RESUMO: O presente artigo visa responder à pergunta: é possível a garantia dos Direitos Fundamentais sem a autopoiese do Direito? Para tanto, aborda, primeiramente, a concepção de justiça de Trasímaco, presente no A República de Platão. Em seguida, faz menção à critica de Hannah Arendt aos Direitos Humanos, segundo a qual é essencial estabelecer um procedimento para a sua efetivação. Tal visão é complementada pela Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, na qual é possível identificar uma noção de justiça dos procedimentos. Por fim, a questão é vista à luz da teoria de Niklas Luhmann, segundo a qual o Direito é um sistema autopoiético e, nessa dimensão, é capaz de assegurar os Direitos Fundamentais.
PALAVRAS-CHAVE: Filosofia do Direito. Direitos Fundamentais. Teoria dos Sistemas. Autopoiese do Direito.
ABSTRACT: This article aims at answering the question: is it possible to protect civil rights without an autopoietically law system? Thus, in first place, this article exposes the definition of justice formulated by Thrasymachus, in The Republic. After that, the article presents Hannah Arendt’s critic on Human Rights, which is compatible with Kelsen’s theory, in which we can identify a procedural justice. In conclusion, the question is answered taking in consideration Luhmann’s theory, which defines law as an autopoietic system.
KEY WORDS: Philosophy of Law. Civil Rights. Systems Theory. Law as a autopoietic system.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. A JUSTIÇA DE TRASÍMACO; 3. A CRÍTICA DE HANNAH ARENDT AOS DIREITOS HUMANOS; 4. A TEORIA PURA DO DIREITO DE HANS KELSEN; 5. A DISCRICIONARIEDADE NA TOMADA DE DECISÃO; 6. A AUTOPOIESE DO DIREITO; 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS;
1. INTRODUÇÃO
Os Direitos Fundamentais, conforme o entendimento da doutrina dominante, são inalienáveis, indisponíveis, universais e absolutos (BRANCO, 2016, pp. 140-144). No entanto, basta analisar a situação de países subdesenvolvidos para notar que isso não corresponde à realidade e que grande parte da população mundial não tem os seus direitos fundamentais respeitados.
Sendo assim, será realizada, no presente artigo, uma análise da teoria de justiça exposta por Trasímaco, em A República de Platão. Na sequência, será abordada a concepção de Kelsen e Hannah Arendt, os quais acreditam que existe uma justiça dos procedimentos, essenciais na garantia dos Direitos Fundamentais. Por fim, será apresentada a teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, que define o Direito como um sistema autopoiético. Em conclusão, o artigo visa responder a perguntar “é possível a defesa dos direitos fundamentais sem a autopoiese do Direito?”.
Em A República, Platão apresenta quatro teorias diversas acerca da definição de justiça. Nesse texto, Platão narra o debate entre Sócrates e Polemarco sobre o tema. Nesse debate, a justiça é definida como devolver o que se tomou de alguém e fazer bem aos amigos e mal aos inimigos (PLATÃO, 2006, p. 332 a-d). No entanto, a teoria que interessa ao presente artigo é a de Trasímaco. Sob essa perspectiva, Trasímaco defende que cada governo estabelece as suas leis de acordo com a sua conveniência, logo a justiça pode ser definida, de uma maneira geral, como a conveniência do mais forte (PLATÃO, 2006, p. 338 c).
Em contraposição a essa definição, Sócrates utiliza a dialética para convencer Trasímaco de que sua definição de justiça está equivocada. Ele ressalta que obedecer aos que governam também é um ato de justiça e que, por cometerem falhas, é possível que esses também criem regras que os prejudiquem. Dessa forma, seria justo fazer aquilo que convém ao mais forte, mas também o que o prejudica (PLATÃO, 2006, p.339 d).
Conforme Hannah Arendt, a Declaração dos Direitos do Homem foi um marco na história, que significava que o homem tinha se tornado a fonte da lei (ARENDT, 1998, p. 324). Esses Direitos eram considerados inaliáveis, irredutíveis e indeduzíveis, logo, não havia uma autoridade para estabelecê-los ou uma lei especial que os protegessem. No entanto, se notou que, na ausência de um governo próprio e, consequentemente de autoridades e instituições competentes, era impossível garanti-los.
Sendo assim, Hannah Arendt enfatiza que a perda dos direitos nacionais acarreta a perda dos direitos humanos (ARENDT, 1998, p. 326). Nesse ponto, a autora faz menção à situação dos apátridas, indivíduos que não são considerados cidadãos de nenhum Estado soberano, fato que impossibilita a garantia dos seus Direitos Humanos. Os apátridas, na visão de Arendt, são privados de todos os seus direitos, pois, como não pertencem a nenhuma comunidade, não existem leis que os garantem. Visando reforçar essa tese, a autora cita a afirmação de Edmund Burke, segundo a qual os direitos humanos seriam uma abstração e não garantiriam as condições mínimas de sobrevivência ao homem.
Por fim, cabe destacar que a justiça em Arendt tem sentido equitativo, ou seja, para ela, o Direito deve se adequar ao caso concreto (FREITAS, 2014, p. 137). Dessa forma, seu conceito de justiça se vincula com a garantia dos direitos civis, o que, nas sociedades modernas, não ocorreu para alguns grupos sociais, que ficaram à margem da sociedade (FREITAS, 2014, p. 138).
De acordo com Kelsen, a Teoria Pura do Direito é um teoria do Direito positivo, que tem o objetivo de conhecer o Direito e excluir tudo que não pertença ao seu objeto (KELSEN, 2003, p.1). Na sua visão, todo fato jurídico é composto por um ato humano que se realiza no espaço e no tempo e a sua significação jurídica. Essa significação jurídica possui um sentido subjetivo, que é aquele atribuído pelo indivíduo que põe o ato, e um sentido objetivo, ou seja, do ponto de vista do Direito. Kelsen destaca que uma das particularidades do Direito é a possibilidade de uma auto-explicação jurídica (KELSEN, 2003, p.3), ou seja, um ato pode dizer algo sobre a sua própria significação jurídica.
A norma jurídica funciona como um esquema de interpretação (KELSEN, 2003, p.3). Ou seja, é a norma que confere um significado jurídico a determinada conduta humana. É sobre essas normas que conferem o caráter de atos jurídicos a determinadas condutas humanas que se destina o conhecimento jurídico. Dessa forma, Kelsen define o Direito como um sistema de normas que regulam o comportamento humano (KELSEN, 2003, p.4). Um indivíduo que deseja que outro se conduza de determinada maneira está exprimindo um ato de vontade, do domínio do ser. A norma, por sua vez, delimita que o homem deve se comportar de determinada maneira, pertencendo, portanto, ao domínio do dever ser. Nessa circunstância, “dever” assume um significado mais amplo, isto é, autorizar, estar autorizado ou conferir um poder (KELSEN, 2003, p. 4). Logo, as normas podem tanto comandar, quanto permitir ou conferir uma competência ou poder.
Segundo Kelsen, esse dualismo entre ser e dever ser não significa que esses dois domínios não se relacionam (KELSEN, 2003, p. 5). A conduta prescrita na norma jurídica deve ser distinta da conduta humana, no entanto, é possível compará-las e determinar se a conduta humana corresponde ou não à norma.
O autor ainda aponta que o processo legiferante é composto por vários atos, que tomados em conjunto, tem sentido de normas. É importante destacar que, apenas quando o ato tem objetivamente o sentido dever ser, é que esse dever ser é tratado como norma e a conduta é considerada obrigatória. Ao tratar da validade dessas normas, Kelsen defende que ela é atribuída por uma norma considerada superior, que lhes empresta o sentido objetivo. Dessa forma, o fundamento de validade do sistema é a norma fundamental, pressuposto do qual deflui a validade das normas (KELSEN, 2003, p. 6).
Por sua vez, a vigência, que corresponderia à própria validade, significa a existência de uma determinada norma. Kelsen distingue a vigência da norma da sua eficácia, que pertence à ordem do ser. A eficácia se refere ao fato de a norma ser efetivamente aplicada e respeitada (KELSEN, 2003, p. 8). A despeito dessa diferença, para que uma norma seja considerada objetivamente válida, é necessário que ela possua um mínimo de eficácia. Dessa forma, a eficácia funciona como condição da validade de uma norma jurídica (KELSEN, 2003, p.8). Segundo Kelsen, a vigência da norma é espaço-temporal, ou seja, vale em um determinado território em determinada época, e é isso que ele denomina de domínio de vigência (KELSEN, 2003, p.9). Kelsen ainda menciona o domínio de validade pessoal e material das normas.
É possível notar que, no modelo cunhado por Kelsen, a validade de uma norma jurídica decorre da sua própria existência, ou seja, se uma norma jurídica está no ordenamento jurídico ela é válida.
Nesse âmbito, considero mais adequada a definição de Pontes de Miranda, na qual se distingue a pertinência de uma norma ao ordenamento jurídico de sua validade (DE MIRANDA, 2002). Segundo ele, pertinência significa que houve a emissão da norma por órgão de produção normativa do sistema jurídico ou órgão constituinte originário. Ou seja, se uma norma for posta por um órgão competente, ela pertence ao sistema jurídico. Essas normas existentes, entretanto, podem ser válidas ou inválidas. De acordo com Pontes de Miranda, elas são consideradas válidas quando os critérios materiais e formais de admissão forem respeitados e inválidas nos casos em que tais critérios não forem respeitados.
Conforme Kelsen, a conduta real pode corresponder ou contrariar a conduta prescrita pela norma. Sendo assim, a partir da realização de um juízo de valor, uma conduta tem valor positivo quando corresponde à norma e negativo quando a contraria. Esse juízo deve ser objetivo, ou seja, independente da vontade do sujeito que o realiza (KELSEN, 2003, p. 15). Em seguida, Kelsen trata da relação estabelecida entre uma conduta humana e um fim, na qual a adequação ao fim é o valor positivo e a contradição com o fim é o negativo (KELSEN, 2003, p. 16). O fim pode ser objetivo, quando for estatuído por uma norma ou subjetivo, quando é colocado pelo próprio indivíduo.
Kelsen assegura que uma ordem normativa que regula a conduta humana em face a outras pessoas é uma ordem social, como é o caso do Direito e da Moral (KELSEN, 2003, p. 17). A função da ordem social, de acordo com Kelsen, é obter determinada conduta dos indivíduos a ela subordinados. Dessa forma, ao prescrever uma conduta, ela pode não estabelecer nenhuma consequência, ou então, relacionar a observância da conduta com um prêmio e a conduta oposta a uma pena, conforme o princípio retributivo. Essa ordem que estatui uma pena contra determinada conduta humana pode ser chamada de ordem coercitiva.
Ao analisar as diversas ordens sociais que chamamos de Direito, Kelsen aponta que elas se assemelham pelo fato de regularem a conduta humana e por serem ordens coativas (KELSEN, 2003, p. 23). Ou seja, o Direito confere a determinados indivíduos a competência para cominarem uma sanção às condutas que contrariam a norma jurídica.
Por fim, Kelsen determina que toda conduta humana é regulada pela ordem jurídica (KELSEN, 2003, p. 30), seja em um sentido positivo ou negativo. Desse forma, uma conduta que não é juridicamente proibida é permitida, o que, para Kelsen, corresponde a uma liberdade negativa.
Em seu texto intitulado “Entre Hidra e Hércules”, Marcelo Neves destaca que, já na década de 70, Hart apontava para a transformação do direito e da filosofia. Foi nesse contexto de transformação que surgiram os modelos principiológicos de Dworkin e Alexy, com ampla difusão e recepção internacional.
Para Dworkin, o sistema jurídico é composto por regras, princípios e policies. Nesse modelo, as regras seriam normas aplicadas conforme a disjunção do “tudo ou nada” (NEVES, 2013, p. 52). O enunciado completo de uma regra abrange todas as suas exceções, de modo que, a partir da análise das condições do caso, é possível concluir se a norma é considerado válida ou não para soluciona-lo. Por sua vez, os princípios apresentam a dimensão do peso, de modo que, quando houver uma colisão entre diferentes princípios, é necessário definir qual é o mais importante para a solução do caso concreto. Já as policies são as normas que estabelecem um objetivo a ser alcançado, em geral visando uma melhoria em determinado aspecto da comunidade.
Os princípios jurídicos da teoria de Dworkin, de acordo com Neves, são determinados pela moralidade de uma determinada comunidade política e estão sujeitos a alterações com o decorrer do tempo. Para obterem validade jurídica, é necessário que esses princípios passem pelo teste do juiz Hércules. Conforme Dworkin, esse juiz se utiliza dos princípios para superar a questão da discricionariedade nos “casos difíceis”, chegando à única resposta possível para o caso.
A despeito de reconhecer a enorme contribuição de Dworkin para a teoria do direito, Marcelo Neves aponta algumas críticas à teoria desenvolvida por ele. Primeiramente, a noção de que os princípios são capazes de suprir o espaço de discricionariedade do juiz é uma ilusão. Segundo ele, o problema não está na discricionariedade, e sim na forma seletiva de estruturação da complexidade (NEVES, 2013, p. 57).
O autor defende que, no âmbito da concretização da Constituição, os princípios promovem uma flexibilização do direito, contribuindo para a sua adequação com a complexidade social. Por sua vez, as regras reduzem essa flexibilidade e garante maior certeza para o procedimento de solução de casos. Dessa forma, não se trata de uma questão de discricionariedade ou da única solução correta, e sim controlar a contingência entre decisões juridicamente consistentes e complexamente adequadas para a sociedade, o que constitui um paradoxo.
Outro ponto criticado é a ideia que o juiz Hércules seria capaz de determinar quais seriam os princípios jurídicos adequados para servir de apoio às instituições e leis. Segundo Neves, essa afirmação decorre de um normativismo idealista (NEVES, 2013, p.59) e não corresponde com a estrutura de uma sociedade complexa.
Quanto à distinção entre regras e princípios proposta por Dworkin, Neves considerada oportunas as críticas desenvolvidas por Alexy. Conforme Alexy, em um sistema jurídico de uma sociedade complexa, é impossível que uma regra compreenda todas as suas exceções, pois é possível que surja uma exceção não prevista na resolução de um caso novo. Além disso, a introdução de cláusulas gerais de reservas a princípios, também os tornam aplicáveis sob a disjunção “tudo ou nada”.
Por fim, Neves destaca que os princípios só podem ser sopesados caso ambos sejam considerados válidos, pois, caso um princípio seja incompatível com a ordem jurídica da sociedade, ele deve ser desconsiderado. A última restrição que Neves faz ao modelo de Dworkin é quanto à afirmação de que apenas os princípios possuem a dimensão do peso (NEVES, 2013, p.62). Para ele, quando duas regras tomas prima facie entram em conflito, também é essencial sopesa-las para determinar qual deve ser aplicada no caso concreto em análise.
A teoria de Alexy, apesar de se tratar de um modelo que ele desenvolveu para ser aplicado na Alemanha em determinado momento específico, obteve grande reconhecimento e passou a ser tratada, por muitos, como universal.
Alexy reformula o modelo de “tudo ou nada” de Dworkin, defendendo que, na verdade, as regras são normas que podem ser cumpridas ou não. Logo, havendo um conflito, umas das normas deve ser declarada inválida. Já os princípios, conforme ele, são mandamentos de otimização (NEVES, 2013, p. 64) que podem ser cumpridos em graus variados dependendo das possibilidades fáticas e jurídicas. Dessa forma, a colisão entre princípios é solucionada por meio da identificação de qual princípio tem maior peso no caso concreto, sem que o outro seja considerado inválido. Em conclusão, ele estabelece que a distinção entre regras e princípios se deve ao fato de que os princípios são razões direitas das regras, logo, contribuem de forma indireta para os juízos concretos. Já as regras podem ser utilizadas como fundamento imediato da decisão.
Em seguida, Marcelo Neves aponta várias críticas que foram feitas ao modelo de princípios desenvolvido por Alexy. Klaus Günther considera inadequada a distinção feita por Alexy entre regras e princípios, Alexy também afasta a tese de Sieckmann de que os princípios seriam “mandamentos reiterados de validade” (NEVES, 2013, p. 72), pois ela não acrescentaria nada à sua definição de que os princípios são mandamentos a serem otimizados. Atienzza e Manero, por sua vez, argumentam que apenas os princípios referentes a normas programáticas seriam mandamentos de otimização, o que é rejeitado por Alexy. A última crítica mencionada é a de Habermas, segundo a qual os princípios seriam antes adequados a um modelo de ponderação de valores. Para ele, apenas em um modelo livre de sopesamento seria possível definir se uma decisão é correta ou não. Visando defender sua tesem Alexy traz dois casos em que, apesar de os direitos em conflito serem os mesmos, em cada caso um deles prevaleceu. Alexy aponta que isso se deve à utilização do sopesamento na fundamentação.
Ao final desse capítulo, Marcelo Neves realiza uma breve análise crítica da teoria dos princípios de Alexy antes de apresentar o seu modelo. Segundo ele, apenas do ponto de vista teórico é importante diferenciar a aplicação das regras segundo o modelo de “tudo ou nada” de Dworkin e a definição de Alexy de que elas são cumpridas ou descumpridas. Dessa forma, as críticas que ele fez à teoria de Dworkin também são válidas para a de Alexy.
Conforme a teoria de Alexy, uma regra não pode ser aplicável antes de se realizar o sopesamento, pois, nesse estágio, ela ainda se encontra incompleta. O enunciado completo da norma, que é utilizado como fundamento da decisão do caso concreto, só é determinado no final do processo de concretização constitucional. No entanto, Neves considera inadequada a definição dos princípios como mandamentos a serem otimizados (NEVES, 2013, p. 82). De acordo com ele, esse modelo otimizante desconsidera que uma sociedade complexa é composta por diversas esferas, de modo que o que é otimizante em uma perspectiva pode não ser em outra (NEVES, 2013, p. 82).
Em conclusão, Neves determina que, apesar das ressalvas feitas, um ponto da teoria de Alexy que pode ser incorporado ao seu modelo. Ele concorda com a definição de que os princípios são razões prima facie, utilizados como fundamento na decisão de controvérsias jurídicas, enquanto as regras, quando completas, são utilizadas como fundamento na decisão de um caso concreto.
Kelsen , em sua Teoria Pura do Direito defende que o Direito não apresenta lacunas, de modo que, tudo aquilo que não está proibido é permitido. Já Hart defende que as lacunas existem, e, para resolver esse problema, ele cria a sua definição da “textura aberta” do direito. Essa abertura se mostra, principalmente, nos casos em que não exista uma resposta, mas sim respostas ao caso concreto (HART, 1986, p. 165). Na sua concepção, o direito não consegue regular determinados casos, o que contribui para a discricionariedade na decisão de um caso concreto pelo juiz. Esse poder discricionário do intérprete ou aplicador do direito é utilizado para determinar o significado da norma jurídica caracterizada pela textura aberta (BUENO, 2010, p. 285). De acordo com Hart (1986), esses espaços jurídicos são preenchidos pelos tribunais, desempenhando, nesses casos, a função de criar leis para o caso concreto.
Conforme Neves, um dos pontos de partida da teoria dos princípios de Dworkin é a crítica à noção de “textura aberta” do direito de Hart (NEVES, 2013, p. 51), segundo a qual, nas situações não reguladas por regras, o juiz decidiria por discricionariedade. O problema da tese do poder discricionário, segundo Tania (2012), é que não há um padrão que guie o juiz ao promover essa mudança. Em sua teoria, Dworkin afirma que os princípios são normas pertencentes ao sistema jurídico e vincularam os juízes nos casos em que as regras não são suficientes para a tomada de decisão (NEVES, 2013, p. 52). Segundo Dworkin, o juiz Hércules utilizaria os princípios para superar a discricionariedade dos casos difíceis e encontrar a única decisão correta para o caso concreto (NEVES, 2013, p. 56).
A meu ver, a teoria de Hart acerca da “textura aberta” do direito é a mais adequada e compatível com as sociedades modernas. Considero equivocada a visão de Dworkin de que existiria apenas uma resposta correta para o caso concreto. Nesse âmbito, considero relevante citar a definição de contingência citada por Luhmann (2004), segundo a qual todos os fatos existentes podem assumir outras formas, o que também ocorre no sistema jurídico. Dessa forma, fica evidente que o mesmo caso concreto pode ser decidido de inúmeras formas distintas, sempre existindo uma decisão mais justa. No entanto, à luz do ordenamento jurídico brasileiro, é essencial que as decisões tomadas pelos juízes sejam sempre fundamentadas juridicamente, para que essa discricionariedade não se torne uma pura arbitrariedade.
Conforme Luhmann (2016), em seu texto “O direito da sociedade”, a unidade do sistema jurídico acontece na forma de sequências operativas que o reproduzem autopoieticamente. Essas operações têm a capacidade de distinguir sistema e ambiente pela utilização da autoreferência, processo através do qual o sistema se defini, distinguindo-se dos demais.
O autor afirma que toda observação deve ser baseada em uma distinção para designar o objeto analisado. A observação e os observadores, só podem ter acesso a si mesmo por meio de um paradoxo. Dessa forma, a unidade de um código binário só pode ser representada por um paradoxo, que pode se traduzir em novas distinções. Pode-se dizer que o sistema jurídico utiliza o código direito/não direito. Um primeiro passo é a distinção adicional entre codificação e programação, o que permite tornar os códigos mais técnicos, reduzindo-o à relação de intercâmbio de valores, o positivo e o negativo.
A autopoiese do sistema jurídico é uma continuação da autopoiese da sociedade. No entanto, o sistema deve demarcar sua própria autopoiese através da sua diferenciação funcional, ou seja, a distinção entre a sua unidade e o entorno. Dessa forma, o próprio direito define suas premissas de validade por intermédio de uma norma jurídica e das decisões judiciais. É na mera produção de elementos próprios do Direito que reside seu caráter autopoiético (NETO, SCHWARTZ, 2008, p. 200). Tudo isso com base na auto-observação, auto-constituição e auto-reprodução do sistema.
Chega-se, então, ao direito positivo sistematizado, composto por regras e princípios. Como resultado, a pergunta sobre a justiça do direito perde seu significado prático. No entanto, a teoria do direito não pode se contentar com tal solução. Sendo assim, o que deve se levar em conta é o posicionamento da ideia de justiça dentro do sistema jurídico.
No âmbito do sistema jurídico, a validade é entendida como símbolo que circula no sistema e enlaça as operações, enquanto a justiça se relaciona com a auto-observação e autodescrição do sistema. A partir daí, é possível concluir, segundo Luhmann, que a ideia de justiça requer uma qualidade normativa.
Desse modo, a justiça foi definida, inicialmente, como sendo limitada pelas distinções. Ela é uma autoreferência na forma de observação, e não de operação; não no sentido de código, mas no sentido de programas; não na forma de uma teoria e sim na forma de uma norma. Tudo isso significa que podem existir sistemas jurídicos injustos.
Luhmann assume que a ideia de justiça pode ser entendida como uma fórmula de contingência do sistema jurídico. De acordo com ele, o próprio sistema deve definir a justiça de um modo que fique claro que ela deve prevalecer e que o sistema se identifica com essa ideia, princípio ou valor.
O conceito de fórmula de contingência, segundo ele, é, primeiramente, uma consequência da percepção de que as condições para a ideia de justiça baseado no direito natural não procedem, pois, segundo ele, não há ligação entre os termos natureza e justiça, como afirmado pela doutrina do direito natural. A evolução contribuiu para o aumento do equilíbrio, mas isso não quer dizer que as normas e decisões são justas (LUHMANN, 2016, p.293).
As fórmulas de contingência estabelecem a distinção entre determinabilidade e indeterminabilidade. Com essa dimensão, o autor se refere não aos fatos atualmente designados, mas às outras possibilidades de trata-los. Assim ocorre com o sistema jurídico, de modo que todas as normas jurídicas e todas as decisões, assim como os motivos e argumentos, podem assumir outra forma.
Luhmann destaca que a função prevista pela fórmula de contingência deve ser cumprida. Assim também ocorre com a justiça. Pelo fato de o sistema jurídico estabilizar expectativas normativas, é possível assumir a justiça também como uma norma. No entanto, é importante destacar que ela não se trata de um critério de seleção, pois tal fato inviabilizaria que ela cumprisse sua função de representação do sistema normativo.
O problema da norma de justiça, para ele, reside na relação entre generalização e reespecificação. Assim sendo, nenhum operação do sistema deve ser excetuada da expectativa de ser justa. Em cada caso individual a norma de justiça transmite uma orientação, o que não significa, no entanto, que a norma seja justa.
A justiça, como fórmula de contingência, tem tradicionalmente, e ainda hoje, sido identificada como igualdade, que é vista como um princípio que se autolegitima. A fórmula de contingência é um esquema utilizado para buscar fundamentos ou valores que só podem ser considerados válidos na forma de programas. Desse modo, a resposta para todos os problemas teria que ser encontrado no sistema legal pela mobilização dos seus recursos (LUHMANN, 2016, p. 298).
Em um desenvolvimento posterior, que teve início com Aristóteles, a outra face dessa norma, chamada desigualdade, passa a ser submetida ao princípio da justiça em termos do postulado de que casos diferentes devem ser tratados de maneiras diferentes. Apenas assim a fórmula do sistema se tornou completa e relevante para todos os casos.
O princípio da justiça tem responsabilidade sobre todo o sistema e as diferenciações essenciais. As fórmulas de contingência apresentam um conceito nuclear, no entanto, a depender das circunstâncias históricas, ele pode ser definida de diferentes maneiras, o que se aplica com os princípios de igualdade e no conceito de justiça.
Se existissem poucos tipos de decisão, a consistência poderia ser alcançada de maneira simples. Todavia, esse não é o caso das sociedades mais desenvolvidas que contam com um sistema jurídico altamente diferenciado. Desse modo, a justiça aparece como uma adequada complexidade da consistência na tomada de decisões. Esse fenômeno é chamado de “irritabilidade” do sistema e se deve ao fato de o sistema jurídico não conseguir lidar com todos os aspectos da vida social. Sendo assim, ele tem que reduzir a complexidade e reconstruir sua própria complexidade interna. Cabe ressaltar que essa reconstrução só corresponderá aos critérios da justiça se ainda for compatível com a consistência das decisões.
Em seguida, Luhmann trata do problema da justiça, que, segundo ele, surgiu no contexto das performances recíprocas. Nas sociedades feudais, a máxima da reciprocidade era relacionada com a estrutura social, de modo que os indivíduos de classes sociais mais altas tem mais benefícios. Entretanto, nas sociedades modernas, a norma da reciprocidade perde sua relevância e o valor das ações passa a ser definido pelo preço de mercado.
A prática legal aliada a textos, conceitos e autoridades também alterou a percepção do problema da justiça. Sob essa ótica, a justiça se relaciona com a igualdade de outra maneira, garantindo que casos iguais sendo decididos de maneiras iguais. Dessa maneira, a justiça se tornou sinônimo de consistência na tomada de decisões e chegou-se a um grau de abstração que depende de uma sistema jurídico diferenciado e o principal problema passa a ser se o caso concreto foi decidido de uma maneira justa.
Luhmann aponta que, devido ao aumento da legislação, pensar sobre a justiça se tornou um tema relevante nos tempos modernos (LUHMANN, 2016, p. 305). Segundo ele, a legislação contraria o princípio da consistência na tomada de decisões pelo fato de alterar constantemente o direito e através dela é possível decidir casos iguais de maneira diferente e casos diferentes de maneiras iguais.
No entanto, a legislação depende de uma sociedade na qual as estruturas mudem de uma maneira tão rápida que as divergências nas decisões não sejam consideradas injustiça. Essa responsabilidade é transferida para o sistema político, que se posta como bem intencionado ao promover tais mudanças. Talvez a tendência contemporânea de identificar a justiça como um princípio ético ou um apelo emocional se deve a essa injustiça temporal no sistema jurídico.
O autor ainda ressalva que surgiram tentativas de criar definições de justiça que incluam o sistema político e o jurídico. No entanto, a justiça só pode ser entendida como um valor entre vários. Isso significa que, em cada caso individual, é necessário fazer uma escolha entre esses valores, o que não soluciona o problema da fórmula de contingência.
A tendência dos Estados sociais de criar programas com fins específicos é uma das razões para estabilizar a justiça, visando garantir a sua presença nessas circunstâncias. Esses programas legitimam a escolha de meios e geram injustiça em busca de concretizar o fim a qual são destinados. Nesse modelo, há um desvio do significado da justiça, que não estaria na compatibilidade das medidas jurídicas e sim na compatibilidade jurídica da política ambiental.
A crise da justiça não pode ser resolvida com o direito natural, tampouco com a ética ou avaliação de valores. De acordo com ele, essa questão só pode ser resolvida através da “legitimação do direito positivo”, pois a validade do direito depende apenas de critérios internos.
O problema de encontrar a forma para explicar a questão da igualdade e desigualdade, o que torna difícil reconhecer as mudanças que ocorreram na transformação das sociedades antigas para as modernas.
Conforme o direito natural, os objetos se diferenciam pela sua essência, ou seja, são iguais ou desiguais em si mesmo. Já o direito racional moderno, que opera como o direito natural, rompe com essa tradição. Esse modelo generalizou os direitos individuais de igualdade e liberdade como direitos humanos fundamentais, adquiridos por meio do nascimento.
Modernamente, a forma mais relevante para a resolução desses paradoxos opera com base na distinção entre estado de natureza e estado de civilização. Sob a ótica dos direitos humanos, a liberdade é a ausência de limitações externas e a igualdade é a exclusão da desigualdade. No entanto, Luhmann aponta que essas definições revivem o velho paradoxo do direito natural de que a lei só pode existir como um desvio do direito. Esse paradoxo se resolve pela reentrância na distinção que foi distinguida. A liberdade deve aceitar limitações legais, assim como a igualdade deve aceitar as desigualdades aceitas pela lei.
Como consequência do desdobramento desse paradoxo, todo o direito é mantido como contingente, como todo direito positivo. Desse modo, a formulação dos pontos de partida servem para camuflar esse processo. Assim, o direito se expõe a uma observação de segunda ordem, para ser capaz de decidir de um maneira diferente nos contextos de liberdade e limitação ou igualdade e desigualdade. O mesmo se aplica à sociedade moderna na sua autodeterminação operativa e vale também para o sistema jurídico.
Toda decisão jurídica deve se colocar no contexto de outras decisões, analisando como os demais observadores observam o direito. Visando exemplificar tal conceito, Luhmann cita o sistema do Common Law, que se pauta na rationes decidendi. Há uma tendência de pensar que um sistema que utiliza a observação de segundo grau tende a se tornar conservar e apenas repetir as decisões tomadas anteriormente. No entanto, essa tendência é corrigida pela fórmula de contingência.
Em conclusão, Luhmann afirma que esse esquema baseado em igualdade e desigualdade tende à repetição. Para mudar tal situação é essencial o papel da observação de segundo grau, com a qual a justiça está fortemente relacionada e que permite uma abertura para a tomada de decisões. Dessa maneira, é possível comparar as decisões com o intuito de comprovar a consistência da mudança, possibilitando novo processos de observação.
A partir das diversas teorias analisadas, conclui-se que só é possível garantir os Direitos Fundamentais em um sistema que preze pela autopoiese do Direito, de modo que ele seja capaz de produzir os seus próprios elementos. Essa produção leva a um aumento de possibilidades até que se atinja um nível não tolerável pelo sistema, o que leva-o a alterar sua forma de diferenciação e contribui para a sua evolução (CADEMARTORI; BAGGENSTOS, 2011, p. 328). Caso contrário o Direito fica a mercê daqueles que detém mais poder, como na definição de justiça de Trasímaco da conveniência do mais forte, ou na teoria de Hart em que, nos casos difíceis, o juiz decide de acordo com a sua discricionariedade.
Segundo Luhmann, a justiça se relaciona com a auto-observação do sistema, o que ele denomina observação de segundo grau (LUHMANN, 2016). A partir dessa observação é possível que o direito se analise e, desse modo, compreenda as suas operações. Esse fenômeno não leva necessariamente à repetição, pois a fórmula de contingência demonstra que todos os fatos existentes podem assumir outras formas, o que também ocorre no sistema jurídico. Dessa forma, fica evidente que o mesmo caso concreto pode ser decidido de inúmeras formas distintas, o que leva ao fenômeno da indecidibilidade. No entanto, ele afirma que isso é algo positivo, pois significa que sempre é possível tomar uma decisão mais justa. Essa visão, no meu entendimento, garante um diálogo mais aberto do sistema jurídico com a sociedade e possibilita que ele se adeque, mediante a auto-observação, às novas demandas e práticas sociais.
Além dessa relação do sistema com o ambiente exterior, é fundamental que o Direito seja estruturado internamente para que os Direitos Fundamentais possam ser assegurados. Ao analisar as teorias de Kelsen e Hannah Arendt, é possível notar uma noção de justiça dos procedimentos. Na visão de Arendt, a garantia dos Direitos do Homem depende de um governo estruturado, composto por autoridades que criem normas e instituições para assegurar o seu cumprimento. Por sua vez, Kelsen afirma que, para uma norma ser válida, ela deve estar de acordo com os procedimentos do ordenamento jurídico (BITTAR, 2016, p. 545). Em seu modelo, a norma fundamental confere validade a todas as normas do ordenamento jurídico, que se destina a regular a conduta humana. A meu ver, apenas com a união dos elementos supracitados é possível constituir um sistema adequado para assegurar os Direitos Fundamentais.
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Bacharelando em Direito pela UNB.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VITELLI, Valter Pedroso. É possível a defesa dos direitos fundamentais sem a autopoiese do direito? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 ago 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52146/e-possivel-a-defesa-dos-direitos-fundamentais-sem-a-autopoiese-do-direito. Acesso em: 23 dez 2024.
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