Resumo: O presente trabalho científico tem como finalidade fazer uma análise acerca do sistema de precedentes e sua aplicação no ordenamento jurídico pátrio. Com efeito, analisar-se-á os dois grandes sistemas jurídicos, quais sejam o common law e o civil law, se examinando os seus contextos históricos e pontuando a aplicação do sistema de precedentes em cada um deles. Ademais, far-se-á uma incursão nos dispositivos legais responsáveis pela instituição do sistema de precedentes no Brasil.
Palavras-chave: Common law e civil law. Sistema de precedentes. Novo Código de Processo Civil. Segurança jurídica. Isonomia.
Abstract: The present scientific article has the purpose of analyzing the system of precedents and its application in the legal order of the country. Thus, the two major legal systems, common law and civil law, will be analyzed by exploring their historical contexts and emphasizing the application of the precedent system in each of them. Furthermore, an incursion will be made in the legal dispositions responsible for the institution of the system of precedents in Brazil.
Keywords: Common law and civil law. System of precedents. New code of civil procedure. Legal security. Isonomy.
Sumário: Introdução. 1. O Common Law e o Civil Law tradicionais: distinções. 2. O sistema de precedentes no Common Law. 3. A necessidade de um sistema de precedentes brasileiro e sua evolução. 4. O precedente brasileiro do NCPC vs. o precedente do common law. Conclusão. Referências Bibliográficas.
Introdução
O Direito tem como finalidade regular a vida em sociedade, estabelecendo normas de comportamento para os jurisdicionados que a elas deverão se adequar, sob pena de sofrer as sanções previstas no ordenamento jurídico. É natural, nesse contexto, que as normas de comportamento sejam previamente estabelecidas, com o fito de garantir segurança jurídica aos jurisdicionados e promover a necessária igualdade entre os cidadãos.
Essa necessidade de estabelecimento prévio das normas aplicáveis também é importante no âmbito das decisões judiciais, com a finalidade de evitar que o mesmo Poder Judiciário dê decisões díspares em casos com similitude fática. Assim, de modo a se concretizar a segurança jurídica necessária no âmbito das decisões judiciais, criou-se a sistemática de precedentes, que atualmente está plenamente em vigor no ordenamento jurídico brasileiro por força do Código de Processo Civil de 2015.
Antes de adentrar na discussão de como funciona o sistema brasileiro de precedentes e de como é a sistemática nos países que adotam a common law, é imprescindível entender como se desenvolveram historicamente os dois grandes modelos, o civil law e o common law.
O surgimento dos dois sistemas ocorreu de maneira muito distinta, pois, enquanto o civil law surgiu de uma revolução ou ruptura com o modelo anterior, o commow law nasceu devagar e de maneira prolongada no tempo. Essa diferença é fundamental para se compreender a extrema valorização da lei escrita no civil law e a opção pela lei costumeira no common law, como será visto posteriormente.
Adiante, adentrar-se-á no sistema de precedentes adotado no common law. Nesse ponto, é importante destacar que o stare decisis[1], ou seja, a vinculação dos precedentes, não deve ser confundido com o próprio common law, visto que os precedentes surgiram para otimizar o common law e não para substituí-lo.
Além disso, será feita uma análise sobre o sistema brasileiro, inspirado na civil law, e a sua compatibilidade com o sistema de precedentes, especialmente diante do advento do Código de Processo Civil de 2015.
1. O Common Law e o Civil Law tradicionais: distinções
Para compreender claramente dos modelos, é necessário se buscar as suas origens históricas para que se possa identificar as suas diferenças e as semelhanças.
A tradição jurídica do Civil Law tem como marco histórico consolidador a Revolução Francesa, insurreição representativa de súbito rompimento com a ordem política e jurídica anterior, tanto na França como em todo o mundo ocidental. O sentimento na França, à época, era de descontentamento com a arbitrariedade das decisões judiciais, tendo em vista que os juízes aplicavam as normas da forma que bem entendiam, pautando-se nos seus próprios interesses. Diante de um Judiciário tão arbitrário, seria impossível que os preceitos da revolução pudessem prosperar caso não houvesse uma mudança rigorosa, no sentido de positivar claramente critérios para as decisões judiciais.
Nessa conjuntura, nasceu um novo sistema, cujo objetivo era pôr fim à manipulação do direito e à desigualdade de tratamento na esfera judicial. Controlar a atuação dos magistrados parecia necessário para manterem-se vivos os ideais revolucionários. Assim, diante da falta de confiança do Parlamento no Judiciário, nasceu, ainda de forma primitiva, o sistema jurídico Civil Law, que limitou a atuação dos juízes à aplicação puramente literal da lei. As normas positivadas limitavam de tal modo a atuação dos julgadores, que ficaram eles conhecidos como a “boca da lei”, porquanto lhes era proibida qualquer forma de interpretação ou criação intelectual (GALIO, 2014).
Naturalmente, com o passar do tempo, percebeu-se que aplicar tão somente a literalidade da lei não era eficaz em diversas situações. Sabe-se ser impossível ao texto da lei a previsão e disciplina de todas as possibilidades das relações interpessoais, sociais e econômicas, sendo necessário que o juiz decida de acordo com as especificidades de cada caso. Além disso, é inegável que a impossibilidade de interpretação pelo magistrado engessa o ordenamento jurídico, o que torna, em regra, a lei ultrapassada e inutilizada com mais facilidade e mais depressa. Assim, nos dias atuais, o sistema civil law não só admite a interpretação do juiz, mas a eleva a um patamar de requisito fundamental para a devida aplicação no caso concreto. Porém, no modelo em discussão, prevalece a incidência do texto legal escrito em detrimento dos costumes, que sempre têm papel secundário nas decisões.
Por outro lado, a sistemática do commom law teve origem e desdobramento extremamente distintos do modelo civil law. No período anterior à conquista da Inglaterra pelos normandos, era aplicado o costume de cada localidade para solucionar os conflitos, não havendo, portanto, uma jurisdição unificada na Inglaterra. Com a chegada dos normandos, criou-se um sistema único, um direito comum a todos, cuja competência para aplicação era atribuída aos Tribunais Reais de Justiça, conhecidos como Tribunais de Westminster[2].
O sistema common law, pautado no direito costumeiro, se ajusta às mudanças da realidade social de cada época de maneira lenta e prolongada no tempo (WAMBIER, 2009). Tendo em vista que não houve rompimento abrupto com qualquer ordem anterior ou outro momento revolucionário, o common law sempre teve como premissa a utilização de casos reais como fonte do direito[3], valorizando a norma jurisprudencial em detrimento da norma escrita.
Cumpre destacar que a diferença entre os sistemas não reside somente na codificação (ou ausência dela) de normas. É preciso resistir à tentação da simplificação pura. Por óbvio, no common law também há substancial atividade legislativa. Por exemplo, nos Estados Unidos, país que adota a common law, há um fenômeno chamado de staturification do direito, que faz alusão ao termo statute, que significa nada menos que lei (ABBOUD e STRECK, 2013).
A distinção está, portanto, na valorização e na importância dos códigos e da jurisprudência em cada modelo jurídico. No civil law, preferem-se as leis à interpretação do magistrado, ao passo que na common law, valoriza-se a jurisprudência e a interpretação do juiz, tendo as leis escritas papel secundário (MARINONI, 2016).
Georges Abboud e Lenio Streck (2013) preconizam outra relevante diferença entre os dois sistemas:
Além da posição ocupada pela legislação em cada um dos sistemas, outro fator diferenciador a ser apontado é o modelo de aplicação do direito de cada um desses sistemas, case law vs. code law. As técnicas de interpretação do direito escrito estão fundadas em uma tradição histórica muito antiga, e, dessa forma, elas recorriam às instituições jurídicas para solucionar seus casos, o common law, por sua vez, elabora suas decisões em função das casuísticas dos tribunais de Justiça, e não sobre as instituições jurídicas, frutos de longa tradição histórica e da dogmática jurídica.
Diante disso, há de se reconhecer que, apesar das acentuadas diferenças entre as sistemáticas, há também similitudes, não sendo elas, portanto, completamente opostas e sem qualquer correlação.
E é exatamente no espectro das similitudes que reside o sistema de precedentes, que não pode ser apropriado exclusivamente por qualquer dos dois modelos, mas compartilhado como meio processual mais eficiente de solução de demandas judiciais, embora com perspectivas distintas em relação à fonte do direito.
2. O sistema de precedentes no Common Law
A adoção dos precedentes surgiu no sistema common law como maneira de atender à igualdade, conferir previsibilidade às decisões e garantir segurança jurídica aos litigantes. Baseado neste tripé fundamental, a sistemática não afasta a premissa segundo a qual os casos nunca são idênticos, mas peculiares. Apesar de casos nunca totalmente idênticos, algumas características relevantes das relações jurídicas colocadas sob julgamento possuem similitudes. Assim, havendo identidade entre essas características no caso novo e no caso em qual se formou o precedente, deverá o precedente ser aplicado.
A teoria exposta garante vinculatividade aos precedentes, isto é, mesmo quando o magistrado decide com base na lei escrita – pois, como já destacado, existe lei escrita no common law – fica obrigado a adotar a interpretação conferida no precedente. Portanto, o precedente deve sempre ser seguido, exceto se houver uma razão verdadeiramente relevante para que não seja aplicado, como no caso do distinguishing e do overruling[4], técnicas que serão exploradas posteriormente.
As decisões judiciais são compostas por dois elementos: a ratio decidendi e a obter dicta. A primeira diz respeito à razão de decidir do magistrado, os motivos que o levaram a decidir daquela maneira. É com base na ratio decidendi que se forma o precedente e, por isso, ela é considerada o seu núcleo. Por outro lado, a obter dicta é apenas aquilo que tem relevância persuasiva, não sendo levada em consideração para a formação do precedente (WAMBIER, 2009).
Acerca da ratio decidendi, Fredie Didier Jr. (2008) ensina:
Porque produzida a partir do caso concreto, a ratio decidendi não pode ter algumas características que normalmente aparecem no Direito Legislado. Por exemplo: não há razão para que, na formulação da ratio decidendi, se ponham termos de sentido vago. A vagueza na proposição normativa jurisprudencial é um contra-senso: nascida a partir da necessidade de dar concretude aos termos vagos, abertos, gerais e abstratos do Direito Legislado, a ratio decidendi deve ser formulada com termos de acepção precisa, para que não crie dúvidas quanto à sua aplicação em casos futuros.
Ao contrário do que se possa pensar em princípio, o sistema de precedentes no common law é um sistema rígido e pouco flexível. Na Inglaterra, por exemplo, até a década de 1960, a House of Lords[5] não podia modificar os seus próprios precedentes. Em diversas decisões proferidas pela Corte, se percebia a aplicação de precedentes extremamente antigos, alguns chegavam a ultrapassar 500 anos de existência. Essa rigidez exacerbada trouxe os mesmos problemas advindos da rigidez da civil law: a fossilização do direito. As relações jurídicas mudam como passar do tempo, e, dessa forma, também mudam os costumes. É certo que o direito deve acompanhar as transições e a rigidez da vinculação aos precedentes, conhecida como stare decisis, não conseguia atender às necessidades da sociedade (WAMBIER, 2009).
Dito isso, conforme a doutrina de Marinoni (2016), é necessário reconhecer que o stare decisis é um elemento existente no sistema common law e não se confunde com o próprio sistema, uma vez que a sistemática do common law existe há muito mais tempo do que o stare decisis, ou seja, do que a vinculação dos precedentes. Assim, o common law é baseado nos costumes e, para garantir igualdade e segurança jurídica, se criou, nesse sistema, o instrumento de vinculação dos precedentes.
Diante dessa problemática, surgiu, na década de 1960, uma nova corrente na House of Lords, o practice statement. Apesar de muito criticada inicialmente pelos conservadores, a nova prática permitiu que a corte não estivesse vinculada aos próprios precedentes (WAMBIER, 2009). Essa não vinculação certamente não é absoluta, pois a corte somente não está obrigada a aplicar o precedente em caso de sua superação (overruling) ou em caso de distinção do caso novo (distinguishing).
Utilizados mais em alguns países, como os Estados Unidos, do que em outros, como a Inglaterra, as técnicas de overruling e distinguishing garantem uma margem de liberdade ao julgador quando estão diante de um caso concreto. O overruling ocorre quando se declara um precedente superado, pois surge a necessidade da sua mudança diante da realidade social. Assim, cria-se um novo precedente que deverá ser aplicado nos novos casos que se formarem. É com a técnica do overruling que se evita o engessamento do direito e que se garante a sua adaptação às constantes mudanças sociais. Salienta-se que, para a utilização desse método, não existe a necessidade de o precedente superado ser antigo, podendo ser aplicado o overruling a um precedente datado de 500 anos ou a um precedente criado há poucos meses. Tudo irá depender na necessidade de adaptação à nova realidade (DONIZETTI, 2015).
Por outro lado, a técnica do distinguishing não declara o precedente superado, ocorrendo apenas uma minimização de sua amplitude. Assim, o julgador menciona o precedente e fundamenta que o caso novo traz alguma peculiaridade relevante que não existia no caso que formou o precedente, de modo a afastar a sua aplicação.
É possível observar que, aos precedentes, é dado um papel de destaque na sistemática dos países de common law. A formação histórica desse sistema não quer dizer, no entanto, que os precedentes serão sempre imutáveis. Para evitar a fossilização do direito, é possível que, ou se supere um precedente, aplicando a técnica do overruling, ou que se adapte o precedente para atender às peculiaridades do caso concreto, aplicando a técnica do distinguishing.
Ademais, é possível verificar que a técnica de aplicação de precedentes não se confunde com a sistemática do common law, muito embora a técnica dos precedentes tenha suas raízes históricas nesse sistema. Com efeito, a stare decisis tem seu berço no common law pelo fato de este sistema, baseado nos costumes, exigir algum mecanismo que garanta segurança jurídica, estabilidade e isonomia às decisões judiciais.
3. A necessidade de um sistema de precedentes brasileiro e sua evolução
Como já salientado, a técnica de aplicação de precedentes não se confunde com o sistema em que ele nasceu, qual seja, o common law. Importa agora saber se o ordenamento jurídico brasileiro, fundado no sistema civil law, admite e, até mesmo, exige a técnica de aplicação de precedentes obrigatórios.
A jurisprudência sempre existiu no Brasil e é comum nos sistemas de civil law. Tal instituto não se confunde com os precedentes, tendo em vista de que se trata apenas de uma tendência reiterada nas decisões judiciais, possuindo, em uma visão mais tradicional, caráter meramente persuasivo e não vinculativo, como nos precedentes. É natural que ao direito jurisprudencial seja dado grande importância, mas essa importância é secundária, visto que a jurisprudência é fonte indireta do direito.
Ademais, a jurisprudência se forma gradativamente a partir de reiteradas decisões, ao passo de que precedentes podem surgir de uma única decisão, bastando um caso piloto para criar ou alterar uma tese jurídica, formando, assim, um precedente (ZANETI JR., 2014).
Similarmente, não se deve confundir precedente com decisão judicial, visto que nem toda decisão judicial se constitui em precedente, mesmo que seja proferida no âmbito de um tribunal superior. Sempre que uma decisão aplicar a subsunção da lei ao caso concreto ou aplicar um precedente já existente, sem fazer qualquer distinção ou especificação nova, não haverá a formação de um novo precedente.
É necessário destacar, compreendidas as distinções feitas acima, que, no Brasil, o sistema adotado é o civil law, com uma peculiaridade: o controle de constitucionalidade é atribuído a qualquer juiz ou tribunal na via difusa, sendo, portanto, um sistema misto de controle de constitucionalidade. Essa peculiaridade distingue o sistema brasileiro do sistema tradicional de civil law, que tem como característica originária o fato do controle de constitucionalidade não competir, nem mesmo na via difusa, às instancias ordinárias.
Essa particularidade do sistema brasileiro deixa claro que o julgador possui grande discricionariedade, pois pode decidir conforme entender ser correta a interpretação das leis. É latente a percepção de que essa discricionariedade confere instabilidade nas relações jurídicas, pois cada magistrado pode dar uma interpretação diferente para o mesmo dispositivo legal ou constitucional, tornando o Judiciário uma verdadeira loteria.
Dessa maneira, é imprescindível que haja um sistema de precedentes no Brasil, para que exista previsibilidade das decisões e, consequentemente, maior segurança às relações jurídicas. O efeito do sistema de precedentes desencoraja a litigiosidade e garante uma prestação jurisdicional de qualidade e verdadeira efetividade.
Em frente, dizer que há a possibilidade do controle de constitucionalidade a todo e qualquer magistrado na via difusa, não significa que as instâncias inferiores não devem respeito às decisões proferidas no Supremo, pois a ele é atribuída a última manifestação acerca da constitucionalidade ou não de uma lei federal (MARINONI, 2016).
Além do controle misto de constitucionalidade, no sistema civil law brasileiro, existem instrumentos utilizados pelo próprio legislador para permitir maior flexibilidade na lei, garantindo, portanto, a possibilidade de interpretação do magistrado em cada situação concreta. Tais instrumentos se tratam de normas abertas e conceitos indeterminados. É dado ao julgador a atribuição de preencher o significado de tais normas e conceitos, mediante decisão fundamentada.
Em suma, sabe-se que a lei é insuficiente diante das inúmeras possibilidades de casos concretos, motivo pelo qual é conferida essa lacuna para o juiz complementar a lei, conforme cada situação. Como exemplo de conceito indeterminado, pode-se citar a boa-fé (BERNARDES E THOMÉ, 2013). Não é possível exprimir exatamente o que significa esse termo, é necessário analisá-lo em cada situação concreta para atribuir o seu significado.
Esses instrumentos de interpretação dados ao julgador, demonstram novamente a necessidade de um sistema de precedentes. Não pode um determinado juiz atribuir um significado para função social em um caso concreto e outro magistrado atribuir outro conceito para o mesmo termo em um caso idêntico. A função do julgador no sistema brasileiro é muito maior do que simplesmente aplicar a lei em seu sentido literal, há a necessidade de interpretação para atingir a verdadeira justiça e igualdade material, pois a igualdade formal não basta para garantir a isonomia.
É importante compreender que as normas abertas e os conceitos indeterminados são liberdades atribuídas ao Judiciário de maneira geral, não ao juiz individualmente, razão pela qual os precedentes são necessários para preencher tais normas abertas e tais conceitos indeterminados, não deixando lacunas que permitam cada magistrado atribuir o conceito que bem entender, de modo a se evitar a insegurança jurídica e desigualdade de tratamento (WAMBIER, 2009).
Demonstrada a necessidade de um sistema de precedentes no ordenamento brasileiro, deve-se mencionar que já se observava uma tendência à adoção dessa sistemática desde a década de 1990. Com Lei Federal n. 9.868 de 1999, nasceu um dos primeiros traços desse sistema, quando se atribuiu, no seu parágrafo único do art. 28, o efeito vinculante às decisões proferidas em sede de Ação Declaratória de Constitucionalidade e de Ação Direta de Inconstitucionalidade, no controle concentrado.
Apesar disso, foi somente em 2004, com a Emenda Constitucional n. 45, que se notou expressiva tendência à adoção dos precedentes no Brasil, com a introdução das súmulas vinculantes e da de repercussão geral nos recursos extraordinários dirigidos ao STF.
Na visão de Georges Abboud e Lenio Streck (2013), as súmulas vinculantes não seriam precedentes. Isto porque precedente é norma, sendo, assim, resultado de uma interpretação judicial que se concretiza no dispositivo da sentença. Por outro lado, as súmulas, vinculantes ou não, são abstratas e anteriores à decisão judicial, não devendo ser consideradas normas, pois carecem de interpretação. Dessa forma, os precedentes teriam caráter de norma e as súmulas seriam apenas enunciados normativos criados pelo STF. Por serem enunciados normativos, sua aplicação se daria por subsunção, ou seja, não se levaria em consideração o caso concreto e suas peculiaridades. Assim, as súmulas vinculantes seriam instrumentos que teriam como função transformar casos difíceis em casos fáceis, criando um fenômeno de mecanização da atividade jurisdicional.
Em concordância neste ponto, Marinoni (2016) diz que, vinculantes ou não, as súmulas apenas se preocupam com a adequada delimitação de um enunciado jurídico, de forma a neutralizar as circunstâncias dos casos que levaram à sua criação.
Dessa forma, apesar de ser um importante indicativo de que havia uma tendência a adotar um sistema de precedentes, as súmulas vinculantes não devem ser confundidas com a própria sistemática de precedentes, tendo em vista que o poder vinculante da súmula não é o mesmo que a autonomia dos enunciados em relação aos precedentes que lhe deram origem (MOTTA e PERTENCE, 2013).
4. O precedente brasileiro do NCPC vs. o precedente do common law
No código de processo civil atual, um dos principais dispositivos que trata sobre precedentes é o art. 927[6], que obriga, em seus incisos, aos juízes e tribunais a observância estrita das decisões em controle concentrado exaradas pelo STF, os enunciados de súmula vinculante, os acórdãos em resolução de demandas repetitivas e, em incidente de assunção de competência, os acórdãos que julgarem recursos extraordinário e especial repetitivos, os enunciados sumulares não vinculantes criados no STF e no STJ e a orientação do plenário ou do órgão especial ao qual os juízes estiverem vinculados. Não são todas as decisões elencadas nos incisos do referido artigo que firmam precedentes, mas somente as decisões proferidas no controle concentrado e os precedentes estabelecidos em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos (ZANETI JR., 2014).
Ainda, acerca do mesmo artigo, é necessário destacar que o rol nele estabelecido é meramente exemplificativo, visto que é atribuição conferida pela Constituição Federal a conservação da unidade do direto constitucional e infraconstitucional ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça, respectivamente (MARINONI, 2016).
Em relação à problemática das súmulas e sua criação de forma abstrata, o parágrafo 2o do art. 926 trouxe a solução: ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram a sua criação. Ou seja, o enunciado sumular deve trazer consigo os motivos determinantes que levaram a criação daquela súmula.
Adiante, no parágrafo 5o do já mencionado art. 927, atribui a necessidade da publicidade dos precedentes. Essa publicidade é uma maneira de preservar a segurança jurídica dos litigantes, que já saberão o que esperar das decisões do Judiciário.
Destacada menção deve ser feita ao parágrafo único do art. 998, o qual permite que recursos extraordinários ou especiais repetitivos sejam analisados mesmo se houver desistência das partes, desde que a repercussão geral já tenha sido reconhecida. Esse dispositivo visa a criação de precedentes para casos repetitivos em que haja relevância social, política ou econômica, na qual a desistência resulta somente na ineficácia da decisão para as partes, mas não para a formação de precedente.
Ademais, os incisos do parágrafo 1o do art. 489 trazem a noção do que não seria uma sentença fundamentada. Dentre eles, o inciso V considera decisão não fundamentada aquela que se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos. Isto é, não basta simplesmente que o julgador mencione um precedente ou uma súmula sem demonstrar que a ratio decidendi utilizada na sua criação é compatível com o caso concreto analisado.
Por outro lado, inciso VI do mesmo artigo reputa não fundamentada a decisão que deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento, em expressa menção das técnicas do distinguishing e overruling, importadas do sistema de precedentes da common law. É possível observar, em análise de ambos os incisos, que, de qualquer forma, dever-se-á mencionar o precedente existente e a sua ratio dedidendi, seja para aplicá-lo, seja para não o aplicar.
Por fim, o parágrafo 4o do mesmo art. 927 traz a figura de outra técnica utilizada no common law, a técnica do overrruling, utilizada para superar um precedente que não seja mais adequado à realidade social. O mencionado parágrafo estabelece que “a modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia”.
Essa conjuntura de artigos é que faz com que se tenha a existência dos precedentes e é dessa interpretação conjunta que se extrai o sistema do Código de Processo Civil de 2015.
Compreendida a sistemática de precedentes no novo código de processo civil, é inevitável que surjam as seguintes indagações: seria o precedente brasileiro o mesmo precedente do common law? Estaria havendo uma commonlização do sistema civil law do Brasil?
Saliente-se, desde logo, que não deve ser o precedente brasileiro confundido com o precedente do common law, pois, como já analisado, o precedente dos países de common law não estão previstos em um diploma constitucional ou legal. Eles nascem, portanto, dos costumes admitidos pelos julgadores. Dessa forma, o precedente brasileiro, chamado por Georges Abboud e Lenio Streck (2013) de “jurisprudência dotada de efeito vinculante”, nasce no ordenamento a partir da lei, de uma construção legislativa e não de uma evolução histórica.
Diante disso, constata-se que a adoção do sistema de precedentes brasileiro não significa que há uma aproximação ao common law, visto que o princípio da legalidade vigora no Brasil e, exatamente em observância desse princípio, se criou o sistema de precedentes, pois foi necessário que a lei escrita previsse essa sistemática para que ela fosse aplicada. Assim, não existe no Brasil o fenômeno da “commonlização”, apesar de se reconhecer que a lei escrita precisa de complementação para atingir a isonomia, a segurança jurídica e a real justiça.
Conclusão
É inegável que o sistema de precedentes teve seu nascedouro na sistemática da common law, berço natural do stare decisis. Esse berço natural se deu, como visto, em função da necessidade de se estabelecer segurança jurídica em um sistema marcado pela aplicação dos costumes, despido de um conjunto de normas claras escritas.
A aplicação da técnica de precedentes no sistema brasileiro, inspirado na civil law, teve por finalidade, dentre outras coisas, evitar a multiplicidade de decisões conflitantes em situação fática e jurídica similar, trazendo uma necessária racionalidade para o sistema de decisões judiciais.
A despeito de ter surgido na common law, a técnica de aplicação de precedentes é plenamente compatível com o sistema brasileiro, uma vez que sua introdução se deu exatamente por meio de mandamentos legais, cujo exemplo máximo é o novo Código de Processo Civil.
Além disso, não se pode chegar à conclusão simplista de que o precedente é um ponto de chegada. Com efeito, o novo código exige que a fundamentação de aplicação ou afastamento do precedente seja completa, sob pena de, à luz de seu art. 489, parágrafo 1o, ser nula a decisão judicial. Dessa forma, o precedente passa a ser um ponto de partida para o exegeta.
Enfim, a aplicação cotidiana do novo CPC, com a técnica de precedentes a ele incorporada, trará maior racionalidade às decisões judiciais, fazendo com que se evite ao máximo sentenças díspares em situação fática similar, além de permitir um gerenciamento do enorme quantitativo de processos existentes no país.
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[1] Do latim stare decisis et non quieta movere, que significa respeitar as coisas decididas e não mexer no que está estabelecido.
[2] Os Tribunais Reais de Justiça eram vulgarmente chamados de Tribunais de Westminster por conta do local onde estavam situados à época, qual seja o Palácio Westminster.
[3] Exemplo clássico é o caso histórico de Marbury versus Madison, no qual a Justiça norte-americana, a partir desse caso concreto, reconheceu o direito de obter a declaração de inconstitucionalidade de forma incidental.
[4] A técnica do distinguishing consiste na não aplicação do precedente, por este não ser compatível com o caso concreto analisado. Por outro lado, o instituto do overruling é utilizado quando se declara o precedente superado, de maneira a não ser mais utilizado como parâmetro para novos casos.
[5] À época, a House of Lords (Câmara dos Lordes), que é órgão do Poder Legislativo do Reino Unido, também era a mais alta corte de apelação para muitos processos judiciais.
[6] Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II - os enunciados de súmula vinculante;
III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
Graduada em Direito pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM/2017). Pós-graduanda em Direito Público pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAVALCANTI, Maria Fernanda Vianez de Castro e. O sistema brasileiro de precedentes e os precedentes do sistema common law Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 ago 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52126/o-sistema-brasileiro-de-precedentes-e-os-precedentes-do-sistema-common-law. Acesso em: 23 dez 2024.
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