FRANCISCO SANNINI NETO
(Coautor)
Sabe-se que a Lei 9296/96, denominada comumente como “Lei de Interceptação Telefônica” se refere à regulamentação da captação das comunicações telefônicas no momento mesmo em que se dão entre interlocutores não cientes dessa intervenção por um terceiro, mediante ordem judicial e nos casos e obedecendo as formalidades legais e constitucionais.
Em artigo publicado no Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Ivan Jezler Júnior e Vitor Paczek Machado tratam do problema do acesso, mediante ordem judicial, baseada na Lei 9296/96, de conteúdos de comunicações via “Blackberry Messenger”.
A hipótese formulada pelos autores supra mencionados é a de que a Lei de Interceptação Telefônica não poderia ser utilizada como fundamento para decisão de concessão da ordem de acesso pelos magistrados. Isso, tendo em conta que a interceptação exige o elemento da “instantaneidade”, mencionado, inclusive em decisão do STJ sobre o assunto (STJ, HC 315.220/RS).
Ocorre que as mensagens pelo “Blackberry” são enviadas entre os interlocutores e armazenadas, de forma que o acesso não se dá propriamente por meio de interceptação no momento exato da conversa, mas por meio de violação do sigilo da correspondência telemática de mensagens arquivadas nos respectivos dispositivos eletrônicos.
Nas palavras dos autores:
Nesse sentido, a obtenção de conversas privadas trocadas pela tecnologia BBM não será uma captação em ‘tempo real’, instantânea, justamente pela proteção da criptografia utilizada pela tecnologia, o que impede o desvio das mensagens durante o percurso e impõe a disponibilização de pacote de dados contendo um conjunto de mensagens à espera da quebra da criptografia, mediante fornecimento da chave pela subsidiária brasileira.
Obviamente não seria de se imaginar a existência de um sigilo absoluto para tais comunicações, violando a razoabilidade. Entretanto, Jezler Júnior e Machado, afirmam que a base legal para a quebra do sigilo não seria a Lei 9296/96, mas sim o “art. 7º., inciso III da Lei 12.965/14 (Marco Civil da Internet) e o art. 240, § 1º., alínea “h”, do CPP”. De acordo com os autores em destaque a utilização da Lei 9296/96 promoveria uma “incongruência” entre o fato (narrativa) e a fundamentação normativa. Em suma, não se tratando efetivamente de uma “interceptação”, mas de uma apreensão de dados, a Lei 9296/96 seria inadequada ao caso, o que geraria nulidade formal por “vício na fundamentação”.
Em situação análoga, já se teve oportunidade de questionar a possibilidade ou não de acesso aos “registros telefônicos”. Realmente, também nesse caso não se conta com a instantaneidade, não se tratando de efetiva interceptação, sendo, infelizmente, a Lei 9296/96 lacunosa. Nossa conclusão, porém, foi a de que, considerando a relatividade do sigilo e da grande maioria dos direitos fundamentais (tirante as questões da tortura e da escravidão), seria possível sim utilizar como parâmetro as exigências e procedimentos da Lei de Interceptação. Já em outra obra conjunta destes autores, houve divergência de Francisco Sannini Neto, para quem o sigilo não é absoluto e a ausência de menção pela Lei 9296/96 sobre os dados e registros, possibilitaria sua obtenção independentemente de reserva de jurisdição, considerando os poderes requisitórios conferidos ao Delegado de Polícia ou ao Ministério Público.
Outra situação similar em que se tem apontado para a reserva de jurisdição diz respeito ao acesso às comunicações via whatsapp. A fundamentação se dá tanto pela equiparação à situação de interceptação de “comunicações telefônicas de qualquer natureza”, a que faz menção o artigo 1º., da Lei 9296/96, quanto por força do artigo 7º., inciso III, da Lei 12.965/14 (Marco Civil da Internet) (STJ, HC 51.531 – RO, 6ª. Turma).
Assim sendo, entende-se que a utilização dos parâmetros, exigências e procedimentos da Lei 9296/96, ao contrário de configurar nulidade formal da autorização de acesso às comunicações via “Blackberry Messenger”, possibilita uma garantia muito maior para os investigados. Isso porque nem as regras de busca e apreensão do Código de Processo Penal, nem muito menos a Lei 12.965/14 (Marco Civil da Internet), apresentam tantas garantias e exigências quanto a Lei de Interceptação Telefônica. Na realidade, não se tratando realmente de interceptação, a mera ordem judicial, independentemente das exigências formais e materiais da Lei 9296/96 já seria suficiente. Portanto, alegar nulidade da autorização judicial que prima por maior cuidado com as garantias individuais por argumento de mera formalidade, não parece razoável.
Não se olvida a preciosa lição de Ihering de que “inimiga da arbitrariedade, a forma é irmã gêmea da liberdade”. Entretanto, não é possível proteger a todo custo o “trâmite formal de um ‘expediente’, antes de se pensar nos princípios que são objeto de proteção”. Afinal, “as formas são a garantia” , mas quando o apego à formalidade se sobrepõe à sua finalidade garantidora, certamente há uma visão distorcida a privilegiar a forma em detrimento do conteúdo.
Ao final e ao cabo, é possível dizer que todos os dispositivos legais apontados neste texto e no texto de Jezler Júnior e Machado, podem servir de fundamento para a ordem de acesso às comunicações via “Blackberry”, entretanto, não há relação de exclusão e sim de complementaridade, sendo fato que a normativa mais garantista ao investigado é a Lei 9296/96, a qual não lhe causará nenhum prejuízo, muito ao reverso, lhe proporcionará muito mais garantias do que são capazes o Código de Processo Penal ou o Marco Civil da Internet.
REFERÊNCIAS
BINDER, Alberto M. O Descumprimento das Formas Processuais. Trad. Angela Nogueira Pessôa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.
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