Resumo: O presente artigo busca abordar os principais aspectos (conceituais e históricos) da audiência de custódia, um direito previsto em tratados internacionais de direitos humanos e, até pouco tempo, completamente ignorado no sistema brasileiro, realidade que passa a ser paulatinamente superada a partir, principalmente, do julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, da Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347 – medida cautelar.
I – A AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA – ASPECTOS CONCEITUAIS E INTRODUTÓRIOS
A audiência de custódia consiste no direito de qualquer pessoa que tenha sua liberdade cerceada por conta de toda e qualquer prisão, detenção ou retenção estatal ser levada, sem demora, à presença de um juiz ou autoridade prevista em lei, para que seja exercido um controle imediato do ato.
O referido direito não encontra previsão legal no ordenamento jurídico brasileiro. Entretanto, no plano internacional, é possível mencionar dois tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário que trazem previsão expressa de tal direito: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos[1], documento do sistema global (onusiano), e a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica)[2].
O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos foi incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro através do Decreto nº 592, no ano de 1992. A Convenção Americana dos Direitos Humanos, por sua vez, foi incorporada pelo Decreto nº 678, também de 1992.
Apesar dos quase 30 anos de vigência interna dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos mencionados, a audiência de custódia não foi implementada no Brasil. Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei do Senado nº 554/2011, entretanto, com objetivo de alterar o art. 306, §1º, do Código de Processo Penal, a fim de determinar “o prazo de vinte e quatro horas para a apresentação do preso à autoridade judicial, após efetivada sua prisão em flagrante”[3].
A despeito da tentativa de regulamentação da audiência de custódia pelo poder legislativo, a necessidade imediata de implementação da medida fez com que alguns Tribunais de Justiça regulamentassem a matéria através de resolução, a exemplo do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo[4].
Referida regulamentação foi alvo de ação direta de inconstitucionalidade (ADIN 5240/SP) perante o Supremo Tribunal Federa, ajuizada pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (ADEPOL), afirmando que esbarraria na previsão constitucional de competência legislativa privativa da União para legislar sobre direito processual e penal (art. 22, inciso I, da Constituição Federal).
O STF[5], contudo, entendeu que as referidas resoluções não inovaram na ordem jurídica, considerando que o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana de Direitos Humanos já traziam tal previsão – de modo que as resoluções somente esmiuçaram tal direito.
Ainda assim, era necessária uma regulamentação uniforme para tratar da temática, já que os diversos Tribunais de Justiça que editaram resoluções sobre o tema, não raras vezes, adotavam critérios diversos, o que acabava por dar tratamento diferenciado para pessoas na mesma situação. O termo “sem demora”, por exemplo, era fixado em algumas resoluções como sendo de até 24 horas; em outros, até 48 horas.
O cenário começa a mudar quando o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF 347/MC, determinou a implementação da audiência de custódia como uma das medidas capazes de reduzir a população carcerária brasileira, considerando a situação de violação generalizada dos direitos humanos das pessoas presas.
II – O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL DO SISTEMA CARCERÁRIO BRASILEIRO E A IMPLEMENTAÇÃO DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA – ADPF 347/MC E A RESOLUÇÃO 213 DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA
Em maio de 2015, o Partido Socialista e Liberdade (PSOL) ajuizou Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental objetivando o reconhecimento, pelo Supremo Tribunal Federal, de que o sistema carcerário brasileiro viola a Constituição Federal ao desrespeita diariamente os direitos das pessoas encarceradas. Buscou, ainda, que o STF determinasse aos entes federativos (União, Estados e Distrito Federal) que adotem providências com o objetivo de sanar as lesões aos direitos dos presos.
Defendeu-se, ainda, em sede de inicial, que o sistema carcerário brasileiro vive um Estado de Coisas Inconstitucional. Foram apontados os pressupostos caracterizadores do ECI, conforme técnica decisória incorporada da Corte Constitucional Colombiana. O julgamento do mérito ainda não foi efetuado pela Suprema Corte, entretanto, ao apreciar a medida cautelar, os Ministros entenderam pelo deferimento de algumas das medidas requeridas em sede inicial.
Para admitir a concessão da liminar, o Plenário do STF reconheceu que o sistema carcerário brasileiro gera violações generalizadas dos direitos fundamentais dos presos. As penas privativas de liberdade aplicadas nos presídios brasileiros, que no mais das vezes não gozam de condições mínimas de salubridade, acabam por transformar-se em penas cruéis e sobremaneira desumanas.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a violação de dispositivos constitucionais, de tratados internacionais de direitos humanos (Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos e Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes e o Pacto de São José da Costa Rica), bem como normas infraconstitucionais, tal qual a Lei 7210/84.
A falta de medidas conjuntas e interdisciplinares dos Poderes Públicos caracteriza uma falha organizacional na estrutura interna dos entes federativos, causando ofensa aos direitos dos presos. Necessária, portanto, a intervenção do Poder Judiciário, a fim de corrigir os desvios decorrentes da incapacidade das autoridades administrativas e legislativas em implementar sua missão constitucional.
Não há falar, no caso, de violação à separação de funções. O Supremo Tribunal Federal, como último guardião da Constituição Federal, deve garantir que a Carta Magna tenha reconhecida a sua força normativa, de modo a inadmitir qualquer tipo de omissão dos poderes públicos democraticamente eleitos.
Na busca pela superação da situação calamitosa do sistema prisional brasileiro, o Supremo Tribunal Federal deferiu, parcialmente, os pedidos formulados em sede de medida cautelar, na ADPF 347, para determinar que fosse implementada, em 90 dias, a audiência de custódia, bem como obrigou a União a liberar as verbas do Fundo Penitenciário para serem utilizadas na finalidade para qual foi criado o fundo, vedando qualquer novo contingenciamento.
Considerando a determinação do Supremo Tribunal Federal, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução nº 213[6], em 2015, buscando regulamentar o procedimento a ser realizado nas audiências de custódia.
Alguns aspectos polêmicos foram tratados no referido ato. O artigo 1º dispõe que:
“toda pessoa presa em flagrante delito, independentemente da motivação ou natureza do ato, seja obrigatoriamente apresentada, em até 24 horas da comunicação do flagrante, à autoridade judicial competente, e ouvida sobre as circunstâncias em que se realizou sua prisão ou apreensão” (grifei).
Inicialmente, a resolução afirma que a audiência de custódia ocorrerá nos casos de prisão em flagrante delito. Criticável, nesse aspecto, a atuação do CNJ. Os tratados internacionais que regulamentam a temática afirmam que qualquer ato de prisão, detenção ou restrição da liberdade deverá ser submetido à audiência de custódia – não restringindo somente aos casos de prisão em flagrante.
Em relação ao prazo máximo de apresentação, a previsão das 24 horas contida na Resolução 213 do Conselho Nacional de Justiça acaba com um dos maiores problemas decorrentes da edição de resoluções individuais pelos Tribunais de Justiça: unifica-se o prazo em 24 horas para todas as audiências de custódia do Brasil.
No que diz respeito ao conteúdo da audiência de custódia, é necessário que o magistrado conduza o ato de maneira a não transformá-lo em uma antecipação do interrogatório. Conforme o art. 1º, a pessoa presa será ouvida sobre as circunstâncias em que se realizou sua prisão ou apreensão. O art. 8º, inciso VIII[7], torna ainda mais densa a necessidade de o magistrado não se imiscuir na seara probatória.
III – OBSERVÂNCIA DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA NOS CASOS DE APREENSÃO EM FLAGRANTE DE ADOLESCENTE PELA PRÁTICA DE ATO INFRACIONAL – FILTRAGEM CONVENCIONAL DO ART. 172 DO ECA
Uma questão de relevo diz respeito à observância da audiência de custódia quanto aos procedimentos do Estatuto da Criança e do Adolescente. Referido tema não foi abordado pela Resolução 213 do Conselho Nacional de Justiça. A questão está relacionada às apreensões em flagrante pela prática de ato infracional análogo a crime ou contravenção.
Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente:
Art. 172. O adolescente apreendido em flagrante de ato infracional será, desde logo, encaminhado à autoridade policial competente.
Parágrafo único. Havendo repartição policial especializada para atendimento de adolescente e em se tratando de ato infracional praticado em co-autoria com maior, prevalecerá a atribuição da repartição especializada, que, após as providências necessárias e conforme o caso, encaminhará o adulto à repartição policial própria.
Percebe-se que, após a apreensão em flagrante, segundo a letra fria do ECA, o adolescente será encaminhado, desde logo, à autoridade policial competente. É preciso interpretar o dispositivo conforme as convenções internacionais mencionadas. A audiência de custódia deve ser observada quando qualquer pessoa venha a ser presa ou detida, o que inclui os adolescentes apreendidos pela prática de ato infracional. Com essa filtragem convencional do dispositivo, possível perceber a necessidade de o adolescente apreendido ser encaminhado, sem demora, à autoridade judicial competente para que seja observado o seu direito à audiência de custódia.
Assim, nos termos da resolução, que menciona a prisão em flagrante delito, os adolescentes não estariam incluídos na necessidade de observância da audiência de custódia. Perdeu-se, portanto, a oportunidade de conferir um direito aos adolescentes que praticam ato infracional.
Nesse interim, é importante mencionar que a Lei do SINASE (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo) prevê o princípio da legalidade. Segundo a Lei 12.594/12:
Art. 35. A execução das medidas socioeducativas reger-se-á pelos seguintes princípios:
I - legalidade, não podendo o adolescente receber tratamento mais gravoso do que o conferido ao adulto;
Dessa maneira, além de desrespeitar os tratados internacionais de direitos humanos que regem a temática da audiência de custódia, desrespeita-se a Lei do SINASE, ao impedir que seja dado tratamento mais gravoso aos adolescentes em relação aos adultos.
Um dos princípios regentes do ECA é o do respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Referido princípio impõe a observância, a favor das crianças e adolescentes, de todos os direitos que são conferidos aos adultos, além de outros direitos compatíveis com a condição de pessoas em desenvolvimento. Assim sendo, após a apreensão em flagrante, o adolescente deverá ser encaminhado à audiência de custódia.
IV – CONCLUSÃO
Com base no exposto, é possível concluir que a audiência de custódia é de extrema importância para superar (ou pelo menos arrefecer) as mazelas corriqueiras do sistema penitenciário brasileiro. Massacres constantes, como os recentes acontecidos em Manaus[8] e Pedrinhas[9], demonstram que a situação é calamitosa e exige mudanças estruturais do sistema.
Dados do último INFOPEN[10] mostram a realidade da população carcerária do Brasil: 726.712 (setecentos e vinte e seis mil setecentos e doze) presos – dos quais 40% são presos provisórios – para 368.049 (trezentos e sessenta e oito mil e quarenta e nova) vagas. A população carcerária é próxima ao dobro do suportado pelos presídios.
Cresce, nesse cenário, a importância da implementação efetiva da audiência de custódia, como medida apta a evitar que novas prisões em flagrante sejam convertidas em prisões preventivas – não raras vezes desnecessárias e violadoras da regra interna de tratamento da presunção de inocência (a prisão preventiva como última ratio).
O mesmo se diga em relação aos procedimentos de apuração de atos infracionais praticados por adolescentes. Em caso de apreensão em flagrante pela prática de ato infracional, deve-se observar o direito do adolescente de ser submetido à audiência de custódia como forma de evitar o recolhimento às entidades de internação ou mesmo a aplicação de medidas gravosas ao adolescente.
A iniciativa, do Conselho Nacional de Justiça, de regulamentação da audiência de custódia é louvável e já vem causando bons efeitos práticos. O contato entre juiz de direito e preso, superando o mero contato do magistrado com o papel, torna mais humano o ato de homologação da prisão em flagrante, permitindo que a avaliação da necessidade de uma custódia cautelar seja melhor exercida por parte do magistrado.
Apesar disso, é necessário que o Congresso Nacional dê andamento ao projeto de lei referente à temática, para que seja editado ato normativo, geral e abstrato, dando ainda mais relevância ao tratamento da garantia judicial da audiência de custódia.
[1] 9.3. Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do processo e, se necessário for, para a execução da sentença.
[2] 7.5. Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.
[3] https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/102115
[4] http://www.tjsp.jus.br/CanaisComunicacao/PlantaoJudiciario/AudenciasDeCustodia
[5] http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=298112
[6] http://www.cnj.jus.br/busca-atos-adm?documento=3059
[7] Art. 8º, VIII - abster-se de formular perguntas com finalidade de produzir prova para a investigação ou ação penal relativas aos fatos objeto do auto de prisão em flagrante;
[8] http://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2017/01/rebeliao-no-compaj-chega-ao-fim-com-mais-de-50-mortes-diz-ssp-am.html
[9] http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2013/12/cnj-constata-que-sao-60-os-presos-mortos-no-complexo-de-pedrinhas.html
[10] http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relatorio_2016_22-11.pdf
Advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NETO, Oswaldo Machado. A audiência de custódia - a observância (tardia) ao direito previsto na Convenção Americana de Direitos Humanos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 out 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52343/a-audiencia-de-custodia-a-observancia-tardia-ao-direito-previsto-na-convencao-americana-de-direitos-humanos. Acesso em: 23 dez 2024.
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