RESUMO: O presente artigo destaca as principais características do ônus da prova, estabelecendo distinções entre a distribuição legal, inversão e carga dinâmica probatória.
PALAVRAS-CHAVE: Ônus da prova. Carga dinâmica. Inversão do ônus. Direito probatório.
SUMÁRIO: 1. Introdução 2. Ônus da prova 2.1. Distribuição do ônus da prova 2.2. Inversão do ônus 3. Teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova 4. Conclusão 5. Referências Bibliográficas.
1. Introdução
O devido processo legal, previsto no artigo 5º, inciso LIV da Constituição Federal (CF), é uma das garantias mais importantes de um Estado Democrático de Direito, tendo em vista a inevitabilidade de conflitos no convívio social e a necessidade de se recorrer a um órgão imparcial capaz de proferir uma decisão que traduza um resultado jurídico confiável a partir de um método justo.
Na busca da solução desses conflitos, um dos envolvidos no conflito suscita a atuação jurisdicional do Estado, solicitando que seja proferida uma decisão favorável a seus interesses. No entanto, independente de o resultado ser favorável ou não, para se garantir a justiça da decisão a ser proferida, importa ao Estado-Juiz, adotar uma metodologia efetiva, através da qual será necessário oportunizar que demandante e demandado tenham a possibilidade de fazer prova de suas alegações.
O direito à prova, embora não seja uma garantia explícita do texto constitucional, é uma decorrência lógica do principio do devido processo legal (art. 5º, LIV, CF) e do princípio da ampla defesa e do contraditório (art. 5º, XXXV, CF).
Além disso, dentro da relação processual, as partes terão não só o direito de provar como também o encargo de fazer prova de determinadas alegações para permitir que o Estado-Juiz chegue a uma conclusão acerca do conflito suscitado.
Neste sentido, há de se estabelecer critérios para distribuição do ônus da prova visando que o julgador tenha possibilidade de proferir uma decisão acertada e precisa.
2. Ônus da prova
Nas palavras de Fredie Didier[1], “ônus é o encargo atribuído à parte e jamais uma obrigação”. Caso a parte não adote uma conduta para se desincumbir do ônus que lhe é imputado, sofrerá as consequências de sua inação.
Doutrinariamente, o ônus é dividido em dois aspectos: objetivo e subjetivo. Sob o primeiro ângulo, o encargo atribuído às partes é considerado pelo julgador uma regra a ser aplicada no momento do julgamento. O juiz deve estar convencido das alegações de fato a partir das provas produzidas. Caso não esteja convencido, ainda assim estará obrigado a julgar (vedação ao non liquet) e, para tanto, deverá adotar um critério de ônus da prova (a ser explicado posteriormente), fazendo recair as consequências de não ter feito a prova sobre aquele que possuía o encargo de produzi-la. Aqui se realiza uma distribuição de riscos na linguagem do grande processualista Barbosa Moreira[2].
Já sob o aspecto subjetivo, o ônus da prova é uma regra dirigida às partes litigantes, indicando os fatos que cada uma terá a obrigação de provar, sob pena de sujeitar-se ao resultado natural de sua omissão.
Releva notar que o ônus da prova só precisará ser invocado na ausência de prova de fatos alegados. Do contrário, o juiz prolatará a decisão com base nos fatos alegados e provados, sendo dispensável aferir a autoria da prova, uma vez que a prova produzida, no curso da relação processual, passa a integrá-la (princípio da comunhão das provas ou aquisição processual) e servirá de suporte para o juízo a ser proferido pelo julgador.
2.1. Distribuição do ônus da prova
O sistema processual brasileiro adotou como regra a distribuição legal do ônus de provar a partir das regras estabelecidas no artigo 373 do Código de Processo Civil (CPC). Ao estabelecer essas regras, o Legislador levou em consideração uma ordem lógica entre os encargos do autor e do réu.
Primeiramente, é necessário observar se o autor provou o fato que alega compor, fundar o seu direito e, enquanto este não estiver provado, não é necessário nenhum movimento da parte contrária, já que não há ônus que recaia sobre ela.
Neste diapasão, é possível verificar que os critérios do artigo 373, do CPC levam em consideração:
a) a posição da parte na causa (se autor, se réu); b) a natureza dos fatos em que funda sua pretensão/exceção (constitutivo, extintivo, impeditivo ou modificativo do direito deduzido); c) e o interesse em provar o fato. [3]
Quanto à natureza jurídica dos fatos alegados, a própria norma a dividiu em constitutiva, extintiva, modificativa ou impeditiva do direito do autor.
O fato de natureza constitutiva é o próprio acontecimento ou relação jurídica que dá origem ao direito afirmado pelo autor na demanda processual. O autor aponta ser titular de uma determinada situação jurídica, que deverá provar.
Já os fatos de natureza impeditiva, modificativa e extintiva, geralmente, são apresentados pelo réu no intuito de afastar a pretensão deduzida pelo autor. Na verdade, o réu pode adotar duas posturas (sem ignorar a possibilidade de se manter inerte): negar diretamente a alegação do autor, que também é chamada de defesa direta, ou trazer outro fato à baila, objetivando impedir, modificar ou extinguir o direito que o autor afirma possuir. Nesse caso, o réu exporá alegações novas que constituirão uma forma de defesa indireta.
No entanto, conforme alerta Daniel Assumpção
Caso o réu alegue por meio de defesa de mérito indireta um fato novo, impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor, terá o ônus de comprová-lo.[4]
Desta forma, não bastará ao réu apontar um desses fatos, caberá a ele o encargo de prová-los ou, do contrário, assumirá as consequências da apresentação de alegação sem provas, qual seja, julgamento, a princípio, contrário aos seus interesses, na medida em que julgador levará em consideração o ônus assumido pelo réu diante das afirmações proferidas por ele próprio.
Por outro lado, visando modificar o direito postulado pelo autor, o réu deverá trazer fatos que exerçam esse papel de modificador como a eventual incapacidade de uma das partes para celebração do negócio, algum vício de consentimento como o erro, a ausência de boa-fé na contratação, etc.
O fato impeditivo, por sua vez, possui natureza negativa, visto que se traduz na ausência de uma circunstância que deveria estar presente para a consecução dos efeitos normais do fato conformador do direito do autor.
Quanto ao fato extintivo, Daniel Assumpção leciona que
é aquele que retira a eficácia do fato constitutivo, fulminando o direito do autor e a pretensão de vê-lo satisfeito – tal como o pagamento, a compensação e a decadência legal[5].
2.2. Inversão do ônus
Como dito, o artigo 373 do CPC estabeleceu as regras para a produção da prova, porém há situações em que a própria lei excepcionou esta regra. Nesses casos, a lei autoriza que o ônus originalmente atribuído a uma das partes recaia sobre a outra.
A doutrina divide a inversão do ônus em duas modalidades: ope judicis e ope legis. Esta última consiste na inversão prevista expressamente na lei e se dá, na realidade, não como uma inversão no sentido literal, mas na forma de presunção legal juris tantum da alegação apresentada pela parte. Aqui, a parte contrária, por exemplo, o réu, é que deverá provar que a situação é diversa da alegação apresentada pelo autor, sem que este tenha que provar o seu fato constitutivo. O artigo 38 do Código de Defesa do Consumidor (CDC) é apontado como exemplo de inversão deste tipo e traz a seguinte previsão: “O ônus da prova da veracidade e correção da informação ou comunicação publicitária cabe a quem as patrocina”.
Sendo assim, se o autor disser que deseja comprar um item pelo valor descrito na propaganda do produto e o réu disser que corrigiu a informação a tempo e que o preço incorreto não foi disponibilizado ao consumidor, deverá provar que fez essa correção, sob pena de ter que disponibilizar o produto pelo valor erroneamente apresentado.
Por sua vez, a inversão ope judicis se dá quando a própria lei autoriza o julgador a promover a inversão diante de determinada situação in concreto. Didier chega a afirmar que esta é “sim verdadeira inversão do ônus da prova”[6]. Neste caso, o magistrado é autorizado, a partir da constatação de determinados requisitos como a hipossuficiência técnica do consumidor, por exemplo, a decretar a inversão, oportunizando a parte sobre a qual recairá o encargo de provar tempo hábil para que o faça antes da sentença, em respeito aos princípios da ampla defesa e do devido processo legal. Exemplo desta técnica, amplamente apontado na doutrina, é o artigo 6º, inciso VIII do CDC.
O CPC de 2015 trouxe expressamente no art. 373, § 1º a previsão da inversão judicial do ônus probatório, desde que o magistrado o faça de forma fundamentada e concedendo à parte contrária a possibilidade de se desincumbir do ônus que lhe foi imputado.
3. Teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova
Diante da formatação estática estabelecida pela nossa legislação processual e as dificuldades decorrentes desse sistema no tocante à produção de provas, a doutrina passou a se debruçar no estudo de teorias que pudessem possibilitar uma produção probatória mais equânime.
Ocorre que essa divisão estática do ônus pode levar a decisões injustas, já que, não raras vezes, o magistrado se depara com a situação em que nem o autor, nem o réu possuem condições de atender o seu encargo probatório, acarretando uma insuficiência de provas que ensejará um julgamento com base no ônus de que as partes não se desincumbiram.
Assim, com suporte em princípios como da boa-fé, lealdade e cooperação processual, os argentinos Jorge W. Peyrano e Augusto M. Morello, dentre outros, desenvolveram a teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova, em que o ônus recairá sobre aquele que possui maiores condições de produzir a prova.
Sendo o principal objetivo, pensado por esta teoria, oferecer uma decisão jurisdicional efetivamente justa, o juiz deverá levar em consideração a má-fé daquele que - podendo fazer prova - não a trouxer com a intenção de induzir ao estado de permanente dúvida sobre as alegações apresentadas na relação processual e assim se beneficiar do comando geral para os casos de insuficiência de provas, qual seja, o julgamento com base nos encargos distribuídos no art. 373 do CPC.
Neste caso, o juiz deverá punir o litigante de má-fé, atribuindo a este as consequências da inação. Vê se que, na adoção da teoria dinâmica, o julgador assume um papel ativo intenso, no sentido da gestão do processo, que será determinante no curso da relação processual, administrando as provas apresentadas e usando dos seus poderes-deveres para avaliar, no caso concreto, quem tem maiores condições de produzir provas acerca de determinado fato.
Podemos concluir que a teoria dinâmica prestigia as regras da experiência comum e o sentido de justiça esperado na atuação de um magistrado para concretizar uma das principais garantias constitucionais: o acesso à justiça (art. 5º, XXXV CF).
Assim, com base nas modernas lições da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, demonstra-se a existência de jurisprudência acolhendo a teoria dinâmica em nossos Tribunais Superiores. Vejamos:
“PROCESSO CIVIL. AÇÃO MONITÓRIA. PROCEDIMENTO. ÔNUS DA PROVA.DISTRIBUIÇÃO. REGRA GERAL DO ART. 333 DO CPC. INCIDÊNCIA. TEORIA DA DISTRIBUIÇÃO DINÂMICA DO ÔNUS DA PROVA. CABIMENTO.(...)4. O processo monitório não encerra mudança na regra geral dedistribuição do ônus da prova contida no art. 333 do CPC. O fato de, na ação monitória, a defesa ser oferecida em processo autônomo, não induz a inversão do ônus da prova, visto que essa inversão se dá apenas em relação à iniciativa do contraditório.
5. O documento que serve de base para a propositura da ação monitória gera apenas a presunção de existência do débito, a partir de um juízo perfunctório próprio da primeira fase do processo monitório. Trazendo o réu-embargante elementos suficientes para contrapor a plausibilidade das alegações que levaram à expedição do mandado de pagamento, demonstrando a existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito invocado na inicial, caberá ao autor-embargado superar os óbices criados, inclusive com a apresentação de documentação complementar, se for o caso. 6. Apesar de seguir a regra geral de distribuição do ônus da prova, o processo monitório admite a incidência da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova.7. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, provido.”(STJ, REsp 1084371 / RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, DJe 12/12/2011) (g.n)
“ (...)Pela aplicação do princípio geral da distribuição dinâmica do ônus da prova, e especificamente pela incidência do princípio da aptidão para a prova, conclui-se que, in casu, a reclamada é que detinha o encargo de comprovar que fornecia aos empregados que exerciam a mesma função da reclamante (servente) tíquetes alimentação de igual valor. Isso porque não se pode negar que o dever de documentação relativamente aos seus empregados está a cargo da empregadora e, em contrapartida, presume-se a dificuldade da reclamante quanto à prova do valor efetivamente pago a título de tíquetes alimentação.” (trecho do voto do Relator, Min. Lelio Bentes, no processo: TST-AIRR-1437-82.2010.5.03.0013, publicado no DEJT em 8/6/2012) (g.n)
Neste diapasão, o Código Fux (CPC/2015) acolheu expressamente a teoria, ressoando as vozes da doutrina e da jurisprudência e trazendo o ônus dinâmico como mais uma possibilidade legal para o julgador.
O art. 373, § 1º traz a possibilidade de distribuição diversa do ônus quando houver maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário. Assim, o juiz poderá atribuir o ônus de provar à parte contrária, caso esta tenha condições adequadas para se desincumbir.
Destaca-se ainda não ser possível a distribuição dinâmica se a parte contrária não possuir condições de se desvencilhar do encargo, sob pena de aplicar a pena da prova diabólica e punir sem que haja previsão legal, contrariando o princípio da legalidade (art. 5º, II e XXXIX CR).
O próprio § 2º, do art. 373 prevê
§ 2o A decisão prevista no § 1o deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil.
4. Conclusão
Como visto a apresentação de provas é fundamental para o deslinde da relação processual e para se chegar a um resultado justo na resolução dos conflitos apresentados ao Estado-Juiz.
Nesta esteira, a distribuição do ônus entre as partes litigantes é fundamental na organização de um método eficaz de composição dos litígios. Por essa razão, a existência do artigo 373 do CPC é uma forma de estabelecer as regras do jogo, evitando surpresas para demandante e demandado.
No entanto, devido sua característica estática, essas regras, muitas vezes, não atingem o verdadeiro espírito da lei que é “fazer justiça” e será necessário, utilizando-se dos modernos princípios fundamentais, invocar uma nova forma de distribuir os encargos probatórios.
Neste diapasão, adoção expressa da teoria dinâmica pelo Novo CPC representa uma possibilidade real e efetiva de tornar o processo mais flexível e garantir um julgamento mais equilibrado, possibilitando, às partes mais debilitadas na relação processual, que lhes seja garantido o direito de produção da prova, mesmo que à custa de seu adversário, como medida de verdadeira aplicação do princípio da isonomia, um dos corolários do princípio da dignidade da pessoa humana.
5. Referências Bibliográficas
DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: volume 2. 4ª. ed. Salvador: Editora Juspodivm. 2009.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. As presunções e a Prova. Temas de Direito Processual. São Paulo: Saraiva, 1977.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. 5. ed. ver. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013.
[1] DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: volume 2. 4ª. ed. Salvador: Editora Juspodivm. 2009. p. 73
[2] MOREIRA, José Carlos Barbosa. As presunções e a Prova. Temas de Direito Processual. São Paulo: Saraiva, 1977.
[3] DIDIER JUNIOR, Fredie Op. Cit, p. 77
[4] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil , 5ª ed. ver., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2013.p. 421
[5] Idem, p.115.
[6] DIDIER JUNIOR, Fredie. Op. cit. p. 81
Graduada em Direito pela UFRJ. Especialista em Direito Processual Civil pela UCAM-RJ. Servidora pública federal.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PRISCILA FERNANDES DA SILVA PAçO, . Ônus da prova: distribuição entre demandantes para demonstração de suas alegações no processo judicial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 maio 2018, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51752/onus-da-prova-distribuicao-entre-demandantes-para-demonstracao-de-suas-alegacoes-no-processo-judicial. Acesso em: 23 dez 2024.
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