Resumo: Desde o Direito Romano há informações da existência do contrato de transporte e de seus efeitos jurídicos. Nos séculos XIX e XX, a evolução dos meios de transporte impulsiona o advento da teoria da responsabilidade objetiva baseada na teoria do risco. Doutrinariamente, o transporte passa a carrear uma obrigação, não de meio, mas de resultado e garantia, em virtude da necessidade de assegurar a incolumidade física das pessoas. A previsão da responsabilidade objetiva no contrato de transporte só passou a ser legalmente prevista com o advento do Código Civil brasileiro de 2002, nos artigos 730 a 756. O transporte rodoviário é o principal modo de deslocamento urbano utilizado pela sociedade brasileira, sendo responsável por 93% do transporte urbano. A partir do incremento do uso, passamos a presenciar efeitos nas temáticas do Direito Penal (com os crimes de trânsito) e no Direito Civil, no que concerne à responsabilidade contratual e extracontratual decorrentes de atos ilícitos, como os acidentes automobilísticos e de consumo. No Brasil, nota-se um aumento significativo de assaltos em ônibus e, com isso, o presente estudo investiga a natureza e a existência da responsabilidade do transportador, sob a ótica da doutrina e jurisprudência brasileiras.
Palavras-chaves: Contrato de transporte; responsabilidade civil; assaltos em ônibus.
Sumário: Introdução – 1. Importância do contrato de transporte na evolução da responsabilidade civil; – 2. A responsabilidade civil no transporte de pessoas: 2.1. Considerações iniciais; 2.2. Dispositivos do Novo Código Civil brasileiro; 2.2.1. O tratamento da responsabilidade; 2.2.1.1. A Força Maior como única excludente da responsabilidade prevista no art.734; 2.2.1.2. Cláusula de Incolumidade; 2.2.1.2.1. Assaltos em coletivos, interestaduais e intermunicipais; 2.2.1.3. Contrato acessório de transporte de bagagens; – Conclusão – Referências.
Responsabilidade civil e contrato de transporte, precisamente o de pessoas no âmbito rodoviário, são temas de grande relevância jurídica e de interesse de todos os cidadãos, usuários ou não dos meios de transportes coletivos, já que os efeitos dessa modalidade contratual repercutem, muitas vezes, em esferas particulares alheias à avença.
Neste artigo se observará o entrelaçamento e influência mútua do desenvolvimento dos meios de transportes e seus efeitos fáticos e jurídicos no seio da sociedade civil, fazendo culminar em normas que resguardam os indivíduos dos efeitos danosos de uma das maiores atividades de risco da era contemporânea: o transporte.
Se analisará igualmente qual a resposta que o Direito oferece em face das novas problemáticas oriundas deste campo possuidor de infinitos matizes. Dentre estes obstáculos que clamam por resolução é demonstrado, ao longo deste estudo, como se dá a responsabilização do transportador rodoviário por danos causados aos passageiros e a suas bagagens. Ademais, serão apresentados o tratamento e as decisões em face dos casos corriqueiros de assaltos em transporte coletivos urbanos, interestaduais e intermunicipais, desvendando os limites da responsabilidade do transportador, dos órgãos públicos, da vítima do evento, e do suposto ressarcimento a que esta faz jus.
Visando a exposição da matéria com completude, se trará ao lume a análise dos mais importantes diplomas legais sobre o tema, indicando suas normas, conflitos e contradições, auxiliando o aprimoramento do estudo jurídico pátrio.
2. Importância do Contrato de Transporte na evolução da Responsabilidade Civil
A doutrina e a legislação concernentes à responsabilidade civil, em âmbito nacional e internacional, foram profundamente influenciadas pelo desenvolvimento dos meios de transporte, bem como, em época contemporânea, pela própria regulamentação dos contratos oriundos desta atividade.
Fato este por si só curioso, já que esperado seria que a normatização da responsabilidade civil permeasse os contratos de transportes desde o surgimento destes. No entanto, esta ideia de anterioridade de pronto se desfaz ao lembrarmos que os contratos nascem naturalmente no seio da sociedade civil, na medida em que os componentes desta sentem a necessidade de estabelecer relações de alguma forma embasadas e protegidas. Já a concepção da responsabilidade civil é produto do campo das obrigações, mais precisamente do descumprimento destas, pois não seria imperiosa a criação deste instituto se jamais houvesse danos, seja por desatendimento dos pactos, seja por ato ilícito, ou mesmo, como modernamente se tem entendido, a partir do exercício regular de um direito.
Neste passo, a responsabilidade civil se insere nas relações contratuais, protegendo e equilibrando os sujeitos do ajuste.
Desde a utilização de animais (semoventes), passando-se pelos escravos, considerados como mera coisa (res) na Roma Antiga aos tempos um tanto recentes, até chegarmos à utilização de máquinas como meios de transportes, muitas relações obrigacionais e efeitos decorrentes destas, jamais imaginados, surgiram criando a necessidade de se mitigar os efeitos nocivos que advieram do uso destes meios.
Destarte, já se encontra regulamentação no Direito Romano para fatos praticados por semoventes, sendo estes empregados ou não como transporte. Também se visualiza a responsabilidade ocasionada pela conduta humana (atos) danosa.
Contudo, é preciso convir que, apesar do invejável adiantamento jurídico romano, a responsabilidade civil sofreu drástico progresso na época em que o desenvolvimento tecnológico no setor dos transportes foi espantoso. E isto se deu nos séculos XIX e XX; e continua em curso.
Segundo Sérgio Cavalieri Filho,
“Nos países desenvolvidos, com economias estáveis e sem maiores passivos sociais, o transporte urbano é feito preponderantemente sobre trilhos (trens, “metrôs” etc.), responsáveis por 60% da demanda, cabendo ao modo rodoviário algo em torno de 30%. No Brasil, o transporte sobre trilhos, por não ter contado com os investimentos necessários ao longo do tempo, participa, hoje, com apenas 6% na demanda diária do transporte coletivo no País. O modal rodoviário, com emprego do ônibus, chega ao percentual de 93%”[1]
Estes dados, por si só, já justificariam a importância deste estudo.
A razão de vertiginoso avanço na doutrina do instituto jurídico em comento deu-se com a exacerbação do risco de dano trazido pelas máquinas, e mais precisamente por aquelas que são móveis, potentes e destinadas ao transporte.
José Aguiar Dias, discorrendo sobre este fenômeno, afirma que
“o estudo da responsabilidade civil deve, em grande parte, o extraordinário incremento que apresenta em nossos dias ao desenvolvimento incessante dos meios de transporte. Sem desconhecer outros motivos realmente fortes, pode afirmar-se que a influência dos novos riscos criados pelo automóvel na responsabilidade civil foi profunda e decisiva, no sentido de alçá-la ao seu incontestável lugar de ‘vedette’ do direito civil, na classificação adequada de Josserand. O insopitável anseio de se transportar fácil e rapidamente, a que alude Julian Huxley, é responsável por essa crescente importância do problema”[2].
É possível delinear uma nova fase no estudo da responsabilidade civil, que se iniciou a partir do risco. Com base neste é que surgiram a teoria do risco e, conseguintemente, a teoria da imputação objetiva. Estas serão de relevância capital no desenvolvimento dos tópicos seguintes, como se verá.
3. A Responsabilidade Civil no Transporte de Pessoas
3.1. Considerações Iniciais
Não olvidando a grande importância assumida pelo transporte de coisas, é forçoso admitir que o de pessoas assume lugar de relevo dentro do estudo dos pactos civis, tendo em vista que o objeto da referida avença deixa de ser algo para ser alguém, ou seja, a vida humana ou a incolumidade física.
O simples fato da natureza especial do objeto deste contrato já abre uma gama de situações hipotéticas que podem ocorrer quando da sua execução, uma vez que se está lidando com o bem jurídico mais valioso, garantido e sumamente protegido pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB): a vida.
Esse bem recebe status de supremacia não só na ordem jurídica brasileira, mas, indubitavelmente, em todos os demais ordenamentos nacionais e supranacionais. Apesar de alguns apresentarem contradições quando o preterem em detrimento de outros bens de menor importância. No entanto, esta última consideração foge do objeto do nosso estudo.
Se a mera utilização de meios de transportes cada vez mais ágeis e numerosos gerou uma situação de risco constante, o que dizer então quando o transporte é de pessoas?
A relevância do tema torna-se ainda maior quando lembramos que os meios de transporte modernos são causas diretas de um incontável número de acidentes na atualidade. No Brasil, verbi gratia, os desastres automobilísticos estão dentre os principais responsáveis pelo percentual de óbitos.
Assim, sua importância se estende igualmente às esferas administrativa e penal.
No intuito de ressarcir integralmente os danos ocasionados por esses meios à comunidade, lesões estas que muitas vezes restavam sem reparação devido à vigência da teoria da responsabilidade subjetiva, é que se criaram as teorias do risco, da culpa presumida, e finalmente, da imputação objetiva.
Sobre esta:
“no dizer do Professor LUIZ FLÁVIO GOMES: A teoria da imputação objetiva consiste basicamente no seguinte: só pode ser responsabilizado penalmente por um fato (leia-se: a um sujeito só pode ser imputado um fato), se ele criou ou incrementou um risco proibido relevante e, ademais, se o resultado jurídico decorreu desse risco” [3].
Percebe-se que, diferentemente da teoria da responsabilidade subjetiva, na teoria da imputação objetiva não se realiza mais o julgamento da existência de culpa por parte do agente causador do dano. Aqui, busca-se saber quem é o agente responsável por criar o risco que possibilitou o surgimento do dano a ser reparado. O foco metodológico é completamente diferente da responsabilidade subjetiva.
O desenvolvimento assustador do setor de transporte foi decisivo para o aprimoramento dessa compreensão e evolução das teorias da responsabilidade civil.
Vistas estas considerações, o estudo adentra nos apontamentos legais e doutrinários sobre o tratamento do tema atualmente.
3.2. Dispositivos do Código Civil Brasileiro
O Código Civil Brasileiro de 2002 (CC-02), diferentemente do Código Civil de 1916 (CC-16), traz regramento específico do contrato de transporte, preenchendo a imperdoável e injustificável lacuna do Código Beviláqua. Sobre esta, assim se manifesta o Desembargador do TJRJ Sérgio Cavalieri Filho em sua obra Programa de Responsabilidade Civil: “não obstante essa relevância econômica, social e jurídica, o contrato de transporte não mereceu sequer uma referência no Código de 1916”[4].
Intentando compreender o motivo da omissão, completa CAVALIERI:
“Pode também ter ocorrido que o legislador imaginou que a Lei de Estradas de Ferro já teria disciplinado suficientemente a questão, sem prever que outros meios de transporte haveriam de surgir, e por isso, deixou o contrato de transporte apenas com a disciplina que recebera da Lei de Estradas de Ferro”[5].
Com a tendência compiladora do novo Código Civil, foi estabelecida com maestria a normatização do contrato de transporte, tanto o de coisas quanto o de pessoas, com algumas regras gerais em sua abertura. Deste modo, o tema é tratado do art. 730 ao 756, sendo os art. 734 a 742 os disciplinadores do enfoque metodológico deste trabalho, o contrato de pessoas.
Passemos à análise do texto dos dispositivos.
3.2.1. O Tratamento da Responsabilidade
O tema da responsabilidade civil está de tal forma impregnado na disciplina dos pactos nominados do diploma civil que os três primeiros artigos do Capítulo XIV, Seção II (transporte de pessoas) com acréscimo do art. 733 das disposições gerais do mesmo capítulo se referem justamente à responsabilidade civil do transportador, suas excludentes e culpa de terceiro. Daí porque dissemos linhas atrás que atualmente não conseguimos conceber a idéia de contratos afastada da responsabilidade civil.
Iniciando a análise dos referidos dispositivos, nos deparamos com o art.733 que versa sobre o contrato de transporte cumulativo, a forma e o limite da responsabilização de cada transportador.
Vejamos a transcrição do artigo na íntegra.
“Art. 733. Nos contratos de transporte cumulativo, cada transportador se obriga a cumprir o contrato relativamente ao respectivo percurso, respondendo pelos danos nele causados a pessoas e coisas.
§ 1o O dano, resultante do atraso ou da interrupção da viagem, será determinado em razão da totalidade do percurso.
§ 2o Se houver substituição de algum dos transportadores no decorrer do percurso, a responsabilidade solidária estender-se-á ao substituto (grifos nossos)”[6].
Antes de analisarmos o dispositivo acima, faz-se mister, para esclarecimentos futuros, ter conhecimento de outro artigo que trata do contrato de transporte cumulativo, o art. 756, inserido no Capítulo XIV, Seção III do CC-02 (transporte de coisas).
Vejamos o artigo in verbis:
“Art. 756. No caso de transporte cumulativo, todos os transportadores respondem solidariamente pelo dano causado perante o remetente, ressalvada a apuração final da responsabilidade entre eles, de modo que o ressarcimento recaia, por inteiro, ou proporcionalmente, naquele ou naqueles em cujo percurso houver ocorrido o dano”[7].
Atente-se para o fato de que no primeiro dispositivo transcrito, art. 733, a responsabilidade dos transportadores de pessoas se limita ao percurso em que conduziram o transportado (neste caso, podemos nos utilizar desta expressão), pois lá está dito: “cada transportador se obriga a cumprir o contrato relativamente ao respectivo percurso, respondendo pelos danos nele causados a pessoas e coisas”.
Contudo, no segundo dispositivo trazido ao lume, o art. 756, a responsabilidade dos transportadores de coisas é solidária “pelo dano causado perante o remetente”.
Comentando a divergência de disciplina do transporte de coisas face ao de pessoas, temos o pronunciamento embasado de três civilistas da atualidade.
Sérgio Cavalieri Filho diz que
“outra diferença entre o transporte de pessoas e o de coisas tem lugar no caso de transporte cumulativo. No primeiro caso (art.733) cada transportador responde pelos danos causados aos passageiros no percurso em que operou o transporte; no segundo (art.756), todos os transportadores respondem solidariamente. A diferença deve ter por causa a possibilidade e se apurar com precisão onde ocorreu o evento no caso de transporte de passageiros, o que já não acontece, na maioria das vezes, no transporte de cargas” [8] (grifos nossos).
Já no entender de Gagliano e Pamplona:
“É interessante registrar que o caput do mencionado artigo [referência ao art.733] dá a entender que a responsabilidade civil de cada transportador limitar-se-ia ao respectivo percurso, mas é o art. 756 (aliado ao §2º transcrito) que esclarece a existência de solidariedade, o que é perfeitamente compatível com as regras assentes do Código de Defesa do Consumidor” [9].
Os três juristas fundamentam com maestria suas posições. Apesar de julgarmos que o pensamento dos últimos doutrinadores mencionados deveria ser o norte seguido pelo legislador, somos compelidos a concluir que este fez verdadeira e intencional distinção entre os limites da responsabilidade no transporte de pessoas diante do de coisas. Neste, a responsabilidade dos transportadores é solidária, enquanto naquele, é limitada ao trecho em que se deu a condução.
Por mais compreensível que seja a tentativa de se racionalizar a diferença criada, como objetivada por Sérgio Cavalieri Filho, entendemos que a justificativa é precária, já que mais razão haveria numa distinção em prol da vida humana. Destarte, que a responsabilidade dos transportadores de pessoas fosse solidária, e não o contrário. Não apenas por se tratar de valores hierarquicamente destoantes, mas devido ao fato de que a vida humana é a principal atingida pelo risco criado no contrato de transportes. Logo, nada mais justa a aplicação da teoria da imputação objetiva ao caso.
Por outro lado, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) apresenta dispositivos em que fixa a responsabilidade dos fornecedores de serviços como sendo solidária em caso de defeito, ou seja, na ocorrência de danos.
Tendo em vista que a quase totalidade das avenças de transporte de pessoas são relações consumeristas, o desastre ocasionado pela atecnia legislativa não se torna de grande monta.
A título de exemplo, citamos apenas um dos dispositivos do CDC que andaram por esse norte, dentre muitos existentes: é o art.7º, parágrafo único.
“Art. 7°. Os direitos previstos neste código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e eqüidade.
Parágrafo único. Tendo mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente pela reparação dos danos previstos nas normas de consumo”[10] (grifos nossos).
Outros dispositivos sobre o tema serão citados em momento oportuno, tópicos adiante.
Passemos à análise do art. 734 do CC-02, trazido ao lume imediatamente abaixo.
“Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade.
Parágrafo único. É lícito ao transportador exigir a declaração do valor da bagagem a fim de fixar o limite da indenização”[11].
Para melhor exegese do dispositivo transcrito o decomporemos em dois. Primeiro, teceremos considerações sobre a responsabilidade do transportador perante as pessoas, em seguida, abordaremos esta mesma responsabilidade, desta vez referente às suas obrigações com as bagagens dos passageiros.
No que concerne à primeira apreciação, o CC-02 nos diz nitidamente que o transportador responde pelos danos, aqui se entenda todos, causados às pessoas transportadas, ou mesmo àquelas que ainda não estão sendo transportadas, mas que firmaram pacto de transporte com o transportador e a referida avença já se iniciou em sua execução, salvo motivo de força maior (note-se que o dispositivo legal não fala sobre caso fortuito, culpa de terceiro, estado de necessidade etc.), sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade.
Primeiramente, saliente-se que, valendo-nos de interpretação extensiva, o transportador responde não só pelos danos causados às pessoas que estão sendo ou foram transportadas, mas também àquelas que contrataram com o aquele e a avença já se iniciou, bem como àquelas que mesmo sem ter firmado contrato de transporte sofreram danos decorrentes da referida atividade de risco ou acidente de consumo, conforme preceitua os arts. 14 e 17 do CDC.
“Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos”[12].
“Art. 17. Para os efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento”[13] (grifo nosso).
Assim, por exemplo, no transporte urbano coletivo ofertado por empresas de ônibus, quando ocorrem danos – provenientes do serviço de transporte – às pessoas que aguardam nas paradas (estações), o transportador responde objetivamente, em razão de sua atividade de risco.
O CC-02 prevê expressamente esta espécie de responsabilidade em seu art. 927:
“Art. 927. Aquele que, por ato, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”[14].
As empresas de transporte, sejam rodoviárias, ferroviárias, aéreas etc., também respondem objetivamente pelos danos causados a terceiros (o chamado acidente de consumo), não só devido aos dispositivos do CDC, mas também pelo art. 927, já que devem ser responsabilizadas pelos danos criados pela sua atividade de risco.
Ocorreram na cidade de João Pessoa – PB alguns fatos, de forma repetida, dignos de comento neste trabalho.
Houveram acidentes reiterados, produzidos por negligência de motoristas de ônibus, em manobra, quando deixavam os pontos de espera (paradas) para retornarem à pista. Na grande maioria destas paradas há abrigos pesados feitos de cimento. Assim, ao manobrar, a parte traseira dos veículos derrubava os abrigos ocasionando a morte trágica de pessoas.
Sabe-se que a responsabilidade do transportador neste caso é inafastável, porém, questiona-se se o município, responsável pela criação dos abrigos, não poderia ser acionado como parte processual no intuito de ser responsabilizado conjuntamente com a empresa de transportes.
Para obter a resposta é preciso trazer algumas noções sobre as teorias explicativas do nexo de causalidade.
Sobre a teoria da equivalência das condições elaborada pelo jurista alemão VON BURI, dizem GAGLIANO e PAMPLONA:
“CAIO MÁRIO, citando o magistral civilista belga DE PAGE, observa que esta teoria, ‘em sua essência, sustenta que, em havendo culpa, todas as ‘condições’ de um dano são ‘equivalentes’, isto é, todos os elementos que ‘de uma certa maneira concorreram para a sua realização, consideram-se como ‘causas’, sem a necessidade de determinar, no encadeamento dos fatos que antecederam o evento danoso, qual deles pode ser apontado como sendo o que de modo imediato provocou a efetivação do prejuízo”[15].
Assim, dizem GAGLIANO e PAMPLONA que, “segundo a fórmula de eliminação hipotética de Thyren, causa seria todo o antecedente que, se eliminado, faria com que o resultado desaparecesse”[16].
Destarte, no caso em tela, seria co-responsável pelo ato não apenas o município que construiu os abrigos, mas a empresa que fabricou o cimento, a que fabricou o ferro etc.
Percebe-se, sem muito esforço, que esta teoria não pode ser aplicada, sendo refutada inclusive pelo Direito Penal, no entanto, há resquícios da mesma neste campo do Direito.
É absurdo imputar-se o dano às empresas de cimento e às de ferro porque a partir de sua atividade não surgiu qualquer risco que guarda relação sequer indireta com o ato danoso. Há, desta forma, absoluta quebra do nexo de causalidade, pela impossibilidade de se aplicar até mesmo a teoria da responsabilidade objetiva.
Já com relação ao Município, no nosso entender, devemos analisar de duas formas. Quando este criou os abrigos o evento danoso que se passou era absolutamente imprevisível, tratando-se, pois, de fortuito externo (veremos este conceito adiante), não podendo ser responsabilizado por estar amparado por uma excludente de responsabilidade civil que rompe o liame causal.
No entanto, a partir do momento em que os fatos ocorreram e se sucederam com frequência sem que o ente público procedesse à substituição dos referidos abrigos por outros mais seguros, entendemos haver culpa in omittendo do referido órgão público, podendo inclusive ser responsabilizado.
A título de curiosidade, o Município, após os lamentáveis fatos substituiu significativo número de abrigos por outros mais seguros e estáveis.
Sobre a teoria da causalidade adequada, GAGLIANO e PAMPLONA nos dizem que
“não se poderia considerar causa ‘toda e qualquer condição que haja contribuído para a efetivação do resultado’, conforme sustentado pela teoria da equivalência, mas sim, segundo um juízo de probabilidade, somente o antecedente abstratamente idôneo a produção do efeito danoso, ou, como quer CAVALIERI, ‘causa para ela é o antecedente não só necessário, mas, também adequado à produção do resultado. Logo, nem todas as condições serão causa, mas apenas aquela que for mais apropriada para produzir o evento” [17].
As considerações tecidas pela teoria da causalidade adequada são relevantes e corrigem alguns erros indesejáveis da aplicação da teoria da equivalência das condições. No entanto, faz-se mister dizer que não só esta, mas também aquela teoria apresenta imperfeições.
Utilizando-nos do exemplo dado dos acidentes ocasionados por ônibus, se aplicássemos a teoria da causalidade adequada strictu sensu, incorreríamos no erro de não podermos responsabilizar o Município em momento algum pela não substituição dos abrigos, mesmo sendo ele sabedor dos potenciais danos que os abrigos de cimento poderiam ocasionar. Ora, não sendo a construção dos abrigos de cimento antecedente idôneo à produção do efeito danoso, tampouco adequado à realização deste, o ente público jamais poderia ser responsabilizado mesmo tendo agido com culpa in non faciendo.
Assim é importante frisar que estas teorias são complementares, não se excluindo, mas se corrigindo mutuamente em suas incoerências.
Como complemento, colacionamos a teoria da causalidade direta ou imediata, defendida e desenvolvida no Brasil por Agostinho Alvim.
Ainda segundo GAGLIANO e PAMPLONA, em seu Novo Curso de Direito Civil, Volume III que trata da Responsabilidade Civil,
“causa, para esta teoria, seria apenas o antecedente fático que, ligado por um vínculo de necessariedade ao resultado danoso, determinasse este último como uma conseqüência sua, direta e imediata”[18].
O art. 403 do CC-02 parece ter albergado a teoria da causalidade direta e imediata, ao vaticinar que “ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual”[19].
Aplicando ao nosso exemplo, sob o ponto de vista desta teoria, entendemos que apenas a empresa de transportes poderia ser responsabilizada pelo evento dano, posto que somente o ato do preposto ao abalroar no abrigo se configura como antecedente capaz de produzir como conseqüência sua, direta e imediata a morte dos passageiros que estavam sob o abrigo.
Passemos, agora, a análise da excludente de responsabilidade prevista pelo art. 734 do CC-02: a força Maior.
3.2.2. A Força Maior como excludente única da Responsabilidade Prevista no art.734
O art.734 afirma que o transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, não admitindo qualquer cláusula que exonere a responsabilidade daquele.
Antes de quaisquer considerações, importantes são as observações de GONÇALVES sobre este dispositivo. Eloqüentes por si mesmas, suas palavras espancarão a maior parte das possíveis dúvidas.
Segundo o referido autor,
“considerando que, em outros dispositivos, o Código refere-se conjuntamente ao caso fortuito e à força maior, pode-se inferir, da leitura do dispositivo supratranscrito, que o fato de ter sido mencionada somente a força maior revela a intenção do legislador em considerar excludentes da responsabilidade do transportador somente os acontecimentos naturais, como raio, inundação, terremoto etc., e não os fatos decorrentes da conduta humana, alheios à vontade das partes, como greve, motim, guerra etc. Mesmo porque a jurisprudência de há muito, tem feito, com base na lição de Agostinho Alvim, a distinção entre ‘fortuito interno’ (ligado à pessoa, ou à coisa, ou à empresa do agente) e ‘fortuito externo’ (força maior, ou Act of God, dos ingleses). Somente o fortuito externo, isto é, a causa ligada à natureza, estranha à pessoa do agente e a máquina, exclui a responsabilidade deste em acidente de veículos. O fortuito interno, não” [20] (grifos nossos).
Observe-se que até o aparecimento da doutrina do fortuito externo e interno, a doutrina não era uníssona na conceituação de caso fortuito ou força maior. Entretanto, o CC-02 não traz esse novo pensamento devido ao fato de sua elaboração ter se dado de forma prolongada e continuada não se adaptando à excelente e nítida doutrina criada por Agostinho Alvim. Destarte, a força maior a que o Código alude é a semelhante ao fortuito externo, inevitável.
Apesar de o dispositivo em comento nada mencionar, a doutrina admite que a culpa exclusiva da vítima também exclua o dever de indenizar.
Divergências aparecem quando se discute a responsabilidade do transportador em caso de culpa concorrente da vítima.
O art. 945 do CC-02 diz que “se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano”[21], dando a entender que a culpa concorrente da vítima diminui o quantum a lhe ser pago a título de reparação.
Entretanto, o CDC tem dispositivo específico sobre o mesmo tema. Trata-se do art. 14, §3º, II, que passamos a transcrever em seguida.
“Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.
(...) § 3° O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar: I - que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste; II - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro”[22] (grifos nosso).
Do dispositivo consumerista, é possível depreender que a culpa concorrente do consumidor não exclui nem atenua o quantum que deve ser pago a titulo de indenização ao lesado. Tampouco há qualquer dispositivo no CDC assemelhado ao art.945 civilista.
Quando se passa à aplicação deste artigo aos casos concretos, dificuldades e divergências pretorianas aparecem, dignas de comentários, com as quais doravante nos ocuparemos. Contudo, é preciso que antes, teçamos alguns comentários sobre a famigerada cláusula de incolumidade.
3.3. Cláusula de incolumidade
A Cláusula de incolumidade diz respeito à obrigação do transportador de levar e deixar o passageiro em seu destino são e salvo.
O verbete incolumidade é auto-explicativo, quer dizer segurança, isenção de perigo, salubridade.
Este dever está intrínseco em todo e qualquer contrato de transporte. A lei não poderia furtar-se a garantir o seu deslocamento sem total segurança, isso porque o contrato de transporte é um pacto de resultado, e não de meio.
Fazendo uso das palavras de Sérgio Cavalieri Filho,
“Sem dúvidas, a característica mais importante do contrato de transporte é a cláusula de incolumidade que nele está implícita. A obrigação do transportador não é apenas de meio, e não só de resultado, mas também de garantia. Não se obriga ele a tomar as providências e cautelas necessárias para o bom sucesso do transporte; obriga-se pelo fim, isto é, garante o bom êxito. Tem o transportador o dever de zelar pela incolumidade do passageiro na extensão necessária a lhe evitar qualquer acontecimento funesto, como assinalou Vivante, citado por Aguiar Dias. O objeto da obrigação de custódia, prossegue o Mestre, é assegurar o credor contra os riscos contratuais, isto é, pôr a cargo do devedor a álea do contrato, salvo, na maioria dos casos, a força maior (José Aguiar Dias, ob. cit., v.I/230)”[23].
Há entendimento pretoriano reconhecendo também esta cláusula, como não poderia ser diferente. Vejamos:
“A responsabilidade da empresa transportadora de passageiros é de natureza contratual, com cláusula implícita de garantia, dada a obrigação de levá-los incólumes a seu destino, eximindo-se das perdas e danos apenas quando configurado o caso fortuito ou a força maior” (RT 491/68).[24]
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. TRANSPORTE DE PESSOAS. TOMBAMENTO DE ÔNIBUS. CLAUSULA DE INCOLUMIDADE. DANO MORAL "IN RE IPSA". RESTABELECIMENTO DA SENTENÇA. A ALEGAÇÃO DE FATO EXCLUSIVO DE TERCEIRO AFASTADA PELO ACÓRDÃO RECORRIDO, SEM INTERPOSIÇÃO DE RECURSO PELO AGRAVANTE. MATÉRIA PRECLUSA NOVAMENTE VERTIDA NO AGRAVO INTERNO. SÚMULA 07/STJ. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. (AgInt no REsp 1459856/MA, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 27/06/2017, DJe 03/08/2017).
Neste sentido, examinaremos algumas situações e decisões jurisprudenciais para observarmos o tratamento desta cláusula.
3.4. Assaltos em Coletivos, Interestaduais e Intermunicipais
O tema da responsabilidade civil do transportador pelos assaltos em transporte coletivo urbano, interestadual e intermunicipal tem dividido a doutrina e a jurisprudência pátria no que diz respeito ao caso ser de força maior (fortuito externo) ou previsível e evitável (fortuito interno).
Apesar de se posicionar no sentido de reconhecer os assaltos como força maior, e, portanto, excludentes da responsabilidade do transportador, GONÇALVES aduz que
“A constante incidência de assaltos a ônibus em certas regiões do País, porém, como São Paulo, Rio de Janeiro, Baixada Fluminense e outras, sem que as transportadoras tomem qualquer providência prática para inibi-los, está a justificar a co-responsabilidade dessas empresas, como recomenda Luiz A. Thompson Flores Lenz em artigo publicado na RT, 643:51” [25] (grifos nossos).
O pensamento do eminente jurista se coaduna com a ideia de que acontecimentos reiterados provenientes da conduta humana podem deixar de ser vistos como imprevisíveis.
A despeito da coerência do pensamento acima, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), incumbido de uniformizar a interpretação do direito infraconstitucional, tem se mostrado refratária a responsabilização nos casos de assaltos relacionados ao contrato de transporte, seja de coisas quanto de pessoas. Vejamos:
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. TRANSPORTE DE MERCADORIAS. ROUBO DURANTE O ARMAZENAMENTO EM GALPÃO DA TRANSPORTADORA. FORTUITO EXTERNO. EXCLUDENTE DE RESPONSABILIDADE. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. 1. De acordo com a jurisprudência desta Corte, "não obstante a habitualidade da ocorrência de assaltos em determinadas linhas, é de ser afastada a responsabilidade da empresa transportadora por se tratar de fato inteiramente estranho à atividade de transporte (fortuito externo), acobertado pelo caráter da inevitabilidade" (AgRg no REsp 823.101/RJ, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva). 2. No caso, a instância de origem fundamentou-se na frequência dos roubos de cargas e na inexistência de medidas preventivas, não tendo sido apontada nenhuma conduta objetiva da transportadora que tivesse facilitado a ação dos criminosos. 3. Agravo interno a que se nega provimento. (AgInt no AREsp 1017794/SP, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 03/08/2017, DJe 16/08/2017).
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. OMISSÃO. SUPRIMENTO. CARÁTER INFRINGENTE. POSSIBILIDADE. EXCEPCIONALIDADE. INTEMPESTIVIDADE AFASTADA. ASSALTO À MÃO ARMADA. COLETIVO. CASO FORTUITO. RESPONSABILIDADE DA TRANSPORTADORA AFASTADA. 1. Admite-se, excepcionalmente, que os embargos, ordinariamente integrativos, tenham efeitos infringentes desde que constatada a presença de um dos vícios do artigo 535 do Código de Processo Civil/1973, cuja correção importe alterar a conclusão do julgado. 2. Intempestividade do recurso superada com a efetiva análise do recurso especial. 3. A jurisprudência consolidada neste Tribunal Superior é no sentido de que o assalto à mão armada dentro de coletivo constitui fortuito a afastar a responsabilidade da empresa transportadora pelo evento danoso daí decorrente para o passageiro. 4. Embargos de declaração acolhidos com efeitos infringentes para superar a intempestividade e conhecer do agravo para dar provimento ao recurso especial. (EDcl nos EDcl no AgRg no AREsp 418.176/PE, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/05/2016, DJe 01/06/2016).
DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRANSPORTADOR. ROUBO EM INTERIOR DO TRANSPORTE PÚBLICO. OCORRÊNCIA DE FORTUITO EXTERNO. DECISÃO MANTIDA. 1. A responsabilidade do transportador é objetiva, nos termos do art. 750 do CC/2002, podendo ser elidida tão somente pela ocorrência de força maior ou fortuito externo, isto é, estranho à organização da atividade. 2. Consoante jurisprudência pacificada na Segunda Seção desta Corte, o roubo com arma de fogo ocorrido no interior do transporte público, por ser fato inteiramente alheio ao serviço prestado, constitui causa excludente da responsabilidade da empresa transportadora. 3. Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg no REsp 1551484/SP, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 18/02/2016, DJe 29/02/2016).
Dos julgados acima, percebe-se que, não obstante a habitualidade com que os assaltos ocorrem no interior dos ônibus e de qualquer forma relacionado ao transporte – seja de cargas, seja de passageiros – o STJ exige prova de que o transportador tenha facilitado a ação dos criminosos.
Se houvesse provas da facilitação da ação dos criminosos, tal fato ensejaria a responsabilidade subjetiva, e não objetiva. A jurisprudência, por via transversa, nega a incidência da responsabilidade objetiva ao caso.
Na esteira do pensamento de GONÇALVES, acima transcrito, entendemos que os assaltos em coletivos, interestaduais e intermunicipais são previsíveis, quando não, também evitáveis, nos casos em que se tornam habituais.
A orientação aqui exposta, reconheça-se, é tormentosa quando referente ao transporte coletivo urbano, no qual o fluxo de pessoas é, no modelo atual, incontrolável, e uma fiscalização mais rigorosa com detectores de metais sobrelevaria a tarifa. Contudo, com relação ao transporte interestadual e intermunicipal não há qualquer óbice em se implantar um controle mais rigoroso, já que o fluxo de passageiros é menor, os pontos de embarque e desembarque são equipados e fixos e, ademais, há órgãos públicos a quem compete concorrentemente este ofício fiscalizador, como o Departamento de Estradas e Rodagem (DER) e a Polícia Rodoviária Federal.
O que ocorre na prática é um total descaso na fiscalização de passageiros e bagagens nas estações rodoviárias em todo o país, quando a malha viária é o principal meio utilizado para deslocamento no Brasil, seja de coisas ou de pessoas.
Desta feita, em existindo assaltos a ônibus interestaduais e intermunicipais provenientes de passageiros que embarcaram nas estações rodoviárias armados, qual é a justificativa para a exclusão da responsabilidade do transportador?
O que gera o incremento do risco de assaltos a ônibus é exatamente o aglomerado de pessoas que leva à arrecadação de considerável soma de dinheiro por parte do transportador. Assim, é sua atividade econômica que gera o aumento do risco (teoria do risco criado).
Ainda no que se refere aos transportes coletivos urbanos, a justificativa doutrinária e pretoriana é que o poder-dever de polícia compete ao Estado, afirmando não ser possível estabelecer-se mecanismo de segurança privada no interior dos veículos. Trata-se de uma grande falácia com a finalidade de continuar se omitindo a não respeitar a cláusula de incolumidade reconhecida por todos.
Para se ver isento de responsabilidade, deveria o transportador demonstrar que, de alguma forma, tem implantado medidas aptas a diminuir o risco de ocorrência de assaltos. Porém, simplesmente alegar fortuito externo é se beneficiar com uma cegueira deliberada.
3.5. Contrato acessório de Transporte de Bagagens
Nos contratos de transporte de pessoas, está implícito o transporte de bagagens, pois este se torna, neste caso, acessório daquele. Contudo, todas as disposições do CC-02 sobre o transporte de coisas são aplicáveis às bagagens.
Concorde com essa ideia, veja o que diz a professora Maria Helena Diniz em seu Curso de Direito Civil, v. III (Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais) sobre o tema:
“O transporte de bagagem é acessório do contrato de transporte de pessoa. O viajante, ao comprar a passagem, adquire o direito de transportar consigo a sua bagagem. Ao mesmo tempo, o transportador assume, tacitamente, a obrigação de efetuar esse transporte. Se houver excesso de peso ou volume, poderá ser cobrado um acréscimo” [26].
Remetendo-nos então às intrincadas questões da responsabilidade pela bagagem do passageiro, afirmamos, de antemão, que a cláusula de incolumidade também se aplica à mesma.
Logo, em havendo danos à bagagem é direito do passageiro ser totalmente indenizado por aqueles.
Diz o art. 944 do CC-02 que:
“Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.
Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização”[27] (grifo nosso).
O problema surge quando trazemos à tona dispositivo do Decreto n.º 68.961/71, que regulamenta o transporte coletivo de passageiros de caráter interestadual e internacional por estradas de rodagem, referente ao tema das bagagens.
Vejamo-lo.
“Art. 33 – No preço da passagem compreende-se, a título de franquia, o transporte obrigatório e gratuito de um volume no bagageiro e de outro no porta-embrulhos interno, observados os seguintes limites:
I–peso: a) no bagageiro – 25 (cinte e cinco) quilogramas;
b) no porta-embrulhos interno – 5 (cinco) quilogramas. II – valor; 2 (dois) salários mínimos, considerado o de mais elevado valor no pais. § 1º - As transportadoras só serão responsáveis pelo extravio dos volumes transportados nos bagageiros, sob comprovante e até o limite do valor fixado no item II deste artigo”[28].
Apesar de estar sendo aplicado este último dispositivo transcrito em detrimento do art.944, CC-02, devido ao fato de que algumas vezes as nossas Cortes passam por cima de princípios da hermenêutica jurídica, e neste caso de eficácia da lei no tempo, posto que, não é difícil lembrar que a lei posterior, de mesma hierarquia, revoga a anterior quando dispõe totalmente sobre o objeto da antiga. É o que acontece com o caso em tela. O CC-02 revogou totalmente o art. 33 do Decreto n.º 68.961/71, entretanto, na prática, ele ainda tem sido aplicado.
Não se trata de afastar o principio da especialidade, pois ambos os dispositivos tratam do transporte de bagagem.
Frise-se, que esta aplicação errônea não se dá em todas as nossas Cortes. Vejamos a decisão seguinte:
“Transporte coletivo de passageiros – Via rodoviária – Extravio de bagagem – Indenização – Responsabilidade da empresa, vez que se obriga necessariamente a garantir a segurança do bem – Nulidade, portanto da cláusula que coloca o consumidor em desvantagem exagerada – Verba devida – Inteligência do art. 51 do Código de Defesa do Consumidor”[29] (RT, 697: 140) (grifos nossos).
Destarte, qualquer cláusula contratual em sentido contrário é passível de anulação.
Nesta esteira, entendemos que a responsabilidade pelo extravio de bagagens não se limita aos valores previstos no Decreto n.º 68.961/71.
4. Conclusão
O contrato de transporte se apresenta como um dos antecedentes históricos da teoria da responsabilidade objetiva baseada no risco e que atualmente se encontra positivada no art. 927, parágrafo único do Código Civil brasileiro vigente.
No Brasil, o transporte rodoviário é a principal forma de transporte urbano, sendo responsável por cerca de 93% dos deslocamentos nas cidades. Este incremento no uso dos meios de transporte também trouxe consequências indesejáveis, como o número de acidentes automobilísticos, sendo estes uma das principais causas de óbito no Brasil. Tal fato jurídico tem efeitos nos campos do Direito Penal (em vista dos crimes de trânsito) e no Direito Civil, em razão da importância da responsabilidade civil decorrente dos contratos de transporte.
Positivado pela primeira vez no Código Civil de 2002, entre os artigos 730 a 756, o referido diploma legal traz o transporte como uma obrigação de resultado (ou garantia) para alguns autores, o que torna objetiva a responsabilidade decorrente da violação da cláusula de incolumidade.
Neste passo, o transporte de pessoas, por lidar com a garantia da vida e da incolumidade física dos passageiros ganha especial destaque na ordem jurídica, por força do valor do bem jurídico transportado.
Na sociedade brasileira atual verificam-se inúmeros casos de assaltos no interior dos ônibus, sejam coletivos urbanos, intermunicipais ou interestaduais rodoviários. A partir deste fato, surge a necessidade de investigar a natureza da responsabilidade do transportador e as excludentes do nexo causal.
O Superior Tribunal de Justiça pacificou a sua jurisprudência, firmando-a no sentido da completa irresponsabilidade do transportador por assaltos no interior dos ônibus, por entender se tratar de fortuito externo, caso não haja provas concretas de que o transportador tenha facilitado o cometimento do ato ilícito.
Através da leitura analógica dos dispositivos do Código de Defesa do Consumidor, da figura do consumidor por equiparação, do acidente de consumo e da inexistência de quebra do nexo causal nos casos de culpa concorrente, somados às lições doutrinárias da obrigação de resultado e de incolumidade física ínsitos aos contratos de transporte, entendemos equivocada a orientação jurisprudencial quando os atos ilícitos se tornam reiterados e previsíveis e o transportador não demonstra a tomada de medidas concretas aptas a diminuir o risco de assaltos.
Por fim, abordamos o contrato de transporte de bagagem quando acessório ao contrato de transporte de pessoas e demonstramos o equívoco na limitação da responsabilidade, no que concerne à indenização por danos materiais, entendendo pela revogação do Decreto n.º 68.961/71 pelas normas do Código Civil de 2002.
Referências
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[1] Cavalieri Filho, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 6ª ed. ver. aum. e atual. 2ª tiragem. – São Paulo: Malheiros, 2006. Pg. 312.
[2] Aguiar Dias, José de. Da Responsabilidade Civil, 9.ed., Rio de Janeiro: Forense, 1994, v.I, p.184.
[3] Gagliano, Pablo Stolze & Pamplona, Rodolfo. Novo curso de direito civil, volume III: responsabilidade civil. — 6 ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2008. Pg.97.
[4] Id. Ibid., p.313.
[5] Id., Ibid., p. 313.
[6] BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002.
[7] BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002.
[8] Id., Ibid., p. 354.
[9] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA, Rodolfo. Novo curso de direito civil, volume IV: Contratos. — 6ª ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2008. p.423
[10] BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Código de Defesa do Consumidor. In: Presidência da República. Legislação Republicana Brasileira. Brasília, 1990. Disponível em: . Acesso em 01 jun. 2009
[11] BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002.
[12] BRASIL. Lei nº 8.078 de 11 de setembro de 1990.
[13] BRASIL. Lei nº 8.078 de 11 de setembro de 1990.
[14] BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002.
[15] Id. Novo curso de direito civil, volume III: Responsabilidade Civil.— 6 ed. rev. e atual. – São Paulo : Saraiva, 2008. p.86.
[16] Id., Ibid., p.87.
[17] Id., Ibid., p.88.
[18] Id., Ibid., p. 90.
[19] BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002.
[20] Gonçalves, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. 8ª ed. Saraiva, 2003. p. 281-282.
[21] BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002.
[22] BRASIL. Lei nº 8.078. ibidem.
[23] Id., Ibid., pg. 316.
[24] Em STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil. Responsabilidade Civil e sua interpretação doutrinária e jurisprudencial. 5ª ed. rev. atual.e ampl. – São Paulo, Revista dos Tribunais, 2001. pg. 201.
[25] Id., Ibid., p.284
[26] Diniz, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais, v.III. 21ª ed. rev. e atual. de acordo com o novo Código Civil. – São Paulo : Saraiva, 2005. Pg. 298.
[27] BRASIL. Lei nº 10.406. ibidem.
[28] BRASIL. Decreto nº 68.961, de 20 de julho de 1971. In: Portal Milbus, 2009. Disponível em: < http://www.milbus.com.br/legislacao/decreto9.asp>. Acesso em 01 jun. 2009.
[29] REVISTA DOS TRIBUNAIS. Jurisprudência RT. Disponível em: . Acesso em: 01 jun. 2009. RT, 197:140.
Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Especialista em Direito Processual Civil pelo IBDP e Universidade Anhanguera - SP. Advogado licenciado. Assessor Jurídico do 3° Ofício da Procuradoria Regional do Trabalho da 6ª Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Hantony Cassio Ferreira da. Responsabilidade Civil do Transportador de Pessoas em âmbito rodoviário Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 jun 2018, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51805/responsabilidade-civil-do-transportador-de-pessoas-em-ambito-rodoviario. Acesso em: 23 dez 2024.
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