Neste ano de 2018, mais precisamente aos 5 de outubro, a atual Constituição brasileira completará 30 anos de existência. A assembleia nacional constituinte, instaurada na data do dia 01 de fevereiro de 1987[1], foi um marco político e jurídico da nação brasileira. Despontando na atuação diretiva, estavam, à maior evidência, Ulysses Guimarães, Bernardo Cabral e Humberto Lucena, cujo trabalho era, com desvelo minudente, acompanhado pela atenção popular. Estávamos em um momento delicado economicamente, com índices inflacionários inauditos, taxa de desemprego elevada e cerceamento obtuso de crédito. Porém, do ponto de vista estritamente político, o Brasil vivia um clima de esperança regozijante[2]. Tratou-se, sem dúvida, de um ato de revivescência nacional.
Tal esperança política, própria de tempos históricos onde há uma superação de ordens jurídicas ilegítimas e autoritárias[3], contagiou os constituintes brasileiros a ponto de elaborarem um documento constitucional extremamente ambicioso. A Constituição brasileira veio ao mundo com 250 artigos, divididos em 9 títulos[4], abrangendo desde os princípios fundamentais da República até o desporto e os impostos municipais. Sobreveio, ademais, concomitante à promulgação, dispositivo constitucional convocatório para a edição de emendas constitucionais de revisão[5]. Houve uma ingente lucubração para a feitura da Constituição, com a participação de um sem-número de entidades, órgãos de classe, sindicatos e da opinião pública em geral, o que culminou na feliz alcunha “cidadã” propugnada pelo Dr. Ulysses.
I – Avanços Institucionais na Constituição de 1988
O Texto constitucional de 1988 trouxe grandes avanços institucionais, garantindo a estabilidade e a relação democrática entre os poderes da República. O Ministério Público foi alçado à categoria de poder autônomo, atuando com liberdade na persecução penal e na fiscalização dos agentes políticos. Nos termos do art. 127, o Ministério público é uma instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, atuando, na condição de custos legis, na defesa do regime democrático e na proteção dos direitos e interesses sociais e individuais indisponíveis. De grande relevo é o § 2º do art. 128, que prevê a estabilidade do Procurador-Geral da República no cargo, só podendo ser destituído mediante a autorização da maioria absoluta do Senado Federal[6].
No alusivo ao controle jurisdicional de constitucionalidade, o art. 103 da Constituição ampliou significativamente o rol dos legitimados a ingressarem por via de ação direta no STF. Para além do Presidente da República e do Procurador-Geral da República, podem ajuizar ação direta de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal a mesa do Senado Federal, a mesa da Câmara dos Deputados, a Mesa da Assembleia legislativa do Distrito Federal, o Governador do Estado e do Distrito Federal, o Conselho Federal da OAB, partido político com representação no congresso nacional, confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
Aos magistrados, a Constituição garantiu a vitaliciedade no cargo, após dois anos de exercício, a inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, e a irredutibilidade de subsídio (art. 95, CF/88). Foi criado o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sendo de sua incumbência o controle administrativo e financeiro do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes[7].
A Constituição de 1988 também dispôs sobre a eficácia e a forma de internalização dos tratados e convenções de direito internacional, com especial ênfase para a proteção e realização prática dos direitos humanos. Consoante o art. 5º, § 3º, os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. O Decreto-legislativo nº 186, de 2008, internalizou a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência nos moldes do art. 5º, § 3º, tornando-o o primeiro, e até o momento único, ato internacional com status de emenda constitucional.
Não poderíamos olvidar da atividade profícua desempenhada pelo Supremo Tribunal Federal nestes 30 anos de judicatura sob o firmamento jurídico-constitucional de 1988. Célebres arestos, que entrarão para a história, foram prolatados pelo pretório excelso, como, por exemplo, o decisum que declarou inconstitucional a proibição de progressão de regime em casos de crimes hediondos[8], o julgamento que declarou inconstitucional a interpretação do código civil que requeira a autorização prévia para fins de publicação de biografias[9], a possibilidade de utilização de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas[10], o deferimento da execução provisória da pena após o julgamento em grau de apelação[11], a autorização da interrupção terapêutica da gravidez em casos de fetos anencéfalos[12], bem como o julgado que declarou recepcionada a lei de Anistia[13].
II – Balanço e Perspectivas
Desde os pródromos da redemocratização brasileira, a Constituição perpassou por diversos obstáculos econômicos, políticos, sociais e institucionais, porém, em nenhum momento, abargantou. Citemos os dois procedimentos de impeachment, em 1992 e 2016, a hiperinflação, os escândalos de corrupção e a sucessiva e sistemática edição de medidas provisórias e emendas constitucionais. Nada disso causou o excídio da normatividade constitucional, que se manteve íntegra e estável. Esta integridade e estabilidade deveu-se a vários fatores, dentre os quais o mais importante foi a estrita ligação cultural entre o texto e o espírito coletivo nacional. A constituição brasileira é plural, compromissória, comprometida com o Estado social e com o progresso econômico, sem descurar das liberdades individuais, erigidas à cláusula pétrea[14]. Reflete, portanto, a própria sociedade brasileira, com toda a sua complexidade e diversidade.
O Brasil vive uma das mais graves crises políticas da sua história. Existe uma repulsão popular aos mandatários do poder político, gerando uma profunda crise de representatividade democrático-parlamentar. O poder judiciário e o Ministério Público brasileiros, neste alusivo, estão na evidência dos fatos políticos, exercendo com intrepidez, nos limites da incumbência legal e constitucional, a persecução penal oriunda da malversação do erário público. Insta o apelo à garantia da ordem constitucional, que deverá sobrelevar-se às contingências políticas que assolam o país. O país já foi regido por oito constituições, e história testifica de que a ruptura com a ordem jurídica vigente não é a melhor opção. A saída da crise deverá ser sempre a constitucional
[1] A Assembleia Nacional Constituinte de 1987/88 foi convocada pela Emenda Constitucional nº 26, de 27 de novembro de 1985.
[2] Após a frustrante inadmissão da proposta de emenda constitucional Diretas Já, de 1984, capitaneada pelo deputado federal Dante de Oliveira (PMDB-MT).
[3] Veja-se o exemplo de Portugal que após a cognominada Revolução dos Cravos, aprovou a Constituição de 02 de abril de 1976, uma constituição tendente ao socialismo e à reestruturação radical da sociedade portuguesa.
[4] A Constituição brasileira é estruturada a partir de um preâmbulo, de 9 títulos e do chamado ato das disposições constitucionais transitórias (ADCT). Nominalmente, inicia-se com os princípios fundamentais, onde se encontram no título II os direitos e garantias fundamentais, a organização dos poderes, organização do Estado, a defesa do Estado e das Instituições democráticas, a tributação e o orçamento, a ordem econômica e financeira, a ordem social, as disposições constitucionais gerais.
[5] Foram aprovadas 6 emendas constitucionais de revisão no ano de 1994, com base no art. 3º do ADCT, tratando sobre o Fundo Social de Emergência, a fim de realocar os recursos provindos de impostos, sobre a aquisição originária da nacionalidade e sobre o período do mandato presidencial.
[6] Até 1988, o Procurador-Geral da República era destituível ad nutum, ou seja, por mero juízo de conveniência do Presidente da República.
[7] Não há que se falar de controle externo ao Poder Judiciário, já que o mesmo é composto por 9 magistrados e a própria Constituição o arrola dentre os órgãos do judiciário (art. 92, CF/88).
[8] HC 111246/AC, julgado aos 11.12.2012.
[9] ADI 4815/DF, min. Rel. Cármen Lúcia, julgado aos 10.06.2015.
[10] ADI 3510/DF, min. Rel. Ayres Britto, julgado aos 29.05.2008.
[11] HC 126292/SP, julgado aos 17.02.2016.
[12] ADPF 54/DF, min. Rel. Marco Aurélio, julgado aos 12.04.2012.
[13] ADPF 153/DF, min. Rel. Eros Grau, julgado aos 29.04.2010.
[14] Na esteira da dogmática constitucional alemã, as chamadas ewigkeitsklausen são perpétuas, não podendo ser modificadas por reforma constitucional, consubstanciando o elemento de identidade constitucional. No Brasil, o art. 60, § 4º, prescreve as seguintes normas como pétreas: I) Estado federado; II) Separação dos poderes; III) voto direto, secreto, periódico e universal; IV) direitos e garantias individuais.
Advogado e Professor de Direito Constitucional (ESA/OAB-RS)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FUHRMANN, Italo Roberto. A Constituição Brasileira de 1988 nos seus 30 anos de existência: Balanço e Perspectivas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 jun 2018, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51959/a-constituicao-brasileira-de-1988-nos-seus-30-anos-de-existencia-balanco-e-perspectivas. Acesso em: 23 dez 2024.
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