RESUMO: No presente trabalho, objetiva-se analisar brevemente a capacidade postulatória nos Juizados Especiais Cíveis, nas causas de até 20 salários mínimos. Dessa forma, buscou-se tratar, primeiramente, das experiências anteriores à edição da Lei nº 9.099/95, tais como os Conselhos de Conciliação e Arbitragem e os Juizados de Pequenas Causas. Tratou-se, ainda, da verificar a atual estrutura dos JEC’s sob a análise dos princípios inerentes a eles, dando-se enfoque à referida capacidade postulatória, sobretudo no que diz respeito ao instituto do jus postulandi. O método escolhido para o desenvolvimento do trabalho foi o método dialético. A temática abordada levou em consideração, precipuamente, o contexto social no qual estão inseridos os indivíduos que buscam amparo na tutela jurisdicional prestada pelos Juizados Especiais Cíveis, os quais foram pensados e criados, por meio da Lei nº 9.099/95, com o intuito de atender a um segmento da sociedade que, fosse pela morosidade, fosse pelos altos custos necessários para demandar em juízo, ficava à margem daquilo que chamamos de amplo acesso à Justiça. O jus postulandi trata-se da faculdade conferida às partes, que prevê a possibilidade destas postularem em juízo sem a presença de advogado. No entanto, a vulnerabilidade processual a que estão submetidas limita de forma expressiva a efetividade e os resultados previstos pelo referido instituto. Portanto, constituiu-se como objetivo geral discorrer acerca da capacidade postulatória, no que se refere à efetividade do jus postulandi, elucidando as situações de vulnerabilidade e disparidade nas quais se encontram os cidadãos que optam por postular em juízo desacompanhados de defesa técnica.
PALAVRAS-CHAVES: juizado especial cível; jus postulandi; acesso à justiça; Lei nº 9.099/95.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. O acesso à justiça como direito fundamental; 2.1. Um novo enfoque de acesso à justiça. 3. O surgimento dos juizados especiais cíveis: abordagem histórica. 4. Princípios norteadores dos juizados especiais cíveis. 5. Vulnerabilidade processual. 6. O jus postulandi nos juizados especiais cíveis. 7. Considerações finais. 8. Referências.
1 INTRODUÇÃO
A motivação para abordar o tema deste trabalho partiu da breve vivência da autora deste artigo, como estagiária de Direito, em uma das Varas dos Juizados Especiais Cíveis – JEC’s da comarca de Manaus/AM, no ano de 2016. O estágio desempenhando junto ao Tribunal de Justiça do Amazonas, bem como o tempo posteriormente dedicado ao ofício da advocacia privada, despertaram na autora a vontade de discorrer sobre a capacidade postulatória concedida às partes sob um olhar científico, de quem presenciou inúmeras situações que transpareciam a desproporção existente entre lides compostas por um demandante desacompanhado de patrono legal, sendo aquele processual, jurídica e socioeconomicamente vulnerável, litigando, no entanto, contra pessoas físicas e/ou jurídicas, de pequeno, médio e grande porte, altamente aparelhadas, economicamente capazes e tecnicamente preparadas para fulminar a pretensão autoral.
Insta salientar, desde logo, que o presente artigo não tem condão criticar os instrumentos processuais trazidos ao ordenamento jurídico com intuito de facilitar o acesso à justiça, tais como o jus postulandi, mas sim de verificar e expor a dimensão de sua efetividade concernente às demandas ajuizadas nos JEC’s. Por isso, o referido estudo terá como objetivo geral analisar a efetividade da capacidade postulatória nas causas de até 20 salários mínimos dos Juizados Especiais Cíveis.
Observar-se-ão os seguintes objetivos específicos: expor o propósito das ondas de acesso à justiça, principalmente da terceira onda da reforma, nas quais a criação dos Juizados Especiais Cíveis está inserida; apresentar a conceituação de vulnerabilidade, bem como suas ramificações e discorrer sobre seus efeitos, principalmente no âmbito processual; entender os objetivos e a atual estrutura dos JEC’s, sob a análise das experiências anteriores à sua criação e explanar acerca da capacidade postulatória nos Juizados Especiais Cíveis nas causas de até 20 salários mínimos e os prejuízos decorrentes da ausência de defesa técnica às partes desassistidas.
O método escolhido para a formulação do presente artigo foi o método dialético. O tema abordado levou em consideração o contexto social no qual estão inseridos os indivíduos que buscam amparo na tutela jurisdicional prestada pelos Juizados Especiais Cíveis. Por essa razão, o método dialético constituiu-se como o mais adequado para que se possa elucidar as situações de vulnerabilidade e disparidade nas quais se encontram os cidadãos que, pela faculdade dada pela lei, optam por postular em juízo desacompanhados de defesa técnica.
A organização do presente estudo fez-se sob a divisão em cinco tópicos, quais sejam: O Acesso à Justiça como Direito Fundamental, O surgimento dos Juizados Especiais Cíveis: Abordagem histórica, Princípios norteadores dos Juizados Especiais Cíveis, Vulnerabilidade Processual e O jus postulandi nos Juizados Especiais Cíveis.
O objetivo do primeiro item é explanar a existência dos Juizados Especiais Cíveis diante do discurso das ondas de acesso à justiça, sobretudo em relação à terceira onda. Esta foi intitulada com a premissa de “um novo enfoque de acesso à justiça”, a qual buscava o debate sobre a reforma dos procedimentos judiciais em geral, bem como a necessidade de criação de métodos alternativos para decidir causas judiciais, inclusive no que diz respeito à instituição de procedimentos especiais para determinados tipos de causas de particular importância social. E é nesta seara que se insere a criação dos Juizados Especiais Cíveis.
O segundo tópico trata brevemente dos modelos alternativos que antecederam à criação dos Juizados, quais sejam, os Conselhos de Conciliação e Arbitramento e os Juizados de Pequenas Causas, e como estes contribuíram com a estruturação dos Juizados e os influenciaram.
O terceiro item objetiva expor a estrutura dos Juizados Especiais Cíveis sob a análise dos princípios jurídicos inerentes a eles, constitucionais e processuais.
Quanto ao quarto tópico, serão relacionadas as diversas formas pelas quais a vulnerabilidade se manifesta e de que maneira influenciam nos atos e na marcha processual. Assim, serão abordados, no âmbito da vulnerabilidade processual, os variados quesitos que contribuem para sua composição.
Finalmente, no último tópico discorre-se a respeito da capacidade postulatória prevista pela Lei nº 9.099/95, assim como os entraves que a parcela mais carente da sociedade encontra ao postular em juízo sem a companhia de advogado.
2 O ACESSO À JUSTIÇA COMO DIREITO FUNDAMENTAL
A Constituição Federal de 1988 – CF/88 é considerada pelos estudiosos como uma das constituições mais avançadas do mundo em matéria de direitos humanos. Ao relacionar os fundamentos do Estado, a CF/88 positiva, desde logo, a dignidade da pessoa humana, indicando que a dignidade é o parâmetro orientador de todas as condutas estatais, se constituindo em um pressuposto em cima dos qual o Estado deve se desenvolver. Desta forma, a Carta Magna positivou a maior parte dos Direitos e Garantias fundamentais logo no início do texto constitucional, em seu Título II, antes de tratar, inclusive, da organização e da estrutura do Estado e dos Poderes, deixando evidente que os referidos direitos ocupariam, a partir de então, primeiro plano na nova ordem jurídica.
O princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional trata-se de um dos princípios norteadores do ordenamento jurídico brasileiro, bem como do tema ora tratado, e corresponde ao direito fundamental à efetividade do processo, ou efetividade da jurisdição, de forma que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito, garantindo aos brasileiros, dessa forma, a possibilidade de acesso à justiça.
No Brasil, o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional encontra-se previsto no artigo 5º, inciso XXXV da Carta Magna, além de encontrar previsão expressa na Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil em setembro de 1992. No mesmo sentido, As Regras de Brasília conhecidas também como Princípios de Brasília adotados pela Cúpula Judicial Ibero-americana, aprovadas pela XIV Conferência Judicial Ibero-Americana, em Brasília constituem-se em regras básicas relativas ao o acesso à justiça das pessoas que se encontram em condição de vulnerabilidade, bem como recomendações para que todos os poderes públicos promovam reformas legislativas e adotem medidas que tornem efetivo seu conteúdo.
A garantia de amplo acesso à Justiça, de acordo com Cappelletti e Garth (1998, p. 08), seria “o sistema pelo qual as pessoas poderiam reivindicar seus direitos e resolver seus litígios sob os olhares do Estado, de forma que o sistema deveria ser, primeiramente, acessível a todos e, ainda, capaz de produzir resultados individualmente justos”.
A referida garantia de um acesso à ordem jurídica justa diz respeito à tutela jurisdicional prestada de modo eficaz, por meio dos titulares de posições jurídicas – enquanto instituição estatal -, com o intuito de garantir que a tutela prestada seja voltada de forma isonômica para a realidade social.
Neste mesmo sentido, o principio do devido processo legal tampouco diz respeito unicamente à possibilidade de todos os cidadãos proporem ações. Para Watanabe (1988, p. 128): “não se trata apenas de possibilitar o acesso à Justiça enquanto instituição estatal, e sim de viabilizar o acesso à ordem jurídica justa”.
Em que pese o conceito de justiça depender de fatores de consciência de cada pessoa humana, além dos fatores culturais, históricos, econômicos e variações ideológicas de cada sociedade, o acesso à justiça não se limita, de certo, ao contato com os Tribunais, mas sim com o Direito em si, notadamente no caminho entre o cidadão comum e as leis. Ademais, o referido direito tampouco se limita a questões individuais e econômicas, tratando-se de direito fundamental básico, um dos mais básicos direitos humanos, inerentes à noção do mínimo existencial e, sobretudo à dignidade da pessoa humana.
Nas palavras de Pedro de Miranda Oliveira (2010, p. 46):
Enfim, por acesso à ordem jurídica justa entende-se acesso a um processo justo, ou seja, a garantia de acesso a uma justiça imparcial, que não só possibilite a participação efetiva e adequada das partes no processo jurisdicional, mas que também permita a efetividade da tutela dos direitos, consideradas as diferentes posições sociais e as específicas situações de direito substancial. O processo que não produza um resultado justo, assim considerado aquele que não atinge seus objetivos éticos ou que repele, direta ou indiretamente, os influxos axiológicos da sociedade, é, na verdade, um processo injusto e, por isso, inibidor do acesso à justiça.
Destarte, amplo acesso à justiça não se trata somente da prestação jurisdicional obtida diante do Poder Judiciário. O acesso à justiça não se circunscreve ao acesso ao Poder Judiciário, sendo certo que a acepção “Justiça” abarca sentido muito maior que o mero órgão judiciário. O princípio deverá garantir que todos tenham direito de obter uma tutela jurisdicional adequada, de forma que a ausência de tal característica transformaria o princípio em um ditame de pouquíssima relevância social e processual.
2.1. Um novo enfoque de acesso à Justiça
As chamadas ondas renovatórias de acesso à Justiça, propostas por Mauro Cappelletti e Briant Garth, dividem-se em três dimensões, cujas temáticas tratavam, e ainda tratam, dos principais óbices a serem enfrentados e ultrapassados pelo direito processual. Assim, a primeira dimensão está ligada à assistência judiciária aos pobres e à gratuidade da justiça; a segunda, à proteção dos direitos difusos (promoção da tutela coletiva); e a terceira, à efetivação do acesso à justiça, ao processo de facilitação acesso à justiça.
Assim, na terceira onda, a qual se denominou “um novo enfoque de acesso à Justiça” estabeleceu-se como problema-meta a transformação da estrutura judicial, importando em desburocratização dos Tribunais e simplificação dos procedimentos, bem como em mecanismos alternativos para a solução de conflitos. Buscava-se, dessa forma, a superação do que veio a se chamar “obstáculo processual”, buscando atacar as barreiras de acesso à justiça de modo mais articulado e compreensivo.
Outrossim, através da terceira onda de Mauro Cappelletti e Bryan Garth, na qual a criação dos Juizados Especiais está inserida e cujo objetivo era, sobretudo, o de facilitação acesso à justiça, reconheceu-se a necessidade de adaptar e relacionar o processo civil aos variados tipos de litígios (Capelletti, 2002, p. 26), uma vez que estes diferenciam-se pela complexidade. Para Cappelletti (op. Cit., p. 25), o método da terceira onda não consistia em abandonar as técnicas das duas primeiras ondas de reforma, mas em tratá-las como algumas séries de possibilidades para melhor o acesso à Justiça.
Assim, é forçoso concluir que já se visualizava a necessidade da implantação de procedimentos especiais para litígios de pequenas causas. Destarte, a nova tendência de especialização de juizados e de procedimentos, cujos objetivos eram atender especialmente às pessoas ou às causas mais simples, tinha como escopo a efetivação do direito fundamental de acesso à Justiça, havendo, ainda, o nítido propósito de criar tribunais e procedimentos rápidos e acessíveis às pessoas ditas “comuns”.
3 O SURGIMENTO DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS: ABORDAGEM HISTÓRICA
A criação dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, por meio da edição da Lei nº 9.099/95, tomou como inspiração o desfecho positivo obtido pelos Conselhos de Conciliação e Arbitragem e do sucesso da Lei nº 7.244/84, que regulamentava os Juizados Especiais de Pequenas Causas. As experiências anteriores à criação dos Juizados Especiais Cíveis objetivam a promoção da conciliação entre as partes para resolução de litígios de pequena complexidade, de forma célere e menos onerosa, desafogando o contingente crescente de demandas que, já à época, abarrotavam o Judiciário.
Assim, em meados da década de 80, desenvolveu-se, no estado do Rio Grande do Sul, pelos próprios magistrados e com apoio da Associação dos Juízes (AJURIS), atividade que tinha como escopo testar meios extrajudiciais de composições de litígios. A ideia de desenvolver a referida atividade teve inspiração em modelos de juizados de pequenas causas exercidos nos Estados Unidos e na Europa. Esta prática ficou conhecida como Conselhos de Conciliação e Arbitramento.
Nas lições de Roberto Portugal Barcelar, em sua obra “Juizados Especiais: a nova mediação paraprocessual”, o autor expõe a trajetória dos referidos Conselhos (2003, p. 31):
O primeiro Conselho de Conciliação e Arbitragem foi instalado em 1982 pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, seguido pelo Tribunal de Justiça de Curitiba e Tribunal de Justiça da Bahia. A partir disso, vários outros estados também criaram seus Conselhos, dissipando-se, pelo território nacional, a ideia de um sistema de conciliação de conflitos de pequeno valor, que pudesse ser realizado de maneira célere e menos burocrática.
Diante da mobilização de magistrados, serventuários da Justiça e advogados, os quais, muitas vezes, não eram remunerados, o movimento dos Conselhos, carente de precedentes e de previsão legislativa, ganhou força e acabou por alcançar índices relevantes e satisfatórios de conciliação e resolução de conflitos.
O sucesso no desempenho dos Conselhos de Conciliação e Arbitragem foi tamanho que não tardou a ser regulamentado. Com a necessidade de reorganizar a prestação jurisdicional, em 1984, foi promulgada a Lei nº 7.244, inspirada nos referidos Conselhos e no modelo americano das “Small-Claims Courts”, de origem nova-iorquina.
Por intermédio da Lei nº 7.244/84 foram criados os Juizados de Pequenas Causas, para atuarem nas causas cíveis de valor até 20 (vinte) salários mínimos e orientados pelos princípios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação das partes. Para Roberto Portugal Barcelar (2003, p. 32), os Juizados de Pequenas Causas, historicamente, foram fundamentais para dar um novo semblante à Justiça, o qual se quedava obscurecida pela falta de indignação, iniciativa e criatividade de legisladores e juristas.
Neste momento, eram necessárias as mudanças de mentalidade e de consciência popular acerca da exigência de respeito aos direitos de cada um. Era preciso que a população entendesse que o conhecimento e a defesa dos direitos são fundamentais para o exercício da cidadania. A instalação dos Juizados de Pequenas Causas acelerou este processo de conscientização popular, havendo uma mudança natural e gradativa, fazendo com que a população, aos poucos, parasse de renunciar aos direitos a que fazia jus, sobretudo afastando a conduta de inconformismo que afligia a população mais carente, justificada pela, até então, falta de acesso à Justiça.
Diante do sucesso da Lei nº 7.244/84, a Carta Magna de 1988 previu no artigo 98, inciso I, a criação dos Juizados Especiais Cíveis. Estes, por sua vez, previram um alargamento no âmbito de abrangência e atuação, uma vez que deixaram de delimitar a competência às “pequenas causas”, passando a dispor do termo “causas de menor complexidade”, tanto na esfera estadual, quanto na federal. Tal premissa se concretizou com a promulgação das Leis nº 9.099/95 e 10.259/01, que tratavam dos Juizados Especiais Cíveis e Juizados Especiais Federais, respectivamente.
Salienta-se que a Lei nº 9.099/95 abarcou os mesmos princípios da Lei nº 7.244/84, inovando quanto à competência estabelecendo novo limite para as causas cíveis processadas nestes com valor não superior a 40 (quarenta) vezes o valor do salário mínimo.
Assim, os JEC’s surgiram com intuito de proporcionar uma tutela efetiva e instrumental, visando à garantia concreta do amplo acesso à Justiça, tendo em vista a costumeira demora na prestação jurisdicional e buscando, sobretudo, a celeridade processual. A ideia principal destes juizados firma-se no conceito de facilitação do acesso à Justiça por cidadãos comuns, sobretudo aqueles de baixa renda e menos favorecidos da sociedade. Desta forma, os Juizados Especiais surgiram com o objetivo não somente de proporcionar o acesso ao Judiciário a esses cidadãos, mas, ainda, com o propósito de solucionar as causas de menor complexidade de forma mais célere, possibilitando uma efetiva prestação jurisdicional aos litigantes.
4 PRINCÍPIOS NORTEADORES DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS
Sabe-se que o sistema jurídico é composto por princípios e regras, os quais exercem função primordial no ordenamento jurídico brasileiro. A doutrina não raramente discorre sobre o conceito e a função dos princípios para o Direito, diferenciando-lhes sobremaneira das regras.
Assim, para Ana Paula Barcellos (2005, p. 169) as regras se apresentam como normas que apenas descrevem determinado comportamento sem se ocupar com a finalidade dessas mesmas condutas, e os princípios como normas que estabelecem estados ideais e objetivos que devem ser atingidos. Robert Alexy (2008, p. 90) em sua teoria sobre princípios e regras, sustenta a tese de que princípios e regras são normas, sob o argumento de que ambos expressam um dever ser. Para o autor, a diferença entre os dois não é de grau, mas, de diferença qualitativa. No entendimento de Robert Alexy (2008, p. 90-1):
O ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devidas de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas.
Assim, os princípios são orientações gerais que surgem para auxiliar a interpretação das diversas normas que compõem o ordenamento jurídico. Segundo Cássio Scarpinella (2014, p. 121):
[...] os princípios assumem fundamental papel na própria interpretação e aplicação das regras jurídicas. Isto se deve fundamentalmente pela especial qualidade de densidade normativa e valorativa que caracteriza um princípio jurídico como tal, em contraposição às regras jurídicas.
A Lei nº 9.099/95 estabeleceu os princípios orientadores dos Juizados Especiais Cíveis: princípio da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade.
Conforme ensinam os doutrinadores Fernando da Costa Tourinho Neto e Joel Dias Figueira Júnior (2007, p. 79), tais princípios expressos na lei que dispõe sobre os JEC’s possuem caráter garantia constitucional:
Com referência aos princípios da simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, são eles decorrentes do próprio texto constitucional, que exige no início do inciso I do art. 98 da Lei Maior, que se observe nos Juizados Especiais a oralidade em grau máximo donde surge o procedimento verdadeiramente sumaríssimo. O que estamos a dizer é que o procedimento da Lei dos Juizados Especiais é mais flexível dos que os delineados do processo civil tradicional, justamente porque seus contornos estão definidos originariamente na Constituição Federal, que, por sua vez, determina a observância do princípio da oralidade, do qual decorrem todos os demais subprincípios inclusive os da informalidade e simplicidade.
O princípio da oralidade, como próprio termo alude, indica que, na realização dos atos processuais, deve-se prevalecer a comunicação oral, com nítido intuito de condensar a atividade jurisdicional no menor número de atos processuais possíveis, de modo que o processo ocorra de forma mais célere.
A Lei nº 9.099/95 tratou expressamente de inúmeras situações nas quais sobressai o princípio da oralidade em sede dos Juizados Especiais Cíveis. Em seu art. 13, § 3º prevê:
Art. 13. §3º Apenas os atos considerados essenciais serão registrados resumidamente, em notas manuscritas, datilografadas, taquigrafadas ou estenotipadas. Os demais atos poderão ser gravados em fita magnética ou equivalente, que será inutilizada após o trânsito em julgado da decisão.(grifos nossos)
Neste diapasão, a outorga de mandato de poderes gerais ao advogado também poderá ser conferida de forma verbal, nos termos do art. 9º, § 3º, salvo quanto aos poderes especiais, como para receber citação, dar quitação, renunciar, confessar, transigir, entre outros:
Art. 9º Nas causas de valor até vinte salários mínimos, as partes comparecerão pessoalmente, podendo ser assistidas por advogado; nas de valor superior, a assistência é obrigatória.
§ 3º O mandato ao advogado poderá ser verbal, salvo quanto aos poderes especiais.
Em sede recursal, o princípio destaca-se em relação aos embargos de declaração, que poderão ser interpostos por escrito ou oralmente, no prazo de cinco dias, nos termos do art. 49, da Lei nº 9.099/95:
Art. 49. Os embargos de declaração serão interpostos por escrito ou oralmente, no prazo de cinco dias, contados da ciência da decisão.
A fase de execução também foi contemplada pelo princípio da oralidade ao prever que, quando não cumprida voluntariamente a sentença transitada em julgado, a execução terá início por meio de solicitação do credor interessado, permitindo que esta seja realizada de forma verbal, nos termos do art. 52, inciso IV:
Art. 52. A execução da sentença processar-se-á no próprio Juizado, aplicando-se, no que couber, o disposto no Código de Processo Civil, com as seguintes alterações:
IV - não cumprida voluntariamente a sentença transitada em julgado, e tendo havido solicitação do interessado, que poderá ser verbal, proceder-se-á desde logo à execução, dispensada nova citação;
Em relação ao princípio em comento diante do advento do Código de Processo Civil de 2015, pondera Humberto Theodoro Júnior (2015, p. 91):
A oralidade recebe, com o advento do Código novo, um incremento, visto que o caráter cooperativo entre as partes e o juiz se transformou em norma fundamental do processo justo (art. 6º), e nada contribui mais para a eficiência dessa cooperação do que o contato verbal e direto entre os sujeitos do processo, ou seja, entre partes, seus advogados e o julgador. Instituições – como a audiência preliminar, nos juízos de primeiro grau, e a sustentação oral, perante os tribunais – merecem atenção particular para viabilizar o ideal cooperativo na formação democrática do provimento jurisdicional.
Está claro, portanto, que a Lei nº 9.099/95, antes mesmo do advento do Novo Código de Processo Civil, que previu de forma acertada o princípio da cooperação, buscou propagar a celeridade, a simplicidade e a informalidade nos processos tidos como “de pequenas causas” ao consagrar a oralidade como um dos seus alicerces.
Acerca do princípio da simplicidade, cumpre destacar que a ideia principal dos Juizados firma-se no conceito facilitação do acesso à Justiça por cidadãos comuns, sobretudo aqueles que compõem as parcelas menos favorecidas da sociedade.
Dessa forma, o art. 13, da Lei nº 9.099/95 pontualmente previu que atos processuais serão válidos sempre que preencherem as finalidades para as quais forem realizados, atendidos os critérios de oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade.
Art. 13. Os atos processuais serão válidos sempre que preencherem as finalidades para as quais forem realizados, atendidos os critérios indicados no art. 2º desta Lei.
§ 1º Não se pronunciará qualquer nulidade sem que tenha havido prejuízo.
Ademais, reforçando a percepção de que o processo não tem um fim em si mesmo, Ricardo Cunha Chimenti (2012, p. 35) pontua: o legislador explicita que nenhuma nulidade é reconhecida sem a demonstração do prejuízo.
Nesse mesmo sentido, relatório estará dispensado nas decisões proferidas nos Juizados Especiais Cíveis, bem como nos julgamentos proferidos pelas Turmas Recursais, nos termos do art. 46 da Lei nº 9.099/1995:
Art. 46. O julgamento em segunda instância constará apenas da ata, com a indicação suficiente do processo, fundamentação sucinta e parte dispositiva. Se a sentença for confirmada pelos próprios fundamentos, a súmula do julgamento servirá de acórdão.
O princípio da informalidade, que muito se assemelha ao da simplicidade, possibilita que os atos processuais deixem de ser um fim em si mesmo e passem a representar a verdadeira aplicação do direito, de forma que o processo seja impulsionado de forma ágil, célere e eficiente, evitando seu engessamento diante de embaraços processuais comuns às lides. Para Luciano Rossato (2016, p. 25): “o princípio busca, de forma simples e objetiva, desonerar o procedimento da complexidade que lhe é própria”.
A criação dos Juizados Especiais trouxe ao ordenamento uma das maiores facetas do princípio da simplicidade, tendo em vista que inovou ao proporcionar a capacidade postulatória às partes, excepcionando a possibilidade de postulação em Juízo sem a presença de causídico, tornando possível que o cidadão ingressasse nas demandas de até 20 salários mínimos sem o patrocínio de advogados[1].
Conforme ensina Ricardo Cunha Chimenti (2012, p. 35):
Seguindo a orientação já firmada na Lei n. 7.244/84, a Lei n. 9.099/95 demonstra que a maior preocupação do operador do sistema dos Juizados Especiais deve ser a matéria de fundo, a realização da justiça de forma simples e objetiva. Por isso, independentemente da forma adotada, os atos processuais são considerados válidos sempre que atingem sua finalidade (art. 13 da lei especial).
Na vida prática, nos Juizados Especiais Cíveis, não raramente são realizadas intimações por meio de contato telefônico, cientificando à parte do ato processual e do prazo, quando houver, após as quais há a devida certificação de intimação nos autos do processo, haja vista que a Lei nº 9.099/95 previu expressamente que as intimações serão realizadas na forma prevista para citação, ou por qualquer outro meio idôneo de comunicação[2].
Deve-se observar, entretanto, que a parte deverá ser intimada de todos os atos processuais, de modo que a informalidade inerente aos Juizados não poderá violar o devido processo legal que a parte faz jus.
O princípio da economia processual prevê que o processo civil deve propiciar às partes uma prestação jurisdicional rápida e barata, de modo a obter o máximo de resultado com o mínimo emprego possível de atividades judiciais (DONIZETTI, p. 116). Para Humberto Theodoro Júnior (2015, p. 94):
O princípio da economia processual vincula-se diretamente com a garantia do devido processo legal, porquanto o desvio da atividade processual para os atos onerosos, inúteis e desnecessários gera embaraço à rápida solução do litígio, tornando demorada a prestação jurisdicional. Justiça tardia é, segundo a consciência geral, justiça denegada. Não é justa, portanto, uma causa que se arrasta penosamente pelo foro, desanimando a parte e desacreditando o aparelho judiciário perante a sociedade.
Assim, a concessão da gratuidade da justiça no 1º grau de jurisdição, cujo deferimento está condicionado à afirmação feita pelo requerente de que sua situação econômica não lhe permite demandar em juízo sem que haja prejuízo seu ou de sua família, é uma das formas pelas quais o princípio da economia processual se manifesta. Destarte, o princípio da economia processual busca contenção de tempo e recursos, pois, aliado aos princípios da informalidade e simplicidade, estabelece que as partes, por intermédio, sobretudo, da atuação do magistrado, sejam práticas e objetivas no desenrolar dos atos processuais nas demandas judiciais.
Não obstante, os Juizados Especiais surgiram com o objetivo não somente de proporcionar o acesso ao Judiciário às pessoas de menor poder aquisitivo, mas, ainda, com o objetivo de solucionar as causas de menor complexidade de forma mais célere, possibilitando uma efetiva prestação jurisdicional aos litigantes. Na lição de Ricardo Chimenti (2012, p. 48):
A maior expectativa gerada pelo Sistema dos Juizados é a sua promessa de celeridade sem violação do princípio da segurança das relações jurídicas. O critério foi elevado a direito fundamental pelo inciso LXXVIII do art. 5º da CF, na redação da Emenda Constitucional n. 45.
Em sede de Juizados Especiais, a celeridade se manifesta em conjunto ao princípio da concentração dos atos em audiência, por exemplo. Nesse sentido, os artigos 28 e 29, da Lei nº 9.099/95:
Art. 28. Na audiência de instrução e julgamento serão ouvidas as partes, colhida a prova e, em seguida, proferida a sentença.
Art. 29. Serão decididos de plano todos os incidentes que possam interferir no regular prosseguimento da audiência. As demais questões serão decididas na sentença.
Parágrafo único. Sobre os documentos apresentados por uma das partes, manifestar-se-á imediatamente a parte contrária, sem interrupção da audiência.
Ademais, a Lei nº 9.099/95 permitiu que a conciliação seja instaurada de pronto, não havendo necessidade de registro prévio de pedido e de citação, desde que haja o comparecimento de ambas as partes, comprovando plena consonância com o objetivo almejado pelo princípio da celeridade processual.
5 VULNERABILIDADE PROCESSUAL
O conceito de vulnerabilidade[3] se relaciona com a concepção de suscetibilidade, constituindo-se em qualidade ou estado daquele que é vulnerável; ou seja, suscetível a algo em razão de sua fragilidade.
A vulnerabilidade processual, conforme os ensinamentos de Fernanda Tartuce (2012, p. 184):
[...] é a suscetibilidade do litigante que o impede de praticar os atos processuais em razão de uma limitação pessoal involuntária ensejada por fatores de saúde e/ou de ordem econômica, informacional, técnica e organizacional de caráter permanente ou provisório.
É certo, portanto, que são inúmeras as situações referentes à vida das partes que podem comprometer seus desempenhos no decorrer de uma disputa processual. O desconhecimento da matéria processual, bem como os entraves inerentes ao comum uso de linguajar técnico podem, não raramente, onerar sobremaneira a prática de atos processuais pelas partes, sobretudo nas causas que tramitam em Juizados Especiais Cíveis, onde essas, desprovidas de informações processuais “básicas”, optam por, ainda assim, demandar por conta própria, através do jus postulandi.
Para Rafael Barbosa e Maurilio Casas Maia (2014, p. 355), a vulnerabilidade processual é o “reflexo das dificuldades e fraquezas reais da parte litigante, as quais repercutem negativamente no âmbito de suas faculdades processuais a ponto de gerar desequilíbrio e disparidade de armas neste contexto”.
Segundo Cláudia Lima Marques (2010, p. 320), no que tange às causas consumeristas, existem quatro tipos de vulnerabilidade, a saber: 1. Vulnerabilidade técnica, que retrata a falta de conhecimento sobre o objeto ou serviço; 2. Vulnerabilidade jurídica ou científica, onde existe a deficiência acerca do próprio direito; 3. Vulnerabilidade fática ou socioeconômica a que diz respeito à fragilidade em razão da desigualdade econômica; 4. Vulnerabilidade informacional, a que se refere à ausência de informações capazes de desequilibrar a relação.
Acerca da vulnerabilidade econômica, estritamente relacionada à insuficiência de recursos financeiros, cumpre destacar que essa hipossuficiência financeira reflete-se diretamente na marcha processual, na proporção em que obsta, dificulta e confunde a prática de atos pelo litigante. A hipossuficiência, inclusive, diferencia-se da vulnerabilidade, uma vez que se apresenta principalmente no âmbito processual, devendo ser provada, caso a caso e havendo presunção relativa de tal situação.
A vulnerabilidade econômica trata, consoante ensina Flávio Tartuce (2013, p. 33), “de um conceito fático e não jurídico fundado em uma disparidade ou discrepância notada no caso concreto”. A desinformação pessoal ligada à questão educacional, vinculada à escolaridade de cada um, também ligada à vulnerabilidade social, reflete diretamente na seara processual, constituindo também obstáculo social impeditivo do acesso à justiça.
Assim, a concepção de vulnerabilidade deve ser compreendida de forma abrangente, interpretando-se como condição que restringe o exercício de direitos, não se tratando apenas de hipossuficiência econômica e financeira, abarcando, portanto, todos aqueles que se encontram em situação social ou organizacional que dificulte o acesso à justiça.
Em sede de Juizados Especiais, a desinformação pessoal, ligada ao grau de escolaridade dos indivíduos, manifesta-se negativamente de diversas formas. Efetivando-se uma delas quando a parte processual desassistida vê-se obrigada a acompanhar o andamento processual por meio de sistemas informatizados do Poder Judiciário. No entanto, o que costumeiramente ocorre é que, mesmo quando as partes conseguem executar as instruções para concretizar a consulta processual através dos sites dos Tribunais de Justiça dos Estados, a referida consulta deixa de surtir o efeito prático esperado, porque pouco adianta tomar conhecimento de que em determinada data foi exarado determinado despacho pelo magistrado ou prolatada determinada decisão interlocutória, se, no plano fático, não há efetiva compreensão do conteúdo destes atos.
Assim, se o objetivo do acompanhamento processual é assegurar aos litigantes o acesso a todas as informações pertinentes ao trâmite processual, para que se garanta o ingresso aos atos publicados, de forma a viabilizar a ampla defesa e o devido contraditório, torna-se pouco eficaz diante da barreira ligada à desinformação e, ainda, ao direito processual e material.
Não se pode deixar de pontuar que um dos meios mais eficazes para diminuição desta vulnerabilidade social que assola a população brasileira é, sem dúvida, o aumento da escolaridade dos indivíduos, com o devido incentivo à educação, buscando-se um nivelamento educacional por alto, a inclusão digital, acesso e compreensão de orientações, informações, instruções, diretrizes e, em um futuro ideal, compreensão de leis e normas jurídicas.
Em relação ao direito material propriamente dito e às normas processuais, nota-se um despreparo, uma carência latente de conhecimento jurídico “básico” experimentado pelas camadas menos favorecidas do Brasil. Obviamente, não somente esta camada sofre com o desconhecimento jurídico, material e processual, mas é neste segmento que isso se torna mais evidente.
A problemática relacionada à carência de conhecimento acerca do direito material se faz presente logo no início da marcha processual, na chamada “atermação”. O art. 14, § 3º da Lei nº 9.099/95 prevê o procedimento popularmente conhecido como “ajuizamento” ou “atermação:
Art. 14. O processo instaurar-se-á com a apresentação do pedido, escrito ou oral, à Secretaria do Juizado.
§ 1º Do pedido constarão, de forma simples e em linguagem acessível:
I - o nome, a qualificação e o endereço das partes;
II - os fatos e os fundamentos, de forma sucinta;
§ 2º É lícito formular pedido genérico quando não for possível determinar, desde logo, a extensão da obrigação.
§ 3º O pedido oral será reduzido a escrito pela Secretaria do Juizado, podendo ser utilizado o sistema de fichas ou formulários impressos.
A parte que deseja postular em juízo sem a presença de advogado, ao se submeter à atermação, pouco sabe sobre a fundamentação de fato e de direito que sustenta a causa de pedir e o pedido de sua pretensão, deixando de apresentar informações e documentos essenciais ao provimento do pleito. Vale ressaltar, ainda, que embora haja um setor responsável por reduzir a termo as pretensões da parte desassistida, este, em teoria, não está apto a prestar esclarecimentos jurídicos, mas tão somente, como o nome já diz, a passar para o papel os fatos narrados e o objetivo da parte com esta pretensão.
Relativamente a isso, Fernanda Tartuce (2012, p. 199) pontua:
É inegável a realidade sociológica na qual os litigantes são desprovidos de informações processuais básicas. Para comprovar essa assertiva, basta considerar a situação do demandante sem advogado nos Juizados Especiais Cíveis: o desconhecimento sobre o trâmite processual e a inacessibilidade do linguajar técnico podem prejudicar – e muito – a prática dos atos em juízo.
Mostra-se clarividente, portanto, que uma população com acesso limitado à informação, ou totalmente carente desta, acometida por diversas vertentes que compõem o conceito de vulnerabilidade, teria grandes dificuldades de acesso ao direito, não exercendo condignamente sua cidadania, tampouco cumprindo a máxima de amplo acesso à Justiça.
6 O JUS POSTULANDI NOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS
A capacidade postulatória refere-se à aptidão de postular em juízo, ou seja, trata-se de um pressuposto processual, que se constitui na habilidade para realizar os atos do processo de maneira eficaz. Não se confunde capacidade postulatória com a capacidade processual, uma vez que esta diz respeito à aptidão para fazer parte do processo, enquanto aquela constitui verdadeira aptidão para efetuar os atos do processo de maneira eficaz.
A capacidade postulatória, no processo civil, é restrita, via de regra, aos advogados, em regra. A Lei nº 9.099/95, porém, permitiu que a parte postulasse em juízo pessoalmente, sem necessidade de estar acompanhada de advogado. Tal faculdade denomina-se jus postulandi, que “no processo do trabalho, é a capacidade conferida por lei às partes, como sujeitos da relação de emprego, para postularem diretamente em juízo, sem necessidade de serem representadas por advogado” (LEITE, 2015, p. 553).
A faculdade do jus postulandi trazida pela Lei nº 9.099/95 assegura o acesso à justiça, de forma muito menos onerosa, pois diminui consideravelmente os custos em relação à contratação de patrono legal, bem como a questão dos honorários advocatícios. A dispensa de custas, taxas e despesas no primeiro grau de jurisdição, preceituada no art. 54º da Lei nº 9.099/95[4], possibilitou que aqueles cidadãos de menor renda pudessem ingressar com as ações que lhe fossem pertinentes, sem que isso se tornasse oneroso ao ponto de não valer o custo-benefício de submetê-la ao crivo do Poder Judiciário.
Destarte, este é um dos pontos mais debatidos e controversos acerca da referida lei, pois a hipótese mencionada, do cidadão ingressar nas demandas dos Juizados sem advogado, trouxe uma conclusão cujo entendimento seria contrário à disposição prevista no art. 133, da Constituição Federal, que assegura ser o advogado “indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”.
Para Alexandre Freitas (2014, p. 269):
[...] é de se referir, porém, que me parece inconstitucional a regra que permite à parte comparecer em juízo sem advogado nos juizados especiais cíveis, quando o valor da causa não exceder de 20 salários mínimos. Tal inconstitucionalidade decorre do fato de tal regra contrariar o disposto no art. 133 da Constituição da República, em cujos, termos o advogado é essencial ao exercício da função jurisdicional, na forma da lei. Ao meu sentir, à lei caberá regulamentar o exercício da atividade do advogado, mas sem jamais chegar ao ponto de tornar a presença do advogado facultativa, pois assim estar-se-ia negando à sua atividade o caráter de função essencial. Isso porque, como sabido, essencial significa indispensável, necessário. Assim sendo, não se pode admitir que o advogado seja essencial, mas possa ser dispensado, sob pena de se incorrer em paradoxo gravíssimo.
Embora o legislador tenha tido a melhor das intenções permitindo que as partes postulassem em juízo sem a presença de causídico, o jus postulandi torna-se útil apenas naquelas matérias de menor complexidade, inclusive pela economia processual que traz ao litigante. Porém, o legislador parece ter olvidado o antigo ditado jurídico: “da mihi factum, dabo tibi jus”, que, em tradução livre afirma “diga-me os fatos e eu te direi o direito”, preconizando, assim, que cada caso é um caso.
O desconhecimento do direito é apenas um dos óbices à efetiva prestação jurisdicional àqueles que optam por litigar nestes juizados sem a presença de patrono. Há ainda a gritante desigualdade socioeconômica que assola o país, o grau de escolaridade e de conhecimento da população, que se encontram bem aquém do ideal, dificultando expressivamente o resultado pretendido e, muitas vezes, idealizado por essas partes.
Não obstante, o critério usado pela Lei nº 9.099/95 para facultar a presença de advogado foi aquele que se refere ao valor da causa, estabelecendo o limite nas causas em até 20 salários mínimos. O legislador entendeu que essas causas que envolvessem um montante pecuniário menor seriam mais fáceis de solucionar que aquelas que envolvessem maior valor econômico.
No entanto, valor da causa não constitui critério absoluto, tampouco suficiente, para definir a complexidade de uma causa. Nas lições de Cappelletti e Garth (2002, p. 35): “pequenas causas, afinal, não são necessariamente simples ou desimportantes; elas podem envolver leis complexas em casos de vital importância para litigantes de nível econômico baixo ou médio”.
Tendo em vista que, desprovido de defesa técnica patrocinada por advogado, o cidadão apresenta-se vulnerável perante o Poder Judiciário, por vezes não dispondo de informações e conhecimentos técnicos suficientes acerca de seus reais direitos, o jus postulandi, não raramente, é adotado em detrimento do princípio constitucional do “acesso à Justiça”. Nota-se, assim, a existência de um ônus a ser suportado por aquele que, pela faculdade dada pela lei, optou por litigar sem a constituição de causídico.
O cumprimento de sentença, no que diz respeito à execução exige pedido expresso da parte para se iniciar a execução[5], ou seja: depende da iniciativa do credor. Muito embora nos processos em que haja advogados constituídos nos autos, a manifestação pelo requerimento da execução se consubstancie em mera petição simples assim a requerendo, nos casos que a parte atua por conta própria, será necessário comparecimento à vara, onde este fará requerimento, muitas vezes a próprio punho, o qual será anexado ao processo para análise.
No entanto, o que mais dificulta o cumprimento de sentença é, novamente, o desconhecimento sobre normas processuais. Não há como se exigir de um cidadão não operador do direito que este tenha conhecimento do que seja o “trânsito em julgado da sentença”, muito menos que após este deverá requerer o “cumprimento da sentença”. Também, figuras como despachos, prazos processuais, penhora, títulos executivos judiciais, execução provisória, caução, entre outros, mostram-se nebulosos ao litigante desassistido, dificultando e diminuindo drasticamente a eficácia do cumprimento de sentença.
Aliás, cabe aqui o comparativo com a Justiça do Trabalho. A Justiça do Trabalho tem por pressuposto a facilitação do acesso à justiça, o que também inclui a noção de jus postulandi. Anteriormente à Reforma Trabalhista, a execução poderia ser promovida por qualquer interessado, ou ex officio pelo próprio Juiz ou Presidente ou Tribunal competente. Com o advento da Lei 13.467/2017, a execução passou a ser promovida pelas partes, permitida a execução de ofício pelo juiz ou pelo Presidente do Tribunal apenas nos casos em que as partes não estiverem representadas por advogado, nos termos do art. 878, da Consolidação das Leis Trabalhistas – CLT, in verbis:
Art. 878. A execução será promovida pelas partes, permitida a execução de ofício pelo juiz ou pelo Presidente do Tribunal apenas nos casos em que as partes não estiverem representadas por advogado. (Redação dada pela Lei nº 13.467, de 13.7.2017).
Assim, embora o legislador tenha posto fim a execução ex officio quando a parte estiver assistindo por advogado, atentou-se à figura do jus postulandi e, notadamente, preocupou-se em manter àquele que litiga desacompanhado de advogado a benesse de ter a pretensão executória iniciada de ofício pelo magistrado.
Ademais, parece incoerente que a Lei nº 9.099/95 tenha, de um lado, viabilizado a postulação em juízo sem a necessidade de constituição de patrono legal, e por outro, tenha condicionado obrigatoriamente a interposição de recursos à representação por advogado. O que se pode concluir é que a faculdade do jus postulandi é concedida à parte “pela metade”, o que torna a experiência frustrante para aquele que se convenceu que não teria que arcar com nenhum ônus referente a honorários advocatícios.
Assim, a figura do jus postulandi nos Juizados Especiais Cíveis tem se tornado de pouquíssima utilidade prática, pois ao invés de aproximar a sociedade da Justiça, revela-se instrumento muito mais decorativo que eficaz diante das complexidades inerentes às causas e ao processo judicial, da ausência de defesa técnica e, sobretudo, da insegurança e do envolvimento emocional a que estão sujeitos os demandantes.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Constituição Federal de 1988 previu em seu art. 5º, inciso XXXV o princípio da inafastabilidade jurisdicional, que garantiu a possibilidade de acesso à Justiça a todos os cidadãos. Dispôs, ainda, em seu art. 98, inciso I, a respeito da criação de juizados especiais para o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade. Assim, a criação dos Juizados Especiais Cíveis por meio da promulgação da Lei nº 9.099/95 proporcionou à população a possibilidade de discutir em juízo causas de menor complexidade, de forma célere e menos burocrática.
Embora os Juizados Especiais tenham obtido recepção positiva da população, que passou a procurar o Judiciário para resolver os conflitos que assolam a vida cotidiana, depararam-se, também, com uma população carente de educação, informação, orientação, mas com vontade e pressa em resolver as demandas submetidas ao crivo do Poder Judiciário.
A balança que equilibra a relação que envolve a prestação jurisdicional e aquele que usufrui da faculdade do jus postulandi deve ser ajustada de modo que esta parte vulnerável se equipare, de alguma forma, à parte contrária. É a famosa premissa de tratar os iguais como iguais e os desiguais como desiguais na proporção de sua desigualdade.
O Novo Código de Processo Civil previu expressamente em seu art. 6º o princípio da cooperação, cujo objetivo é, sobretudo, aproximar a figura do magistrado das partes do processo. Este princípio corrobora a concepção processual atual, consoante ensina Elpídio Donizett (2016), que exige um juiz ativo no centro da controvérsia e a participação ativa das partes, por meio da efetivação do caráter isonômico entre os sujeitos do processo.
Os magistrados tiveram, ainda, seus poderes ampliados com o advento do art. 139, do CPC/2015, principalmente em seus incisos IV, VI, VII e IX, cujo conteúdo não encontra correspondência no Código anterior. O dispositivo incluiu na esfera dos poderes-deveres do juiz conceitos jurídicos indeterminados ligados a medidas indutivas, coercitivas, mandamentais que objetivam conferir maior efetividade no cumprimento de ordens judiciais ou destinada à realização da tutela jurisdicional. Assim, o art. 139, IV dispõe que cabe ao magistrado determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária. O inciso VI, por sua vez, prevê que o juiz tem o poder de dilatar os prazos processuais e alterar a ordem de produção dos meios de prova, adequando-os às necessidades do conflito de modo a conferir maior efetividade à tutela do direito.
Outrossim, embora não possa haver nenhum tipo de inclinação ou preferência por parte do Juiz, o novo Código de Processo Civil atribuiu ao magistrado o dever de gerenciar o processo, fazendo-o com proatividade, cooperação, auxílio, esclarecimento, consulta e prevenção na gestão do processo, mormente nos Juizados, cujos princípios norteadores são os da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade.
No mesmo sentido e anteriormente ao CPC/2015, As Regras de Brasília já possuíam como objetivo garantir as condições de acesso efetivo à justiça das pessoas em condição de vulnerabilidade, sem discriminação alguma, englobando o conjunto de políticas, medidas, facilidades e apoios que permitam que as referidas pessoas usufruam do pleno gozo dos serviços do sistema judicial.
Assim, as regras recomendaram a elaboração, aprovação, implementação e fortalecimento de políticas públicas que garantam o acesso à justiça das pessoas em condição de vulnerabilidade. Recomendaram, ainda, que os servidores e operadores do sistema de justiça outorguem às pessoas em condição de vulnerabilidade um tratamento adequado às suas circunstâncias singulares. Ou seja, o que As regras Brasília buscam concretizar é a prioridade nas atuações destinadas a facilitar o acesso à justiça daquelas pessoas que se encontrem em situação de maior vulnerabilidade, quer seja pela concorrência de várias causas ou pela grande incidência de uma delas.
Torna-se, portanto, imprescindível que o magistrado adote, sobretudo no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis, uma conduta direcionada a consubstanciar a igualdade das partes, tornando essencial para que concretização de um processo civil justo, a aplicação dos postulados da cooperação, da boa-fé e, sobretudo, da paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, sob pena de a premissa constitucional de inafastabilidade da jurisdição e da consolidação do acesso à Justiça por meio do jus postulandi tornar-se apenas um discurso promissor.
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[1] Art. 9º. Nas causas de valor até vinte salários mínimos, as partes comparecerão pessoalmente, podendo ser assistidas por advogado; nas de valor superior, a assistência é obrigatória.
[2] Art. 19. As intimações serão feitas na forma prevista para citação, ou por qualquer outro meio idôneo de comunicação.
[3] As Regras de Brasília conhecidas também como Princípios de Brasília adotados pela Cúpula Judicial Ibero-americana consideram em condição de vulnerabilidade aquelas pessoas que, por razão da sua idade, de gênero, estado físico ou mental, ou por circunstâncias sociais, econômicas, étnicas e/ou culturais, encontram especiais dificuldades em exercitar com plenitudade perante o sistema de justiça os direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico.
[4] Art. 54. O acesso ao Juizado Especial independerá, em primeiro grau de jurisdição, do pagamento de custas, taxas ou despesas.
[5] Art. 513, § 1º, CPC/2015.
Advogada. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Amazonas - UFAM. Pós-graduada em Direito Civil e Direito Processual Civil, na Escola de Advocacia do Amazonas - OAB/AM. Pós-graduanda em Direito do Trabalho e Previdenciário, na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: POSSIDONIO, Carine Teresa Lopes de Sousa. A efetividade do jus postulandi: uma breve análise acerca da capacidade postulatória nos Juizados Especiais Cíveis da comarca de Manaus/AM Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 set 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52237/a-efetividade-do-jus-postulandi-uma-breve-analise-acerca-da-capacidade-postulatoria-nos-juizados-especiais-civeis-da-comarca-de-manaus-am. Acesso em: 27 dez 2024.
Por: ELISA CARDOSO BATISTA
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
Por: MARCOS ANTÔNIO DA SILVA OLIVEIRA
Por: mariana oliveira do espirito santo tavares
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