RESUMO: O presente trabalho busca analisar os sentidos ou concepções do termo Constituição, apresentando os sentidos clássicos trabalhados na doutrina (sociológico, jurídico, político e cultural) e o sentido moderno (contemporâneo) desenvolvido por Niklas Luhmann, abordando, quanto a este último, os fenômenos da autopoiesis do acoplamento estrutural.
Palavras-chave: Constituição. Concepções Clássicas. Sentido Moderno. Niklas Luhmann. Autopoiesis. Acoplamento Estrutural.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. SENTIDOS CLÁSSICOS DO TERMO CONSTITUIÇÃO. 2.1 Sentido Sociológico. 2.2 Sentido Jurídico. 2.3 Sentido Político. 2.4 Sentido Culturalista. 3. SENTIDO MODERNO (CONTEMPORÂNEO) DESENVOLVIDO POR NIKLAS LUHMANN. 3.1 Autopoiesis. 3.2. Acoplamento Estrutural. 4. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS
1. INTRODUÇÃO
De início, registre-se que, ao conceituar ou classificar qualquer instituto, surgirão diversos critérios, não sendo um mais certo que o outro, talvez, no máximo, mais adequado. Assim, apresentamos, na oportunidade, aqueles mais abordados pela doutrina, não obstante as posições modernas (contemporâneas) serem também de grande relevância no âmbito jurídico.
Desta feita, apresentaremos os sentidos clássicos de “Constituição” trabalhados na doutrina, abordando, em seguida, o sentido complexo desenvolvido pela moderna Teoria da Constituição de Niklas Luhmann.
2. SENTIDOS CLÁSSICOS DO TERMO CONSTITUIÇÃO
Com efeito, existem vários sentidos ou concepções a serem tomadas para definir o termo “Constituição”. Alguns doutrinadores preferem a ideia da expressão tipologia dos conceitos de Constituição em várias acepções.
Consoante doutrina de Bernardo Gonçalves Fernandes[1], iniciando pela perspectiva clássica, temos os seguintes sentidos (ou concepções): sociológico; jurídico; político; e culturalista de Constituição.
2.1 Sentido Sociológico:
Valendo-se do sentido sociológico, Ferdinand Lassalle desenvolveu sua análise sobre o sentido e conceituação de uma constituição em obra escrita em 1863 e intitulada “A essência da Constituição”. O autor ganhou notoriedade ao afirmar que devemos distinguir a verdadeira e efetiva “Constituição”, daquela que identifica e explicita a dinâmica de poder estabelecida em uma sociedade, em relação à da Constituição escrita, que como qualquer documento equivale a uma mera “folha de papel”.
Sendo assim, uma investigação sobre qual seja a “Constituição” real e efetiva de um Estado e de uma sociedade transborda e ultrapassa os limites da ciência jurídica, sendo, na realidade, um problema dos sociólogos e dos cientistas políticos, que seriam mais aptos a identificar na dinâmica social os verdadeiros centros de poder e de decisão presentes nessa sociedade e os interesses aos quais esse poder serve (que no século XIX se caracterizava na figura do monarca, de uma aristocracia, de uma grande burguesia ou dos banqueiros; apenas em casos extremos ter-se-ia a corporificação na forma de um poder inorgânico, que seria o povo, compreendido este como a união de uma pequena burguesia e da classe operária).
Portanto, o que denominou de “fatores reais de poder” seriam o conjunto de forças que atuariam para a manutenção das instituições de um país em um dado momento histórico. Nesses termos, a Constituição escrita (folha de papel) seria adequada se, e somente se, correspondesse aos fatores reais de um determinado País, pois se isto não acontecer, conforme, já citado, sucumbiria diante da Constituição real que efetivamente regularia a sociedade. Portanto, em sentido sociológico, a Constituição é entendida como os fatores reais de poder que regem uma sociedade. Ressalte-se que Lassalle foi um dos precursores do que atualmente intitulamos de sociologia jurídica.
Em resumo, Ferdinand Lassale defendeu que uma Constituição só seria legítima se representasse o efetivo poder social, refletindo as forças sociais que constituem o poder. Caso isso não ocorresse, ela seria ilegítima, caracterizando-se como uma simples “folha de papel”. A Constituição, segundo a conceituação de Lassale, seria, então, a somatória dos fatores reais do poder dentro de uma sociedade.
2.2 Sentido Jurídico:
Hans Kelsen é o representante desse sentido conceitual. No quadro da “Teoria Pura do Direito”, Kelsen pretende expurgar do universo da ciência do direito todo e qualquer conteúdo que não possa ser reduzido ao critério de validade, ou seja, o fato de encontrar em uma norma que lhe é hierarquicamente superior a sua autorização para existência no mundo jurídico.
Nessa perspectiva, então, a Constituição adquire um significado exclusivamente normativo: ela se transforma no conjunto de normas mais importantes de um Estado conforme um critério hierárquico.
A partir desse ponto, toda e qualquer norma deve encontrar sua validade no texto constitucional, razão pela qual autores imaginam um diagrama da teoria da validade normativa kelseniana como uma pirâmide e sempre colocando a Constituição em seu ápice.
Kelsen traz 2 (dois) sentidos jurídicos para a constituição: lógico-jurídico e jurídico-positivo.
No sentido lógico-jurídico, a constituição deve ser entendida à luz do conceito de norma fundamental. Esta, definitivamente não é posta no ordenamento, mas sim pressuposta por ele. A norma fundamental está no topo do Ordenamento Jurídico e possui duas funções: 1) dar fundamento de validade a todo sistema: ela autoriza o Poder Constituinte Originário a elaborar a Constituição e determina que todos devem cumprir a Constituição; 2) Fechar o sistema jurídico: porque a norma fundamental nunca será posta por alguém, ela, como já citado, é suposta (pressuposto lógico transcendental), sendo uma convenção para que o sistema não se torne infinito sendo o ponto de início e o de final, ou seja, onde tudo começa e termina no sistema jurídico.
Nesses termos, uma norma é válida, como salientado, acima quando uma norma hierarquicamente superior dá validade a ela, e assim sucessivamente, até chegar à Constituição. E qual seria o fundamento de validade da Constituição? O fundamento de validade da Constituição é a norma fundamental (convenção lógico-transcendental). O fundamento de validade da norma fundamental é a própria norma fundamental, uma vez que ela dá fundamento de validade a outras normas e fecha o sistema.
Sem dúvida, Kelsen não quer saber se uma norma é justa ou injusta, e sim se é válida.
Por outro lado, quanto ao sentido jurídico-positivo, é a norma superior, ou seja, é a constituição como norma superior do Ordenamento Jurídico, que dá validade a todas as outras normas do sistema. Leia- se o sentido jurídico positivo é a “norma constitucional propriamente dita.”
José Afonso da Silva, traduzindo o pensamento de Kelsen, conclui que
“... constituição é, então, considerada norma pura, puro dever-ser, sem qualquer pretensão a fundamentação sociológica, política ou filosófica. A concepção de Kelsen toma a palavra Constituição em dois sentidos: no lógico-jurídico e no jurídico-positivo. De acordo com o primeiro, Constituição significa norma fundamental hipotética, cuja função é servir de fundamento lógico transcendental da validade da Constituição jurídico-positiva, que equivale à norma positiva suprema, conjunto de normas que regula a criação de outras normas, lei nacional no seu mais alto grau.” (José Afonso da Silva, Curso de direito constitucional positivo, p. 41)
2.3 Sentido Político:
Na lição de Carl Schmitt, encontramos o sentido político, que distingue Constituição de lei constitucional. Para ele, a Lei Constitucional estaria subordinada à Constituição.
Segundo tal teoria, toda a normatividade do direito deveria ser atribuída a uma “decisão política” concreta, cuja magnitude e importância seriam responsáveis por dar forma e unificar a vontade política existente em uma comunidade; a esse ato, designar-se-ia Constituição.
Desse modo, a Constituição seria a decisão política fundamental do povo, seria um ato de exercício da autoridade politicamente existente, que imporia sua vontade em consonância com a aclamação popular e, a partir daí, daria existência jurídica as “leis constitucionais”.
Como consequência, ao Estado, caberia a tarefa de superar o hiato que se estabeleceria entre “normas” e “fatos sociais”, superando-o e reduzindo tanto os elementos normativos quanto fáticos à luz dessa “decisão política” anterior.
Para Schmitt, a essência da Constituição está alocada nas decisões políticas fundamentais do (titular) Poder Constituinte (que seria o povo) e não em normas jurídicas positivadas, o que o coloca em posição contrária e oposta àquela delineada pelo sentido (concepção) jurídico-normativo de Constituição de viés kelseniano anteriormente apresentado.
Constituição, conforme pondera José Afonso da Silva ao apresentar o pensamento de Schmitt, “... só se refere à decisão política fundamental (estrutura e órgãos do Estado, direitos individuais, vida democrática etc.); as leis constitucionais seriam os demais dispositivos inseridos no texto do documento constitucional, mas não contêm matéria de decisão política fundamental”.[2]
Pode-se afirmar, portanto, em complemento, que, na visão de Carl Schmitt, em razão de ser a Constituição produto de certa decisão política, ela seria, nesse sentido, a decisão política do titular do poder constituinte.
2.4 Sentido culturalista:
Nesse sentido, pode-se dizer que a Constituição é produto da cultura (fato cultural). Trabalha de forma complementar todas as concepções descritas acima (sociológica, jurídica e política) desenvolvendo a lógica de que a Constituição possui fundamentos diversos arraigados em fatores de poder, decisões políticas do povo e normas jurídicas de dever ser vinculantes.
Dessa premissa, nasce a ideia de uma constituição total com a junção dos aspectos econômicos, sociológicos, políticos, jurídico-normativos, filosóficos e morais a fim de construir uma unidade para a Constituição. Nesse diapasão, a Constituição se coloca como um conjunto de normas fundamentais condicionadas pela cultura total e, ao mesmo tempo, condicionante, numa perspectiva eminentemente dialética.
Assim, a Constituição é determinada pela cultura, pois é fruto de pré-compreensões da sociedade, na qual ela está inserida, mas também atua como elemento conformador do sentido de aspectos da cultura. Desta feita, ela é condicionada, mas também é condicionante.
Acerca do conceito culturalista de Constituição, Meirelles Teixeira preleciona[3]:
“... as Constituições positivas são um conjunto de normas fundamentais, condicionadas pela Cultura total, e ao mesmo tempo condicionantes desta, emanadas da vontade existencial da unidade política, e reguladoras da existência, estrutura e fins do Estado e do modo de exercício e limites do poder político”.
3. SENTIDO MODERNO (CONTEMPORÂNEO) DESENVOLVIDO POR NIKLAS LUHMANN
Posteriormente às concepções clássicas, surgem as digressões de cunho crítico-reflexivo sobre as Constituições. São intituladas de concepções ou sentidos modernos (contemporâneos) de Constituição. Essas concepções irão envolver os autores: J. J. Gomes Canotilho, Niklas Luhmann, Jürgen Habermas, Peter Häberle, Konrad Hesse, Marcelo Neves e José Adércio Leite Sampaio. Abordaremos aqui a Constituição para a Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann.
Com efeito, Niklas Luhmann é um dos mais importantes sociólogos jurídicos dos últimos tempos, ganhando destaque no universo internacional ao desenvolver sua Teoria Sistêmica da Sociedade. Segundo referida teoria, com a Modernidade, a sociedade passou a se constituir a partir de diversos sistemas (ou subsistemas) sociais especializados (Política, Direito, Religião, Cultura, Ciência, Economia etc.), de modo que cada um assumisse reações próprias e uma linguagem (a partir de um processo de codificação) própria.
Com base nessa ideia, Luhmann parte da distinção entre o sistema e seu ambiente (entorno ou mundo circundante), concluindo que cada sistema é, portanto, fechado do ponto de vista operacional e organizado a partir de seu código.
Nesse contexto, não há comunicação entre sistema e seu ambiente (autopoiesis), de modo que todos os acontecimentos externos são codificados e traduzidos pelo sistema a partir de sua linguagem própria. É esse código que permitirá a organização do sistema, dotando-o de identidade e diferenciando-o dos demais sistemas sociais. Para tanto, Luhmann faz uso de uma diferenciação binária funcional que separa o sistema de seu ambiente.
Todavia, para que isso funcione no nível da sociedade, assistiremos a determinados fenômenos que provocam uma “irritação” mútua entre dois sistemas sociais, sendo lido por cada um, à luz de seu código – e por isso, diferentemente. A tal fenômeno, Luhmann chama de acoplamento estrutural. É sob esse prisma que a Constituição será compreendida.
Portanto, funcionalmente, a Constituição é o produto de um acoplamento estrutural entre os sistemas do Direito e da Política.
Cabe ao Direito estabilizar expectativas sociais de comportamento, ou seja, diante de um futuro incerto, a ordem jurídica estabelece condutas que serão esperadas por todos os seus demais membros, forjando uma ideia de previsibilidade. Contudo, tal relação que se estabelece entre mudança social e expectativas de comportamento se dá de modo idealizado.
Nesse ponto é que decorre a necessidade de o Direito “irritar” a Política e vice-versa, permitindo uma separação mútua. O Direito parece depender da Política para dotar de legitimidade suas normas, já que esta faz uso do poder para garantir acatamento social a suas determinações, e com isso, permitir estabilizações. Por outro lado, a Política se utiliza do Direito para diversificar o uso do poder politicamente concentrado.
Nada obstante, isso não confunde ambos os sistemas sociais, ficando intacta a divisão funcional. De modo diferente do direito, a política utiliza-se do meio do poder, de modo que o poder político se articule como um poder indicativo superior que ameaça com seu caráter obrigatório.
Para Giancarlo Corsi[4] - discípulo de Luhmann –, se perguntarmos aos juristas o que é a “Constituição”, encontraremos respostas bastante heterogêneas, mas que compartilham da ideia de que a Constituição é importante, sobretudo, porque marca a imposição do Direito positivo sobre o Direito natural, ou seja, porque vincula-se com a forma completa o poder, e também, porque é universal: nisso se encontra sua novidade e sua ruptura com as representações normativas do passado.
Sob um olhar histórico das Revoluções Francesa e Norte-Americana, Luhmann conclui que é na figura da Constituição que se dá a total separação de ambos os sistemas quanto às suas de funções e, simultaneamente, a consequente necessidade de uma religação entre eles.
Segundo a doutrina de Giancarlo Corsi,
“[Por] ’acoplamento estrutural de direito e política’, entendendo-se esses como dois diferentes subsistemas da sociedade atual. Com essa formulação – muito abstrata, como sempre quando se trata da teoria dos sistemas – pretende-se descrever a situação na qual dois sistemas são completamente autônomos e, mediante uma estrutura comum (no caso, a Constituição), especificam, de modo extremamente circunscrito e seletivo, as possibilidades de ‘se irritarem’ reciprocamente; no nosso caso, basta pensar na legislação como constante fator de irritação do Direito por parte da Política. Diversamente do que pode parecer à primeira vista, portanto, a invenção da Constituição é, sobretudo, uma reação à diferenciação (moderna) entre Direito e Política e uma tentativa de resolver (ou esconder!) os seus problemas: o problema da soberania popular e o problema da positivação (autodeterminação) do Direito.”[5]
Nesse contexto, a Constituição passa a ser o vetor de ordenação do código direito/não direito e, com isso atuando para a fundação da validade do direito. Ou seja, a ideia moderna de Constituição permite ao Direito a sua autofundação sem que tenha de apelar para elementos externos ao próprio Direito – como acontecia com a tradição do Direito Natural. Desse modo, o Direito, por meio da Constituição, fecha-se com relação ao seu ambiente.
Já no sistema da política, fenômeno similar acontece: a Constituição funciona como elemento legitimizador da vontade política, justificando-a e desamarrando-a da vinculação a fundamentos éticos, religiosos, morais, econômicos etc.
Em síntese, para Luhmann, a Constituição é um elemento funcional na estruturação tanto do sistema jurídico quanto do sistema político. Entretanto, tal comunhão não significa que ambos a compreendam com o mesmo significado. Para a Política, a Constituição é instrumento de legitimação da vontade soberana. Para o Direito, a Constituição é elemento de fundação das suas normas, sem recurso a um suposto Direito Natural.
Em sua tese de doutorado, intitulada Horizontes da Justiça: complexidade e contingência no sistema jurídico (2013), Ulisses Schwarz se propõe ao estudo e à análise da teoria dos sistemas, em sua versão luhmanniana, nos limites do necessário à perquirição e à investigação da peculiar concepção de justiça desenvolvida por Niklas Luhmann em sua teoria sociológica do direito, a qual, por sua vez, está inserida em sua teoria geral dos sistemas e compartilha dos conceitos fundamentais desta, tais como: autopoiese, complexidade, contingência, comunicação, recursividade, redundância, variedade, observação de segunda ordem, cibernética de segunda ordem, autorreferência, heterorreferência e, de modo central, a distinção fundamental entre sistema e ambiente.
Para Ulisses Schwarz, é tema relevante a análise descritiva do conceito de autopoiese, exatamente porque se cuida de elemento que constitui, na fase madura da teoria, todo o eixo de desenvolvimento do pensamento de LUHMANN sobre o direito, a partir da publicação de Das Recht der Gesellschaft (1995), obra em que se cristaliza sua compreensão sistêmico-autopoiética do sistema jurídico.
Nas palavras de Ulisses Schwarz,
“pela autopoiese o sistema se (re)produz por seus próprios elementos, ou seja, a autopoiese significa produção do sistema por ele mesmo (LUHMANN, 1997: 97). Como tratado na tese, o conceito da autopoiese centra-se na concepção de um fechamento operacional que permite a distinção entre sistema (System) e ambiente (Umwelt) [...] A inovadora postura teórica de LUHMANN não deixa incólume sua sociologia do direito, isto porque a adoção, em sua teoria dos sistemas sociais do conceito de autopoiese trouxe consigo a questão da autorreferência (Selbstreferenz), da heterorreferência (Fremdreferenz) e da autodescrição (Selbstbeschreibung) do sistema jurídico e de seu fechamento operacional (operative Geschlossenheit) (LUHMANN, 1995: 45-46), o qual pressupõe programas condicionais – normas e procedimentos jurídicos – regidos por uma lógica comunicativa interna sob a égide do código binário do ‘direito x não-direito’, no qual ficaria sem qualquer função o valor binário ‘justo x injusto’.”[6]
Assim, ao transpor a ideia da autopoiese para sua teoria sociológica, Niklas Luhmann adaptou-a a seu postulado teórico para explicar como os sistemas sociais se produzem, tratando a expressão autopoiese como um derivado do conceito de produção, juntamente com o termo reprodução.
O conceito de autopoiese em Luhmann passa a ser utilizado para explicar tanto a emergência dos sistemas sociais, como também seu desenvolvimento e seus processos operativos, colocando estes aspectos dentro de uma perspectiva de evolução sistêmica.
Ao radicar o conceito da autopoiese em sua teoria, Luhmann formula o elemento central da reprodução autopoiética dos sistemas sociais que está na distinção entre sistema (System) e ambiente (Umwelt).
Em seguida, tece, em sua tese, considerações conceituais acerca dos ‘acoplamentos estruturais’ (strukturelle Kopplungen), nos seguintes termos:
“Para sintetizar a idéia do acoplamento estrutural, Luhmann recorre ao conceito de Interpenetration (interpenetração) entre dois sistemas autopoiéticos, em função de que ocasionalmente executam operações sobre os mesmos valores ou valores complementares, que em certas situações fazem que os sistemas operem de modo ‘unificado’.
O acoplamento estrutural (strukturelle Kopplung) deriva da circunstância de que, em dados momentos, ao serem observados de fora, ou seja, por um observador externo, os sistemas se apresentem unificados e em coevolução interdependente. Este fenômeno decorre de eventual compartilhamento de valores mútuos ou complementares. Assim, apesar de se desenvolverem autopoieticamente em sua autorreferência e em seu correspondente fechamento operacional, os sistemas envolvidos criam e recriam programações a partir de suas próprias operações. Em certas situações, para a manutenção da preservação das estruturas e operações, esses mesmos sistemas se colocam diante da contingência de operarem em conjunto e se interpenetrarem, formando o acoplamento estrutural (strukturelle Kopplung) por necessidade de ‘sobrevivência operacional’.
Correlaciona-se a essa ideia a concepção de LUHMANN de que o sistema geral da sociedade se desenvolve e se reproduz na realização dos sistemas funcionais autopoiéticos e seus acoplamentos estruturais, os quais geram as necessárias irritações recíprocas
Os sistemas parciais, pelo processo de admissão ou de exclusão das irritações advindas do ambiente, somente podem evoluir conjuntamente na forma do structural drift, o qual viabiliza a criação de estruturas sociais coordenadas.
Por outro lado, exemplos importantes de acoplamentos estruturais mencionados por LUHMANN são o do sistema jurídico com o sistema político por meio da Constituição (Verfassung) (2000: 391), do sistema jurídico com o sistema econômico por meio dos contratos (Verträge). Estes exemplos são esclarecedores da função dos acoplamentos, pois, no caso específico da Constituição, temos uma canalização constante de irritações entre política e direito em torno de temas políticos em sua origem que passam a ser temas de decisões jurídicas, como no caso dos elementos de direito eleitoral constantes fundamentalmente do modelo de democracia (direta ou indireta) e dos modelos de sistemas eleitorais, regrados no texto constitucional, dentre outros temas.
Os acoplamentos estruturais como canais de amplificação das irritações (Irritationen) e estímulos (Reizen) que os sistema se dirigem reciprocamente e que são por eles vistos, por sua perspectiva autorreferencial, como eventos produzidos no ambiente social capazes de promover ressonâncias (Resonanzen) em suas operações autopoiética. Esses estímulos ou irritações sensibilizantes da percepção autorreferente do subsistema, no nosso caso especificamente do sistema jurídico, servem de mecanismos de ativação de sua abertura cognitiva (kognitive Öffnung), o que representam no campo temático desta tese uma possibilidade de sensibilização do sistema para necessidade de processamento redutor da complexidade e da contingência como elementos relacionados à questão da justiça na visão de Niklas LUHMANN, quer seja dentro de sua formulação como adequada complexidade, quer seja como fórmula de contingência.
No contexto temático desta tese, os acoplamentos estruturais surgem como mecanismos de ampliação do que denominamos nesta tese de horizontes da justiça.”[7]
4. CONCLUSÃO
Diante do exposto, constata-se que para Luhmann, a Constituição é um elemento funcional na estruturação tanto do sistema jurídico quanto do sistema político. Todavia, tal comunhão não significa que ambos a compreendam com o mesmo significado. Para a Política, a Constituição é instrumento de legitimação da vontade soberana. Para o Direito, a Constituição é elemento de fundação das suas normas, sem recurso a um suposto Direito Natural.
Quanto ao fenômeno da Autopoiese, Luhmann parte da distinção entre o sistema e seu ambiente (entorno ou mundo circundante). Cada sistema é, portanto, fechado do ponto de vista operacional e organizado a partir de seu código. Logo, não há comunicação entre sistema e seu ambiente (autopoiesis). Todos os acontecimentos externos são codificados e traduzidos pelo sistema a partir de sua linguagem própria. É esse código que permitirá a organização do sistema dotando-o de identidade e diferenciando-o dos demais sistemas sociais.
Por outro lado, consigna Acoplamento Estrutural como o fenômeno que provoca uma “irritação” mútua entre dois sistemas sociais, sendo lido por cada um, à luz de seu código – e por isso, diferentemente. A isso, Luhmann chama de acoplamento estrutural. É sob esse prisma que a Constituição será compreendida. Funcionalmente, então, a Constituição é o produto de um acoplamento estrutural entre os sistemas do Direito e da Política. Ao Direito, cabe estabilizar expectativas sociais de comportamento, ou seja, diante de um futuro incerto, a ordem jurídica estabelece condutas que serão esperadas por todos os seus demais membros, forjando uma ideia de previsibilidade.
Todavia, tal relação que se estabelece entre mudança social e expectativas de comportamento se dá de modo idealizado (contrafático). É, justamente, nesse ponto que decorre a necessidade de o Direito “irritar” a Política e vice-versa, permitindo uma separação mútua. De um lado, o Direito parece depender da Política para dotar de legitimidade suas normas, já que esta faz uso do poder para garantir acatamento social a suas determinações, e com isso, permitir estabilizações. De outro, a Política se utiliza do Direito para diversificar o uso do poder politicamente concentrado.
REFERÊNCIAS
FERNANDES. Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 7. Ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2015.
SILVA. José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 36 ed. Ver. São Paulo: Malheiros, 2013.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
TEIXEIRA. J. H. Meirelles. Curso de direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1991.
LUHMANN, Niklas. La costituzione come acquisizione evolutiva. In: ZAGREBELSKY, Gustavo et AL. (Coords.). ll futuro della Constituzione. Torino: Einaudi, 1996.
CORSI, Giancarlo. Sociologia da Constituição. Disponível em http://www.unigran.br/revista_juridica/ed_anteriores/08/artigos/08.pdf. Acessado em 10-07-2018.
VIANA. Schwarz Ulisses. Horizontes da Justiça: complexidade e contingência no sistema jurídico. Disponível em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2139/tde-11062014-110504/pt-br.php. Acessado em 08-07-2018.
[1] FERNANDES. Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. p. 72.
[2] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. p. 40.
[3] TEIXEIRA. J. H. Meirelles. Curso de direito constitucional. p. 77-78.
[4] CORSI, Giancarlo. Sociologia da Constituição. p. 171.
[5] CORSI, Giancarlo. Sociologia da Constituição. p. 172-173.
[6] VIANA. Schwarz Ulisses. Horizontes da Justiça: complexidade e contingência no sistema jurídico.
[7] VIANA. Schwarz Ulisses. Horizontes da Justiça: complexidade e contingência no sistema jurídico.
Advogada. Bacharel em Direito pela Universidade de Fortaleza.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VIDAL, Larissa Colangelo Matos. Constituição: uma abordagem da concepção moderna à luz da doutrina de Niklas Luhmann Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 jul 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52087/constituicao-uma-abordagem-da-concepcao-moderna-a-luz-da-doutrina-de-niklas-luhmann. Acesso em: 23 dez 2024.
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