito, sendo indevido eventual pagamento pelo contribuinte, como vem proclamando o Superior Tribunal de Justiça a respeito do tema:
STJ - TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL – REPETIÇÃO DE INDÉBITO DE DÍVIDA PRESCRITA PAGA – POSSIBILIDADE – DIFERENÇA DOS EFEITOS DA PRESCRIÇÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO, ART. 156, V, DO CTN E DA PRESCRIÇÃO NO DIREITO PRIVADO, ART. 970 DO CC DE 1916.
A dívida reconhecidamente prescrita que foi paga pode ser objeto de repetição de indébito tendo em vista que, diferentemente do direito privado, a prescrição extingue o crédito tributário e torna-se, portanto, indevida. Recurso especial provido, com inversão dos ônus sucumbenciais. (REsp 871416/SP, 2ª TURMA, rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, DJe 29/06/2009)
STJ - PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. REPETIÇÃO DE INDÉBITO. IPTU. ARTIGOS 156, INCISO V, E 165, INCISO I, DO CTN. INTERPRETAÇÃO CONJUNTA. PAGAMENTO DE DÉBITO PRESCRITO. RESTITUIÇÃO DEVIDA.
1. A partir de uma interpretação conjunta dos artigos 156, inciso V, (que considera a prescrição como uma das formas de extinção do crédito tributário) e 165, inciso I, (que trata a respeito da restituição de tributo) do CTN, há o direito do contribuinte à repetição do indébito, uma vez que o montante pago foi em razão de um crédito tributário prescrito, ou seja, inexistente. Precedentes: (REsp 1004747/RJ, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 18/06/2008; REsp 636.495/RS, Rel. Min. Denise Arruda, DJ 02/08/2007).
2. Recurso especial provido. (REsp 646328/RS, 2ª
TURMA, rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, DJe 23/06/2009)
Ou seja. Não considerando que a extinção do crédito implique a extinção da persecutio criminis, cria-se uma situação esdrúxula: sendo inexigível o crédito – que desaparece do mundo jurídico – o imputado fica simplesmente, e por mais absurdo que possa parecer, impedido de realizar o pagamento e, em consequência, ver extinta a punibilidade do fato, a teor do que estabelece a Lei 10.648/03 (art. 9.º, §2º).
O que é inaceitável, sobre qualquer prisma jurídico, desde do princípio da isonomia até a própria quintessência do processo penal tributário, o recebimento do crédito, evidenciada pela possibilidade extinção da punibilidade pelo pagamento de débito, como assinala Luiz Regis Prado[14],
“pode ser analisado sob dois enfoques: o político-fiscal e o jurídico penal. No primeiro, vislumbra-se uma finalidade extrajurídico-penal da autodenúncia, baseada em critérios essencialmente fiscais, como função de estímulo, de modo a facilita o retorno do contribuinte à honestidade fiscal. No segundo, fundamenta-se a autodenúncia no âmbito da teoria penal da desistência voluntária e da reparação do dano.”
Neste mesmo sentido, o magistério de Guilherme de Souza Nucci[15], ao asseverar:
“em matéria de crime contra a ordem tributária, verifica-se que, na essência, o Estado não quer a punição do infrator, mas almeja receber o valor do tributo, mantendo o padrão satisfatório da arrecadação. Várias vezes, leis são aditadas com o propósito de beneficiar aquele que sonegou tributo, total ou parcialmente, bem como quando buscou fazê-lo, mas não conseguiu.” (g.n.)
Ora, se a intenção do legislador é irrespondivelmente estimular o pagamento do crédito em troca do não-processo penal, a partir do momento em que esse mesmo crédito (ou relação material tributária) desaparece do mundo jurídico, a ação penal perde o sentido. Até porque, insista-se, o objeto jurídico do crime previsto no art. 1.º, II, da Lei 8.137/90, é a arrecadação tributária, que, na hipótese de prescrição, fica obstaculizada por força da própria lei que rege a matéria (CTN).
Conclusão
A prescrição tributária tem o efeito sui generis de ir além da mera extinção da pretensão judicial do crédito para extinguir o próprio direito fiscal, o crédito tributário, em si; efeito similar ao da decadência ou ao do pagamento deste. A peculiaridade de tal efeito faz surgir, cada vez mais, vozes doutrinárias acerca do potencial de sua reverberação na persecutio criminis engendrada pela sonegação desse crédito prescrito, uma vez que sendo este extinto, extinto deveria ser o processo-crime, a exemplo do que ocorre com a decadência.
Entretanto, não é esse o entendimento consolidado em nossos tribunais, especialmente no Colendo Superior Tribunal de Justiça, que têm como argumento de força o mero momento consumativo do crime tributário, porém sem a força do argumento que propugna a ausência de responsabilidade penal – ultima ratio de proteção jurídica - por ausência de responsabilidade civil, que sequer chega a ser aventado nos votos e julgados em questão.
Por último, ainda resta sem resposta uma questão primordial, a própria razão de ser do processo penal tributário, obstada a repercussão da prescrição tributária no processo penal, como o imputado poderá pagar um crédito fiscal extinto e exercer o seu direito à extinção da punibilidade?
BIBLIOGRAFIA
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GOMES, Luiz Flávio. Erro de tipo e erro de proibição e a evolução da teoria causal-naturalista para a teoria finalista da ação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992.
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NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas . São Paulo: RT, 2006
PRADO, Luiz Régis & CARVALHO, Érika Mendes. Teorias da imputação objetiva do resultado. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
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ZAFFARONI, Eugenio Raúl & PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. Parte Geral. 5.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
[1] STRATENWERTH, Günther. Derecho penal. Parte general I. 4.ed. Buenos Aires: Hammurabi, 2005, p. 57.
[2] Há ainda distinções entre esses ramos que levam em consideração a natureza jurídica do comportamento humano (se o fato constitui um ilícito penal, civil, administrativo etc.) ou mesmo a consequência do fato (sanção penal, civil, administrativa etc.) do fato.
[3] Cf. MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 27.ed. São Paulo: Malheiros, 2006, pág. 237.
[4] Cf. Curso de Direito Tributário. 27.ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 237.
[5] Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 23.ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 552.
[6] Cf. Leis Penais e Processuais Penais comentadas. São Paulo: RT, 2006, p. 597.
[7] Cf. Leis Penais e Processuais Penais comentadas. São Paulo: RT, 2006, pág. 597.
[8] Como destaca Luiz Flávio Gomes em obra específica, o princípio da ofensividade possui dupla função: a primeira, “limitar o legislador (leia-se: o ius puniendi) no momento das suas decisões incriminadoras.” A segunda, e não menos relevante função, “diz respeito ao plano dogmático (interpretativo) e aplicativo da lei penal. É uma função que pretende ter natureza ‘material’ (garantista) e significa constatar ex post factum (depois do cometimento do fato) a concreta presença de uma lesão ou de um perigo concreto de lesão ao bem jurídico protegido.” (GOMES, Luiz Flávio. Princípio da Ofensividade no Direito Penal. São Paulo: RT, 2002, pág. 99) – Grifamos.
[9] SCHMIDT, Andrei Zenkner. Exclusão da Punibilidade em Crimes de Sonegação Fiscal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 171.
[10] Crimes contra a Ordem Tributária. Coord. Ives Gandra da Silva Martins. 4.ed. São Paulo: RT, 2002, p. 35.
[11] Cf. Crimes contra Ordem Tributária. Ob. cit., p. 92.
[12]Cf. Crimes contra Ordem Tributária. Ob. cit., pp. 107-108.
[13]Cf. Crimes contra Ordem Tributária. Ob. cit., p. 182.
[14]Cf. Direito Penal Econômico. São Paulo: RT, 2004, pág. 426.
[15]Cf. Ob. cit, pág. 592.
Especialista em Direito Tributário pela Universidade Candido Mendes - UCAM.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NETO, José da Costa Oliveira. A prescrição tributária e sua repercussão no processo penal dos crimes contra ordem tributária Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 maio 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51667/a-prescricao-tributaria-e-sua-repercussao-no-processo-penal-dos-crimes-contra-ordem-tributaria. Acesso em: 23 dez 2024.
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