Resumo: Trata-se de artigo cujo objetivo é analisar a subsistência no ordenamento jurídico brasileiro da possibilidade de dispensa do controle da jornada do empregado que exerce atividade externa. Analisa-se essa situação à luz do direito constitucional à limitação da duração do trabalho, considerando-se as inovações tecnológicas e jurídicas sobre o tema e os entendimentos sedimentados na jurisprudência.
Palavras-chave: Limitação da jornada de trabalho. Exceções ao controle da jornada de trabalho. Atividade externa.
Sumário: 1. Introdução; 2. A definição de jornada de trabalho e a importância de sua limitação; 2.1. Aspectos relacionados à saúde; 2.2. Aspectos sociais; 2.3. Aspectos políticos; 2.4. Aspectos econômicos; 3. A relevância histórica da limitação da jornada de trabalho e a revolução das normas que a regulam; 4. O art. 62, I, da CLT; 4.1. Discussões acerca da constitucionalidade do dispositivo; 4.2. Interpretação e alcance; 5. A inexistência de atividade externa impossível de ser controlada; 6. Conclusão; Referências.
1. Introdução
A limitação da jornada de trabalho foi uma das primeiras reinvindicações da classe operária, possuindo íntima ligação com o surgimento do próprio Direito do Trabalho. Sua conquista representou um grande avanço para o estabelecimento de padrões mínimos de dignidade nas relações laborais, tendo em vista que se apresenta como instrumento essencial para a proteção física, mental e social dos trabalhadores (BARROS, 2016).
Atualmente, no âmbito interno, a limitação à jornada de trabalho é um direito fundamental constitucionalmente garantido aos empregados, empregados domésticos e trabalhadores avulsos, como estabelece o art. 7º da Constituição da República.
Diante de tantos elementos que demonstram a importância de uma jornada limitada, eventuais exceções a essa regra suscitam desconfiança, merecendo uma análise aprofundada de sua legitimidade social e conformidade com o ordenamento jurídico pátrio.
Nesse contexto, a hipótese de dispensa do controle de jornada em razão do exercício de atividade externa incompatível com a fixação de horário de trabalho, prevista no art. 62, I, da CLT, com a redação dada pela Lei n. 8.966/94, sempre foi alvo de inúmeras discussões – inclusive acerca de sua constitucionalidade. Passados mais de vinte anos de sua instituição, essa exceção legal ao limite de jornada permanece vigente, mas ainda é causa de forte insegurança jurídica.
Não são poucas as demandas existentes na Justiça do Trabalho em que se discute a regularidade da aplicação do aludido dispositivo, sendo que, na maioria das vezes, reconhece-se que sua utilização ocorreu com o objetivo de fraudar a legislação trabalhista e sonegar o pagamento de horas extras. No âmbito do TST, fixou-se o entendimento majoritário entre as turmas que essa previsão legal só é admitida no caso de total impossibilidade de controle da jornada do trabalhador externo, não bastando apenas a inexistência desse controle por parte do empregador.
Ocorre que a caracterização dessa impossibilidade não é tarefa das mais simples, sobretudo porque o próprio ordenamento jurídico e o atual estágio de desenvolvimento tecnológico da nossa sociedade oferecem alternativas que possibilitam o controle da jornada de trabalho do empregado que exerce atividade externa sob quaisquer condições.
No presente artigo, buscar-se-á, após a apresentação de algumas considerações doutrinárias e pretorianas acerca do instituto da limitação à jornada de trabalho e da previsão contida no art. 62, I, da CLT, demonstrar que as causas que motivaram a criação dessa disposição legal não mais subsistem. Pretende-se, portanto, comprovar que se trata de norma desligada da realidade social, que não possui mais aplicabilidade prática, devendo ser extirpada da nossa ordem jurídica, a fim de se conferir maior segurança às relações empregatícias que tenham por objeto a prestação de serviços externos.
2. A definição de jornada de trabalho e a importância de sua limitação
A jornada de trabalho pode ser compreendida como o lapso temporal no dia, semana ou mês em que o empregado coloca-se à disposição do empregador em virtude do pacto empregatício. Mede a principal obrigação do empregado no contrato – a prestação de serviços –, mensurando objetivamente a extensão da transferência de força de trabalho em favor do empregador (DELGADO, 1998. p. 19).
Conforme se infere do art. 4º da CLT, o legislador adotou a teoria do tempo à disposição do empregador, que se mostra mais benéfica a este do que a teoria do tempo efetivamente trabalhado. Isso porque considera como jornada de trabalho, além do interregno em que as atividades estejam sendo desenvolvidas, o período em que esteja aguardando ordens.
Diante dessa característica, está intrinsicamente ligada à remuneração do trabalhador, tendo em vista que sua medida irá ditar o valor do labor humano. Contudo, a importância acerca da limitação da jornada de trabalho transcende a definição da contraprestação pelo trabalho subordinado, sendo discutida, ainda, sob quatro enfoques: biológico, social, político e econômico. De forma sintética, já que não é objetivo do presente trabalho esgotar esse tema, analisar-se-á cada um deles a seguir.
2.1. Aspectos relacionados à saúde
À medida que o empregado, ao prestar serviços, dispende sua força de trabalho, é consequência natural o desgaste físico e/ou mental. É por essa razão que a extensão da jornada de trabalho está diretamente relacionada com a saúde do trabalhador. Quanto maior a jornada, maior o cansaço.
Cientificamente, tem-se que o “esgotamento provocado por excesso de trabalho físico ou mental ocasiona a autointoxicação do trabalhador, eis que (...) dá-se a ‘liberação de leucomaínas no cérebro, aumento de ácido láctico nos músculos e creatinina no sangue e diminuição da resistência nervosa (...)’”. (BRANDÃO apud FONSECA, 2012. p. 121).
O resultado de jornadas excessivas é o enfraquecimento do sistema imunológico, baixa produtividade e o aumento no número de acidentes do trabalho e doenças ocupacionais. OLIVEIRA apud FONSECA, 2012. p. 122).
Defende-se, inclusive, que o objetivo principal das regras sobre duração do trabalho é tutelar a integridade física do trabalhador (BARROS, 2016. p. 436), e que elas possuem caráter de normas de saúde pública (DELGADO, 2016. p. 954).
2.2. Aspectos sociais
A limitação da jornada de trabalho possibilita ao empregado focar-se de forma adequada em sua vida particular. Permite, por exemplo, a fruição de maior tempo para suas relações familiares e sociais, lazer e até mesmo para o aperfeiçoamento educacional/profissional.
Deve-se ressaltar que o direito ao lazer é assegurado no caput do art. 6º da Constituição da República, e que, segundo o art. XXIV da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, todo homem tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas. (ONU, 1948).
Acrescente-se, para finalizar, que como corolário dessa discussão, em cotejo com o avanço tecnológico, fala-se hoje em direito à desconexão, expressão cunhada pelo Professor Jorge Luiz Souto Maior, que, de forma resumida, é o direito do empregado se desconectar da sua realidade profissional nos momentos de descanso.
2.3. Aspectos políticos
Segundo DELGADO (2016. p. 955), “a modulação de jornada e da duração do trabalho consiste em um dos mais eficazes mecanismos de combate ao desemprego. A redução da duração diária, semanal e mensal do labor abre, automaticamente (ainda que não em proporção equivalente), inúmeros postos de trabalho, ou – na pior das hipóteses – obstacula, de modo franco e direto, o ritmo de avanço da taxa de desocupação no mercado de trabalho”.
Por sua vez, medidas como a intensificação do trabalho e a prestação de horas extras possuem o efeito e corroer postos de trabalho (DAL ROSSO apud FONSECA, 2012. p. 137).
Há, portanto, uma visível correlação entre a limitação da jornada e a criação de empregos, o que demonstra sua importância como medida de política de combate ao desemprego.
2.4. Aspectos econômicos
Sob o ponto de vista econômico, é comum o argumento do empresariado de que a limitação da jornada e as demandas por sua diminuição tendem a aumentar os custos de produção e, consequentemente, diminuir a competitividade – principalmente no mercado externo. Argumenta-se que o efeito disso é a diminuição dos investimentos e o enfraquecimento da economia nacional.
Todavia, vários estudos têm apontado que a limitação da jornada, acompanhada por uma tendência à sua diminuição sem redução de salários, apesar de aumentar o custo do trabalho em um momento inicial, acaba sendo compensado pelo aumento da produtividade, restaurando-se o equilíbrio financeiro e o lucro empresarial (FONSECA, 2012. p. 144).
Logo, as medidas de limitação de jornada apresentam-se também como instrumento eficaz do ponto de vista econômico, pois impulsionam a produtividade e, como visto acima, diminuem as despesas com licenças por doenças e acidentes de trabalho.
3. A relevância histórica da limitação da jornada de trabalho e a evolução das normas que a regulam
A revolução industrial do século XVIII impôs profundas mudanças no setor produtivo, dentre elas o surgimento da classe operária. Diante de um panorama de plena liberdade do exercício da atividade econômica, o trabalho era considerado uma mercadoria, estando submetido unicamente à autorregulamentação do mercado.
Inevitavelmente, como ainda ocorre atualmente, a concorrência e a busca por maiores lucros levava à necessidade de redução dos custos de produção. Sem qualquer interferência externa, a autonomia da vontade dos contratantes possibilitava a minoração dessas despesas produtivas através do sacrifício da parte hipossuficiente da relação: o trabalhador. O reflexo disso era a fixação de salários irrisórios, jornadas extenuantes e condições de higiene degradantes, que potencializavam os riscos de acidente.
Nessa época, a jornada de trabalho chegou a ser de 16 horas e se constatou uma exploração desenfreada do trabalho de mulheres e crianças em substituição ao trabalho do homem, por ser consideravelmente mais barato (CASSAR, 2015. p. 55).
A partir dessa realidade, Karl Marx desenvolveu a teoria da depauperação progressiva do proletariado, que possuía vinculação direta com a acumulação do capital. Esse marco teórico contribuiu de forma decisiva para a mobilização da classe trabalhadora, que, através do aprimoramento da consciência coletiva, passou a pressionar o Poder Público, a fim de que este apresentasse soluções para os problemas enfrentados. (BARROS, 2016).
Essa pressão social exercida pela massa trabalhadora e até mesmo pela igreja católica, que era um forte agente social da época, através de documentos eclesiásticos que defendiam a melhoria das condições de trabalho com fundamento na dignidade humana (Encíclica Rerum Novarum, Quadragesimo Anno, Divini Redemptores etc.) ensejou a intervenção estatal no equilíbrio da relação entre os atores das atividades laborais.
Surgiu, então, no final do século XIX, o Direito do Trabalho, com normas de natureza predominantemente imperativa, de caráter cogente, irrenunciáveis pelas partes, importando numa acentuada diminuição da liberdade contratual. O objetivo era, claramente, garantir alguns padrões mínimos de dignidade para os trabalhadores.
A consolidação do ramo justrabalhista veio no início do século XX. Com o término da primeira guerra mundial, consolidou-se a convicção de que a paz universal permanente só seria atingida através da justiça social. Tendo esse escopo, a OIT foi criada em 1919 como parte do Tratado de Versalhes e logo em sua Convenção nº. 1 da OIT dispôs sobre a duração do trabalho na indústria, estabelecendo a jornada de oito horas diárias e quarenta e oito horas semanais, o que demonstra de forma incontestável a natureza basilar desse tema dentro do Direito do Trabalho.
No mesmo período, surgiram as primeiras Constituições que incorporaram em seus textos os direitos trabalhistas: a Mexicana de 1917 e a Alemã de 1919 (Constituição de Weimar), sendo que ambas trouxeram dentre seus dispositivos regras de limitação da jornada de trabalho. A do México, inclusive, estabeleceu a jornada diária de oito horas, a limitação da jornada dos menores de 16 anos a seis horas, a jornada máxima noturna de seis horas e um dia de descanso a cada seis trabalhados (PINHEIRO, 2006).
Além de medida de proteção individual do empregado, a limitação da jornada constitui-se em meio eficaz para garantir a eficiência da economia e para limitar a possibilidade de concorrência desleal. Essa evidente essencialidade refletiu numa tendência mundial de adoção de normas limitadoras do tempo trabalhado (OIT, 1958).
A própria OIT, além da mencionada Convenção nº. 1, editou até 1939 outras quatro Convenções (30, 31, 47 e 67) visando a limitar a jornada de trabalho de diversas categorias profissionais. É inegável que a matéria constitui-se, portanto, em um dos seus objetivos primários.
No Brasil, apesar da tímida existência de leis trabalhistas esparsas no período entre o final do século XIX e o início do século XX, apenas a partir do golpe de Estado de 1930 que se observa a efetiva regulação dos direitos trabalhista. De 1932 até 1934, foram publicados vários decretos com a finalidade de estabelecer a jornada máxima de 8h diárias (FONSECA, 2012) e a Constituição de 1934 trouxe no §1º do seu art. 121 a determinação de que a legislação ordinária deveria prever o direito ao “trabalho diário não excedente de oito horas, reduzíveis, mas só prorrogáveis nos casos previstos em lei” (BRASIL, 1934).
Em 1943, a CLT codificou a legislação trabalhista existente e estabeleceu algumas disposições novas, sistematizando matérias relacionadas à limitação da jornada de trabalho como períodos de descanso, trabalho noturno e quadro de horários, além de disposições especiais relacionadas a categorias específicas. Além disso, fixou o limite semanal em 48h.
A Constituição de 1946 manteve a jornada de 8 horas diárias e determinou a remuneração do descanso semanal.
A Lei nº. 605/49 fixou os critérios da remuneração do descanso semanal e incluiu o adicional de horas extas.
Passou-se um grande período sem modificações relevantes acerca da matéria, até que com a promulgação da Constituição da República de 1988 a limitação da jornada passou a ser considerado como um direito fundamental e o limite semanal foi reduzido para 44 horas. A “Constituição Cidadã” trouxe, ainda, autorização para a flexibilização do limite de jornada, desde que atendidos determinados requisitos. Demais disso, foi erigida ao status de direito fundamental do trabalhador – o art. 7º está situado no título II da Constituição da República, “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”.
4. O art. 62,I, da CLT
O art. 62 da CLT surgiu como exceção à regra geral de controle de jornada e registro da jornada, estabelecida nos arts. 58 (art. 7º, XIII, da CR/88) e 74, §2º, do texto consolidado. Em linhas gerais, além da limitação a uma jornada de oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, o empregador que conta com mais de dez empregados em um estabelecimento tem o dever de registrar a jornada de cada um deles.
Desde sua primeira redação, elencou hipóteses em que o empregador estava dispensado de controlar e limitar a jornada de trabalho de determinados empregados. Uma dessas situações está relacionada com o trabalho externo, estabelecendo a disposição original do mencionado artigo, em sua alínea “a”, que não estavam sujeitos às regras relativas à limitação de jornada os vendedores pracistas, os viajantes e os que exercerem, em geral, funções de serviço externo não subordinado a horário, devendo tal condição ser, explicitamente, referida na carteira profissional e no livro de registo de empregados, ficando-lhes de qualquer modo assegurado o repouso semanal.
Essa previsão foi alterada pela Lei n. 8.966/94, que incluiu o inciso I ao aludido dispositivo, disciplinando a inaplicabilidade das regras que limitam a jornada aos empregados que exercem atividade externa incompatível com a fixação de horário de trabalho.
A atualização legislativa não alterou substancialmente a norma, apenas conferiu uma redação mais abrangente ao seu texto, de forma a evitar interpretações que pudessem restringir sua aplicação a determinadas categorias, deixando claro que o relevante é apenas o exercício de atividade externa não compatível com a definição de jornada.
4.1. Discussões acerca da constitucionalidade do dispositivo
Faz-se necessário registrar a existência de discussão acerca da compatibilidade da norma ora analisada com a Constituição da República de 1988.
Num primeiro momento, logo após a entrada em vigor da nova Constituição, foi alvo de intenso debate a recepção por esta do art. 62 da CLT. Antes mesmo da pacificação da discussão, a Lei n. 8.966/94 trouxe novos contornos para ela. Por se tratar de regra posterior à sua promulgação, passou-se a discutir efetivamente a constitucionalidade da norma.
Alegou-se que teria havido a derrogação do dispositivo pelos incisos XIII, XIV e XV do art. 7º do novo texto constitucional, que ao determinarem a existência de limites para jornada de trabalho, não estabeleceram qualquer possibilidade de dispensa (DE SOUZA; DO AMARAL; DOS SANTOS JÚNIOR; SEVERO, 2015).
Ademais, como já destacado, a limitação da jornada ganhou a roupagem de direito fundamental, possuindo as normas que a instituem, ainda, eficácia plena – aplicabilidade imediata, direta e total. Assim, uma parte da doutrina e da jurisprudência passou a defender que a Constituição universalizou os limites impostos, não podendo uma lei ordinária criar exceções não previstas pelo Poder Constituinte.
Por todas as questões que envolvem a necessidade de limitação da jornada de trabalho, esse entendimento parece ser o mais adequado. A própria evolução normativa do instituto, que vem sendo estendido até mesmo a categorias outrora excluídas constitucionalmente de sua tutela, fortalece essa tese – vide o caso dos empregados domésticos que passaram a ter direito à limitação da jornada a partir da EC 72/03. Ressalte-se, inclusive, que esse foi o entendimento adotado na 1ª Jornada de Estudos da Justiça do Trabalho, promovida em conjunto pela Associação Nacional dos Magistrados Trabalhistas (ANAMAT), Tribunal Superior do Trabalho (TST), Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENAMAT) e Conselho Nacional das Escolas de Magistratura do Trabalho (CONEMATRA) em 2007, conforme se infere de seu Enunciado n. 17:
17. LIMITAÇÃO DA JORNADA. REPOUSO SEMANAL REMUNERADO. DIREITO CONSTITUCIONALMENTE ASSEGURADO A TODOS OS TRABALHADORES. INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 62 DA CLT. A proteção jurídica ao limite da jornada de trabalho, consagrada nos incisos XIII e XV do art. 7º da Constituição da República, confere, respectivamente, a todos os trabalhadores, indistintamente, os direitos ao repouso semanal remunerado e à limitação da jornada de trabalho, tendo-se por inconstitucional o art. 62 da CLT.
Contudo, prevaleceu o posicionamento de que o dispositivo original foi recepcionado pela Constituição de 1988 e a Lei n. 8.966/94 é materialmente constitucional, por se tratar de regra relativa a condição especial de trabalho. Trata-se de matéria pacificada no âmbito do TST.
4.2. Interpretação e alcance
Inicialmente, parte da doutrina defendeu a aplicação dessa disposição legal aos “empregados que, executando serviços externos em razão da própria natureza das funções, não podem estar submetidos a horários, desde que tal importaria em impedir que pudessem desenvolver suas atividades, a fim de obter remuneração compensadora, como no caso dos vendedores e viajantes” (SUSSEKIND, 1999). Privilegiou-se, portanto, a interpretação literal da lei, buscando-se definir as atividades que se enquadrariam em seu campo de aplicação.
Contudo, essa interpretação, data vênia, mostra-se inadequada. Ora, como a limitação da jornada pode impedir um trabalhador de desenvolver suas atividades e de obter sua remuneração? Como visto nos primeiros capítulos desse trabalho, a fixação de limites para o labor tem a finalidade precípua de proteger o empregado, além de possuir repercussões positivas no próprio resultado de suas atividades – quantitativamente e qualitativamente. Demais disso, o ordenamento já garante àquele que recebe remuneração variável, pelo menos, o salário-mínimo (art. 7º, VII, da CRFB).
Percebe-se, portanto, que é temerário falar em atividade incompatível com o controle de jornada, diante da própria natureza desse instituto.
Em contrapartida, também surgiu o entendimento de que o ponto de toque da aplicação do dispositivo ora discutido é a impossibilidade material de controle de jornada. Entende-se que a mera possibilidade de o empregador controlar o tempo pelo qual o trabalhador permanece à sua disposição afasta a incidência do art. 62, I, da CLT, sendo irrelevante a discussão acerca da existência efetiva de fiscalização da jornada de trabalho cumprida.
Segundo Mônica Sette Lopes (LOPES, 2012), a partir de uma interpretação teleológica, tem-se que a finalidade da criação dessa regra jurídica foi a impossibilidade de fiscalização da jornada de trabalho dos empregados externos.
Optou-se pela insubordinação ao limite de jornada porque, como a empresa não tinha como saber onde estavam, poderiam trabalhar menos do que a jornada mínima, contanto que realizassem as atribuições que lhe eram inerentes. Não se pensava que eles trabalhariam mais de 8 horas diárias para cumprir seus deveres profissionais, tendo em vista que haveria a mitigação da subordinação jurídica pela da ausência física do empregador, implicando numa maior liberdade e na confusão entre horas de trabalho e horas de lazer (NASCIMENTO apud LOPES, 2012).
Atualmente, esse posicionamento é adotado por todas as Turmas do TST – 1ª (BRASIL, Tribunal Superior do Trabalho. TST-RR-121500-11.2010.5.23.0004, Rel. Ministro Walmir Oliveira da Costa, 2013); 2ª (BRASIL, Tribunal Superior do Trabalho. AIRR - 4391-83.2010.5.12.0035, Relator Desembargador Convocado: Valdir Florindo, 2013); 3ª (BRASIL, Tribunal Superior do Trabalho. AIRR - 799-53.2015.5.18.0111, Rel. Mauricio Godinho Delgado, 2016); 4ª (BRASIL, Tribunal Superior do Trabalho. TST-RR-176700-44.2008.5.02.0202, Rel. Ministro João Oreste Dalazen, 2013); 5ª (BRASIL, Tribunal Superior do Trabalho. AIRR - 2047-86.2012.5.18.0005, Rel. Antonio José de Barros Levenhagen, 2017); 6ª (BRASIL, Tribunal Superior do Trabalho. RR - 58600-76.2009.5.17.0009, Rel. Ministro Aloysio Corrêa da Veiga, 2014); 7ª (BRASIL, Tribunal Superior do Trabalho. AIRR - 1811-78.2011.5.15.0062, Rel. Cláudio Mascarenhas Brandão, 2014) e 8ª (BRASIL, Tribunal Superior do Trabalho. RR - 527-36.2012.5.03.0029, Rel. Dora Maria da Costa, 2013).
5. A inexistência de atividade externa impossível de ser controlada
A norma, em si (não o dispositivo atual), é originária da CLT, ou seja, data de 1943. Na sua gênese, como visto acima, certamente pela realidade completamente diferente que vivenciava a sociedade brasileira, não se imaginava que sua utilização implicaria na precarização da mão de obra – prestação de serviços além dos limites legais de forma incontrolada.
Hoje, em razão da globalização e do grau de desenvolvimento do modo de produção capitalista, acirra-se cada vez mais a competitividade no mercado. Por conseguinte, tem-se o aumento das exigências em face do trabalhador, que possui metas a cumprir e é constantemente cobrado por resultados. Logo, a realidade atual é a de que o empregado normalmente não consegue cumprir todas as tarefas que lhes são atribuídas dentro da jornada ordinária.
A prova maior disso é o notório grande número de demandas em que se reconhece o direito ao recebimento de horas extras na Justiça do Trabalho e a forte tendência de flexibilização da jornada.
Portanto, a presunção de que o trabalhador poderia cumprir suas atividades em jornada inferior à mínima legal, uma das motivações da criação do dispositivo, não mais subsiste.
Ademais, pergunta-se: ainda existe alguma atividade externa em que o controle é totalmente impossível?
A humanidade experimenta a era pós-digital, em que o conhecimento e a tecnologia desenvolvem-se de forma exponencial. Em poucos anos, evolui-se o equivalente a décadas ou séculos do passado.
Qualquer cidadão nos dias de hoje possui acesso fácil a aparelhos digitais inteligentes que enviam e recebem informações instantaneamente, e as redes de cobertura dos sinais de telefonia e internet estão cada vez maiores. Lugares que em outrora estavam digitalmente isolados agora estão completamente conectados.
Em relação à telefonia móvel, em pesquisa realizada em 2014, o IBGE constatou que 77,9% da população já utilizava celular (BUCCO, 2015).
Mais da metade dos lares brasileiros possuem acesso à internet (BOCCHINI, 2016) e o celular já é o principal meio de acesso no país (VILLELA, 2016).
Nota-se, pois, que a possibilidade de controle do trabalho externo é uma realidade totalmente acessível à maior parte da população através de aparelhos simples e baratos. É, inclusive, uma situação amplamente visualizada no cotidiano das relações laborais atuais, tendo várias empresas adotado sistemas de registro de jornada remotos ou mesmo o controle diretamente ou indiretamente através de ligações telefônicas e aplicativos de mensagens instantâneas.
Em alguns casos específicos, isso vai mais além. O empregador tem acesso em tempo real ao desenvolvimento da prestação de serviços, como se vislumbra, por exemplo, quanto aos motoristas de veículos rastreados por satélite. A empresa, além de saber a exata localização e velocidade do veículo, com alertas referentes a mudanças de rotas e paradas não programadas, pode até mesmo bloqueá-lo à distância.
O controle da jornada, em tais situações, é maior até mesmo do que o realizado sobre os trabalhadores internos, que podem parar para tomar um café, ir ao banheiro ou conversar com algum colega e, mesmo assim, não serem notados.
Para as situações restantes, em que a tecnologia ainda não está ao alcance de empregado e empregador, a própria legislação já havia estabelecido uma solução bastante simples. Ela, contudo, sempre foi ignorada.
Na forma do art. 74, §3º, da CLT, se o trabalho for executado fora do estabelecimento da empresa, o horário dos empregados constará, explicitamente, de ficha ou papeleta em seu poder. Essa previsão foi recentemente mencionada nas leis que regularam a atividade dos motoristas profissionais e afastaram qualquer possibilidade de ausência de controle de jornada – art. 2º, V, da Lei nº. 12.619/12 e art. 2º, V, b, da Lei nº. 13.103/15. Ou seja, o legislador entendeu que é possível o controle da atividade dos motoristas – que é eminentemente externa – através de simples anotações realizadas pelo trabalhador em documentos levados consigo.
Poder-se-ia questionar a fidedignidade desse registro realizado unilateralmente pelo empregado, mas se deve invocar o princípio geral do direito que diz que a boa-fé deve ser sempre presumida. Além disso, o controle da razoabilidade das jornadas anotadas, pelo empregador, é plenamente viável a partir da produção do trabalho do empregado, sendo possível a aferição de um tempo médio que se leva para a realização de qualquer atividade.
Ressalte-se, também, que, no caso de eventual fraude por parte do empregado, o princípio da primazia da realidade sobre a forma, uma das bases do Direito do Trabalho e que também pode ser aplicado em favor do empregador, possibilitará o afastamento dos registros de jornada fraudulentos. Apesar de a atividade ser externa, o empregado terá contato com várias pessoas que podem testemunhar sua jornada, como clientes e colegas de trabalho.
6. Conclusão
Diante do que foi exposto até aqui, verifica-se que a limitação da jornada do trabalho é um instituto embrionário do próprio Direito do Trabalho, uma conquista histórica da classe trabalhadora. Possui um escopo que vai muito além da regulação da relação entre patrão e empregado, tendo relevância social tamanha que atualmente é um direito fundamental dos trabalhadores em nosso ordenamento jurídico.
A norma insculpida no art. 62, I, da CLT, apesar de ter tido uma atualização do seu texto em 1994, é originária da época da criação do estatuto consolidado. Naquele tempo, o panorama econômico era completamente diferente, assim como a realidade das relações de trabalho.
Nos dias atuais, é inadmissível a existência de exceções legais ao controle de jornada pelo simples fato de o empregado exercer atividade externa. A permanência dessa possibilidade no ordenamento jurídico leva apenas à precarização da força de trabalho e à insegurança jurídica.
Se por um lado o empregado que não está sujeito ao controle de sua jornada acaba excedendo habitualmente os limites legais (muitas vezes em seus momentos de descanso), por outro o empregador que se utiliza desse expediente assume um grande risco de ser condenado ao pagamento de vultuosas quantias em uma possível reclamação trabalhista em que se postule o pagamento de horas extras.
Isso ocorre porque a interpretação dada pela doutrina e pela jurisprudência para a aplicação do aludido dispositivo, com o devido respeito, encontra-se desligada da realidade. São cada vez menores as decisões judiciais que reconhecem a existência de impossibilidade de controle da jornada externa, situação que, como demonstrado, não existe.
Toda jornada de trabalho externo é controlável, podendo-se utilizar os mais variados meios para tanto, desde que idôneos. Isso está cada vez mais em voga em razão do espetacular desenvolvimento tecnológico que é experimentado.
Nem se alegue que se trata de entendimento extremamente protecionista, que pode inviabilizar a prática de determinadas atividades. A flexibilização da jornada de trabalho é uma realidade cada vez mais presente nas relações empregatícias, sendo preferível que os contratantes adotem essa prática a simplesmente dispensarem o controle da jornada externa.
Referências
BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho – 10 ed. – São Paulo: LTr, 2016.
BOCCHINI, Bruno. Pesquisa mostra que 58% da população brasileira usam a internet. EBC – Agência Brasil, São Paulo, 13 set. 2016. Disponível em: Acesso em: 19 fev. 2017.
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BRASIL, Tribunal Superior do Trabalho. 3ª Tuma. Processo: AIRR - 799-53.2015.5.18.0111. Rel. Ministro Mauricio Godinho Delgado. Diário de Justiça, Brasília, 19 dez 2016.
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Bacharel em Direito. Especialista em Direito do Trabalho e Direito Previdenciário pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Juiz do Trabalho Substituto no Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALMEIDA, Emanuel Holanda. A atual inexistência de atividade externa incompatível com o controle da jornada de trabalho Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 maio 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51756/a-atual-inexistencia-de-atividade-externa-incompativel-com-o-controle-da-jornada-de-trabalho. Acesso em: 23 dez 2024.
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