RESUMO: O presente trabalho busca analisar o direito constitucional à saúde, positivado no art. 196 da Constituição Federal, à luz da escassez de recursos. De maneira introdutória, faz-se um breve histórico do tratamento dado ao direito à saúde no Brasil, para somente depois adentrar-se à questão principal: a inviabilidade de fornecer serviços de saúde de forma ilimitada diante das restrições orçamentárias.
Palavras-chave: Saúde. Universalidade. Escassez de recursos.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE. 3. UNIVERSALIDADE DO DIREITO À SAÚDE E ESCASSEZ DE RECURSOS. 4. CONCLUSÃO. 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
1. INTRODUÇÃO
É inegável a importância da saúde humana para o desenvolvimento de uma sociedade, seja pelo fato de estar intrinsecamente relacionada ao bem da vida, seja por se tratar de um fator determinante para a conquista do bem-estar social. Tamanha relevância provocou o Estado brasileiro a tutelar esse bem jurídico, de modo que a saúde foi introduzida na Constituição Federal de 1988 com status de direito fundamental. A partir daí, a saúde passou a ser tratada como “direito de todos e dever do Estado”, devendo este buscar meios de efetivar esse direito.
No entanto, a concretização do direito à saúde não pode ser confundida com a oferta indiscriminada de medicamentos. Na realidade, configura-se uma utopia imaginar que o Estado possui capacidade financeira de prestar serviços de saúde, integralmente, a toda a população. Infelizmente, os recursos públicos são escassos e as necessidades de saúde da população são ilimitadas. Desse modo, ao contrário do que predomina na opinião pública, a concretização do direito constitucional à saúde apresenta limites.
2. DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE
A saúde humana, essencialmente transitória e multifacetada, possui, por conseguinte, um conceito heterogêneo. A concepção de saúde, ao longo dos séculos, decorreu da realidade científica, histórica e cultural manifestada pela sociedade em cada período. Essa evolução percorreu um longo caminho, desde a adoção do pensamento mágico e supersticioso, pelos povos primitivos, até o reconhecimento da saúde como sinônimo de qualidade de vida. No Brasil, esse progresso repercutiu diretamente no conjunto de políticas públicas sanitárias adotadas pelo Estado, sendo determinante, inclusive, para a sua introdução, como direito fundamental, na Constituição Federal de 1988.
A primeira concepção de saúde de que se tem registro, segundo o médico sanitarista Moacyr Scliar (2005, p. 14), foi aquela adotada pelos povos primitivos, a qual sustentou uma explicação mágica da realidade, em que se via o doente como “vítima de demônios e espíritos malignos, mobilizados talvez por um inimigo”, nas palavras do estudioso.
Posteriormente, na Grécia Antiga, essas crenças supersticiosas foram questionadas pelo médico e filósofo Hipócrates. A partir dele, direcionaram-se os tratamentos de saúde no caminho científico, e não mais religioso. Além disso, reconheceu-se a influência dos fatores ambientais na saúde humana, enxergando a multicausalidade no surgimento das doenças.
Com o início da Idade Média, e a influência da igreja católica no comportamento social e cultural da época, a doença voltou a ser vista como castigo divino, e, por essa razão, o tratamento dos enfermos estava diretamente vinculado à religião, baseado no pensamento cristão de caridade e assistência aos pobres.
Após a Idade das Trevas e o surgimento da Revolução Industrial, a saúde pública ganhou notoriedade. Naquele momento, em razão da rápida proliferação de doenças entre os operários nos grandes centros urbanos, os patrões, preocupados com a produtividade das fábricas, procuraram garantir condições mínimas de salubridade. Assim, considerando que os interesses da burguesia se confundiam com os do próprio Estado, este passou a adotar as primeiras políticas públicas de saúde.
Em continuidade ao avanço alcançado, bem como reforçando-se a lógica econômica, no século XX, a assistência sanitária passou a ser tratada como questão social e dever do Estado em prestá-la.
Em 1946, a saúde foi tratada pela Constituição da Organização Mundial da Saúde – OMS -, como o “estado de completo bem-estar físico, mental e social e não consistindo somente da ausência de uma doença ou enfermidade”, o que, em outras palavras, significou a transformação da saúde em sinônimo de qualidade de vida. Essa visão abrangente gerou importantes consequências no plano sanitário, em termos de políticas públicas, tendo em vista que a concepção de assistência à saúde passou a transcender a ideia de mero fornecimento de recursos hospitalares.
No Brasil, a proteção à saúde teve início com a Constituição de 1934. Entretanto, a abordagem do tema ainda se dava de maneira muito tímida, perdurando da mesma forma nas Constituições subsequentes. Apenas com a promulgação da Constituição de 1988, a saúde, pela primeira vez, ganhou status de norma suprema. A partir dela, reconheceu-se a fundamentalidade do direito à saúde, tanto no âmbito formal quanto material, pois, além de ter sido introduzido explicitamente no diploma constitucional, fora reconhecida a sua relevância como bem jurídico essencial ao indivíduo, estando “diretamente relacionado a outros direitos fundamentais e valores constitucionais, como o direito à vida e a dignidade da pessoa humana” (FIGUEIREDO, 2007, p. 86).
Assim, o caráter fundamental dos direitos é assegurado àqueles que “são reputados essenciais para os seus membros, e assim, são tratados pela Constituição, com o que se tornam passíveis de serem exigidos e exercitados, singular ou coletivamente” (MOTTA & BARCHET, 2009, p. 93).
O direito à saúde, considerando-se o momento histórico em que surgiu e fora introduzido na Constituição brasileira, pertence à segunda geração de direitos fundamentais. Doutrinariamente, tal geração se caracteriza por tutelar os chamados direitos dos desamparados ou direitos do bem-estar, tendo em vista que exigem uma postura ativa do Estado, no sentido de possibilitar as conquistas sociais, estando intimamente ligadas ao conceito de igualdade (MOTTA & BARCHET, 2009, p. 95). Ademais, asseveram os autores que “as normas constitucionais consagradoras desses direitos exigem do Estado um fazer, através de ações concretas desencadeadas para favorecer o indivíduo (também são conhecidos como direitos positivos ou direitos de prestação)”.
José Afonso da Silva (2005, p. 286), com melhor técnica, caracteriza a geração de direitos a qual pertence o direito à saúde:
Prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas nas normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização das situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade.
Desse modo, o objetivo precípuo da constitucionalização dos direitos fundamentais de segunda geração, mais precisamente, do direito à saúde, foi tentar garantir, não apenas uma igualdade formal, mas também o alcance da igualdade material, real e efetiva. Tendo em vista que a grande parte da coletividade não dispõe de recursos para obter condições dignas de saúde, o Estado foi obrigado a assumir um papel atuante perante a sociedade, a fim de buscar condições para um efetivo desenvolvimento da integralidade de seus membros. Desse modo, a implementação de políticas públicas foi determinante para a superação do Estado Liberal pelo Estado Social, intervencionista na sociedade.
Em suma, reconhecer a saúde como um direito fundamental, tanto formalmente como materialmente, gera duas consequências: por um lado, o dever do Estado em prestar serviços de saúde, através de políticas públicas eficientes que garantam um atendimento adequado à população e, por outro, a possibilidade de o beneficiário reivindicar pela efetivação desse direito.
3. UNIVERSALIDADE DO DIREITO À SAÚDE E ESCASSEZ DE RECURSOS
A introdução, no texto constitucional, do direito à saúde, o consagrou como “direito de todos e dever do Estado” (art. 196, CF). No entanto, essa garantia, até hoje, enfrenta dificuldades para ser concretizada. O fato é que a implementação de políticas públicas de saúde pelo Estado brasileiro exige o emprego de vultosos recursos financeiros, os quais não estão disponíveis na mesma proporção que as necessidades da coletividade.
Apesar das dificuldades, a efetivação do direito à saúde avançou gradativamente nos últimos 40 (quarenta) anos. Durante esse período, o Brasil superou um sistema sanitário limitado, restrito a apenas uma parcela da população, até finalmente adotar, em 1988, o Sistema Único de Saúde. A implantação de tal sistema, baseado nos princípios da universalidade, equidade e integralidade, foi responsável pela conquista de índices sanitários mundialmente notáveis. No entanto, a continuidade dos bons resultados depende do enfrentamento de dois desafios antagônicos: a garantia da universalidade de atendimento e a limitação de recursos públicos.
Antes da criação do Sistema Único de Saúde (SUS), a assistência sanitária era prestada pelo poder público através do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social – INAMPS –, fornecendo atendimento médico somente aos que contribuíam com a previdência social, ou seja, aos empregados de carteira assinada e seus dependentes (FIGUEIREDO, 2007, p. 96).
Naquele momento, apenas 30 (trinta) milhões de pessoas tinham acesso ao serviço de saúde e, quem era desprovido de recursos financeiros dependia da caridade e da filantropia (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2011). Além disso, o sistema de saúde era centralizado e de responsabilidade federal, sem a participação dos usuários. E como agravante à situação, a saúde era considerada a mera ausência de doença, dificultando a eficácia do sistema, pois o Estado se limitava a fornecer serviços médico-hospitalares, sem se preocupar com a prestação de serviços de prevenção.
Como forma de reivindicação ao sistema de saúde então vigente, surgiu um movimento, no início da década de 70, no seio das universidades e dos sindicatos, que pleiteava por mudanças e transformações necessárias na área de saúde. Tal movimento social, denominado de “Reforma Sanitária”, indicava propostas expansionistas na área assistencial médica previdenciária.
Em 1986, durante a 8ª Conferência Nacional de Saúde, o Movimento ganhou força, pois, “pela primeira vez, mais de cinco mil representantes de todos os segmentos da sociedade civil discutiram um novo modelo de saúde para o Brasil”, nas palavras do médico sanitarista Sérgio Arouca, em depoimento datado de 1988 sobre a Reforma Sanitária (FIOCRUZ, 2015). O resultado foi a criação, através da lei 8.080/90, do Sistema Único de Saúde – SUS –, cujo objetivo é “prover uma atenção abrangente e universal, preventiva e curativa, por meio da gestão e prestação descentralizadas de serviços de saúde, promovendo a participação da comunidade em todos os níveis de governo” (ALMEIDA, BAHIA, MACINKO, PAIM, TRAVASSOS, 2011, p.11).
A implantação do SUS representou um grande avanço na área de saúde no Brasil. Além de ampliar o alcance do sistema, ele propiciou a conquista de índices de saúde expressivos. A mortalidade infantil, por exemplo, diminuiu 73% (setenta e três por cento) entre os anos de 1990 e 2015, segundo dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (2015). No entanto, a continuidade desse avanço depende não apenas de uma maior quantidade de recursos financeiros, mas, sobretudo, de escolhas conscientes sobre onde e como aplicar esses recursos.
Tal ponderação na aplicação das verbas públicas deve ser feita com a devida cautela. Para isso, deve tomar-se como base três princípios, quais sejam, a universalidade do atendimento, equidade e integralidade, estabelecidos no art. 7º da lei 8.080/90.
A universalidade do atendimento, segundo Guilherme Dias Gontijo, refere-se à ideia de que “todos têm direito à saúde, sendo esse um direito inerente ao próprio cidadão e dever do Estado”. No tocante à equidade, contudo, assevera que, “se todo cidadão é igual perante o SUS e será atendido segundo as suas necessidades, reconhece-se o imperativo de tratar desigualmente os desiguais”. Por fim, quanto à integralidade de assistência, a conceitua como “o conjunto articulado e contínuo de ações e serviços preventivos e curativos, individuais ou coletivos, com vistas ao atendimento das necessidades de saúde do indivíduo, em todos os níveis de complexidade do sistema” (2010, p. 608).
Sob outra perspectiva, ao analisar as circunstâncias reais de implementação das políticas públicas de saúde, evidencia-se um contrassenso: a concretização plena de qualquer um desses princípios, compromete a efetividade dos demais. O fato é que a finitude de recursos impossibilita o atendimento das necessidades de saúde da população de forma universal, integral e equitativa, ao mesmo tempo. Ao contrário do que predomina na opinião pública, a prestação médica-assistencial apresenta limites. Desse modo, percebe-se que “enquanto as necessidades de saúde são praticamente infinitas, os recursos para atendê-las não o são, e a saúde, apesar de um bem fundamental e de especial importância, não é o único bem que a sociedade tem interesse em usufruir” (NEWDICK apud FERRAZ; VIEIRA, 2009, p. 6).
Para demonstrar a incapacidade real do Estado em prover medicamentos de forma indiscriminada, fora realizada uma pesquisa por Octávio Luiz Motta Ferraz e Fabiola Sulpino Vieira (2009), na qual partiu-se da hipótese de serem fornecidos os medicamentos mais recentes disponíveis no mercado para todos os portadores de duas doenças, hepatite viral crônica C e artrite reumatoide. O resultado foi alarmante: segundo a pesquisa, ficou constatado que seriam necessários 99,5 bilhões de reais para tratar apenas estas duas enfermidades, de forma universal e integral. Ou seja, para tratar 1% (um por cento) da população seria empregado todo o recurso disponível para a saúde.
4. CONCLUSÃO
Pelo exposto, é forçoso concluir que a suposta obrigação do Estado em prestar, simultaneamente, assistência médica integral e universal, deve ser apreciada com a devida moderação. A eficiência do Sistema Único de Saúde não deve ser confundida com a oferta indiscriminada de qualquer tipo de procedimento tecnológico à população. Na verdade, a eficácia do sistema depende, especialmente, da organização administrativa, pois somente através da aplicação adequada dos recursos públicos será possível garantir a equidade na prestação dos serviços de saúde.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Celia; BAHIA, Ligia; MACINKO, James; PAIM, Jairnilson; TRAVASSOS, Claudia. O Sistema de saúde brasileiro: história, avanços e desafios. The Lancet [periódico na internet] 09 de maio de 2011. Séries Saúde no Brasil 1. Disponível em: <http://www.abc.org.br/IMG/pdf/doc-574.pdf>. Acesso em 23 de setembro de 2015.
BARCHET, Gustavo; MOTTA, Sylvio. Curso de direito constitucional. 2 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.
FERRAZ, Octávio Luiz Motta; VIEIRA, Fabiola Sulpino. Direito à saúde, recursos escassos e equidade: os riscos da interpretação judicial dominante. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaSaude/anexo/Direito_a_Saude_Recursos_escassos_e_equidade.pdf>. Acesso em 12 de setembro de 2015.
FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito Fundamental à saúde: Parâmetros para sua eficácia e efetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007.
FIOCRUZ. Reforma sanitária. Disponível em: <http://bvsarouca.icict.fiocruz.br/sanitarista05.html>. Acesso em 03 de setembro de 2015.
GONTIJO, Guilherme Dias. A Judicialização do direito à saúde. Disponível em: <http://rmmg.org/artigo/detalhes/345>. Acesso em 20 de outubro de 2015.
MINISTÉRIO DA SAÚDE. SUS: a saúde do Brasil. 3 ed. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2011. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/sus_saude_brasil_3ed.pdf>. Acesso em 12 de outubro de 2015.
UNITED NATIONS CHILDREN’S FUND. Levels&Trends in ChildMortality. Disponível em: <http://reliefweb.int/sites/reliefweb.int/files/resources/IGME_Report_Final2.pdf>. Acesso em 16 de outubro de 2015.
SCLIAR, Moacyr. Do mágico ao social: trajetória da saúde pública. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2002.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25 ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
VIEIRA, Fabiola Sulpino; MENDES, Andréa Cristina Rosa. Evolução dos Gastos com medicamentos: crescimento que preocupa. Disponível em: http://abresbrasil.org.br/sites/default/files/mesa_07_-_fabiola_gastos_medicamentos.pdf. Acesso em 21 de outubro de 2015.
Advogada. Bacharela em Direito pela Universidade Tiradentes. Pós-graduanda em Direito Processual Civil pela Escola Judicial do Estado de Sergipe.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JúLIA REIS MENDONçA, . A universalidade do direito à saúde e a escassez de recursos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 ago 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52154/a-universalidade-do-direito-a-saude-e-a-escassez-de-recursos. Acesso em: 23 dez 2024.
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