ANDRÉ DE PAULA VIANA
(Orientador)[1]
RESUMO: O presente artigo visa analisar, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, o reconhecimento da possibilidade de alteração de registro civil de pessoa transexual pelo ordenamento brasileiro, com modificação de nome e sexo, independentemente da realização de cirurgia de transgenitalização, preservando a sua intimidade, dignidade e liberdade. Para tal, utilizou de princípios fundamentais, entendimento doutrinário, jurisprudencial, direito codificado e abordagem acerca da decisão jurisprudencial do STF no julgamento da (ADI) 4275.
PALAVRAS-CHAVE: Transgênero. Retificação. Registro Cível. Dignidade Humana.
ABSTRACT: The present article aims at analyzing, in the light of the principle of the dignity of the human person, the recognition of the possibility of altering the civil registry of a transsexual person by Brazilian order, with a change of name and gender, regardless of the performance of transgenitalization surgery, intimacy, dignity and freedom. For that, it used fundamental principles, doctrinal understanding, jurisprudence, codified law and approach on the jurisprudential decision of the STF in the judgment of (ADI) 4275.
KEYWORDS: Transgender. Rectification. Civil Registry. Human Dignity.
Este trabalho de conclusão de concurso objetiva a exposição e análise do reconhecimento pelo ordenamento jurídico da possibilidade de alteração de registro civil de pessoa transexual, com modificação de nome e sexo, independentemente da realização de cirurgia de mudança de sexo.
O direito dos transexuais à retificação do registro não pode ser condicionado à realização de cirurgia, que pode inclusive ser inviável do ponto de vista financeiro ou por impedimento médico.
As pessoas caracterizadas como transexuais, via de regra, não aceitam o seu gênero, vivendo em desconexão psíquico-emocional com o seu sexo biológico e, de um modo geral, buscando formas de adequação a seu sexo psicológico.
É fundamental tratar-se ao nome enquanto direito da personalidade, direito fundamental e direito humano.
Seguindo essa linha, o Supremo Tribunal Federal, em recente decisão, definiu que deve ser promovida a modificação de nome e sexo, independentemente da realização de cirurgia de transgenitalização. O julgado tem como objetivo impedir constrangimentos sociais e psicológicos, bem assim efetivar a liberdade individual, possibilitando uma vida digna e direito à personalidade daqueles que não se reconhecem com o sexo biológico.
O sexo biológico de um ser humano é baseado na combinação de seus cromossomos com sua genitália, ou seja, trata-se dos termos biológicos que definem o ser humano, sendo eles; macho, fêmea ou intersexual. Nesse sentido, quanto ao conceito do Sexo Biológico Arán (2006) nos esclarece que são os órgãos reprodutivos, os quais são programados e fixados ao corpo orgânico, conhecidos por pênis, vagina ou ambos.
Em outras palavras, o sexo equivale às características físicas com que o indivíduo nasce, características as quais não definem a identidade de gênero.
Identidade de gênero se refere ao gênero em que a pessoa se identifica, mas pode também ser usado para referir-se ao gênero que certa pessoa atribui ao indivíduo tendo como base o que tal pessoa reconhece como indicações de papel social de gênero.
Assim como quase tudo que nos caracteriza, nosso gênero é construído pelas experiências que temos na vida, com quem mantemos contato, em que condições vivemos, em que cultura estamos, experiências que passamos, entre diversas outras coisas. Por isso dizemos que o gênero (ser “mulher”/”homem”) é uma construção social e não uma genitália. Uma parte dessa construção social de gênero é a construção dos papéis de gênero.
Seguindo essa linha de pensamento, nosso gênero estaria ligado ao nosso sexo biológico, ou seja, como se nosso sexo biológico estivesse diretamente ligado à nossa opção sexual.
Na formação da identidade de gênero existe a influência de inúmeros fatores (biológicos, sentimentais, culturais etc.), que, durante um tempo e de forma integrada, contribuirão para sua formação. O indivíduo não nasce com uma identidade de gênero pré-concebida.
Segundo Raul Choeri (2004, p.53):
O gênero é uma identidade socialmente construída, à qual os indivíduos se conformam em maior ou menor grau. O gênero, embora ligado ao sexo, não lhe é idêntico, mas construído socialmente, a partir das diferenças percebidas entre os sexos e de comportamentos coletivamente determinados, engendrados e reproduzidos no interior das instituições sociais, como a Família, a Escola e a Igreja. É também o primeiro modo de dar significado às relações de poder (CHOERI, R. C. S., O conceito de identidade e a redesignação sexual, p. 53).
Nesse sentido, Adriano de Cupis (2004, p.179) aduz que:
O indivíduo como unidade da vida social e jurídica, tem necessidade de afirmar a própria individualidade, distinguindo-se dos outros indivíduos, e, por consequência, ser conhecido por que é na realidade. O bem que satisfaz esta necessidade é o da identidade, o qual consiste, precisamente, no distinguir-se das outras pessoas nas relações sociais. Entre os meios através dos quais pode realizar-se o referido bem, tem lugar proeminente o nome, sinal verbal que identifica imediatamente, e com clareza, a pessoa a quem se refere. Por meio do nome, o indivíduo é designado na língua que é comum aos outros, e a sua identificação é possível mesmo na sua ausência
Não nascemos com a noção de sermos homem ou mulher, mas temos essa identidade formada ao longo do tempo. O papel de gênero é a exteriorização da identidade de gênero. Sua performance socialmente esperada pode diferenciar com o tempo e com as diversas culturas.
No caso das pessoas transexuais a identidade de gênero não corresponde ao sexo biológico.
Desta forma, o homem, com os órgãos sexuais masculinos, sente-se uma mulher no corpo de um homem e a mulher, com os órgãos sexuais femininos, sente-se um homem no corpo de uma mulher.
Esta inconformidade causa um conflito interno, pois o seu físico difere da sua identidade de gênero.
O transexual não sente qualquer problema quanto à sua sexualidade, o confronto apresentado pelo transexual diz respeito a sua identidade, pois há uma divergência entre seu corpo e a imagem que tem de si. O problema enfrentado pelo transexual é o de mostrar quem realmente é, existe uma dificuldade em exteriorizar a sua verdadeira identidade.
Segundo Maria Helena Diniz: “o transexual é portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência a automutilação ou autoextermínio”.
Sendo assim, a pessoal transexual pode ansiar por uma mudança de sexo e procurar pela cirurgia sexual (redesignação sexual), ou algum outro meio que minimize as intimidantes angústias do transexual, tais como; terapia cirúrgica, hormonal, psicossocial ou psicoterapeuta, agindo como portal para a sua inclusão social; sendo a aceitação e identificação de si o início da sua jornada com a retomada de sua estima.
A palavra nome deriva do latim nomen, do verbo noscere ou gnoscere (conhecer ou ser conhecido).
O nome caracteriza o indivíduo na família e na sociedade e o diferencia, ao lado de outros elementos de individualização, dos demais membros do grupo.
Toda pessoa natural dotada de personalidade tem direito a ter um nome que conta no registro de nascimento, de acordo com o Art. 16º do Código Civil:
Art. 16. Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome.
De Plácido e Silva, fazendo referência ao nome civil, o conceitua como "o sinal de identidade, instituído pela sociedade, no interesse comum, a ser adotado obrigatoriamente pela pessoa" (1993, p.245).
Carlos Roberto Gonçalves (2003, p. 51) o define como a "designação pela qual a pessoa identifica-se no seio da família e da sociedade".
Constitui o nome uma necessidade elementar de identificação e, nesse sentido, leciona o ilustre Spencer Vampré (1935, p.38), o primeiro grande estudioso do nome civil no Brasil: "Quando pronunciamos, ou ouvimos um nome, transmitimos ou recebemos, um conjunto de sons, que desperta nosso espírito, e no de outrem, a ideia da pessoa indicada, com seus atributos físicos, morais, jurídicos, econômicos, etc. Por isso, é lícito afirmar que constitui o nome a mais simples, a mais geral e a mais prática forma de identificação".
O nome social é o nome pelo qual as pessoas auto classificadas trans / homossexuais preferem ser chamadas cotidianamente, refletindo sua expressão de gênero, em discordância ao seu nome de registro civil, colocado em consonância com o gênero ou/e o sexo.
O nome social pode ser definido como um nome civil que não aderiu à personalidade da pessoa natural, portanto é o prenome que é utilizado publicamente distinto do nome civil de quem o utiliza.
José Roberto Neves Amorim relata que, catalogado entre os direitos da personalidade, o nome é inerente à própria pessoa que, indidualizando-a em suas ações. O ordenamento jurídico tutela a identidade pessoal, protegendo-a de possíveis danos morais e materiais. A importância do nome é aumentada conforme a sua reputação e distinção diante da sociedade.
Da possibilidade de mudança de nome civil em razão da Lei nº 6.015/73
Dispõe o art. 57 da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73) que “A alteração posterior de nome, somente por exceção e motivadamente, após audiência do Ministério Público, será permitida por sentença do juiz a que estiver sujeito o registro, arquivando-se o mandado e publicando-se a alteração pela imprensa, ressalvada a hipótese do art. 110 desta Lei. ” (Grifo nosso).
O prenome, popularmente conhecido por nome, é, via de regra, imutável ou definitivo, à luz do disposto no art. 58 do referido Diploma legal, porém, a própria norma traz exceção a esta regra, aduzindo que: “O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios. ” (Grifo nosso).
A mudança de prenome é permitida, quando coloque a pessoa em situação vexatória, ridícula ou depreciativa, situação a qual, nem poderia ser registrada, uma vez que os oficiais de registro civil têm o dever, por lei de impedir este tipo de prática (Art. 55, parágrafo único da Lei de Registros Públicos).
Em caso de pessoas que possuem nome que gere grave constrangimento a sua honra a ponto de ferir sua dignidade, perfeitamente possível o requerimento judicial para sua mudança.
Convém ressaltar que a alteração apenas será aceitável caso não traga prejuízo a terceiros e, igualmente, não pode ser utilizada para que seu titular desvie de suas responsabilidades.
Por suma, cito outras possibilidades legais para que a pessoa física realize a alteração judicial de seu nome:
Erro gráfico no momento do registro;
Exposição da pessoa ao ridículo;
Adoção ou reconhecimento de filhos fora do casamento;
Casamento, separação, divórcio ou união estável;
Adição de apelido público notório;
Proteção de testemunhas e vítimas;
Estrangeiros imigrantes;
Mudança de sexo. (Grifo nosso)
Assim, certo que a alteração do nome civil da pessoa humana é permitida no Brasil. No entanto, deve ser requerida judicialmente e apenas nos casos expressamente previstos na Lei de Registros Públicos e, frise-se, sempre sem que haja prejuízo a terceiros e, ainda, desde que não possibilite que a pessoa se esquive de suas responsabilidades legais.
Tal possibilidade decorre não só da exceção prevista nos dispositivos legais apontados, mas também em homenagem ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, previsto no art. 1º, III da Constituição da República.
Do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
O direito ao nome está amparado no princípio da dignidade da pessoa humana, considerado como elemento estruturante do Estado Democrático de Direito, e segundo o qual todo ser humano tem o direito de ser respeitado como ser individual.
Nos termos da Constituição da República:
"Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...]
III - a dignidade da pessoa humana; [...]
Art. 3º - Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: [...]
IV - promover o bem estar de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idades e quaisquer outras formas de discriminação. [...]
Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à propriedade, nos termos seguintes: [...]
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, [...]".
Ingo Wolfgang Sarlet disserta sobre este princípio:
Até que ponto a dignidade não está acima das especificidades culturais, que, muitas vezes, justificam atos que, para a maior parte da humanidade são considerados atentatórios à dignidade da pessoa humana, mas que, em certos quadrantes, são tidos por legítimos, encontrando-se profundamente enraizados na prática social e jurídica de determinadas comunidades. Em verdades, ainda que se pudesse ter o conceito de dignidade como universal, isto é, comum a todas as pessoas em todos os lugares, não haveria como evitar uma disparidade e até mesmo conflitualidade sempre que se tivesse de avaliar se uma determinada conduta é, ou não, ofensiva à dignidade. (SARLET, 2015, p. 55-56).
Mesmo diante do reconhecimento das divergências universais sobre o tema, Sarlet (2015) procura uma conceituação que possa se adequar aos diversos olhares acerca do princípio, dizendo que a Dignidade da Pessoa Humana é:
A qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais
que asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante de desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. (SARLET, 2015, p. 60).
A Dignidade da Pessoa Humana se resume ao respeito às individualidades de cada um, o respeito ao Ser Humano sujeito de direitos e deveres, e, portanto, não há lei alguma que não deva observar este princípio, ou ainda não deva ser criada sob sua influência, para garanti-lo, pois, a pessoa humana, suas características físicas e morais, bem como sua representatividade, devem ser o ponto inicial da valorização de qualquer direito.
Da retificação de registro cível de pessoa transgênera
Não há legislação pátria normas que disponha especificamente sobre a alteração do registro civil do transexual, se fazendo necessário que o mesmo submeta um pedido judicial para que consiga realizar as devidas alterações em seu registro de assentamento civil, o que de per si, já afronta os princípios da dignidade da pessoa humana, direito de imagem e honra, personalidade, isonomia e razoabilidade (dentre outros); deixando o indivíduo condicionado ao exercício de seus direitos individuais e fundamentais.
Há juristas que entendem que, para corrigir o sexo da pessoa em seu assento de nascimento, é necessária a realização de cirurgia de transgenitalização.
Segundo o Desembargador Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, em voto em Apelação nº. 70061053880 em 24/06/2015: “[...] é descabida a alteração do registro civil para fazer constar dado não verdadeiro, isto é, que o autor seja do sexo feminino, quando inequivocamente ele é do sexo masculino, pois ostenta órgão genital tipicamente masculino [...]”. Não se trata de posicionamento isolado, atentando-se ao fato de que outros juristas também entendem ser indispensável a realização da cirurgia supracitada para que o transexual seja considerado como indivíduo pertencente ao sexo oposto.
Neste entendimento acreditam que os documentos públicos devem conter informações verdadeiras, de modo que, se o sujeito não realizou a cirurgia de mudança de sexo, o nome pode ser alterado, mas o gênero (masculino/feminino) deve permanecer o mesmo no documento, por ser o que representa a “verdade” biológica.
Assim, a alteração quanto ao sexo do indivíduo no registro só poderia acontecer quando ficar comprovado que aquele que pretende a alteração já realizou a cirurgia de redesignação de sexo (anatômico).
Segundo este pensamento, a certidão de nascimento é um documento que visa atestar o nascimento de uma criança do sexo morfologicamente feminino ou masculino – ou seja, que possui os órgãos sexuais masculinos ou femininos no momento do nascimento.
Quem adota esse posicionamento também defende que manter o sexo no registro de nascimento não colocará a pessoa em situação de constrangimento, já que a maioria dos documentos de porte corriqueiro (RG, CPF, título de eleitor e carteira de motorista) não trazem informações quanto ao sexo da pessoa, bastando a alteração do prenome para que esteja em conformidade com a sua aparência.
Contudo, atualmente, existem diversas decisões de Tribunais de vários Estados e posicionamentos do Supremo Tribunal Federal (STF) diante de casos envolvendo os transexuais e sua busca pela isonomia perante a sociedade.
Em contrapeso existe uma segunda corrente de juristas que consideram insignificante que o transexual se submeta ao procedimento cirúrgico, uma vez que este oferece riscos à sua integridade física. Como se pode observar em voto da Senhora Desembargadora Sandra Brisola Medeiros, em Apelação nº. 70061053880 em 24/06/2015:
“[...] prevalecendo a identidade psicossocial sobre a biológica, tenho que a cirurgia de redesignação sexual, independentemente de ser ou não desejada pelo transexual, a rigor é uma mutilação, sujeitando o pretendente à alteração do gênero a uma série de riscos totalmente indesejáveis e desnecessários, inclusive risco de morte, tendo em vista a natureza invasiva do procedimento, e não uma cirurgia corretora ou de identificação/configuração sexual [...]”.
Decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), publicada em 21/11/2014, que apreciou a possibilidade de ocorrer alteração de gênero no assento de registro civil de transexual, ainda que o mesmo não tenha se submetido à cirurgia de redesignação sexual ou transgenitalização:
“DIREITO CONSTITUCIONAL E CIVIL. REGISTROS PÚBLICOS. REGISTRO CIVIL DAS PESSOAS NATURAIS. ALTERAÇÃO DO ASSENTO DE NASCIMENTO. RETIFICAÇÃO DO NOME E DO GÊNERO SEXUAL. UTILIZAÇÃO DO TERMO TRANSEXUAL NO REGISTRO CIVIL. O CONTEÚDO JURÍDICO DO DIREITO À AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL. DISCUSSÃO ACERCA DOS PRINCÍPIOS DA PERSONALIDADE, DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, INTIMIDADE, SAÚDE, ENTRE OUTROS, E A SUA CONVIVÊNCIA COM PRINCÍPIOS DA PUBLICIDADE E DA VERACIDADE DOS REGISTROS PÚBLICOS. PRESENÇA DE REPERCUSSÃO GERAL”. (STF - RG RE: 670422 RS - RIO GRANDE DO SUL, Relator: Min. DIAS TOFFOLI, Data de Julgamento: 11/09/2014, Data de Publicação: DJe-229 21-11-2014).
Em posicionamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) quanto à Recurso Especial, publicado em 18/11/2009, no qual se apreciou o pedido de alteração de registro civil de transexual, respeitando o princípio da dignidade da pessoa humana:
“Direito civil. Recurso especial. Transexual submetido à cirurgia de redesignação sexual. Alteração do prenome e designativo de sexo. Princípio da dignidade da pessoa humana. - Sob a perspectiva dos princípios da Bioética de beneficência, autonomia e justiça, a dignidade da pessoa humana deve ser resguardada, em um âmbito de tolerância, para que a mitigação do sofrimento humano possa ser o sustentáculo de decisões judiciais, no sentido de salvaguardar o bem supremo e foco principal do Direito: o ser humano em sua integridade física, psicológica, socioambiental e ético-espiritual. - A afirmação da identidade sexual, compreendida pela identidade humana, encerra a realização da dignidade, no que tange à possibilidade de expressar todos os atributos e características do gênero imanente a cada pessoa. Para o transexual, ter uma vida digna importa em ver reconhecida a sua identidade sexual, sob a ótica psicossocial, a refletir a verdade real por ele vivenciada e que se reflete na sociedade. - A falta de fôlego do Direito em acompanhar o fato social exige, pois, a invocação dos princípios que funcionam como fontes de oxigenação do ordenamento jurídico, marcadamente a dignidade da pessoa humana cláusula geral que permite a tutela integral e unitária da pessoa, na solução das questões de interesse existencial humano. - Em última análise, afirmar a dignidade humana significa para cada um manifestar sua verdadeira identidade, o que inclui o reconhecimento da real identidade sexual, em respeito à pessoa humana como valor absoluto. - Somos todos filhos agraciados da liberdade do ser, tendo em perspectiva a transformação estrutural por que passa a família, que hoje apresenta molde eudemonista, cujo alvo é a promoção de cada um de seus componentes, em especial da prole, com o insigne propósito instrumental de torná-los aptos de realizar os atributos de sua personalidade e afirmar a sua dignidade como pessoa humana. - A situação fática experimentada pelo recorrente tem origem em idêntica problemática pela qual passam os transexuais em sua maioria: um ser humano aprisionado à anatomia de homem, com o sexo psicossocial feminino, que, após ser submetido à cirurgia de redesignação sexual, com a adequação dos genitais à imagem que tem de si e perante a sociedade, encontra obstáculos na vida civil, porque sua aparência morfológica não condiz com o registro de nascimento, quanto ao nome e designativo de sexo. - Conservar o sexo masculino no assento de nascimento do recorrente, em favor da realidade biológica e em detrimento das realidades psicológica e social, bem como morfológica, pois a aparência do transexual redesignado, em tudo se assemelha ao sexo feminino, equivaleria a manter o recorrente em estado de anomalia, deixando de reconhecer seu direito de viver dignamente. - Assim, tendo o recorrente se submetido à cirurgia de redesignação sexual, nos termos do acórdão recorrido, existindo, portanto, motivo apto a ensejar a alteração para a mudança de sexo no registro civil, e a fim de que os assentos sejam capazes de cumprir sua verdadeira função, qual seja, a de dar publicidade aos fatos relevantes da vida social do indivíduo, forçosa se mostra a admissibilidade da pretensão do recorrente, devendo ser alterado seu assento de nascimento a fim de que nele conste o sexo feminino, pelo qual é socialmente reconhecido. - Vetar a alteração do prenome do transexual redesignado corresponderia a mantê-lo em uma insustentável posição de angústia, incerteza e conflitos, que inegavelmente atinge a dignidade da pessoa humana assegurada pela Constituição Federal. No caso, a possibilidade de uma vida digna para o recorrente depende da alteração solicitada. E, tendo em vista que o autor vem utilizando o prenome feminino constante da inicial, para se identificar, razoável a sua adoção no assento de nascimento, seguido do sobrenome familiar, conforme dispõe o art. 58 da Lei n.º 6.015/73. - Deve, pois, ser facilitada a alteração do estado sexual, de quem já enfrentou tantas dificuldades ao longo da vida, vencendo-se a barreira do preconceito e da intolerância. O Direito não pode fechar os olhos para a realidade social estabelecida, notadamente no que concerne à identidade sexual, cuja realização afeta o mais íntimo aspecto da vida privada da pessoa. E a alteração do designativo de sexo, no registro civil, bem como do prenome do operado, é tão importante quanto à adequação cirúrgica, porquanto é desta um desdobramento, uma decorrência lógica que o Direito deve assegurar. - Assegurar ao transexual o exercício pleno de sua verdadeira identidade sexual consolida, sobretudo, o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, cuja tutela consiste em promover o desenvolvimento do ser humano sob todos os aspectos, garantindo que ele não seja desrespeitado tampouco violentado em sua integridade psicofísica. Poderá, dessa forma, o redesignado exercer, em amplitude, seus direitos civis, sem restrições de cunho discriminatório ou de intolerância, alçando sua autonomia privada em patamar de igualdade para com os demais integrantes da vida civil. A liberdade se refletirá na seara doméstica, profissional e social do recorrente, que terá, após longos anos de sofrimentos, constrangimentos, frustrações e dissabores, enfim, uma vida plena e digna. - De posicionamentos herméticos, no sentido de não se tolerar imperfeições como a esterilidade ou uma genitália que não se conforma exatamente com os referenciais científicos, e, consequentemente, negar a pretensão do transexual de ter alterado o designativo de sexo e nome, subjaz o perigo de estímulo a uma nova prática de eugenia social, objeto de combate da Bioética, que deve ser igualmente combatida pelo Direito, não se olvidando os horrores provocados pelo holocausto no século passado. Recurso especial provido”. (STJ - REsp: 1008398 SP 2007/0273360-5, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 15/10/2009, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: --> DJe 18/11/2009).
Assim sendo, é fundamental que os juristas se desprendam de convenções ultrapassadas que determinam paradigmas a serem seguidos, uma vez que a sociedade evolui constantemente e detém necessidades a serem supridas com relação ao respeito aos direitos fundamentais e civis de seus indivíduos.
Da decisão jurisprudencial do STF no julgamento da (ADI) 4275
Por unanimidade o Supremo Tribunal Federal decidiu que pessoas transexuais e transgêneros têm o direito de alterar nome e sexo no registro civil sem a necessidade de realizar cirurgia de redesignação sexual e apresentar laudo médico pericial.
Além disso, os Ministros também decidiram que não será mais necessária autorização judicial para a mudança de pronome, bem assim, os processos de retificação do registro civil vão ocorrer por via administrativa, sem a necessidade de judicialização.
A decisão ocorreu no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4275 encerrado na sessão plenária do dia 01/03/2018. A ação havia sido ajuizada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) para que o STF desse interpretação conforme a Constituição Federal ao Artigo 58 da Lei 6.015/1973, que dispõe sobre os registros públicos. Todos os ministros do Supremo reconheceram o direito de alteração do registro mesmo sem cirurgia de mudança de sexo, e a maioria entendeu que não é necessária autorização judicial.
A data para alteração de registro civil em cartório, ainda não ficou definida, mas de acordo com a decisão, os interessados em mudar o nome e o sexo não precisarão mais comprovar sua identidade psicossocial, bem como, não será necessário ter uma idade mínima para realizar o pedido de retificação. Eles poderão ir diretamente até um cartório e assinar uma autodeclaração.
De acordo com a Procuradoria, o direito fundamental à identidade de gênero com base nos princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da vedação de discriminação odiosas, da liberdade e da privacidade estão na Constituição Federal e devem ser respeitados.
Todos defenderam que a autorização seria um avanço para a igualdade dos direitos entre pessoas.
Assim, transgêneros devem ser considerados de acordo com os gêneros com que se identificam.
Como discorrido durante todo o artigo, a transexualidade é uma ocorrência ligada à identidade de gênero. O transexual é aquele que se identifica psicologicamente como sendo do gênero oposto ao seu sexo genético e que, por isso, sente inconveniência com relação ao próprio corpo, a ponto de repudiar-se contra sua anatomia sexual. O princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III) constitui ponto de partida para a interpretação do ordenamento jurídico. Sua eficácia irradiante lhe confere o papel de atribuir unidade de sentido ao sistema como um todo. Faz da Constituição verdadeiro prisma pelo qual se observa a legislação ordinária, no caso, a Lei de Registros Públicos, para que daí se possa extrair a resposta jurídica adequada à espécie.
Dessa forma, autorizar a mudança do nome civil ao transexual, mas recusar a averbação registral do sexo quando presente situação apta a autorizar a primeira - sob justificativa pautada na existência da genitália biológica, é negar ao jurisdicionado a tutela efetiva do seu direito de identificação, o qual se atrela à gama de direitos da personalidade. Afinal, nas questões que envolvem a transexualidade, somente a alteração do nome é medida insuficiente. Não só os princípios que regem a Lei de Registros Públicos - veracidade registral, segurança jurídica e vedação à exposição vexaminosa, quando compatibilizados com o princípio da dignidade da pessoa humana, conduzem para a possibilidade da alteração do assentamento civil de forma não condicionada à mutilação da genitália, como também esta última se revela requisito desprovido de sustentação lógica e legal, servindo tão somente à segregação e à exposição desnecessária de pessoas trans ao risco de sequelas cirúrgicas, em ofensa ao princípio da igualdade e ao direito fundamental à saúde.
Nesse sentido, o Supremo sinaliza um avanço na cidadania, pois os trangêneros poderão de agora em diante, dispensadas maiores ressalvas, exigir do Estado, sem qualquer tipo de preconceito, o seu reconhecimento pleno à busca da felicidade.
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SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Livraria do Advogado, 2015, p. 55-60.
Orientador e Professor - Universidade Brasil
Bacharelanda em Direito pela Universidade Brasil.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Bruna Caroline de Souza. A desnecessidade de redesignação sexual para retificação de registro cível Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 jun 2018, 04:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51819/a-desnecessidade-de-redesignacao-sexual-para-retificacao-de-registro-civel. Acesso em: 21 nov 2024.
Por: JOALIS SILVA DOS SANTOS
Por: Caio Henrique Lopes dos Santos
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