Resumo: O presente artigo analisa o princípio da segurança jurídica desde sua concepção geral no Estado Legal até a sua evolução no Estado Social e Democrático de Direito. O objetivo é avaliar, em abordagem estritamente teórica, como a segurança jurídica se coloca em contraste com os objetivos sociais e democráticos do ordenamento nessa era pós-positivista, tendo por referência o Direito Brasileiro.
Sumário: Introdução; 1. Considerações iniciais; 1.1. Uma noção geral da segurança jurídica; 1.2. A segurança jurídica e o Estado de Direito; 2. Considerações doutrinárias; 3. A segurança jurídica como princípio jurídico; 4. O princípio da segurança jurídica no Direito Brasileiro; 5. A segurança jurídica e a aplicação de princípios; 5.1. O princípio da segurança jurídica no Estado Social e Democrático de Direito; 5.2. A aplicação de princípios gera insegurança jurídica?; 5.3. A aplicação de princípios e a efetiva consecução da segurança jurídica no Estado Social e Democrático de Direito; 6. Considerações finais à guisa de conclusão.
Introdução
O presente artigo busca revisitar o conceito de segurança jurídica, reforçando sua importância no direito contemporâneo e, em especial, contrastando com o forte apego aos princípios atualmente verificado no exercício da função jurisdicional. A ideia é avaliar como a segurança jurídica se enquadra no sistema jurídico, destacando a relevância na proteção dos fundamentos e objetivos do Estado Democrático de Direito para a consecução desse valor.
Na estruturação do presente trabalho, partimos, inicialmente, das noções gerais do princípio da segurança jurídica, para delimitar seus diversos contornos, revelando a evolução do conceito e as diferentes acepções propostas pela doutrina. Em um segundo momento, analisamos a figura em questão como princípio de Direito, realçando os institutos decorrentes no Direito Brasileiro. Na parte final, retomaremos os conceitos para avaliar o papel dos princípios basilares de nosso sistema (objetivos do Estado, fundamentos, valores constitucionais) na função jurisdicional, verificando a observância da segurança jurídica, sob a ótica do Estado Social e Democrático de Direito,
Para evitar o desvio para o casuísmo (e na ausência de metodologia apropriada), deixamos de selecionar exemplos jurisprudenciais favoráveis ou contrários a nossa tese, desenvolvendo abordagem estritamente teórica. De todo modo, esperamos, ao fim, fornecer um contra-argumento às críticas feitas ao protagonismo dos princípios nessa era pós-positivista, sempre como provocação e fomento de um proveitoso debate.
1. Considerações iniciais
1.1 Uma noção geral da segurança jurídica
Qualquer abordagem do princípio da segurança jurídica impele à revisita de algumas bases da ciência jurídica, desde a Teoria Geral do Estado até os elementos introdutórios da estrutura jurídica normativa. Assim, buscando uma maior objetividade, pedimos vênia para não nos determos demais nessas disciplinas, o que faremos apenas incidentalmente, na singela medida necessária àquilo que for útil às nossas premissas e conclusões.
De princípio, necessário adiantar que o instituto em questão se coloca como elemento intrínseco à própria juridicidade, à estrutura da norma jurídica: na expectativa de que havendo o antecedente A (hipótese), haverá o consequente B (mandamento), sob pena de C (sanção). Essa expectativa, bem como a realização do consequente previsto, corresponde à segurança jurídica, bem como à própria positividade, vinculação da norma.
Celso Antônio Bandeira de Mello (2013, p. 41) traz o raciocínio em palavras mais claras: “a essência do Direito é firmar previamente os efeitos a que associará aos comportamentos tais ou quais, de maneira a outorgar aos membros do corpo social a segurança que daí resultará”, acrescentando que o Direito depende da certeza quanto àquilo disposto pela norma, e concluindo: “é a ideia de segurança, implícita, mas inarredável, o que se encontra subjacente a toda e qualquer norma jurídica” (2013, p. 42).
Justamente por ser essencial à natureza da norma, a segurança jurídica se manifesta em seus diferentes planos: a existência, validade, eficácia e mesmo efetividade. Ademais, pelo mesmo motivo sua amplitude será correspondente às próprias extensões do Direito - aqui tomado em sua acepção normativa, sem maiores digressões, pelo conjunto de normas jurídicas impostas para disciplinar a conduta humana (NUNES, 2007).
E veja-se que a segurança jurídica está adstrita com exclusividade ao Direito, uma vez que se atrela a dois caracteres distintivos da norma jurídica (em oposição às normas sociais, morais): a imperatividade e a coercibilidade. Ainda assim, mesmo que privativa do campo jurídico, a diversidade de suas acepções é patente:
Segurança jurídica é uma expressão que comporta vários sentidos. O adjetivo, entretanto, delimita o campo do substantivo, mostrando que a segurança de que se fala está relacionada com o direito, tomada esta palavra quer na acepção de direito objetivo, como conjunto de normas editadas ou reconhecidas pelo Estado para ordenar a vida em sociedade, quer como direito subjetivo, ou seja, como vantagem de que os indivíduos são titulares e que resultaram da ocorrência de fato jurídico, na compreensão mais ampla dessa locução, abrangendo, portanto também os atos jurídicos.
(...)
Bem se percebe, por estas resumidas observações, como é justificado o pensamento de tantos autores notáveis, desde os antigos até os contemporâneos – a ponto de se poder falar em uma opinião comum – quando asseveram que a noção de segurança jurídica é conatural e, pois, indissociável da própria noção de direito, só existindo direito onde existe segurança jurídica (SILVA, 2013, p. 21).
Nesse sentido é que a noção da segurança jurídica é percebida em diferentes extensões pela doutrina e academia, que a vincula a uma diversidade de acepções (e.g): à própria positividade do Direito[1], sua eficácia e ao processo de concreção do ordenamento (interpretação e aplicação); à “racionalidade, unidade e coerência do sistema” (DACAL, 2013); à efetividade do direito (TORRES, 2011); à estabilidade e criação do sistema; à previsibilidade, estabilidade e certeza; ou ainda à solidez do sistema (ROCHA, 2009).
A pluralidade de abordagens, entretanto, não se traduz em divergências doutrinárias ou dificuldade na abstração do conceito, mas, pelo contrário, corresponde exatamente a sua devida e inegável extensão. Em resumo, a segurança jurídica se se coloca em todas as dimensões em que o Direito se coloca.
Há quem diga, inclusive, que a locução seria tautológica, nas palavras de Jean-Guy Huglo (2001, p. 82), citado em memorável artigo de Cármen Lúcia Antunes Rocha (2005): “A segurança jurídica é uma tautologia. (...) a fórmula parece uma espécie de redundância, o tantil parece óbvio que um direito que não assegura a segurança das relações que governa deixaria de ser um”.
1.2 A segurança jurídica e o Estado de Direito
Toda a ideia acima traçada é necessária, mas insuficiente todavia para a adequada reflexão sobre o conceito em análise. Um passo adiante nessa tarefa é justamente reconhecer que, se de um lado a segurança é intrínseca ao Direito (ordenamento normativo), de outro ela não é intrínseca a qualquer Direito (ordenamento normativo).
Em singelo raciocínio, procuramos explicar a ideia: considerando que a segurança exige a previsibilidade e a expectativa de que determinada norma jurídica prevalecerá, em um cenário onde a supremacia legal não se coloque como princípio estruturante, i.e., onde a norma aplicável fica sempre sujeita à vontade de uma autoridade maior (seja militar, religiosa ou política), segurança jurídica não haverá. Quando muito, existirão apenas expectativas quanto às vontades e ações daqueles que detenham o poder[2].
Assim é que um raciocínio mais apurado revela que a segurança jurídica está atrelada, não ao Direito, mas ao Estado de Direito. Este, correspondente ao Direito (sem entrar nos debates quanto à sua concepção e às teorias monista, dualista ou do paralelismo) qualificado pelo princípio da legalidade, seu principal traço distintivo.
Vale recordar brevemente dos caracteres do Estado de Direito: (i) pela legalidade, tem-se que o Estado e suas autoridades também se submeterão à lei, do que se pressupõe que o Estado encontrará limites legais para a sua atuação (do contrário, não haveria real submissão a qualquer regra); (ii) tais limitações são entendidos pelos “limites negativos” do Estado, que conformariam os direitos mínimos dos particulares; (iii) todavia, para que haja obediência do Estado à lei, é necessário que aquele que a execute não seja o mesmo a julgar a sua observância, nem o responsável pela sua elaboração, do resulta no segundo caractere, correspondente à separação de Poderes; (iv) por fim, necessariamente parte do conteúdo normativo também não poderá estar à total mercê das autoridades legislativas, eis que a legalidade não comporta uma competência legislativa absoluta, que pudesse suprimir a própria estrutura do Estado de Direito, daí que a supremacia constitucional também se coloca como elemento decorrente da legalidade, pressupondo a existência de norma suprema, que disciplina e conforma os limites e competências do Poder Legislativo e dos demais Poderes. Assim, por decorrência lógica elencam-se os quatro caracteres essenciais do Estado de Direito: supremacia constitucional, separação dos poderes, garantias mínimas e legalidade[3].
Tais caracteres, cuja consubstanciação tem como marco histórico principal a Revolução Francesa, correspondem, portanto, às condições para que se vislumbre a segurança jurídica. Não por acaso, o reconhecimento de limites e o pleito pela conservação de direitos é facilmente percebido no Artigo 2º da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (França, 1789): “A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade a segurança e a resistência à opressão”.
Bem da verdade, o que se nota é que o processo burguês de formação do Estado de Direito traduz-se justamente pela busca liberal pela segurança, com a proteção de interesses individuais (frente ao Estado e outros indivíduos) e da estabilidade contratual.
Daí que, reformando as necessárias premissas construídas no primeiro tópico, tem-se que a segurança jurídica se desapega da mera positividade[4] - esta, traço distintivo daquilo que se entende por norma jurídica -, para se atrelar à própria noção de Estado de Direito[5] (em oposição ao Estado Absolutista, Autoritário, Polícia, conforme designação que se prefira). Assim, “o princípio da segurança jurídica é um dos traços fundamentais do Estado de Direito, sem o qual se tem um Estado meramente jurídico, orientado tão só por considerações de oportunidade” (VILANOVA, 2003, apud VALIM, 2013).
Mesmo Kelsen, ao analisar criticamente a expressão, verga-se ao entendimento:
“Se o Estado é reconhecido como uma ordem jurídica, se todo Estado é um Estado de Direito, esta expressão representa um pleonasmo. Porém, ela é efetivamente utilizada para designar um tipo especial de Estado, a saber, aquele que satisfaz aos requisitos da democracia e da segurança jurídica” (KELSEN, 2006, p. 346).
2. Considerações doutrinárias
Já estabelecidas essas noções gerais, antes de avançarmos em nossas ponderações, vale enriquecer este artigo apresentando - ainda que pontualmente - algumas propostas de abordagem desenvolvidas por acadêmicos e doutrinadores que também se debruçaram sobre o assunto (reforçando, aliás, a pluralidade de acepções possíveis, conforme alertamos acima).
Endossando nossas considerações, tanto Judith Costa (2004) como Ingo Wolfgang Sarlet (2009) colocam a segurança jurídica mesmo como elemento do Estado de Direito. A primeira, ao citar Sylvia Calmes (2001), explica que o princípio da segurança jurídica possui tal caráter de fundamento ou “razão de ser” na medida em que caracteriza um “elemento nomocrático do Estado de Direito” (2004, p. 113). Já Ingo Sarlet (2009), citando Canotilho (1999, p. 252 et seq), também a entende como subprincípio concretizador do Estado de Direito. Chega a abordá-la ainda como direito fundamental.
Heleno Taveira Torres (2011) classifica a segurança jurídica formal como decorrência da estrutura sistêmica ou da certeza do direito, enquanto que a segurança jurídica material corresponderia à garantia constitucional dos direitos e liberdades fundamentais. Da soma das duas resultaria a eficácia do sistema jurídico.
Por sua vez, Fabiana Tomé (2005, p. 55, apud DACAL, 2013) traz que a função da segurança jurídica pode ser tomada por duas vertentes: (i) pela primeira, garante-se que os assuntos sejam tratados exclusivamente de acordo com o direito prescrito, sem interferência de qualquer outro interesse não contemplado pelo ordenamento; (ii) pela segunda, confere-se previsibilidade às decisões jurídicas.
Finalizando nosso percurso doutrinário, em artigo constantemente citado pela academia no trato desta temática, Barroso (2009) procura organizar a abrangência de ideias e conteúdos designadas pela segurança jurídica, separando-os em cinco diferentes planos (que ora sintetizamos), que corresponderiam (i) à existência de instituições estatais dotadas de poder e garantias, sujeitas ao princípio da legalidade; (ii) à confiança nos atos do Poder Público, que deverão reger-se pela boa-fé e pela razoabilidade; (iii) à estabilidade das relações jurídicas, manifestada na durabilidade das normas, na anterioridade das leis e na conservação de direitos em face de lei nova; à (iv) previsibilidade dos comportamentos a serem seguidos ou suportados; e à (v) igualdade na lei e perante a lei.
De nossa parte, reforçamos a diversidade no trato da matéria está relacionado às extensas dimensões do conceito ora abordado, que, intrínseco ao Estado de Direito, deverá se colocar em todas as dimensões em que a aplicação e o estudo deste se apresentem. Daí que também poderá ser tomada por princípio jurídico, quando em pauta sua própria normatividade.
3. A segurança jurídica como princípio jurídico
Ainda que sem se cingir integralmente a um único referencial teórico, estabelecendo certas variações na leitura de Dworkin (2010) e o método de Alexy (2015), a doutrina costuma ser invariável no reconhecimento dos princípios como normas jurídicas centrais do ordenamento, tipicamente genéricas[6].
Justamente por veicularem (não só com carga axiológica, mas também deôntica) os valores centrais do sistema ou microssistemas jurídicos, os princípios orientam a criação (função nomogenética - NETO, 2006, p. 75), a interpretação e a aplicação desse mesmo ordenamento.
Desse modo, também a segurança jurídica se traduz em princípio ao orientar a aplicação, interpretação, e criação do Direito. Tal como já dissemos linhas acima, correspondendo a elemento central do Estado de Direito, esse axioma, inescusável, irriga todo o sistema com carga deôntica própria, transmutando-se em norma jurídica principiológica. E é justamente em observância a este princípio que se fomentam outros importantes institutos do sistema, que visam justamente à preservação da estabilidade jurídica, especialmente diante da mutabilidade do ordenamento.
Com efeito, se por um lado a segurança exige certo grau de previsibilidade, de outro é inegável que a realidade é constantemente alterada, seja por fatores humanos ou naturais, o que impele à constante mutação do próprio sistema normativo. É reconhecendo esse cenário que se preveem institutos para a preservação da segurança jurídica, em especial diante do decurso do tempo ou da evolução normativa do sistema.
No primeiro caso, é justamente para preservar a previsibilidade e estabilidade das relações sociais que se atribuem distintos efeitos a situações consolidadas pelo decurso do tempo. Em especial, mencionamos os institutos da prescrição e da decadência, mas também, em certa medida, o da preclusão, no âmbito processual[7].
Por outro lado, a constante evolução normativa (lato sensu: leis, sentenças, contratos, atos) exige que se preservem os efeitos previstos para situações consolidadas anteriormente a dada inovação no mundo jurídico, sob pena de se descaracterizar a própria normatividade do Direito. Assim, remetendo-nos às considerações iniciais acima, tem-se que a previsão de um consequente (B), na hipótese de um antecedente (A), corresponde à estrutura mesma da norma, cujo desacato acarreta na ofensa à lógica funcional da própria imperatividade do ordenamento.
Nesse sentido é que os institutos do direito adquirido, ato jurídico perfeito, coisa julgada e irretroatividade da lei correspondem a figuras de extrema relevância à estabilidade de um Estado de Direito. São previsões cujo princípio de criação é a própria segurança jurídica.
4. O princípio da segurança jurídica no Direito Brasileiro
A escassez de previsões expressas ao princípio na norma constituinte[8] em nenhuma medida se confunde com um suposto desprestígio de sua carga axiológica. Afinal, a segurança jurídica é implicitamente lapidada em nosso texto constitucional já em seu Artigo 1º, eis que decorrência lógica do Estado de Direito, como acima tratamos.
Ademais, o Artigo 5º da Carta também reflete com intensidade esse valor. Inclusive, para José Souto Maior Borges (2002, p. 3), “o art. 5º da CF de 1988 é um outro nome normativo da segurança jurídica, todo ele o é”. Já o professor José Afonso da Silva (2009) destaca os incisos de XXXVI a LXXIII deste dispositivo como manifestações do princípio em apreço.
Deste modo, estruturante do Estado de Direito e de suas condicionantes, o valor prescinde de trato expresso. Aliás, apenas o § 1º do Art. 103-A, incluído por emenda constitucional, é que menciona diretamente o conceito, mas em seu inverso (“insegurança jurídica”), ao tratar das súmulas vinculantes.
Para reforçar, vale mencionar brevemente alguns dos institutos decorrentes do princípio da segurança jurídica no Direito Brasileiro (além daqueles já abordados no tópico anterior): a publicidade do texto normativo; a legalidade e a inafastabilidade de seu controle pelo judiciário; e o próprio controle de constitucionalidade (supremacia constitucional, intrínseca ao Estado de Direito, tal como já levantamos acima). Sobre o último, Carmem Lúcia (ROCHA, 2005, p. 165-172) magistralmente explica sua intrínseca ligação com a segurança jurídica:
O que contraria a Constituição é inconstitucional. O que é inconstitucional não pode valer. O que não vale não tem valor, não pode subsistir. Sem a certeza constitucional não há segurança jurídica
(...)
A segurança jurídica é, como se tem por óbvio, segurança constitucional. (...) A certeza da inviolabilidade da Constituição é a fonte da confiança no sistema normativo, que se expressa pelo princípio da segurança jurídica. Não há verdade jurídica contra a Constituição. Não se produz direito contra a Constituição. (...) O fim de todas as instituições de direito é a justiça, que conduz à segurança.
A doutrina também menciona como decorrência do princípio ora tratado as cláusulas pétreas do ordenamento (v. limites negativos mínimos, acima); a resolução senatorial no controle difuso (que busca impedir a produção de efeitos de norma julgada inconstitucional, gerando situações jurídicas contestáveis); a inexigibilidade de título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional (Art. 525, § 12, da Lei nº 13.105/15l, em clara observância à supremacia constitucional); e o duplo grau de jurisdição, visando à maior cautela na apreciação da legalidade.
As súmulas vinculantes, já adiantadas acima, também não deixam de ser instrumento à preservação da segurança jurídica, o que o próprio texto constitucional expressa. A proteção da confiança (tutela da confiança, confiança legítima), muito pautada pelo Direito Administrativo e pelo Direito Civil, é mais uma de suas decorrências diretas.
No campo do direito registral, inclusive, interessante atentar que a segurança deixa de ser instrumental para corresponder à própria finalidade deste microssistema, que tem como princípios a publicidade e a continuidade registral, e.g.
Traçados os contornos e os institutos correspondentes, cumpre então verificar em que medida a segurança jurídica se coloca diante da crescente aplicação de princípios (muitas vezes diretamente a casos concretos) nessa era já tomada por “pós-positivista”.
5. A segurança jurídica e a aplicação de princípios
Robert Alexy (2015) aponta que os princípios servem como razões para regras mas também para decisões concretas. Sendo sempre razões prima facie (e não definitivas), se aplicados a caso concreto haveria, então, o estabelecimento de uma regra.
Nesse sentido, é possível afirmar que sempre que um princípio forma em última análise, uma razão decisiva para um juízo concreto de dever-ser, então, esse princípio é o fundamento de uma regra, que representa uma razão definitiva para esse juízo concreto (ALEXY, 2015, p. 108).
Sem se vincular rigidamente a uma teoria específica, mas seguindo tendência também vista em outros países, a doutrina e a jurisprudência brasileiras tem conferido um caráter de proeminência aos princípios em nosso ordenamento, não somente em sua hermenêutica, mas reconhecendo a possibilidade de sua aplicação imediata a casos concretos.
No Brasil, essa postura pós-positivista, especialmente por parte dos magistrados, tem sido alvo de constantes críticas, e frequentemente tem sido atrelada a uma atuação mais ativa do Judiciário, alcunhada de “intervencionismo” ou “ativismo judicial”.
Não utilizamos essas expressões no presente trabalho. A primeira, porque já atrai, de plano, um caráter negativo, impróprio à função jurisdicional (que se manifesta somente quando provocada, diante de suposta lesão ao Direito). Independente da correção da decisão, ou dos limites que o magistrados se impõe, falar em intervenção já traz um certo contrassenso[9].
Por outro lado, o “ativismo judicial” não é expressão que encontre delimitação pacífica. Quando tomado pela “recusa dos tribunais de manterem-se dentro dos limites jurisdicionais estabelecidos para o exercício de seus poderes” (MARSHALL, William apud TAVARES, 2008, p. 7717), certamente revela-se inapropriado. Porém, quando entendido pela “participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais” (BARROSO,2012), será mais acertado.
Na indefinição desses conceitos, preferimos não utilizá-los, até porque a discussão daquilo que se toma por ativismo ou intervencionismo judicial - inadequados ou não - centra-se nos limites e conflitos quanto às competências constitucionais, não se restringindo à aplicação dos princípios.
Exclusivamente em relação aos princípios, como já adiantamos, a problemática diz respeito à sua aplicabilidade imediata aos casos concretos, sua eficácia, reconhecida de forma ampla por parte da doutrina brasileira (como será visto adiante), o que tem baseado também entendimentos jurisdicionais nesse sentido - inclusive mediante o afastamento de regras expressas - e levantado o questionamento quanto à (in)observância da devida segurança jurídica.
Assim, para enfrentar a questão, é necessário partir de duas premissas: (i) não se trata aqui da contraposição da segurança jurídica à proeminência dos princípios em geral, eis que, ela própria (reconhecendo sua normatividade), é tomada por princípio; (ii) a discussão se coloca no âmbito do Estado Democrático, com hierarquia valorativa própria.
É nesse sentido, analisando como o princípio da segurança jurídica se coloca em relação aos demais princípios do Estado Social e Democrático de Direito, que a questão deve ser aventada.
5.1 O princípio da segurança jurídica no Estado Social e Democrático de Direito
Após trazer a acepção da segurança jurídica como elemento central do Estado de Direito, em suas diversas dimensões, torna-se necessário também averiguarmos como esse valor se manifesta nos Estados contemporâneos, que superam o liberalismo clássico. Que o valor remanesce como central a qualquer Estado de Direito é inegável, pela própria concepção acima tratada. No entanto, também é pacífico que esse princípio passa por uma nova inflexão, correspondente à alteração da hierarquia valorativa e definição de objetivos próprios dos Estados Sociais Democráticos. É sempre sob essa perspectiva que a valoração da segurança jurídica deverá ser realizada.
Anote-se que as considerações feitas nesse tópico poderiam, conforme o caso, ser aplicadas também a outros ordenamentos. Todavia, traçaremos todo o raciocínio tendo por referencia a Constituição Federal de 1988 e o Direito Brasileiro.
No amplo processo de redemocratização brasileiro, que buscou convergir a sociedade para a construção de um novo regime constitucional, reconhecendo a realidade social brasileira, com gritante desigualdades - também com inspiração no Estado Social[10] -, e buscando uma transição pacífica naquele cenário, acabou-se por aprovar a constituição de um Estado com objetivo declarado de justiça social, desenvolvimento, erradicação da pobreza e bem-estar social, sendo vedada qualquer forma de discriminação (Art. 3º da Carta).
Trata-se da instituição do Estado Social e Democrático de Direito. E em que pesem eventuais discussões terminológicas[11], o que importa é reconhecer que o Estado Brasileiro agora se funda na soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais e pluralismo (Art. 1º da Carta), com fins sociais claros.
A Constituição de 1988 não promete a transição para o socialismo com o Estado Democrático de Direito, apenas abre as perspectivas de realização social profunda pela prática dos direitos sociais que ela inscreve, e pelo exercício dos instrumentos que oferece à cidadania e que possibilita concretizar as exigências de um Estado de justiça social, fundado na dignidade da pessoa humana (SILVA, 2009, p. 120).
A finalidade no bem-comum (também considerada como próprio elemento do Estado, conforme entendimento seguido), deixa de se restringir à estabilidade e segurança das relações, das propriedades, dos direitos liberais (os limites negativos à atuação estatal, conforme abordamos acima), adotando também inegável caráter social[12], abrangendo a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e a promoção do desenvolvimento nacional.
Por outro lado, extraindo sua legitimidade da soberania popular (“todo o poder emana do povo”), o regime democrático tem como premissa a igualdade (entre os titulares primeiros do poder) e como fundamento central a dignidade da pessoa humana.
Assim, o nosso Direito - todo ele - se verga às finalidades expressas no Art. 3º e aos fundamentos do Art. 1º da Carta. A partir desse valores defluem-se, até por lógica, uma série de princípios que passam a orientar toda a normatividade do novo sistema constituído, aí incluída a ordem econômica, financeira, social, urbana, rural e ambiental.
E não somente as fontes legislativas, mas todo o ato que carregue força jurígena se submete a tal valoração, pois deve respeito à base jurídica-constitucional que o fundamenta, inclusive os atos do Poder Público (em sentido amplo, os atos administrativos normativos ou concretos), e dos particulares (também em sentido amplo, abrangendo as declarações e os negócios jurídicos).
A função social da propriedade e a função social do contrato nada mais são que expressões de toda essa valoração. Em última instância, são esses valores que conformam a autonomia privada e a atividade econômica em geral[13].
É considerando essa valoração que o Poder Judiciário deve se manifestar quando provocado, observando a obediência das normas (novamente, em sentido amplo: leis, atos administrativos, negócios) a esse ordenamento. No âmbito privado, surge-se a noção de horizontalidade da “constitucionalização” do Direito Civil. No público, alega-se a “intervenção” do Judiciário.
O que se tem, na realidade - e aqui não estamos analisando a correção ou incorreção de cada decisão -, é que o exame de cada ato jurídico deverá alcançar a perquirição quanto ao lastro normativo capaz de lhe conferir certa positividade, vinculação. Caso o ato esteja na contramão dos fundamentos e objetivos do Direito, esse mesmo ordenamento não lhe conferirá força jurígena. Rompe-se o lastro (e.g. declaração de nulidade, invalidação, anulação, conforme o caso), descabendo ao Judiciário o reconhecimento, a constituição ou execução pretendidas[14].
A segurança[15], como finalidade do Estado Liberal, que visava proporcionar a estabilidade, previsibilidade e liberdade necessárias ao desenvolvimento das relações burguesas, passa agora a ser vista como meio à perseguição de objetivos sociais, do bem-estar social, da justiça social, enfim. Esses valores adquirem preponderância.
Vale dizer, a ideia do Direito como meio (e não um fim em si mesmo) é veiculada a despeito da acepção do Estado Social, especialmente pela doutrina que entende que a finalidade no bem-comum é elemento próprio do Estado (MALUF, 2016, p. 329)[16]. Todavia, veja que no Estado Social e Democrático, esses fins recebem orientação própria. A segurança, a ordem e a certeza hão de ser sempre valores instrumentais da efetivação da justiça na sua feição social (SILVA,, 2004, p. 30)[17].
Não há, veja, um desprestígio na segurança jurídica como valor do Estado de Direito, mas sim o reconhecimento de outros valores como finalidade desse Direito. Aquela é reconhecida como valor imediato (NADER, 2015 p. 16). É nessa perspectiva que o princípio correspondente deverá ser sopesado no Estado Democrático, sem prejuízo de tudo que já se disse nos tópicos predecessores.
5.2 A aplicação de princípios gera insegurança jurídica?
Pode-se argumentar que a aplicação do Direito através dos princípios vai em sentido oposto, provocando insegurança jurídica, na medida em que gera imprevisibilidade das decisões judiciais, eis que cada magistrado valer-se-ia de métodos e parâmetros próprios. Por outro lado, o caráter aberto dos princípios permite que o magistrado invoque também ideologia pessoal em seu decisum. Por fim, há ainda a possibilidade de decisões teratológicas, em ofensa à competência dos demais poderes.
Todavia, tais questões giram em torno da problemática da função jurisdicional como um todo e não propriamente ao desenho que se faz do Estado Social e Democrático de Direito e o papel de seus valores e princípios.
Por se deparar com conflitos e casos concretos ilimitados, o Judiciário sempre apresentará certa medida de imprevisibilidade. A própria natureza conflitiva do objeto sub judice é fator dessa imprevisão. Nem mesmo no eventual raciocínio dedutivo as respostas são dadas de forma automática pelo ordenamento: “a verdade factual está sempre submetida a valoração” (FERRAZ JUNIOR, 1994, p. 344), assim como as premissas a serem invocadas.
Ao tratar do surgimento do Poder Judiciário na estrutura do Estado, Attié Junior (2008) já mencionava a “ficção da imparcialidade” como intrínseca à jurisdição moderna. “Mas é importante sempre ter pressente que se trata de uma ficção, para evitar que tal posição (um artifício) venha a ser cobrada como verdadeira, levando a uma esquizofrenia pessoal ou social” (2008, p. 407). Para o autor, as formulas legais acabam contribuindo para mascarar essa ficção.
É um papel [do magistrado], em verdade difícil de desempenhar, por tencionar constantemente aquilo que são os desejos e interesses, existentes na pessoa que julga, e a sua necessidade se distanciar deles, para decidir sobre paixões e interesses alheios (ATTIÉ JUNIOR, 2008, p. 407).
Toda regra traz em seu conteúdo um valor, um propósito. Nem todo texto legal, todavia, acaba revelando facilmente esse conteúdo. A norma principiológica, entretanto, tem seu valor escancarado[18]. Quando a estrutura discursiva do decisum se vale da alusão a princípios jurídicos - não que isso seja suficiente ou ideal na totalidade dos casos - os valores são trazidos à luz, favorecendo o contraste quanto à (in)adequação da ideologia a qual o magistrado se apegou.
Paulo Nader, visando contrapor direito escrito ao costumeiro, acaba trazendo interessante observação nesse sentido “É um pouco relativa a ideia de que o Direito-escrito conduz ao saber a que se ater, porque, inicialmente, em sua abstratividade, geralmente a lei não explicita todas as hipóteses de sua aplicação” (2015, p. 45).
Por sua vez, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, anotava que “a lei, no Estado Legal, se amesquinha reduzida ao papel de instrumento político” (1988, 45), sendo utilizada para que um grupo imponha seus interesses aos demais. Pouco importaria o conteúdo de justiça por ela veiculado.
Disso resulta, conforme assinalei, uma luta pela lei que substitui a luta pelo Direito. Nesta luta, travada nos corredores do Parlamento, sobretudo quando nenhum partido, é, sozinho, majoritário, todos os meios de persuasão e de pressão costumam ser empregados. É essa a própria razão de ser dos grupos de pressão ou interesse.
A politização das leis fere, não raro, a racionalidade do Direito, gera leis irracionais. Este “irracional”, aponta Terré, “observa-se quando se vê a qual ponto o legislador quer tudo, e seu contrário”. R o mesmo autor assinala a existência de “leis inúteis, leis perigosas, leis-gadget, leis de papel (paper’s laws)”.
(...)
O lícito e o ilícito assim flutuam, desorientando e confundindo a todos os que querem curvar-se à lei. Com esta flutuação desaparece a segurança, porque se abala a certeza do Direito (p. 47).
Não se pretende aqui o desprestígio absoluto da regra, mas apenas demonstrar que a certeza jurídica não estará necessariamente atrelada a sua observância. Isso reforça a importância de sua submissão aos valores que fundamentam sua existência e validade. E vale anotar: estamos tratando da aplicação ideal do Direito. Este trabalho não pretende rumar ao casuísmo, pincelando sentenças ou acórdãos fundamentados (adequada ou inadequadamente) em princípios, para desenvolver argumento generalizador favorável ou contrário a essa tese.
O que se entende, de plano, é que os princípios basilares do ordenamento (até mesmo por não estarem sujeitos à absoluta atuação do Legislativo - as constantes revogações, manipulação, e amesquinhamento, acima tratados), tendem a propiciar uma maior certeza ao Direito, como adiante reforçaremos.
5.3 A aplicação de princípios e a efetiva consecução da segurança jurídica no Estado Social e Democrático de Direito
Certas atividades são disciplinadas por normas que acabam girando em torno de valoração própria (além dos valores gerais do ordenamento), tal como o Direito Registral (e o princípio da continuidade registral, e.g.), ou Direito Ambiental (princípio da precaução, do polidor-pagador). Nesses casos, os princípios possuem a clara relevância de orientar a aplicação do Direito de acordo com as perspectivas de cada matéria, trazendo coerência a sua disciplina.
Mas é certo que o maior destaque é dado aos princípios constitucionais, especialmente aqueles decorrentes da fundamentação basilar do Estado Democrático de Direito, como acima já anotamos, justamente por estarem dotados da carga axiológica máxima do ordenamento. Também assim os direitos fundamentais da pessoa humana[19] (e é isso que está em jogo), até por sua amplitude, frequentemente são declarados ou designados por princípios, o que só reforça a importância de sua observância, mesmo que afastando regras expressas. Aliás, quando em pauta a violação de princípios fundamentais (constitucionais), estar-se-á normalmente tratando do controle (difuso ou concentrado) de constitucionalidade, essencial à segurança do regime democrático.
O ponto de partida é a ideia de que os direitos fundamentais, enquanto direitos individuais em face do legislador, são posições que, por definição, fundamentam deveres do legislador e restringem suas competências. O simples fato de um tribunal constitucional agir no âmbito da legislação quando constata, por razões ligadas aos direitos fundamentais, um não-cumprimento de um dever ou uma violação de competência por parte do legislador não justifica uma objeção de uma transferência inconstitucional das competências do legislador para o tribunal. Se a Constituição confere ao indivíduo direitos contra o legislador e prevê um tribunal constitucional (também) para garantir esses direitos, então, a atividade do tribunal constitucional no âmbito da legislação que seja necessária à garantia desses direitos não é uma usurpação inconstitucional de competências legislativas, mas alto que não apenas é permito, mas também exigido pela Constituição (ALEXY, 2015, p. 546).
Cumpre lembrar que o fenômeno da normatividade dos princípios ganhou força no período Pós Segunda Guerra, quando o positivismo puro passou a ser questionado e ficou clara a importância da preeminência dos princípios sobre as regras, sob risco de ofensa aos mais íntimos valores da humanidade. Naquele momento, a discussão sobre os direitos humanos passou a receber a merecida importância dos Estados, que passaram a elevar os valores humanos ao grau máximo dos ordenamentos jurídicos do Estado Democrático de Direito, reconhecendo seu caráter deôntico através dos princípios, consagradores daqueles valores e que dariam sentido teleológico ao sistema.
Nas constituições contemporâneas, a adoção expressa de princípios (mesmo que sem a utilização do termo específico) tem, em última instância, mitigado o conflito com as apreensões positivistas. Sem prejuízo, o que nunca deve se perder de vista é que toda a valoração, seja por princípios explícitos ou implícitos, sempre deverá se coadunar à carga principiológica essencial ao Estado Democrático, tal como anotamos em tópico anterior.
Ater-se a tais valores permite a leitura quanto à adequação das decisões, bem como - estando as manifestações judiciais adstritas àqueles - fomenta um cenário de certeza jurídica mínima. A ideologia (conjunto hierarquizado de valores[20]) do Estado Social e Democrático de Direito acaba delimitando as interpretações e trazendo certa rigidez à aplicação do Direito.
José Afonso da Silva (2209, p. 15-2), assenta que levar em conta a feição social estabelecida pelo Estado Democrático (o autor prefere essa designação a “Estado Social e Democrático de Direito”) é crucial para que a ordem e a certeza não derivem para o arbítrio.
Para Regina Maria Macedo Nery Ferrari (2007), a almejada segurança jurídica somente será obtida caso as normas pertencentes a um sistema jurídico sejam aplicadas em sintonia com os princípios constitucionais que informam esse sistema, o que permite certeza e igualdade indispensáveis à segurança.
Cabe encerrarmos nossas referências doutrinárias com o entendimento de Carmem Lúcia Antunes Rocha, que resume didaticamente a ideia ora esposada: “a segurança jurídica pode ser considerada como a certeza do individuo na correta aplicação dos valores e princípios de justiça absorvidos pelo sistema de direito adotado em determinada sociedade” (1997, p. 191).
Não há, portanto, conflito entre a aplicação dos princípios jurídicos e a segurança jurídica (e institutos dela decorrentes) em nosso Direito. O respeito àqueles resultará na observância, e na própria razão, desta.
6. Considerações finais à guisa de conclusão
É inevitável que em um país altamente demandista, com uma administração e, especialmente, um poder legislativo, ora ineficiente, ora desviante, que constantemente produz normas ou atos viciados, ilegais ou violadores da constituição, os princípios tenham um caráter de protagonismo.
Criticar, de plano, a superação do positivismo puro no emprego de princípios jurídicos pelos magistrados, em uma suposta defesa da segurança jurídica é, então, um contrassenso. Não somente porque a segurança jurídica é, em si, um princípio constitucional implícito, mas porquanto cabe ao Judiciáio, acima de tudo, proteger a segurança aos valores e fundamentos máximos do ordenamento.
A violação a esses fundamentos (direitos fundamentais, princípios do Estado de Direito), ferem frontalmente a estrutura e os objetivos do Estado, e, especialmente, a própria segurança jurídica.
Toda a nossa afirmativa não deve gerar a suposição de que não se deva discutir os limites, meios de controle, pacificação de temas difíceis, visando a certeza jurídica (como meio), e o respeito aos princípios republicanos basilares (como fim). O magistrado não pode se tornar um déspota e deve mesmo ser responsabilizado quando afasta esses valores se apega a interesses ou crenças pessoais (seja de que caráter for - religiosas, políticas, ideológicas).
Todavia, a problemática concernente a tais incertezas, incorreções ou mesmo arbitrariedades na aplicação do Direito não decorre propriamente dos princípios, mas são inerentes à própria noção do Judiciário como Poder Constitucional e às atribuições que lhe são conferidas.
Jamais se olvida a necessidade de aprimoramento. No entanto, as tentativas de refinamento dos métodos, ponderações, mesmo que através de condutas ou diretrizes impostas em regras escritas, deverão ser realizadas com a cautela devida e sempre considerando o papel da segurança jurídica no Estado Democrático de Direito.
Uma tentativa recente - encerremos nossas notas com essa última polêmica - é a alteração da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei 4.657/1942), promovida na tentativa de “elevar os níveis de segurança jurídica e de eficiência na criação e aplicação do direito público” (conforme Projeto de Lei do Senado n° 349, de 2015)[21]. A despeito de alguns avanços - e mesmo deixando de lado eventuais questionamentos quanto à constitucionalidade de certos dispositivos -, o fato é que os noveis artigos confundem uma primeira vista e devem ser objetos de estudo doutrinário e complexa hermenêutica. O emprego exagerado de conceitos indeterminados atraem uma confusão de sentidos nos dispositivos como um todo e não se sabe exatamente o que se pretende alcançar.
Para evitar que aquelas alterações resultem em soluções indevidas, a recomendação é que nos apeguemos aos princípios, de valoração mais clara. (E aí valeu o exemplo trazido). Mais uma vez, o protagonismo dos princípios se manifestará.
Referências:
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[1] “Positividade do direito vem assim a ser, ela própria, um pressuposto de sua certeza. Não pode haver direito certo que não seja positivo; e, do mesmo modo, pode dizer-se que assim como a positividade é da essência do próprio conceito dum direito certo, assim é da essência do direito positivo o ser certo” (RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito, p. 187 apud PAVAN, 2005).
[2] Há quem entenda que a segurança jurídica subsista mesmo fora do Estado de Direito, ainda que em níveis baixos (na esfera do direito privado, como reflexo de suas raízes romanas). Para Almiro do Couto e Silva (2004, p. 271-315): “Nos modernos regimes autoritários, como na Alemanha nazista ou na Rússia de Stalin, era semelhante ao que ocorria no Estado Absolutista. Nesses países e em outros que copiaram ou que ainda copiam seus modelos (China, Cuba etc.) por certo que em um oceano de ‘não direito’ podemos encontrar ilhas ou até mesmo continentes de ‘direito’, mas quase que exclusivamente nos domínios do direito privado, ou seja, nas relações entre os indivíduos. Nesse âmbito mais restrito será admissível falar em segurança jurídica, a qual, entretanto, é praticamente inexistente nas relações entre as pessoas e o Estado”.
[3] De forma mais didática em: SUNDFELD, 2007, p. 37-39.
[4] Conforme raciocínio bem desenvolvido por RADBRUCH (apud PAVAN, 2005), em nossa nota de rodapé n. 1.
[5] Vale ressalvar: a segurança jurídica não se confunde com a estabilidade social e institucional de Estados totalitários (teocratas ou autocratas), pois a previsibilidade e expectativa de segurança, nesses casos, estariam vinculadas à inércia das vontades dos governantes, bem como às capacidades militar e de conservação do poder - sem relação com as condições intrínsecas ao Estado de Direito que apresentamos.
[6] Ainda que não estejamos adstritos à teoria de ALEXY (2015), que toma os princípios como mandamentos de otimização, acertada é a constatação de que a generalidade, ainda que seja típica, não é decisiva para o conceito de princípio (ALEXY, 2015, p. 90). Com efeito, mesmo no atual ordenamento jurídico brasileiro, é possível a identificação de princípios com grau de generalidade maior ou menor (e.g. o princípio da moralidade e o princípio da motivação, respectivamente), o que não os definirá mais ou menos como princípios.
[7] Sem adentrar na conceituação de cada um deles, note-se apenas que tais institutos serão disciplinados e moldados de acordo com a evolução histórica e a carga ideológica de cada sistema. A exemplo, a prescrição tem contornos manifestamente distintos no Direito Penal e no Direito Ambiental, sendo muito mais significativa no primeiro, conforme a política criminal desenvolvida. Da mesmo forma, a feição desse instituto também sofrerá intensa variação de acordo com a evolução política, histórico e social (e com as necessidades) de cada Estado. O que se tem, todavia, é que tais figuras são sempre instituídas a favor da segurança jurídica.
[8] A Carta emprega o vocábulo “segurança” apenas em locuções de alcance mais restrito (segurança pública, nacional, alimentar, de edificações, do trânsito), mas sem relação direta com o conceito à baila.
[9] A expressão talvez possa ser empregada nas decisões que tomam por objeto políticas públicas, quando se discute eventual inobservância das competências constitucionais, especialmente do Poder Executivo, mas que não será objeto do presente trabalho, e tampouco se restringe à aplicabilidade dos princípios.
[10] O Welfare State, ou Estado Providência, desenvolvido em países europeus (e, à época, já em debate com o movimento neoliberal). José Afonso da Silva não recebe bem a expressão, preferindo falar em Estado Democrático de Direito, já englobando o valor da “justiça social” (SILVA, p. 115-121).
[11] José Afonso da Silva (2009) prefere se referir a “Estado Democrático”. Carlos Ari Sundfeld (2007) usa a expressão “Estado Social e Democrático de Direito”. A nomenclatura dependerá de cada critério adotado e não estenderemos o debate. O que é relevante, todavia são os valores e princípios em tela.
[12] O “qualificativo social refere-se à correção do individualismo clássico liberal pela afirmação dos chamados direitos sociais e realização de objetivos de justiça social” (VERDÚ, 1975, p. 55, apud SILVA, 2009, p. 115).
[13] Não se reconhecerá a validade (submissão ao a esse Direito), por exemplo, às cláusulas contratuais abusivas, com finalidades antissociais, ou que provoquem um desequilíbrio que leve à penúria alguma das partes. Do mesmo modo, o desenvolvimento econômico individual sempre observará a função social da empresa, da propriedade industrial, intelectual, a proteção da concorrência e ao desenvolvimento nacional.
[14] Isso não implica, por lógico, na impossibilidade de se analisar criticamente cada decisum, bem como de se propor instrumentos gerais visando ao maior controle sobre as manifestações judiciais (exigindo motivações claras e razoáveis), uniformização jurisprudencial, e mesmo uma maior responsabilização dos magistrados (v. Art.143 da Lei nº 13.105 de 2015).
[15] Estamos a nos referir à segurança jurídica tal como acima conceituamos. Por óbvio, a segurança pública, nacional, alimentar, de edificações, do trânsito, também serão vistas como finalidade no Estado Social e Democrático, e não como meio, eis que abrangidas pelo bem-estar social colocado como objetivo máximo deste Estado.
[16] Veja também Regina Maria Macedo Nery Ferrari, com referência a Recaséns Siches e César García Novoa: “o Direito, a partir do ponto de vista formal, não é um fim, mas um meio para assegurar a realização de certos fins que os homens reputam como de indispensável cumprimento” (2007, p. 201).
[17] “Modernamente o Direito se justifica também por outras metas a serem alcançadas e que vão desde a necessidade de se distribuir a justiça de um modo mais amplo, não adstrito à chamada justiça comutativa, que se orienta pela igualdade aritmética, mas contemplando ainda a justiça social” (NADER, 2015, p. 10).
[18] O conteúdo axiológico dos princípios é mais facilmente identificável que o das regras; como razões decisivas para inúmeras regras, os princípios têm uma importância substancial fundamental para o ordenamento jurídico (ALEXY, p. 109).
[19] "Não faltam indícios de que a distinção entre regras e princípios desempenha um papel no contexto dos direitos fundamentais. As normas de direitos fundamentais são não raro caracterizadas como “princípios”. Com ainda mais frequência, o caráter principiológico das normas de direitos fundamentais é sublinhado de maneira menos direta” (ALEXY, p. 86).
[20] Emprestando a noção de Ferraz Junior, 1994, p. 344
[21] A elaboração do projeto contou com a contribuição do ilustre professor e jurista Carlos Ari Sundfeld (a quem temos deferência), constante crítico da abordagem dos princípios por parte da doutrina brasileira e da forma que tem sido aplicados pelos magistrados.
Bacharel e Mestrando em Direito na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Advogado com experiência na área de Direito Público. Pesquisador no Grupo de Pesquisa "Meio Ambiente Urbano" (CNPq/PUC-SP). Atualmente, é assessor na Prefeitura da Cidade de São Paulo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FARIA, Eduardo Augusto Arteiro de. A aplicação de princípios e a segurança jurídica no Estado Social e Democrático de Direito - um reforço argumentativo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 jun 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51937/a-aplicacao-de-principios-e-a-seguranca-juridica-no-estado-social-e-democratico-de-direito-um-reforco-argumentativo. Acesso em: 23 dez 2024.
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