RESUMO: A Constituição Federal de 1988 preceitua que a soberania popular pode ser exercida através do plebiscito, referendo e iniciativa popular. A participação da população no processo decisório do país através desses institutos fortalece a democracia, criando a sensação de empoderamento popular e fortalecimento do sentimento democrático. Todavia, as consultas à população e o impulso inicial no processo legislativo não são de uso irrestrito. O Estado Democrático de Direito, em busca da sua preservação e de seu fundamento jurídico – a Constituição – estabelece mecanismos de controle, especialmente de constitucionalidade, objetivando evitar abusos contra os preceitos fundamentais e a manipulação da maioria em detrimento das minorias. Nesse contexto, preocupou-se em analisar os aspectos característicos desses institutos sob uma perspectiva crítica para, por fim, relacioná-los com a necessidade controle estatal exercido.
PALAVRAS-CHAVE: Participação Popular; Controle de Constitucionalidade; Processo Constitucional.
ABSTRACT: The Federal Constitution of 1988 states that popular sovereignty can be exercised by plebiscite, referendum and popular initiative. The public involvement in the decision-making process of the country through these institutes strengthens democracy, creating the feeling of popular empowerment and strengthening of democratic sentiment. However, the public consultations and the initial impulse in the legislative process are not unrestricted use. Democratic State of Law, seeking its preservation and its legal basis - the Constitution - establishes control mechanisms, especially of constitutionality, to prevent abuse of the fundamental principles and the manipulation of the majority at the expense of minorities. In this context, was concerned with analyzing the characteristic features of these institutes under a critical perspective to finally relate them to the need state control exercised.
KEYWORDS: Popular Participation; Control of Constitutionality; Constitutional Process.
SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Plebiscito e referendo: histórico brasileiro e peculiaridades; 3 A construção doutrinária e a instrumentalização das consultas populares; 4 Acertos e desafios da iniciativa popular no Brasil; 5 Controle de constitucionalidade e os limites estatais ao exercício democrático; 6 Considerações Finais; Referências bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO.
A conjuntura social atual fomenta a utilização dos instrumentos de participação popular a fim de modificar o cenário político vigente. Os institutos que, mesmo previstos, antes eram marginalizados da atividade política cotidiana – plebiscito, referendo e iniciativa popular – hoje ganham notoriedade nos ciclos de debate. Cresce a cada dia a movimentação para coleta de assinaturas para propor projetos elaborados no seio da sociedade, bem como aumentam as discussões entorno do emprego das consultas populares na realização das grandes reformas do país, como, por exemplo, a Reforma Política. Ao passo que se cristaliza a importância desses institutos, são fortalecidos os mecanismos de controle, em especial o de constitucionalidade. Essa relação entre o exercício da soberania popular por meio dos institutos de participação e o controle de constitucionalidade merece especial destaque neste trabalho, tendo em vista a importância social da temática, uma vez que as manifestações de junho de 2013 elevaram a importância da presença do povo nos espaços de discussão política, reascendendo o sentimento de democrática que pressupõe uma cidadania ativa.
Nesse contexto, antes de analisar a relação entre o exercício da soberania popular por meio do plebiscito, referendo e iniciativa popular e o controle constitucional, torna-se necessário apresentar as noções introdutórias desses institutos, destacando, inicialmente, os aspectos históricos e conceituais do plebiscito e do referendo. Optou-se por tratar conjuntamente desses institutos devido à proximidade conceitual de ambos, que, por vezes, gera confusões conceituais. Bonavides (2007, p. 309) pontua que “o plebiscito e o referendum são termos do vocabulário político que não raro se empregam indiferentemente para significar toda modalidade de decisão popular ou de consulta direta ao povo”.
Em seguida, faz-se necessário demonstrar as impressões da doutrina sobre essas consultas, bem como a regulamentação no ordenamento jurídico. Posteriormente, o trabalho traz a análise crítica sobre a iniciativa popular no Brasil, evidenciando os acertos e desafios desse instituto. Por fim, a demonstração da necessidade da existência de um controle de constitucionalidade e o modo como ocorre no âmbito do processo constitucional.
2. PLEBISCITO E REFERENDO: HISTÓRICO BRASILEIRO E PECULIARIDADES
Malgrado a secular obscuridade significativa que rodeia os conceitos de plebiscito e referendo, inclusive no Direito comparado, adotar-se-á neste estudo a breve definição consagrada pela doutrina pátria, respaldada pela exegese da Constituição Cidadã de 1988. Dessarte, para alcançar o resultado proposto, apresenta-se a descrição, ou definição, diferenciadora empregada por Gilmar Mendes (2009, p. 800):
A diferença entre plebiscito e referendo concentra-se no momento de sua realização. Enquanto o plebiscito configura consulta realizada aos cidadãos sobre matéria a ser posteriormente discutida no âmbito do Congresso Nacional, o referendo é uma consulta posterior sobre determinado ato ou decisão governamental, seja para atribuir-lhe eficácia que ainda não foi reconhecida (condição suspensiva), seja para retirar a eficácia que lhe foi provisoriamente conferida (condição resolutiva).
No mesmo sentido, José Afonso da Silva (2008, p.142) acrescenta: “o referendo ratifica (confirma) ou rejeita o projeto aprovado; o plebiscito autoriza a formulação da medida requerida”. Assim, ambos os mecanismos apresentam-se como consultas populares, o que amplia a participação do povo, ou de grupos organizados, no processo decisório das questões relevantes para a nação, como aconteceu no referendo sobre a proibição da comercialização de armas de fogo e munições no Brasil, ocorrido em 23 de outubro de 2005, autorizado pelo Decreto Legislativo nº 780. O povo brasileiro, ao ter que decidir sobre a alteração no art. 35 do Estatuto do Desarmamento (Lei n.10.826/2003), decidiu por rejeitá-la, tornando o dispositivo relativo à proibição da comercialização de armas de fogo no território nacional sem eficácia.
De acordo com os dados fornecidos no sítio eletrônico do Tribunal Superior Eleitoral, dos 122.042.615 eleitores aptos a participar da consulta, apenas 95.375.824 (78%,15 dos aptos) se fizeram presentes. Considerando os votos válidos, 59.109.265 (63,94%) optaram por rejeitar a proposta e 33.333.045 (36,06%) escolheram pela alteração. Já no Estado da Paraíba, 36,86% dos participantes votaram a favor da proibição, enquanto que 63,14% foram contra a proposta. O equivalente a 78,34% dos eleitores paraibanos aptos comparecera à consulta popular, índice relativamente baixo, já que a participação no processo era obrigatória. Esse caso é também um exemplo de confusão conceitual, já que o referendo de desarmamento foi inúmeras vezes chamado de “plebiscito do desarmamento” por várias autoridades públicas e pela imprensa nacional.
Observação importante que merece destaque em relação ao referendo do desarmamento, que também podem ser estendidos para as próximas experiências de utilização das consultas populares, está relacionada à formação das frentes parlamentes e das representações no curso dos referendos e plebiscitos. As frentes parlamentares são agrupamentos de congressistas reconhecidos pelo TSE que se posicionam contra ou a favor da proposta trazida pela consulta, possuindo a missão de fomentar o debate junto à população. Esses grupos foram reconhecidos pela Resolução nº 22.032/2005, que também permitiu o uso das representações ou reclamações perante o Tribunal Superior Eleitoral por parte das frentes parlamentares e do Ministério Público Eleitoral, nos casos de verificação de irregularidade no processo de consulta popular. Como bem observa Santos (2009, p. 54), mesmo sendo um instrumento de participação popular, estranhamente, o Tribunal não afirmou entre os legitimados em empregar as representações e reclamações o próprio cidadão, ou seja, o ator principal da consulta popular não poderia denunciar diretamente eventuais irregularidades no processo, apenas através de terceiros.
Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, foi realizado apenas um plebiscito de âmbito nacional, ocorrido em 1993, para decidir sobre a forma de governo e o sistema de governo no Brasil. A forma de governo está relacionada com o modo de instituição do poder político e a relação entre o Estado e os governados, podendo ser monarquia ou república. De outro modo, o sistema de governo é a maneira como o Executivo e o Legislativo se relacionam, tendo cada poder uma importância destacada e diferenciada em cada modalidade de sistema, como acontece no presidencialismo e no parlamentarismo. O plebiscito de 1993 teve sua realização determinada através do art. 2º do ADCT. Tal dispositivo, que previa inicialmente a consulta para o dia 07 de setembro daquele ano, sofreu modificação da Emenda Constitucional nº 02/1992, passando a ser realizada no dia 21 de abril. O plebiscito, que era de comparecimento obrigatório, teve a participação de apenas 73,36% dos eleitores aptos a votar, de acordo com as informações disponibilizadas pelo site do TSE. Assim como o referendo do desarmamento, a participação popular no único plebiscito pós-Constituição Cidadã não foi satisfatória, pois em ambos os casos o comparecimento era obrigatório, mas a abstenção ficou entorno do um quarto do eleitorado nacional. No caso do plebiscito a situação pode ter sido agravada pelo curto tempo para a necessária politização da população. Entre a lei que regulamentou a consulta, Lei nº 8.624, de 4 de fevereiro de 1993, e a sua realização houve o intervalo de pouco mais de dois meses; lapso temporal insuficiente para envolver a população em um debate tão complexo quanto esse.
Coincidência ou não, o outro caso de plebiscito de abrangência nacional, realizado em 1963, também esteve voltado para a escolha sistema de governo. Naquele momento, o Brasil vivia em um estado de tensão entre os militares, apoiados pelos setores conservadores da sociedade, e o então Presidente da República João Goulart. Após a renúncia de Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961, a frágil democracia brasileira retornou para o comumente estado de crise. As “forças ocultas”, denominação dada aos setores da sociedade responsáveis pela queda de Jânio, especialmente os oficiais militares e as figuras políticas da UDN[1], que estavam retidas desde o impacto da morte de Getúlio Vargas em 1954, tentaram impedir a posse de João Goulart, temendo a instituição de uma ditadura de esquerda no Brasil (SKIDMORE, 2010). Jango, como também era conhecido, na verdade, adquiriu esse estigma após dar início à reforma agrária ainda no governo Vargas, enquanto era Ministro do Trabalho, e promover o aumento de 100% no salário mínimo, além de outros benefícios à classe trabalhadora. Assim, enquanto retornava de viagem diplomática a China, enviado por Jânio Quadros, aguardou o impasse sobre a sua posse em Montevidéu, ao passo que os ministros militares, representantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, negociavam com a Campanha da Legalidade[2], movimento a favor da posse do então vice-presidente, uma solução viável para o impasse. A solução, portanto, foi a adoção do parlamentarismo no Brasil a partir de setembro de 1961, tendo como primeiro-ministro Tancredo Neves.
Passado o breve – literalmente – histórico da utilização dos dois instrumentos na política brasileira, tem-se a necessidade de abordar outros aspectos, de ordem doutrinária e legal, a começar pelas espécies de referendos.
3. A CONSTRUÇÃO DOUTRINÁRIA E A INSTRUMENTALIZAÇÃO DAS CONSULTAS POPULARES.
Os referendos receberam várias classificações pela doutrina pátria, mas adotaremos a trazida pelo italiano Glaudio GEMMA (1998, p. 1074), que os classifica a partir de três aspectos: eficácia normativa, eficácia territorial e efetividade ou obrigatoriedade. Pela eficácia normativa, os referendos podem ser: a) constituintes, voltadas para a aprovação de uma constituição; b) constitucional, quando relativo à revisão da Constituição; c) legislativo ou administrativo, se convocados para ratificar ou rejeitar lei ou ato administrativo. No que se refere à eficácia territorial, de maneira mais simples, eles têm caráter: a) nacional, que abrange todo o território da nação ou b) local, que contemplaria, para a realidade brasileira, estados e municípios. Por fim, em relação à obrigatoriedade e à efetividade, os referendos são: a) obrigatórios, quando os cidadãos devem comparecer a consultar popular ou b) facultativo, de modo que não é exigência legal a participação do cidadão no referendo. Os referendos podem ser ainda uma fase ou elemento de um processo mais amplo, que tem a finalidade de produzir uma lei ou um ato administrativo. Nesse caso, a consulta ao povo não é um fim em si mesma, pois a participação popular seria necessária no processo global, ou seja, no direcionamento do Estado em uma medida que será tomada. Em sentido inverso, o referendo pode ser um ato único, com o objetivo simples de rejeitar ou ratificar uma lei, sem ligação com o processo que gerou o objeto do referendo.
Há parte da doutrina brasileira, a exemplo de Dalmo Dallari e Darcy Azambuja, como indica Santos (2009, p. 49), que classifica o plebiscito como uma espécie de referendo, o referendum consultivo, por ser uma consulta prévio ao ato legislativo ou administrativo que se pretende produzir. O referendo propriamente dito, por ser um posicionamento popular sobre a norma produzida, é tratado como referendum deliberativo. Independente da classificação adotada, é nítido o poder que o povo possui com a utilização dos referendos. A possibilidade de dar a última palavra sobre a efetivação de determinada norma, principalmente para a criação e revisão da Carta Magna, coloca o povo como detentor do poder político, contribuindo para diminuir a distância criada pelo sistema representativo, o que o habilita, perante parte da doutrina, como o melhor instrumento advindo da democracia direta para a democracia participativa.
Como pode-se observar nas classificações mencionadas anteriormente, causa, no mínimo, estranheza a existência de plebiscitos e referendos obrigatórios. Para a lógica brasileira, até parece existir fundamento, já que o voto no Brasil é obrigatório, entretanto, exigir a participação do popular nos processos decisórios não parece uma medida democrática. O cidadão participará a partir do momento que perceber a sua importância nesse momento, por ser uma figura de destaque, atuando como protagonista. Assim como nas eleições, os instantes de realização das consultas populares são tidos como os momentos de maior exercício da cidadania, dos direitos e das prerrogativas do cidadão. Obrigá-lo a sair de sua casa para opinar sobre um assunto que, possivelmente, não foi bem debatido e não despertou o interesse da população, não parece ser a melhor saída. A lógica, portanto, deve ser invertida. A preocupação do Estado deve ser no sentido de contribuir para a politização do povo, fomentando a discussão nos meios de comunicação e nos espaços públicos. A compulsoriedade não permite que a decisão seja a mais acertada. Contribui apenas para um comparecimento que “legitime” o posicionamento adotado. Esses argumentos encontram fundamento na própria experiência brasileira recente, já que mesmo com a participação obrigatória no plebiscito de 1993 e no referendo de 2005, um quarto da população deixou de participar da consulta. Nesse sentido, a correta utilização dos referendos e plebiscitos apenas será atingida quando o povo brasileiro chegar a um amadurecimento político, o que já ocorre em país como os Estados Unidos e, especialmente, a Suíça, já que este país europeu é o grande responsável pela maioria das consultas populares no mundo.
Em relação ao aspecto legal, vários dispositivos do ordenamento jurídico brasileiro preveem a utilização desses dois instrumentos, a começar pela Constituição Federal. Ainda no art. 14 da Lei Maior, o legislador constituinte fixou, nos incisos I e II, que a soberania popular também será exercida pelo plebiscito e referendo, nos termos da lei. A norma legal responsável por regulamentar a execução dos dois institutos é a Lei nº 9.709, de 18 de novembro de 1998. Já no art. 2º, a referida lei traz a definição genérica dos dois mecanismos de participação popular, afirmando que ambos são consultas formuladas ao povo para que delibere sobre matéria de acentuada relevância, de natureza constitucional, legislativa ou administrativa. Nos parágrafos 1º e 2º, o legislador trouxe a diferenciação já suscitada anteriormente e consolidada pela doutrina, ao salientar que o plebiscito é convocado com anterioridade ao ato legislativo ou administrativo que se pretende aprovar ou denegar, enquanto que o referendo é convocado com posterioridade ao ato, havendo a sua ratificação ou rejeição.
Como é sabido, por serem consultas feitas sobre assuntos específicos, a população deve se manifestar, por meio do voto, favoravelmente ou não ao ato que será editado ou que já foi produzido. Assim, para participar desses procedimentos de participação social, é preciso ter capacidade eleitoral ativa, ou seja, o interessado deve realizar o alistamento eleitoral e estar desimpedido de exercer os seus direitos políticos. Entre os três institutos da democracia direita inseridos na ordem democrática brasileira, plebiscito, referendo e iniciativa popular, apenas para os dois primeiros é necessário possuir capacidade eleitoral ativa, previsto no art. 14, §1º, da Constituição Federal, já que a forma de participação é mediante o voto. De outro modo, essa condição não subsiste para a iniciativa popular, pois a contribuição do cidadão é por meio da assinatura de apoio ao projeto de lei que será remetido ao Congresso Nacional.
A lei nº 9.709/98 traz vários dispositivos de ordem procedimental para a realização dos plebiscitos e referendos, indicando qual o caminho que as autoridades organizadoras devem seguir para atingir a sua efetivação de acordo com a legislação própria. O art. 8º, por exemplo, indica que, após a aprovação do ato convocatório, o Presidente do Congresso deve comunicar à Justiça Eleitoral, que ficará responsável por operacionalizar a realização da consulta. Porém, dentre os vários artigos da referida norma regulamentadora, cumpre-se destacar os art. 3º e 5º, visto que eles acentuam a quem pertence a competência para convocar as consultas e qual o instrumento legal utilizado. Pois bem, ao ler o art. 3º verifica-se que nos assuntos de relevância nacional, de competência dos Poderes Legislativo e Executivo, e nos casos de incorporação, subdivisão, desmembramento e formação de novos Estados e Territórios Federais, cabe à Câmara dos Deputados ou ao Senado Federal, através de decreto legislativo, por iniciativa de, no mínimo, um terço de seus membros, convocar plebiscito e referendo.
Adiante, com o art. 5º já sob estudo, nos casos de criação, incorporação, fusão e desmembramento dos municípios, será realizado um plebiscito para consultar a população diretamente interessada, sendo este convocado pela Assembleia Legislativa do Estado[3]. Nos demais casos, como mostra o artigo seguinte, nas matérias de competência dos municípios, Estado ou Distrito Federal, tanto o referendo quanto o plebiscito serão convocados de acordo com a Constituição Estadual e a Lei Orgânica.
A análise desses dispositivos permite chegar a uma conclusão simples: não há previsão legal para convocar plebiscito e referendo por meio da iniciativa popular. Pelo que se desprende da interpretação exclusiva da mencionada lei, apenas mediante a iniciativa parlamentar é possível a realização, que possui o quórum de um terço dos membros da Casa do Congresso que chamará a consulta, conforme o art. 3º da Lei nº 9.709/98. Percebe-se, assim, outra distorção do sistema democrático brasileiro. Mesmo nos instrumentos de participação popular, em que o cidadão é o protagonista do processo decisório, a legislação específica foi omissa quanto à possibilidade expressa do povo dar início ao processo de consulta, que poderia ser feito através do recolhimento de assinaturas. Malgrado ainda persista a omissão, ao considerar todo o ordenamento jurídico, especialmente o parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal, defende-se a tese da possibilidade de convocar essas consultas por iniciativa popular, sendo este o tema do próximo tópico.
4. ACERTOS E DESAFIOS DA INICIATIVA POPULAR NO BRASIL
Há uma tendência mundial, verificada principalmente no bloco de países ocidentais, em ampliar o rol de legitimados a iniciar o processo legislativo, tendo o Poder Executivo ganhado destaque nesse movimento de horizontalização da atividade legiferante. A própria Carta Magna brasileira elenca no art. 61, § 1º, as matérias de iniciativa privativa do Presidente da República. Feita a exegese do dispositivo supracitado, percebe-se que além do chefe do Executivo, a norma constitucional possibilitou a outros órgãos e agentes políticos do Estado, estranhos aos quadros do Legislativo, a capacidade de iniciar o procedimento de elaboração das leis, como, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal, os Tribunais Superiores e o Procurador-Geral da República. Contudo, merece relevo o trecho final do art. 61, que demonstra a considerável ampliação dos legitimados, ao considerar que o cidadão, na forma e casos previstos pela Constituição, pode dar início ao processo legislativo. Portanto, adota-se a objetiva definição do insigne constitucionalista Dalmo Dallari (1991, p. 131) que afirma: “A iniciativa confere a um certo número de eleitores o direito de propor uma emenda constitucional ou um projeto de lei”.
A iniciativa popular no ordenamento jurídico brasileiro restringe-se a iniciar o processo legislativo, não podendo ser utilizada para determinar a realização de plebiscito e, muito menos, referendo, já que este é autorizado, exclusivamente, pelo Congresso Nacional, como indica o art. 49, XV, da Lei Maior. Interessante debate se refere ao posicionamento de parte da doutrina, especialmente Hélcio Ribeiro (2007, p.36), em afirmar que existe a necessidade de vincular o instituto da iniciativa popular com o referendo, com desígnio de garantir por meio deste a efetividade daquele, assim como acontece nos Estados Unidos e na Suíça. É notável que atribuir ao povo a capacidade de propor e deliberar sobre a proposta emerge maior participação democrática e mais expressiva realização da soberania popular, diferentemente do que ocorre quando é deixado ao bel-prazer do Parlamento à votação da proposição legislativa apresentada. Porém, inexiste no ordenamento jurídico qualquer dispositivo que faça alusão à ligação entre os dois mecanismos de participação política, o que desobriga o Congresso brasileiro em providenciar o referendo. Inclusive, diante da lacuna normativa existente, Benevides sustenta que, no caso dos plebiscitos, a iniciativa popular pode vincular a sua realização, fato que não acontece para os referendos. E acrescenta: “Em relação a estes, a iniciativa popular poderá apenas obrigar o Congresso a deliberar sobre se dá ou não autorização para convocar a consultar popular” (BENEVIDES, 1991, p.163). O Projeto de Lei n. 3.744/89, de autoria do então deputado Plínio de Arruda Sampaio, objetivou consertar a omissão legislativa ainda no início da vigência da Carta Magna, apesar de não ter logrado êxito, o que permitiria expressamente a convocação do plebiscito e autorização do referendo, pondo fim à controvérsia doutrinária.
Conforme posicionamento pacífico da doutrina, desde os autores clássicos aos mais progressistas da atualidade, a iniciativa popular é expressão da soberania popular, como bem preceituou o art. 14 da Lei Fundamental pátria, atuando como instrumento de colaboração do cidadão comum na gestão da res pública. Todavia, existe discussão doutrinária sobre a natureza da iniciativa no processo legislativo, pois alguns doutrinadores, a exemplo de Ferreira Filho (1990, p.164), consideram que “iniciativa não é propriamente uma fase do processo legislativo, mas sim o ato que o desencadeia. (...) Tal ato é uma declaração de vontade, que deve ser formulada por escrito e articulada”. Ao seguir a orientação dessa corrente de pensamento, que parece ser minoritária nas teses constitucionais, o povo não participaria, propriamente, da elaboração das leis, pois apenas expressaria o desejo em ver o processo iniciado, mesmo que seja uma intenção vinculante em relação ao órgão legiferante.
De outro modo, é uníssona a postura dos jurisconsultos no que se refere ao avanço democrático que traz para o ordenamento jurídico a previsão legal da iniciativa popular. Nesse sentido, José Afonso da Silva, mencionado por Hélcio Ribeiro, ao reconhecer a significância do mencionado mecanismo de atuação política da população, salienta a característica da iniciativa popular balizar todos os atos atinentes ao processo legislativo, por estabelecer premissas de ordem moral, política e social na deliberação da norma que será formada, afirmando que:
[...] podemos concluir que a iniciativa das leis funciona como instrumento de atuação do programa políticoideológico [...] A iniciativa legislativa apareceu, pois, como poder de estabelecer a formação do direito objetivo e como poder de escolha dos interesses a serem tutelados pela ordem jurídica em forma de lei em sentido técnico. (2007, p.18)
O legislador constituinte preocupou-se em garantir a expressão da soberania popular em todos os entes da federação, como é possível perceber na leitura dos artigos 27, parágrafo quarto, e 29, XIII, da Constituição Federal (CF). Enquanto que no primeiro caso o dispositivo que prevê a iniciativa nos Estados é de eficácia limitada, devendo sua densidade normativa ser complementada pelo legislador ordinário, no âmbito municipal a aplicabilidade é imediata, visto que estão previstos os critérios materiais para a realização da iniciativa popular. Mas, é bem verdade que o art. 61, § 2º, possui maior relevância jurídica em relação a outras normas e, consequentemente, recebe maior atenção da doutrina, tendo em vista que, além da regulação da iniciativa perante o Congresso Nacional – órgão de maior representação do Estado de Direito brasileiro – fixa dois requisitos básicos para o exercício do poder soberano: a apresentação de projeto articulado e quórum mínimo de apoiadores. Os requisitos são, na verdade, duas barreiras quase intransponíveis, que dificultam exageradamente a aplicação do instituto, como será demonstrado a seguir.
Entende-se por projeto articulado, igualmente chamado pelo segmento da doutrina de formulado, aquele que é sistematizado em artigos, observando as exigências legais – a fim de evitar inconstitucionalidade e antinomia – e a linguagem técnica. Nas palavras de Ferreira Filho (1990, p. 82) “Consiste na apresentação de projeto popular ao órgão legislativo, num texto em forma de lei, redigido de maneira articulada, pronto para ser submetido à discussão e deliberação”. Assim, o sistema constitucional pátrio aceita apenas o projeto redigido em forma de artigos, negando aceitação à proposta não articulada. Essa segunda modalidade, menos formal e mais simples de ser submetida ao Parlamento, é utilizada em países como EUA e Suíça (BENEVIDES, 1991), em que são apresentadas apenas as diretrizes gerais da vontade popular, ficando a cargo de uma comissão estatal a elaboração do texto final da proposição.
Surge, porém, a dúvida se a conversão da “petição” ou “moção” em projeto de lei pelo órgão estatal, que pode ou não pertencer ao Parlamento, representaria verdadeiramente os interesses sociais ou se esse procedimento que é, acima de tudo, interpretativo cederia às pressões do jogo político. No caso dos Estados Unidos, a responsabilidade cabe, obrigatoriamente, ao Procurador-Geral do Estado, que participa de maneira objetiva e imparcial. Já na Suíça, existe a possibilidade do processo ser realizado pelos parlamentares ou pela representante do Estado, como salienta Maria Benevides (1991, p.180). Ao retornar para a realidade brasileira, fica a sensação de pouco esforço do legislador constitucional em dissolver a barreira da formalidade, o que apenas dificulta a emprego do exercício da soberania popular.
Para amenizar a falta de razoabilidade posta, mesmo que não tenha resolvido a questão central do projeto não formulado, a Lei 9.704/98, por meio do art. 13, § 2º, afirma que o projeto de iniciativa popular não será rejeitado por vício formal, cabendo ao órgão da Câmara dos Deputados sanar os defeitos da proposta. Vale salientar que o dispositivo supramencionado praticamente reproduziu o texto do art. 14 da CF, deixando de incorporar as inúmeras propostas mais vanguardistas, mesmo anteriores à lei, como os Projetos de Lei n. 4.160/89 e n. 3744/89, de autoria do Senador Sigmaringa Seixas e do Deputado Plínio de Arruda Sampaio, respectivamente. Em relação aos vícios de natureza constitucional, percebe-se que, assim como na Suíça (BENEVIDES, 1991, p.164), a maneira mais adequada de realizar o controle de constitucionalidade é durante o processo legislativo, ou seja, um controle prévio, a fim de evitar possíveis instabilidades políticas. Tal constatação é lógica a partir do momento em que após o surgimento para o mundo jurídico da norma viciada, advinda da iniciativa popular, caso ela seja revogada pelo controle repressivo, a soberania popular estaria em xeque, por não prevalecer a vontade do povo.
De acordo com o mencionado acima, pela hermenêutica do art. 61, § 2º, é inaceitável o oferecimento de projeto não articulado. Entretanto, é permitida a análise modalidade de “petição” mais simples que aquela pelo Parlamento, pois a Câmara dos Deputados criou, por meio da Resolução n. 21/2001, a Comissão de Legislação Participativa, órgão presente na estrutura da Câmara Baixa e competente para apreciar sugestões de iniciativa legislativa, com fulcro no art. 32, XII, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Dessa maneira, as sugestões legislativas são, como o próprio nome evidencia, apenas manifestações de vontades e interesses, o que não vincula o parlamentar, oriundas de associações, sindicatos, entre outros, excluindo os partidos políticos. Embora não impulsione peremptoriamente o processo legislativo, da maneira como deve ocorrer na iniciativa popular, as sugestões caracterizam um avanço, mesmo que ainda tímido. Assim, em sucinta exposição, Santos (2003, p.1) afirma “dentre os instrumentos de participação da sociedade civil no processo legislativo na Câmara dos Deputados, a sugestão legislativa assume relevância pela simplificação do processo de encaminhar ao Poder Legislativo a demanda da Lei”.
Ultrapassado o primeiro requisito, aborda-se, a partir deste momento, o principal entrave para o exercício da iniciativa popular: o número de signatários da proposta. A quantidade de assinaturas sempre foi um empecilho para o emprego da iniciativa popular em vários países, pois não há consenso entre os doutrinadores em relação à quantidade necessária para compor o projeto, assim como qual a melhor forma de quantificação, sendo fixo ou variável (percentual). Segundo Hélcio Ribeiro (2007, p. 25), “As constituições da Suíça, Espanha, Áustria e Itália optaram por estabelecer um número fixo de eleitores, ao passo que nos Estados Unidos as constituições estaduais que admitem a iniciativa popular fixaram uma percentagem de eleitores em relação à última eleição”. Essa problemática possui relevância para o debate jurídico, tendo em vista que os critérios quantitativos firmados pelo legislador devem representar um equilíbrio entre a viabilidade prática e o uso desmedido, sem transformar o instituto em um desejo inatingível ou uma conduta banal e desmedida.
No caso brasileiro, o texto constitucional acertou em dois aspectos. O primeiro, ao adotar o percentual de referência em detrimento de uma quantia estática, por meio do art. 61, §2º, evitou-se que o número de subscrições ficasse defasado com o tempo, tornando possível a proliferação de projetos populares que não correspondessem a uma parcela significativa da população, mas o problema persistiu na extensão da porcentagem. A quantia de 1% (um por cento) do eleitoral nacional corresponde hoje a 1.406.464 (um milhão quatrocentos e seis mil quatrocentos e sessenta e quatro) de apoiadores, segundo o sítio do Tribunal Superior Eleitoral, significando, assim, porção consideravelmente difícil de ser atingida. Tal percentual, alvo de críticas desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, foi e continua sendo objeto de projetos de emenda constitucional que visam facilitar a uso da iniciativa popular, como, por exemplo, a PEC 340/1996, a PEC 201/2003 e a PEC 194/2003, propostas, respectivamente, pelos parlamentares Zaire Rezende, Jamil Murad e José Eduardo Cardozo, pelo que se pode constatar ao pesquisar nos sítios das duas Casas do Congresso Nacional.
Faz-se necessário destacar também, além da PEC 3/2011 e PEC 45/11, que serão objeto de estudo adiante, a PEC 2/1999 de autoria da deputada Luiza Erundina, aprovada pela então Comissão de Constituição e Justiça e de Redação em 1999, que propõe a redução do percentual para 0,5% (meio por cento) do eleitorado nacional, bem como sugere a possibilidade da iniciativa popular ser exercida através de confederação sindical, entidade de classe ou associação que represente essa quantidade de cidadãos. Observação curiosa permeia o referido percentual, pois, para a criação dos partidos políticos, a Lei n. 9.096/95, art. 7°, §1°, estabeleceu como necessário o apoio de eleitores correspondente a, no mínimo, 0,5% (meio por cento) do conjunto de votos da última eleição para a Câmara dos Deputados, o que equivale a 492.000 (quatrocentos e noventa e duas mil) assinaturas. Percebe-se, então, que a exigência draconiana para a propositura de projetos de lei de iniciativa popular fera a lógica, já que a legislação infraconstitucional estabeleceu uma margem bastante inferior para o reconhecimento de novas agremiações partidárias, fato agravado pela atual conjuntura brasileira que já possui, com a aprovação, no dia 24 de setembro de 2013, do PROS (Partido Republicano da Ordem Social) e do Partido Solidariedade, trinta e dois partidos políticos. Na verdade, até a conclusão deste trabalho, é bem possível que mais algum surja da escuridão do sistema brasileiro. Difícil é saber o que cada um representa ou se, pelo menos, representam algo.
Outro ponto positivo a ser destacado relaciona-se com a distribuição das assinaturas posta pelo segundo trecho do §2º, art. 61, da Constituição Federal. O acerto do legislador consistiu em determinar que as subscrições sejam distribuídas por, pelo menos, cinco Estados, contendo cada um deles, no mínimo, três décimos por cento dos eleitores do ente federativo. Dessarte, tendo em vista a dimensão continental do território brasileiro e a diversidade político-cultural das cinco regiões, a quantia mínima de estados e eleitores permite a fluência de interesses locais para o âmbito federal, nacionalizando a iniciativa popular.
A ligação entre as assinaturas de apoio ao projeto e a iniciativa popular ainda esbarram em outros empecilhos de ordem prática, ocasionados novamente pela ausência de disciplina legal. Nem a Constituição Federal e muito menos a Lei 9.709/98 prenunciaram-se acerca do procedimento de autenticidade das assinaturas e sobre o prazo de coleta destas, criando, assim, um embaraço procedimental sanado apenas pelo improviso típico do “jeitinho brasileiro”. De outro modo, países com maior experiência no exercício da participação democrática, como os Estados Unidos e a Itália, no intuito de preservar o direito de intervenção popular, definiram o caminho a ser seguido para buscar, dentro do prazo legal, atingir o número de subscrições, bem como sua validade. Em primeiro lugar, ambas as nações fixam entidades distintas do Poder Legislativo para examinar a veracidade dos apoios, já que “na Itália cabe ao Poder Judiciário conferir a autenticidade das assinaturas e nos Estados Unidos à Secretaria de Estado” (RIBEIRO, 2007, p.29). Diante do silêncio constitucional, apenas o Regimento Interno da Câmara dos Deputados, ainda que de maneira genérica, pronunciou-se sobre a questão, firmando, por meio do art. 252, V, que cabe a Secretaria-Geral da Mesa averiguar se foram cumpridas as exigências, inclusive as formalidades relacionadas às assinaturas.
Inexiste, entretanto, estrutura preparada, assim como metodologia de trabalho posta a realizar a célere autenticação das assinaturas, pois há a sensação, parcialmente oculta, na população de que o Parlamento não possui, verdadeiramente, interesse, nem preocupação, em facilitar o exercício da iniciativa popular. Na verdade, afirma-se a dificuldade ser tão aguçada que a iniciativa popular torna-se um instituto meramente decorativo, pois, nos casos vivenciados em solo brasileiro, tornou-se necessário, para facilitar o trâmite legislativo, que o projeto fosse adotado ou pela Presidência da República ou por um grupo de parlamentares. Outro fator que contribui no atraso da conclusão do processo de participação do povo na atividade legiferante é a omissão quanto ao prazo final para a coleta das assinaturas. A possibilidade ad infinitum de buscar apoio à proposta procrastina o término do processo, arrastando uma vontade imediata para uma solução extemporânea.
5. O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE E OS LIMITES ESTATAIS AO EXERCÍCIO DEMOCRÁTICO
Este tópico inicia-se com um questionamento: o que é democrático e participativo é sempre bom e adequado? Eis a questão. Se o questionamento tivesse sido feito na Grécia antiga, onde a pólis reunida decidia e criava as leis, ou na Europa em meados do século XIX, ainda sob influência das Revoluções Burguesas, a resposta certamente teria sido um sonoro sim. Todavia, a história recente da humanidade tratou de dar um novo olhar para essa indagação. Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a derrota do nazi-fascismo, passou-se a ver com mais cuidado as postulações feitas pela “maioria” da população. No caso dos regimes totalitários europeus do século XX, eles surgiram como movimentos sociais atentos em ganhar a simpatia da população e dar legitimidade às suas ações. Os seus líderes buscaram o apoio da classe média e dos setores conservadores através de propostas nacionalistas e promessas em combater o socialismo que ganhava força no pós-guerra. Com o apoio do povo, as lideranças conseguiram dar legalidade ao movimento por meio das próprias instâncias democráticas, a exemplo da Alemanha, isolando gradualmente a oposição e concentrando os poderes nas mãos dos líderes nacionalistas. Quando foi possível perceber, os movimentos, aparentemente democráticos de início, transformaram-se em regimes ditatoriais com o apoio da “maioria” completamente manipulada. Assim, não basta ser democrático.
Mesmo com o apoio de setores da sociedade, havendo debate e discussão propositiva entorno da construção de ideias e de propostas, o Estado Democrático está a um passo do Estado totalitário, caso não existam barreiras fortes o suficiente para impedir distorções do conceito de democracia e manipulações do poder estatal. Ao que parece, sem esses instrumentos de controle do sistema democrático, existe realmente uma linha tênue entre a democracia e a tirania, e as impressões de Aristóteles (1985, p. 1320b) passam a fazer ainda mais sentido.
Ao perceber essa fragilidade dos sistemas democráticos europeus, que já se arrastava por séculos, bem como da própria teoria política vigente que os fundamentavam, Hans Kelsen, nos anos de 1920, deu nova interpretação ao conceito de Estado de Direito, rompendo com a tradição oitocentista, que entendia o Parlamento e o seu produto, a lei, como figuras soberanas e absolutas (COSTA, 2006, p. 156). O Estado, antes visto como ente personificado e independente, para Kelsen era um mero executor das imposições previstas pela legislação. O Estado de Direito encontra sentido e direção no ordenamento jurídico vigente; no conjunto hierarquizado de normas que tem em seu topo a Constituição (KELSEN, 2005). Assim, a lei perde o seu status de absoluta e passa a integrar uma cadeia normativa com níveis, em que os estratos inferiores ganham validade a partir dos níveis superiores. Nesse sentido, Pietro Costa (2006, p. 159), ao contextualizar a obra de Kelsen, afirma que:
Quando a lei perde a sua posição 'absoluta' no ordenamento para se tornar um degrau intermediário no processo de criação-aplicação das normas, quando ela cessa de ser um ato de pura e simples criação do direito e se configura como aplicação de uma norma superior, os atos do poder legislativo parecem também suscetíveis de controle. (….) Para Kelsen, o natural desenvolvimento do Estado de Direito conduz, portanto, à instituição de um órgão de controle de constitucionalidade das leis.
É nesse contexto que surge o embrião do controle de constitucionalidade contemporâneo, em que até o legislador, antes absoluto na atividade legiferante, passa a ter seus atos condicionados formal e substancialmente à Constituição. Esse mecanismo pensando por Kelsen possibilita uma purificação das proposições legislativas, principalmente aquelas geradas em meio à comoção popular, que possuem forte carga sentimental em detrimento da racionalidade. Para a realidade brasileira, o controle de constitucionalidade exercido tanto pelo próprio Congresso ou quanto pelo Poder Judiciário e Poder Executivo são instrumentos necessários para a manutenção do sistema democrático, para que exista respeito às minorias e a contenção ao poder esmagador da maioria.
Além desses, os grupos de pressão que atuam no Congresso Nacional defendendo pautas próprias, os movimentos populares e as manifestações de rua, os integrantes dos conselhos deliberativos, entre outros sujeitos sociais, são importantes para manter o equilíbrio de jogo político e do sistema democrático. A democracia brasileira, por conta da sua história ainda recente e dos seus variados agentes envolvidos, funciona como um ecossistema novo e em crescimento. A saúde do ambiente se dá pela integração dos diversos integrantes, mesmo que estejam em conflito, cada qual defendendo o seu interessante. Os movimentos sociais, o empresariado, a militância de esquerda, a mídia parcial, a classe média, todos possuem o seu papel na manutenção do regime democrática. Com a acomodação de cada ator, repito ainda que conflituosa, garante a viabilidade da democracia brasileira. Acima desse ecossistema está a Constituição e o controle de constitucionalidade, estabelecendo as regras e regulando o jogo, respectivamente.
Ao perceber que nem tudo que é democrático ou participativo é bom, fica a sensação da extrema necessidade desses instrumentos de controle. O percurso pelas instâncias democráticas, o aval do Congresso Nacional ou o esmagador apoio da população não são capazes de transformar qualquer proposta em algo benéfico para a nação. As inúmeras experiências da humanidade provam isso. Todavia, apesar do risco, é imprescindível possibilitar que qualquer proposta tenha oportunidade de ser discutida e apreciada, desde que dentro dos parâmetros legais e respeitando o Estado Democrático de Direito; e essa possibilidade só consegue ter êxito nos regimes democráticos. Entretanto, nos casos em que a razoabilidade e o debate racional são superados pelo radicalismo ou pela intolerância, os mecanismos de controle devem funcionar para manter o sistema saudável e perene. É nesse contexto que o controle de constitucionalidade é essencial para filtrar eventuais excessos no exercício do poder político, sendo necessário verificar se a justificativa e a finalidade pretendida pela utilização dos institutos de participação popular estão de acordo com a Constituição, pois, caso contrário, deverá ser declarada a inconstitucionalidade pelo órgão competente. Desse modo, diante da delimitação do objeto de estudo do presente trabalho, é preciso analisar o controle de constitucionalidade sobre o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular, a começar pelos dois primeiros.
Como já dito no tópico 3 “A construção doutrinária e a instrumentalização das consultas populares”, os referendos e os plebiscitos são convocados e autorizados, respectivamente, por meio do decreto legislativo de uma das Casas do Congresso Nacional. Já no âmbito estadual, fica a cargo da Assembleia Legislativa chamar a consulta pública por meio da mesma espécie de ato normativo, devendo a Constituição do Estado dispor sobre os procedimentos de convocação, conforme a redação do art. 6º da Lei 9.709/98. A norma jurídica objeto do controle de constitucionalidade, portanto, é a autorização legislativa para a realização da consulta, e não a própria consulta. Tanto o plebiscito quanto o referendo não são normas. Ambos são atos políticos emanados da população, objetivando confirmar ou rejeitar um ato legislativo ou administrativo produzido pelo Poder Público. Assim, a opinião manifestada ou mesmo a instrumentalização da consulta não podem ser objeto de apreciação pelo Poder Judiciário, apenas o decreto legislativo de convocação.
Dessa maneira, tendo em vista a espécie do ato normativo de convocação e a natureza da própria consulta, pode-se afirmar que, quanto ao momento do controle de constitucionalidade (NOVELINO, 2012, p. 245 e ss.), só há três formas de verificar a compatibilidade dos referendo e plebiscito sobre a Carta Magna: (a) controle preventivo pelo Poder Legislativo; (b) controle preventivo pelo Poder Judiciário; e (c) o controle repressivo concentrado exercido pelo Judiciário. Em primeiro lugar, cumpre salientar que não é cabível o controle preventivo por parte do Poder Executivo porque a norma de autorização é de competência do Legislativo, não cabendo sanção do Presidente da República ou Governador de Estado. Pelos mesmos motivos, não há como verificar o controle repressivo por parte dos Poderes Legislativo e Executivo, já que as hipóteses previstas pelos arts. 49, V, e 62 da Constituição de 1988 e pela Súmula n° 347 do STF[4] não são cabíveis sobre os decretos legislativos. Assim, de maneira objetiva, serão apresentadas as três hipóteses elencadas:
(a) Controle Preventivo pelo Legislativo.
Nessa hipótese de controle, o órgão competente pela produção da norma (decreto legislativo) verifica a conveniência do que será produzido com a Lei Maior ainda durante o processo legislativo. Esse procedimento ocorre no âmbito das Comissões de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) de cada uma das Casas do Congresso, pois são elas os órgãos responsáveis por analisar os aspectos constitucionais dos projetos apresentados, inclusive os projetos de decretos legislativos, de acordo com o art. 32, inciso III, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados e o art. 101, I, do Regimento Interno do Senado Federal.
(b) Controle Preventivo pelo Judiciário.
O parlamentar, por ter direito líquido e certo, em relação aos trâmites previstos para o processo legislativo, pode impetrar mandado de segurança perante o Supremo Tribunal Federal caso não sejam observadas as regras procedimentais, que possuem fundamento direto no texto constitucional. Trata-se, nas palavras de Marcelo Novelino (2012, p. 246), de controle difuso-concreto, por ser o STF o órgão jurisdicional competente para analisar, no caso concreto, a afronta ao direito subjetivo do deputado ou senador ao adequado processo legislativo.
(c) Controle Repressivo pelo Judiciário.
Na terceira hipótese apresentada, o decreto legislativo, que já ganhou vida e forma no mundo jurídico, é combatido por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade, art. 102, I, “a”, da CF, ou a partir da Representação de Inconstitucionalidade no âmbito estadual, que buscam expurgar do ordenamento jurídico ato normativo em desconformidade com as constituições federal e estadual. O controle é, por consequência, concentrado e abstrato, por ser a norma geral a que autoriza o referendo ou o plebiscito, não regulando direitos subjetivos, o que impossibilidade o controle de constitucionalidade incidental.
Ultrapassada a discussão acima, tem-se a indagação: Mas qual o parâmetro constitucional, ou seja, a norma ofendida pela existência da proposição legislativa ou pela edição e publicação do decreto legislativo a fim de motivar o controle de constitucionalidade? Tem de duas naturezas: material ou formal. No controle material, há incompatibilidade de conteúdo entre o decreto legislativo e as cláusulas pétreas, previstas no art. 60, §4º, da CF, e os princípios gerais constitucionais expressados ao longo de toda Carta Manga, que garantem a existência do sentimento democrático e do próprio Estado Democrático de Direito. Desse modo, caso o decreto legislativo, ou apenas a sua proposta no âmbito do Congresso Nacional ou da Assembleia estadual, tenha como finalidade autorizar ou convocar consulta que vise emitir uma manifestação que seja contrária à separação dos poderes ou à soberania popular, por exemplo, este pode e deve ser declarado inconstitucional pelos órgãos competentes.
Apresenta-se aqui, portanto, uma limitação ao exercício da soberania popular, que em um primeiro momento parece ilimitada. A necessidade de controle se dá pelo fato de que, se não houver um filtro, essa mesma soberania popular pode tentar justificar o abuso de poder e a ruptura com o Estado Democrático de Direito, como ocorreu nos Estados totalitários e com os plebiscitos cesaristas na França do século XX (BENEVIDES, 1991, p. 62). De modo diverso, no controle de constitucionalidade formal, pode-se verificar o desrespeito às regras constitucionais que estabelecem o agente competente para propor o decreto legislativo e aos procedimentos constitucionalmente previstos, como, por exemplo, o quórum e o rito procedimental no Congresso.
Modo similar ao que acontece com o referendo e o plebiscito ocorre com a iniciativa popular. Por ser este o instituto responsável por dar início ao processo legislativo através da vontade dos cidadãos, cabe analisar apenas o controle de constitucionalidade no âmbito de transformação do projeto de lei subscrito pela população em lei. Assim, interesse para o presente estudo os mecanismos de aferição da constitucionalidade durante o processo legislativo, pois, a partir do momento de sua promulgação, a lei de origem popular passa a ser um dispositivo como qualquer outro, sem ter condição especial ou hierarquia decorrente do modo de apresentação do projeto.
Nesse sentido, no exercício da iniciativa popular, o controle de constitucionalidade acontece apenas preventivamente, antes da norma ser promulgada e publicada, tornando-se exigível. Portanto, por dar início a produção de leis, da mesma forma que no referendo e no plebiscito, tanto o Legislativo quanto o Judiciário exercem o controle preventivo, através da CCJC e da impetração do mandado de segurança pelo parlamentar no STF. Entretanto, neste instituto há uma diferença considerável: a possibilidade do Poder Executivo, por meio do Presidente da República, de utilizar o veto jurídico sobre o projeto de lei, caso considere a existência de vício de constitucionalidade, conforme o art. 66, §1º, da Constituição Federal de 1988.
Vale destacar que a experiência brasileira com a utilização desse instituto é extremamente reduzida. Após a redemocratização, há apenas quatro leis que emergiram da iniciativa popular, conforme relata Gilmar Mendes (2009, p. 802):
Até 2005 haviam sido promulgadas três leis decorrentes de iniciativa popular: Lei n. 8.930/94 (crimes hediondos, Lei Daniela Perez ou Glória Perez), Lei n. 9.840/99 (combate à compra de votos) e Lei n. 11.124/05 (dispõe sobre o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social – SNHIS, cria o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social – FNHIS e institui o Conselho Gestor do FNHIS). No ano de 2010, o conhecida Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar n. 135) foi editada com base em projeto de iniciativa popular.
Malgrado seja pouco provável que qualquer dos Poderes tomem posição contrária ao projeto de iniciativa popular, que terá necessariamente a subscrição de 1% do eleitorado nacional, o que corresponde hoje a 1.406.464 (um milhão quatrocentos e seis mil quatrocentos e sessenta e quatro) de apoiadores, segundo o sítio do Tribunal Superior Eleitoral, a democracia brasileira garantiu os instrumentos de controle inclusive sobre as proposições apresentadas pelo povo, a fim de evitar a proliferação de propostas que atinjam o direito das minorias, afetem garantias constitucionais e agridam o Estado de Direito.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Antes de adentrar no objeto central de estudo, outros objetivos propostos foram atingidos, buscando dar fundamentação teórica para a discussão entorno do controle de constitucionalidade sobre os institutos de participação popular. Em primeiro plano, foi apresentada a contextualização histórica do plebiscito e referendo no Brasil. A experiência brasileira na utilização desses mecanismos ainda é extremamente escassa como foi possível observar. Tal fato é agravado pela impossibilidade da população convocar as consultas através da iniciativa popular. A indisposição do Congresso Nacional em compartilhar com a população, através desses instrumentos, o debate político ocasiona uma atrofia de participação social, desfavorecendo o crescimento do sentimento democrático nacional.
Em seguida, a abordagem da iniciativa popular trouxe um olhar crítico sobre esse instituto, demonstrando os acertos e os equívocos cometidos pelo legislador na sua regulamentação. Todavia, destacam-se, infelizmente, os erros, tanto por omissão de não estabelecer critérios objetivos para a verificação da autenticidade das assinaturas, por exemplo, como também na fixação de critérios e requisitos demasiadamente exagerados para a coleta de assinaturas.
Por fim, tornou-se evidente a necessidade de controle estatal, em especial o de constitucionalidade, sobre os institutos de participação popular, buscando proteger o texto constitucional e a manutenção dos direitos e garantias decorrentes da Lei Maior. A partir desse controle, após aprender com as experiências totalitárias do século XX, que se torna possível dificultar a conversão do regime democrático em autocrático
Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal faz jus à denominação de Guardião da Constituição, pois, ao participar do controle de constitucionalidade sobre as normas jurídicas já consolidadas, como também dos projetos legislativos, a Corte Constitucional evita agressões à Carta Magna, bem como usurpações dos princípios constitucionais pela maioria em detrimento das minorias. Objetiva-se, assim, a realização de um processo constitucional objetivo, que busca a proteção da ordem constitucional. O Estado, portanto, por meio dos seus Poderes, especialmente o Judiciário, que se utiliza dos procedimentos legais consubstanciados, garante a manutenção do regime democrático e a continuidade do próprio Estado Democrático de Direito.
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[1] União Democrática Nacional (UDN) foi um partido político que criando em 1945, com forte tendência conservadora e liberalista, constituindo um núcleo de oposição ao governo de Getúlio Vargas. A partir do Golpe Militar de 1964, os integrantes da UDN formaram a ARENA (Aliança Renovadora Nacional), que serviu como base política para o regime totalitário instaurado na década de 1960.
[2] A Campanha da Legalidade foi um movimento político, liderado por Leonel Brizola e o General José Machado Lopes, comandante do III Exército (Rio Grande do Sul), que teve o apoio de congressistas e da sociedade civil organizada para manter o que determinava a Constituição Federal: em caso de renúncia do presidente, deve assumir o cargo vago o vice-presidente, no caso, João Goulart.
[3] Apesar da Constituição Federal preceituar, em seu art. 49, XV, que é de competência exclusiva do Congresso Nacional autorizar referendo e convocar plebiscito, o termo “autorizar” ganha maior acerto ao ser utilizado quando se refere aos referendos obrigatórios, ou seja, aqueles já previstos pela Carta Magna, como, por exemplo, o referendo realizado em 1993, que definiu o sistema de governo no Brasil. Nos demais casos, a terminologia é convocar, assim como para os plebiscitos.
[4] Súmula 347 do STF: O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público.
Graduado em Direito pela UFPB. Pós-graduado em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Superior de Advocacia - OAB/PB. Advogado e Servidor Público Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MIGUEL FELIPE ALMEIDA DA CâMARA, . Institutos de participação popular e controle de constitucionalidade: referendo, plebiscito e iniciativa popular sob a jurisdição constitucional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 maio 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51670/institutos-de-participacao-popular-e-controle-de-constitucionalidade-referendo-plebiscito-e-iniciativa-popular-sob-a-jurisdicao-constitucional. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: WALKER GONÇALVES
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