RESUMO: A implementação dos direitos fundamentais previstos na Constituição depende essencialmente da capacidade econômica do Estado. Estes direitos não são absolutos, mas também não podem restar sistematicamente inobservados em razão da falta de recursos para sua implementação total. O presente trabalho acadêmico assume a existência de custos para a garantia de direitos fundamentais e pretende analisar de que forma o Estado pode estruturar políticas públicas para a consecução progressiva e integral destes direitos.
Palavras-chave: Direitos fundamentais. Custo dos direitos. Limitação econômica. Escolhas trágicas. Ponderação econômica. Planejamento estatal. Transparência das prioridades. Macroponderação.
ABSTRACT: The implementation of the fundamental rights predicted in the Constitution depends essentially on the economic capacity of the State. These rights are not absolute but cannot be systematically left unobserved because of the lack of resources for full implementation. This academic work assumes the existence of costs to guarantee the fundamental rights and intends to analyze how the State can structure public policies for the progressive and integral realization of these rights.
Keywords: Fundamental rights. Cost of rights. Economic limitation. Tragic choices. Economic weighting. State planning. Transparency of priorities. Macro weighting.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO – 2. ACUMULAÇÃO HISTÓRICA E COEXISTÊNCIA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS – 3. O CUSTO DE IMPLEMENTAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E AS LIMITAÇÕES DO ESTADO – 4. PONDERAÇÃO DE VALORES COMO INSTRUMENTO PARA A SOLUÇÃO DE CONFLITOS HERMENÊUTICOS – 5. PONDERAÇÃO ECONÔMICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO MECANISMO DE ORGANIZAÇÃO E ESTRUTURAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS – 6. CONCLUSÃO – 7. REFERÊNCIAS.
1. INTRODUÇÃO
A doutrina constitucional clássica ensina que o atual sistema de direitos fundamentais foi construído de maneira periódica, conforme as demandas jurídicas do contexto histórico de cada época evolutiva da humanidade.
Esse ciclo progressivo de surgimento de novos direitos fundamentais não importou na extinção dos anteriormente reconhecidos, o que levou ao acúmulo e coexistência de dimensões a serem simultaneamente garantidas pelo Estado.
A implementação de direitos fundamentais, sejam os negativos, positivos ou de solidariedade, exige do Estado o emprego de recursos financeiros. Neste cenário exsurge o conflito entre o dever e a capacidade econômica limitada.
Em razão dessa constrição financeira, alguns direitos são cotidianamente desrespeitados em detrimento de outros. O Estado é submetido diariamente à árdua tarefa de escolher qual direito e em que extensão será atendido.
Neste trabalho acadêmico o autor faz uma breve leitura da evolução dos direitos fundamentais, discorre sobre seus custos econômicos e sobre a necessidade de escolhas cotidianas por parte do Estado. Na conclusão o autor ousa sugerir que o princípio da relatividade e sua consectária técnica interpretativa da ponderação sejam utilizados também no campo prático, conformando a implementação dos direitos fundamentais à realidade econômica do Estado, bem como que a macro ponderação predeterminada é instrumento capaz de garantir, ao mesmo tempo, segurança jurídica e eficiência progressiva na implementação desta sensível classe de direitos.
2. ACUMULAÇÃO HISTÓRICA E COEXISTÊNCIA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
Os direitos fundamentais de primeira dimensão, a exemplo dos direitos civis, políticos e de propriedade, constituem liberdades públicas negativas, usualmente relacionadas à imunidade de intervenção do Estado justamente porque, na sua origem, eram opostos aos regimes absolutistas.
Seus fundamentos primordiais encontram-se na Magna Carta inglesa de 1215, quando o Rei João acordou com os barões ingleses limites e procedimentos regulamentares para o desempenho do poder monárquico.
Mais tarde, o conteúdo dos direitos fundamentais ganhou nova projeção a partir de movimentos liberais notórios que culminaram em documentos como a Bill of Rights, de 1689, na Inglaterra, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa, em 1789, e a Declaração de Direitos do Estado da Virgínia e da Independência dos Estados Unidos, de 1776.
O doutrinador Paulo Bonavides discorre que, tais direitos têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam subjetividade como seu traço mais peculiar[1].
Na mesma esteira, assenta Paulo Branco:
Pretendia-se, sobretudo, fixar uma esfera de autonomia pessoal refratária às expansões do Poder. Daí esses direitos traduzirem-se em postulados de abstenção dos governantes, criando obrigações de não fazer, de não intervir sobre aspectos da vida pessoal de cada indivíduo. São considerados indispensáveis a todos os homens, ostentando, pois, pretensão universalista. Referem-se a liberdades individuais, como a de consciência, de reunião e, à inviolabilidade de domicílio. São direitos em que não desponta a preocupação com desigualdades sociais.[2]
Tempos depois, a Revolução Industrial eclodiu na segunda metade do século XIX, estabelecendo nova fronteira de enfrentamento jurídico quanto aos direitos fundamentais e humanos. Houve um amplo rearranjo nas relações sociais e da própria sociedade com o Estado, em que se passou a demandar a distribuição da riqueza, o acesso universalizado aos serviços públicos e a igualdade material.
O grande vácuo deixado pelo Estado absenteísta, retraído pela concepção liberal, permitiu a “exploração do homem pelo homem” e a expansão do capitalismo industrial. Os abastados detentores do capital e controladores do poder político, sob a égide da igualdade formal, subjugavam os demais cidadãos a condições subumanas de vida.
Esse contexto demandou um novo viés intervencionista do Estado que, respeitando o patamar de liberdade alcançado, foi convocado a garantir igualdade material entre particulares.
Conforme explica Carlos Simões, a igualdade, até então limitada formalmente à aplicação da lei, passou a ser reivindicada também no âmbito da aplicação de seus resultados, mediante desequiparação legal[3].
Arremata Paulo Branco, em lições sobre as gerações de direitos fundamentais:
O descaso com problemas sociais, que veio a caracterizar o État Gendarme, associado às pretensões decorrentes da industrialização em marcha, o impacto do crescimento demográfico e o agravamento das disparidades no interior da sociedade, tudo isso gerou novas reivindicações, impondo ao Estado o papel ativo na realização da justiça social. O ideal absenteísta do Estado liberal não respondia, satisfatoriamente, às exigências do momento. Uma nova compreensão do relacionamento Estado/sociedade levou os Poderes Públicos a assumir o dever de operar para que a sociedade lograsse superar as suas angústias estruturais. Daí o progressivo estabelecimento pelos Estados de seguros sociais variados, importando intervenção intensa na vida econômica e a orientação das ações estatais por objetivos de justiça social. Como consequência, uma diferente pletora de direitos ganhou espaço no catálogo dos direitos fundamentais – direitos que não mais correspondem a uma pretensão de abstenção do Estado, mas que o obrigam a prestações positivas. São os direitos de segunda geração, por meio dos quais se intenta estabelecer uma liberdade real e igual para todos, mediante ação corretiva dos Poderes Públicos. Dizem respeito a assistência social, saúde, educação, trabalho, lazer etc.[4]
Essa fase de desenvolvimento dos direitos fundamentais é marcada, portanto, pelas lutas por direitos sociais em complementação aos direitos civis, políticos e de propriedade inspirados no antigo ideal liberal.
O conceito de cidadania passou a demandar avanços no plano social, consubstanciados na distribuição igualitária da riqueza, no acesso aos serviços públicos e na igualdade material. Como bem sintetiza Piovesan, do primado da liberdade transita-se ao primado do valor da igualdade, objetivando-se eliminar a exploração econômica[5].
Ao contrário dos direitos de resistência até então vigentes, os cidadãos, principalmente os trabalhadores, passaram a exigir do Estado determinadas prestações materiais e sua atuação como formulador ativo de políticas sociais.
Ao final da Primeira Guerra Mundial e como resultado das conquistas sociais dos trabalhadores durante o século anterior, a assinatura do Tratado de Versalhes e a Constituição de Weimar culminaram com a Declaração do Estado de Bem-Estar Social e dos direitos sociais clássicos (função social da propriedade, direitos do trabalho, reforma agrária, sindicatos e previdência social). Dois anos após o final da Segunda Grande Guerra, a ONU assinou a Declaração Universal dos Direitos do Homem e, posteriormente, outros importantes instrumentos de concretização dessas diretrizes.
Recentemente na história, foram incluídos no rol de direitos fundamentais a terceira dimensão, que diz respeito aos direitos de titularidade coletiva em sentido amplo. Conforme lições de Paulo Branco, são concebidos para proteção não do homem isoladamente, mas de coletividades, de grupos.[6]
São exemplos de direitos de terceira dimensão o direito à paz, ao desenvolvimento, à qualidade do meio ambiente, à conservação do patrimônio histórico e cultural.
Conclui-se até este ponto que o atual sistema de direitos fundamentais foi construído de maneira periódica, conforme as demandas jurídicas do contexto histórico de cada época evolutiva da humanidade. Contudo, vale ressaltar que as contingências estão enraizadas e perpetuadas no seio social, razão pela qual a consagração de direitos fundamentais resulta em vigília permanente.
Esse ciclo progressivo de surgimento de novos direitos fundamentais não importou na extinção dos anteriormente reconhecidos, o que levou ao acúmulo e coexistência de dimensões a serem simultaneamente garantidas pelo Estado.
O doutrinador Marcelo Novelino sintetiza de maneira primorosa o panorama evolutivo e cumulativo dos direitos fundamentais:
Os direitos fundamentais não surgiram simultaneamente, mas em períodos distintos, conforme a demanda de cada época. A consagração progressiva e sequencial nos textos constitucionais deu origem às chamadas gerações de direitos fundamentais. Atualmente, tendo em conta que o surgimento de novas gerações não importa na extinção das anteriores, parte da doutrina tem optado pelo termo dimensão.[7]
A Constituição brasileira de 1988, refundando o Estado Democrático de Direito, contemplou em seu texto um extenso rol de direitos fundamentais, alcançando todas as dimensões debatidas, e conferindo eficácia normativa e efeitos cogentes.
O art. 5º da Constituição de 1988[8] é corriqueiramente apontado como pálio dos direitos fundamentais na retomada da cidadania pós Regime Militar. Esse dispositivo sozinho contempla, além dos princípios irradiantes do caput, nada menos que setenta e oito incisos contendo direitos fundamentais em espécie – por vezes mais de um em cada segmento.
Nada obstante, o texto constitucional é entremeado de muitos outros direitos fundamentais, tais como direitos de primeira geração concernentes aos limites do poder de tributar (art. 150)[9], direitos trabalhistas de segunda geração (art. 7º) [10], bem como direito ao meio ambiente ecologicamente sustentável, reconhecidamente de terceira geração (art. 225) [11].
Essa relação exemplificativa cresce cada dia mais, conforme o aprimoramento da interpretação do texto constitucional pela Corte Suprema.
Vale lembrar também quanto à cláusula de proibição do retrocesso social, normatizada no art. 60, § 4º, da Constituição[12], segundo a qual, uma vez estabelecido um determinado nível de satisfação social, por meio da garantia de fruição adequada e equitativa, pelos cidadãos, dos benefícios e serviços colocados à sua disposição, não podem ser restringidos, embora defenda-se possam ser alterados, substituídos ou ampliados.
É evidente que o atual texto constitucional, a par dos anseios humanos por direitos e cidadania – principalmente porque precedido por um regime autoritarista –, inunda o novo Estado brasileiro com um gigantesco volume de direitos fundamentais represados, não implementados no período histórico natural, e que, por força normativa, impõem-se ao Estado e à presente geração.
3. O CUSTO DE IMPLEMENTAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E AS LIMITAÇÕES DO ESTADO
Os movimentos neoconstitucionalistas, assistidos desde o final da Segunda Guerra Mundial, colocaram as Constituições, de modo geral, em uma posição central no ordenamento jurídico, transformando-as em astro orbital de todos os ramos do direito organizado.
Segundo Bökenförde (1993, p. 40), em ensinamentos sobre o neoconstitucionalismo:
A Constituição já não se limita a fixar os limites do poder do Estado, por meio da liberdade civil, e a organizar a articulação e os limites da formação política da vontade e do exercício do domínio, senão que se converte em positivação jurídica de ‘valores fundamentais’ da ordem da vida comum (apud MENDES, 2012, p. 59)[13].
Destarte, o meticuloso detalhamento de direitos no texto constitucional e o soerguimento destes ao grupamento fundamental, característico das Constituições prolixas e de países subdesenvolvidos, além de garantir proteção e conferir caráter normativo compulsório, acaba por criar um problema econômico.
A simples declaração de direitos pela Constituição é incapaz de efetivá-los na prática.
Como explicam Gilmar Mendes e Paulo Branco, a efetivação do Estado Democrático de Direito depende de combustível financeiro:
A construção do Estado Democrático de Direito, anunciado pelo art. 1º, passa por custos e estratégias que vão além da declaração de direitos. Não há Estado Social sem que haja também Estado fiscal, são duas faces da mesma moeda. Se todos os direitos fundamentais têm, em alguma medida, uma dimensão positiva, todos implicam custos[14].
A efetiva garantia de todas as classes de direitos fundamentais gera custos ao Estado. Ou seja, do ponto de vista econômico-financeiro, desconsiderada a classificação meramente jurídica, todos os direitos fundamentais executáveis são positivos, dependendo das finanças públicas para serem implementados.
Direitos sociais são visivelmente positivos, traduzidos em uma prestação a favor do indivíduo, o que aclara a existência de custos. Mas direitos de primeira dimensão, corriqueiramente classificados como negativos ou de não intervenção, também geram custos, pois a abstenção do Estado, ao fim e ao cabo, deve ser fiscalizada e controlada pelo próprio Estado contra si e contra outros particulares, o que movimenta a máquina administrativa e gera custos.
Os celebrados autores Holmes e Sustein, na obra The cost of rights: why liberty depends on taxes, aduzem, em comentários sobre decisões da Suprema Corte Norte-Americana, que “por atrás da distinção entre dimensões de direitos repousa uma inexplorada premissa: imunidade de invasão pelo Estado não envolve significante benefício para os recursos financeiros” (tradução nossa).[15]-[16]
Os mesmos autores arrematam:
“Onde há um direito, existe um remédio” é uma máxima legal clássica. Os indivíduos desfrutam de direitos, em um sentido legal, em oposição a um senso moral, somente se os erros que eles sofrem forem corrigidos de forma justa e previsível por seu governo. Este ponto simples é um bom caminho para revelar a inadequação da distinção entre direitos negativos e direitos positivos. O que isso mostra é que todos os direitos legalmente impostos são necessariamente direitos positivos.
Os direitos são caros porque os remédios são caros. A aplicação é dispendiosa, especialmente se uniforme e justa; e os direitos legais são esvaziados, na medida em que permanecem sem efeito. Formulado de maneira diferente, quase todos os direitos implicam um dever correlativo, e os deveres são tomados seriamente somente quando o abandono é punido pelo poder público extraído do erário público. Não existem direitos executórios na ausência de deveres legalmente executáveis, razão pela qual a lei só pode ser permissiva por ser simultaneamente obrigatória. Ou seja, a liberdade pessoal não pode ser garantida apenas limitando a interferência do governo na liberdade de ação e associação. Todos os direitos são reivindicações de uma resposta afirmativa governamental (tradução nossa).[17]-[18]
Direitos de terceira dimensão, ligados ao atributo da solidariedade, não estão excluídos da regra. Onde há dever regulatório, fiscalizatório e punitivo do Estado para consecução de direitos fundamentais, há também custos econômicos satisfeitos por recursos financeiros.
É nessa conjuntura que se constata uma verdade lógica: os recursos financeiros são limitados e, na maioria das vezes, escassos frente às diversas demandas por atendimento dos direitos fundamentais.
Luciano Benetti Timm traduz brevemente esse raciocínio em introdução a artigo científico sobre Direito e Economia (Law and Economics):
Numa perspectiva de Direito e Economia, os recursos orçamentários obtidos por meio de tributação são escassos, e as necessidades humanas a satisfazer, ilimitadas. Por essa razão, o emprego daqueles recursos deve ser feito de modo eficiente a fim de que possa atingir o maior número de necessidades pessoais com o mesmo recurso.[19]
Percebe-se que a capacidade econômica do Estado é, portanto, um limitador natural insofismável para a execução de direitos fundamentais, por mais que estes estejam vigentes e, no caso do Brasil, haja mandamento constitucional de aplicação imediata (art. 5º, §1º)[20].
Com base nesses fundamentos se ergue, por exemplo, a teoria da reserva do possível, conceituada por Rafael de Lazari como assunto intrinsecamente relacionado ao “custo dos direitos”, consistindo na limitação argumentativo-fática à implementação dos direitos constitucionalmente previstos em razão de insuficiência orçamentária para tal. [21]
Fernando Facury Scaff elucida que a expressão “reserva do possível” foi trasladada para o Direito a partir de uma decisão proferida em 1972 pelo Tribunal Constitucional alemão.
O significado é o mesmo: todo orçamento possui um limite que deve ser utilizado de acordo com exigências de harmonização econômica geral. Desta forma, ao decidir pela inconstitucionalidade da limitação de vagas imposta pela Universidade da Baviera, o Tribunal Constitucional Alemão entendeu que existe uma limitação fática, condicionada pela “reserva do possível, no sentido do que pode o indivíduo, racionalmente falando, exigir da coletividade. Isso deve ser avaliado em primeira linha, pelo legislador, em sua própria responsabilidade. Ele deve atender, na administração de seu orçamento, também a outros interesses da coletividade, considerando as exigências da harmonização econômica geral” (...) “Reserva do possível” é um conceito econômico que decorre da constatação da existência da escassez dos recursos, públicos ou privados, em face da vastidão das necessidades humanas, sociais, coletivas ou individuais. Cada indivíduo, ao fazer suas escolhas e eleger suas prioridades, tem que levar em conta os limites financeiros de suas disponibilidades econômicas. O mesmo vale para as escolhas políticas que devem ser realizadas no seio do Estado pelos órgãos competentes para fazê-lo. [22]
A “reserva do possível” que exsurge do confronto entre a escassez de recursos e as necessidades humanas – e que, percebeu-se desde já, estas vão muito além dos direitos fundamentais –, induz o Estado, sistematicamente, a “escolhas trágicas” cotidianas e casuísticas, na melhor expressão cunhada por Calabresi e Bobbitt[23].
É óbvio que a premiação de um direito fundamental específico pelo Estado, na vastidão de elementos contemplados pelo texto constitucional e no contexto de escassez financeira, significa o sacrifício de algum outro direito que não será efetivado na prática ou será implementado a descontento.
4. PONDERAÇÃO DE VALORES COMO INSTRUMENTO PARA A SOLUÇÃO DE CONFLITOS HERMENÊUTICOS
É cediço que os direitos fundamentais não são absolutos. Em caso de colisão entre direitos fundamentais, necessário juízo interpretativo de ponderação e indicação de prevalência dos valores a serem resguardados no caso concreto.
Robert Alexy preleciona com maestria, na sua estimada Teoria dos Direitos Fundamentais, que a solução para a colisão entre princípios difere completamente da solução para colisão entre regras.
Enquanto nessa última situação o conflito somente pode ser solucionado se introduzida em uma das regras uma cláusula de exceção que o elimine, ou se uma das regras for declarada inválida, naquele primeiro caso, sendo premissa a impossibilidade de invalidação de um princípio, um terá que ceder em favor do outro.
As colisões entre princípios devem ser solucionadas de forma completamente diversa. Se dois princípios colidem – o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um princípio e, de acordo com o outro, permitido –, um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser considerado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições. Sob outras condições a questão de precedência pode ser resolvida de forma oposta. Isso é o que quer dizer quando se afirma que, nos casos concretos, os princípios têm pesos diferentes e que os princípios com o maior peso têm precedência. Conflitos entre regras ocorrem na dimensão da validade, enquanto as colisões entre princípios – visto que só princípios válidos podem colidir – ocorrem, para além dessa dimensão, na dimensão do peso.[24]
Vê-se que na própria hermenêutica há sim uma ordem de prevalência entre princípios, o que, coordenado pelas condições do caso concreto, determinará o peso de cada um quando submetido à avaliação do intérprete.
Mais adiante em sua obra, ao correlacionar princípios e valores, o celebrado autor aduz que ambos estão intimamente ligados, apesar de não serem sinônimos. De todo modo, aplica-se a regra do sopesamento também para solução de conflitos entre valores.[25]
Como trabalhado linhas acima, direitos fundamentais consagram exatamente valores sociais colhidos em cada período de desenvolvimento da humanidade. Ou seja, a técnica da ponderação hermenêutica é plenamente aplicável para solução de conflitos entre normas de direitos fundamentais.
5. PONDERAÇÃO ECONÔMICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO MECANISMO DE ORGANIZAÇÃO E ESTRUTURAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS
Pela alta similaridade, indica-se que a mesma técnica hermenêutica da ponderação pode ser utilizada para mediar a escolha de direitos fundamentais a serem implementados frente à escassez de recursos financeiros, consideradas as adaptações impelidas pela magnitude e complexidade do Estado brasileiro.
A prevalência de direitos fundamentais com base na ponderação econômica deve ser objetivamente mensurada em larga escala através de mecanismos estatísticos baseados em casos concretos - assim como ocorre na tradicional técnica da ponderação hermenêutica.
Esses dados devem ser levados em consideração pelo Poder Público no momento de elaboração das leis orçamentárias, conferindo transparência e a aclamada segurança jurídica às diretrizes de atuação pública. Fernando Scaff comunga do entendimento, asseverando que o Parlamento democraticamente eleito pelo povo é o responsável por escolher prioridades e alocar recursos no orçamento:
O Orçamento é o locus adequado para a realização das escolhas trágicas públicas, também chamadas de escolhas políticas. É no espaço democrático do Parlamento que devem ser realizadas as opções políticas referentes às receitas e aos gastos públicos que determinam o caminho escolhido pela sociedade para a realização de seus ideais. Mesmo aqueles que têm de ser construídos dia a dia — ninguém dorme em uma ditadura e acorda em uma “sociedade livre, justa e solidária” (art. 3º, I, CF) no dia seguinte — embora exista quem entenda ser possível fazer efetivas mudanças sociais a golpes de caneta.[26]
O professor segue expondo sua visão sobre o tema em outro artigo jurídico, no qual também defende a necessidade de priorizar direitos:
Conectando os dois conceitos, de reserva do financeiramente possível e de escolhas públicas orçamentárias, verifica-se que existem recursos escassos para atingir objetivos incomensuráveis. Quanto mais difíceis os objetivos, maior o custo financeiro para seu alcance.
Ocorre que a realidade é mais complexa do que exemplos expostos de forma didática, nos quais são isoladas diversas outras situações existentes em concreto. Além da meta de redução das desigualdades sociais e regionais, o governo — qualquer governo, de qualquer país — tem de pagar o funcionalismo público, pagar a dívida financeira e não financeira com o mercado, manter todos os serviços públicos em atividade e com caráter de universalidade, estar preparado para defender o país em caso de ameaças externas, organizar o transporte público, o ensino, a saúde, o saneamento, a segurança e muitas outras atividades encontráveis nas colunas do gasto público nas tabelas orçamentárias. E tudo isso ao mesmo tempo.
Logo, é necessário priorizar, e aqui se inserem os dois conceitos: reserva do financeiramente possível, uma vez que não há dinheiro para tudo; e escolhas públicas, pois é necessário priorizar politicamente o gasto público, obedecidos os parâmetros constitucionais.[27]
Ademais, cumpre frisar que a macroponderação econômica de direitos fundamentais não gera a invalidação ou o indesejado retrocesso social. Entretanto, assim como ocorre no âmbito interpretativo, é capaz de impor cessão circunstancial do valor/princípio com menor peso até que as finanças do Estado sejam capazes de alcançar o estimado nível de desenvolvimento social para efetivação dos direitos fundamentais em sua integralidade.
Essa cessão circunstancial não é oponível ao Estado enquanto perquirir publicamente o progresso na implementação dos direitos fundamentais – justamente por isso faz-se importante a transparência das metas e do progresso no seu atingimento. Entendimento contrário, apoiado na literalidade constitucional, submeteria o Estado à responsabilização por algo que lhe é faticamente impossível de cumprir.
Apesar disso tudo é inegável que devem existir limites para a margem de ponderação. A doutrina moderna demarca o mínimo existencial não só como barreira, mas também como ponto de partida, consistindo nos direitos mais básicos inerentes ao patamar civilizatório atingido pela humanidade, sem o que não há como falar em resquício de dignidade.
Rafael de Lazari discorre sobre a origem e o conceito de “mínimo existencial” em seu livro intitulado Reserva do Possível e Mínimo Existencial:
Tal qual o princípio da reserva do possível, o mínimo existencial também tem raízes fincadas na Alemanha, no início da década de 50, através de construção do Tribunal Federal Administrativo daquele país (“Bundesverwaltungsgericht”), encontrando seu ápice na década de 90, já na Corte Constitucional, por intermédio do jurista Paul Kirchhoof, tendo sido apresentado ao Brasil por Ricardo Lobo Torres, no final da década de 1980, pouco tempo após a promulgação da Constituição Federal de 88, portanto.
Numa conceituação simplória – e de reducionismo apriorístico proposital –, pelo “mínimo” entende-se o conjunto de condições elementares ao homem, como forma de assegurar sua dignidade, sem que a faixa limítrofe do estado pessoal de subsistência seja desrespeitada.[28]
Portanto, em uma escala parametrizada de margem para aplicação da ponderação econômica na consecução de direitos fundamentais, o mínimo existencial é o vetor horizontal de piso e a integralidade o vetor vertical pretendido. A efetivação de direitos fundamentais fora da equação definida pela macro ponderação resulta na absurda segmentação gráfica da escala, que precisa do sequenciamento linear progressivo para se revelar válida e sustentável.
6. CONCLUSÃO
A ordem jurídica inaugurada no Brasil pela Constituição de 1988 trouxe à baila uma enxurrada de direitos fundamentais que estavam represados, conferindo-lhes força normativa e eficácia cogente.
Como a implementação de todos esses direitos gera custos, deve ser racionalmente consentânea com a limitação financeira do Estado – sem o que se perpetua o descumprimento velado e a sistemática cotidiana de escolhas trágicas.
Sugere-se, portanto, a aplicação da técnica hermenêutica da ponderação, em um viés econômico, para mediar a escolha de direitos com maior prevalência prática de forma a atingir progressivamente o patamar desejado de atendimento integral aos mandamentos constitucionais.
A definição das prioridades deve guardar relação com os casos concretos, respeitadas a magnitude e complexidade do Estado brasileiro. Nesse diapasão, o Poder Público cumpre o papel de levar os dados colhidos em consideração no momento de elaboração das leis orçamentárias, bem como o de conferir transparência e, por isso, segurança jurídica sobre as diretrizes de atuação pública.
Ainda, sendo os direitos fundamentais expressão de valores/princípios sociais, a sua macroponderação econômica não gera a invalidação ou retrocesso social. Contudo, tem o efeito de impor cessão circunstancial do valor/princípio com menor peso até que as finanças do Estado sejam capazes de alcançar o estimado nível de desenvolvimento para efetivação dos direitos fundamentais em sua integralidade.
Conclui-se que a cessão circunstancial não é oponível ao Estado enquanto perquirir publicamente o progresso na implementação dos direitos fundamentais. De todo modo, a margem de ponderação deve ser limitada na base pelo mínimo existencial, ponto de partida para que, de forma planejada e progressiva, o Estado consiga atingir a implementação integral dos direitos fundamentais.
7. REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais, Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2ª edição, 4ª tiragem. São Paulo: Malheiros Editores, 2015.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 11 ed. São Paulo: Malheiros, 2001.
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BRASIL. Constituição, 1988.
HOLMES, Sthephen Holmes; SUSTEIN, Cass R., The Cost of Rights: why liberty depends on Taxes. New York: W. W. Norton & Co., 1999.
LAZARI, Rafael José Nadim de. Reserva do possível e mínimo existencial: a pretensão de eficácia da norma constitucional em face da realidade. 2ª edição. Curitiba: Juruá, 2016.
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SCAFF, Fernando Facury. Você nem sabe, mas vive entre a reserva do possível e as escolhas trágicas, 2018. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2018-jan-23/contas-vista-vivemos-entre-reserva-possivel-escolhas-tragicas>. Acesso em: 07 ago. 2018.
SIMÕES, Carlos. Teoria & crítica dos direitos sociais: o Estado social e o Estado democrático de direito. São Paulo: Cortez, 2013.
[2] MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 7.ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012, p.155.
[3] SIMÕES, Carlos. Teoria & crítica dos direitos sociais: o Estado social e o Estado democrático de direito. São Paulo: Cortez, 2013, p. 54.
[4] MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 7.ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012, p.155 - 156.
[5] PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 5a. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 1025.
[6] MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 7.ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 156.
[7] NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 4.ª ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2010. p. 354.
[8] BRASIL. Constituição, 1988.
[9] Idem.
[10] Idem.
[11] Idem.
[12] Idem.
[13] BÖCKENFÖRDE, Ernest-Wolfgang. Escritos sobre derechos fundamentales. Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 1993, p. 40 apud MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 7.ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 59.
[14] MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 7.ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 1491.
[15] HOLMES, Sthephen Holmes; SUSTEIN, Cass R., The Cost of Rights: why liberty depends on Taxes. New York: W. W. Norton & Co., 1999, p. 36.
[16] Behind the distinction adduced by the Court lies an unspoken premisse: immunity from invasion by the state involves no significant entitlement to financial resources.
[17] Idem, p.43-44.
[18]Where there is a right, there is a remedy” is a classical legal maxim. Individuals enjoy rights, in a legal as opposed to a moral sense, only if the wrongs they suffer are fairly and predictably redressed by their government. This simple point goes a long way toward disclosing the inadequacy of the negative rights/positive rights distinction. What it shows is that all legally enforced rights are necessarily positive rights. Rights are costly because remedies are costly. Enforcement is expensive, especially uniform and fair enforcement; and legal rights are hollow to the extent that they remain unenforced. Formulated differently, almost every right implies a correlative duty, and duties are taken seriously only when dereliction is punished by the public power drawing in the public purse. There are no enforceable rights in the absence of legally enforceable duties, which is why law can be permissive only by being simultaneously obligatory. That is to say, personal liberty cannot being secured merely limiting government interference with freedom of action and association. All rights are claims to an affirmative governmental response.
[19] TIMM, Luciano Benetti. Qual a maneira mais eficiente de prover direitos fundamentais: uma perspectiva de direito e economia? In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Orgs.). Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. 2ª. ed. rev. e ampl. 2ª. Tir. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 52.
[20] BRASIL. Constituição, 1988.
[21] LAZARI, Rafael José Nadim de. Reserva do possível e mínimo existencial: a pretensão de eficácia da norma constitucional em face da realidade. 2ª edição. Curitiba: Juruá, 2016. p. 60.
[22] SCAFF, Fernando Facury. Reserva do possível pressupõe escolhas trágicas, 2013. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2013-fev-26/contas-vista-reserva-possivel-pressupoe-escolhas-tragicas#_ftn4_3975>. Acesso em: 06 ago. 2018.
[23] CALABRESI, Guido; BOBBITT, Philip. Tragic Choices – The conflicts society confronts in the allocation of tragically scarce resources. New York: Norton, 1978.
[24] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais, Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2ª edição, 4ª tiragem. São Paulo: Malheiros Editores, 2015. p. 93 – 94.
[25] Idem. p. 144.
[26] SCAFF, Fernando Facury. Reserva do possível pressupõe escolhas trágicas, 2013. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2013-fev-26/contas-vista-reserva-possivel-pressupoe-escolhas-tragicas#_ftn4_3975>. Acesso em: 06 ago. 2018.
[27] SCAFF, Fernando Facury. Você nem sabe, mas vive entre a reserva do possível e as escolhas trágicas, 2018. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2018-jan-23/contas-vista-vivemos-entre-reserva-possivel-escolhas-tragicas>. Acesso em: 07 ago. 2018.
[28] LAZARI, Rafael José Nadim de. Reserva do possível e mínimo existencial: a pretensão de eficácia da norma constitucional em face da realidade. 2ª edição. Curitiba: Juruá, 2016. p. 98.
Advogado, Pós-Graduado em Direito Tributário e Legislação de Impostos pelo Centro Universitário de Ensino Superior do Amazonas - CIESA, Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Amazonas - UFAM.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, João Victor Pereira Martins da. A ponderação econômica dos direitos fundamentais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 ago 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52120/a-ponderacao-economica-dos-direitos-fundamentais. Acesso em: 23 dez 2024.
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