RESUMO: O entendimento do direito à saúde que vem sendo adotado pela jurisprudência dos tribunais brasileiros tem, de modo geral, conferido aos demandantes o direito praticamente absoluto de obter do Estado a satisfação de suas prestações de saúde. Compreender que o direito à saúde não consiste num direito subjetivo constitucional incondicional passa por uma reflexão sobre a sua legislação e principiologia correlata e uma das maiores críticas que se tem feito refere-se à insuficiência da fundamentação das decisões sobre o tema. Nesse contexto, o presente estudo apresenta como objetivos traçar delineamentos para as decisões judiciais em saúde, verificando quais estratégias tem sido utilizadas para o aprimoramento dessas decisões e descrever o panorama da judicialização da saúde no Estado do Ceará, bem como as medidas adotadas para promoção no Estado da autocontenção judicial. Dentre as conclusões, destaca-se a tendência à mudança de entendimento dos tribunais pátrios acerca do conteúdo desse direito, sobretudo na saúde pública, e os esforços para uma autocontenção, através da legislação, especialização dos magistrados e assessoria técnica na tomada de decisões.
Palavras-chave: Judicialização, saúde, decisões, autocontenção.
ABSTRACT: The understanding of the right to health that has been adopted by the jurisprudence of the Brazilian courts has, in general, conferred on the claimants the practically absolute right to obtain from the State the satisfaction of their health benefits. Understanding that the right to health does not consist of an unconditional subjective constitutional right is a reflection on its legislation and related principles and one of the major criticisms that has been made is the insufficient reasoning of decisions on the subject. In this context, the present study aims to outline the judicial decisions in health, verifying which strategies have been used to improve these decisions and describe the panorama of health judicialization in the State of Ceará, as well as the measures adopted for promotion in the State of judicial self-restraint. Among the conclusions, there is a tendency to change the understanding of the country's courts regarding the content of this right, especially in public health, and the efforts for self-restraint through legislation, specialization of magistrates and technical advisory assistance in decision-making.
Keywords: Judiciary, health, decisions, self-restraint.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 FUNDAMENTOS JURÍDICOS DO CONTROLE JUDICIAL SOBRE POLÍTICA PÚBLICA DE SAÚDE: ASPECTOS A SEREM CONSIDERADOS NAS DECISÕES JUDICIAIS 3. A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE NO ESTADO DO CEARÁ: UM ESFORÇO PELA AUTOCONTENÇÃO JUDICIAL. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.
1. INTRODUÇÃO
No Brasil, a 13ª edição do Relatório Justiça em Números, divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2017), que considera os processos ajuizados até 31/12/2016, realiza um diagnóstico sobre a litigiosidade na área da saúde, analisando dados de 90 tribunais pátrios. Por meio do acesso a painéis eletrônicos[1], esse relatório permite a realização de consulta detalhada por classes e assuntos de processos judiciais. Destarte, a judicialização da saúde, considerando-se os processos ajuizados de 2014 à 2016, registrou-se um total de 1.054.203 novas ações judiciais, sendo que em 2011 essas demandas somavam 240.980 processos judiciais (CNJ, 2011). Observado o novo quadro, percebe-se um significativo aumento do número de demandas na área da saúde.
É evidente que a judicialização da saúde se institucionalizou e constitui mais uma forma de acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS). O excesso de ativismo judicial e intervenção judicial em áreas nas quais originariamente não caberia ao Poder Judiciário se manifestar, leva esse poder a atuar como um legislador positivo, inovando no sistema jurídico nacional, se substituindo e passando a exercer o papel que é originariamente do gestor e do Poder Executivo, passando a interferir e até mesmo a criar políticas públicas.
A construção de doutrina tradicional se encontra voltada para o oferecimento de paradigmas teóricos, que possam ser utilizados no processo de tomada de decisão em sede de jurisdição constitucional, a fim de concretizar esses direitos fundamentais. Contudo, entende-se que a concretização dos direitos fundamentais não pode se dar prioritariamente através da judicialização, em detrimento de uma cultura de paz.
Tal intervenção judicial, quando apartada de considerações técnicas e jurídicas, especialmente no que envolve o fornecimento de medicamentos e determinação de procedimentos cirúrgicos, internações e outros cuidados à saúde, tem potencial para alterar o planejamento e execução dos orçamentos e podem resultar num considerável dispêndio de recursos públicos para o cumprimento de decisões judiciais. Ressalte-se que, por apresentarem efeitos sistêmicos, tais decisões poderão resultar em prejuízos até mesmo para a própria política de saúde pública universalmente programada pelo Estado.
No Estado do Ceará, segundo informações disponíveis no sistema de acompanhamento de processo do Conselho Nacional de Saúde (CNJ), no ano de 2016 tramitaram 4.699 novos casos (CNJ, 2017), comparando-se aos anos anteriores os números também revelam significativo aumento de litigantes em busca da garantia do direito à saúde.
Diante do exposto, este estudo se funda na necessidade de ampliar o debate sobre a judicialização da saúde na circunscrição do Estado em análise, tendo como campo específico a saúde pública porque se visa demonstrar como a política pública está organizada em ampla gama normativa, em contraste com a análise muitas vezes simplória que tem sido feita por determinados tribunais ao se depararem com essas demandas.
Assim, a fim de proporcionar uma melhor compreensão da judicialização em saúde busca-se descrever estratégias que tem sido traçadas para o aprimoramento das decisões envolvendo saúde pública tanto em âmbito nacional, como local. Espera-se que este estudo contribua para o conhecimento sobre as ações judiciais em saúde, quanto as especificidades que devem ser consideradas a depender da necessidade assistencial demandada, bem como sobre a fundamentação das decisões judiciais, concessivas ou não desses direitos.
2. FUNDAMENTOS JURÍDICOS DO CONTROLE JUDICIAL SOBRE POLÍTICA PÚBLICA DE SAÚDE: ASPECTOS A SEREM CONSIDERADOS NAS DECISÕES JUDICIAIS
A concretização dos direitos sociais depende tanto das escolhas políticas quanto dos recursos financeiros disponíveis pelo Estado. Ressaltando que em país nenhum do mundo existem recursos financeiros bastantes para atender sem limites, todas as exigências de todos quanto a satisfação plena dos direitos sociais, sendo necessário escolher qual parte dos recursos será destinado a cobrir essas despesas, Avelã Nunes defende que a necessidade de distribuição dos recursos financeiros destinados a atender esses direitos nos coloca no terreno das escolhas políticas, o que não caberia na competência dos tribunais(SCAFF; NUNES, 2011, p.37-39).
Especificamente quanto ao direito à saúde, ao aceitarmos que ele só pode se efetivar através de políticas públicas adequadas, as mesmas não poderiam ser reduzidas, ao contrário do ponto de vista que parece ser o dos tribunais brasileiros, à prestação de serviços médicos e ao fornecimento de meios de diagnóstico, intervenções cirúrgicas e medicamentos, segundo os interesses de cada pessoa que se encontre doente:
Os factores(sic) que condicionam a saúde das comunidades humanas são factores(sic) econômicos, sociais e culturais muito complexos, pelo que as políticas de saúde que devem atender a todos eles hão de ser necessariamente políticas complexas, que passam pela habitação, pela alimentação, pelo fornecimento de água potável, pelo saneamento básico, pela educação, pelo lazer, pela organização de serviços de cuidados primários de saúde, pela vacinação em massa, e que incluem também o funcionamento de hospitais onde se tratam os doentes com recurso aos meios de diagnóstico disponíveis a aos conhecimentos médicos, e a equipamentos tecnologicamente avançados e a medicamentos sofisticados (SCAFF; NUNES, 2011, p.37-39).
O acesso à saúde, mediante judicialização, vem imputando à administração pública sérios desafios na execução orçamentária dos recursos por ela geridos. A relação entre orçamento público e políticas públicas é essencial, e apresenta caráter eminentemente político, conforme assevera Oliveira (2006, p. 246):
A decisão de gastar é, fundamentalmente, uma decisão política. O administrador elabora um plano de ação, descreve-o no orçamento, aponta os meios disponíveis para seu atendimento e efetua o gasto. A decisão política já vem inserta no documento solene de previsão de despesas.
Considerando a política pública como decisão fundamentalmente política, existindo todo um processo político-administrativo de formulação e implementação, muitas decisões judiciais colocam os gestores em situação difícil, apesar de que ao magistrado não deveria ser possibilitado determinar à aqueles a aplicação de recursos financeiros do SUS para fins diversos, uma vez que constitui crime o emprego irregular dessas verbas (art.52, da Lei nº 8.080/90 e art. 315, do Código Penal).
No presente artigo não se pretende analisar a competência institucional, nem a legitimidade do Poder Judiciário no enfrentamento da judicialização da saúde, tendo em vista o reconhecimento dessa possibilidade pelos tribunais pátrios, especialmente o STF, o que aqui inicialmente se expõe é a existência de dois tipos de judicialização da saúde.
A primeira hipótese se daria mediante a postulação judicial de exercício de direito já reconhecido, mas negado na via administrativa, que pode ser relativo a um medicamento, tratamento ou tecnologia já incorporados ao SUS ou no plano de saúde. Essa judicialização, que normalmente decorrente de falha no sistema ou problema de gestão, não gera inovação ou criação de política pública de saúde via judicial, sendo muito alto o índice de sucesso das demandas dessa natureza. Para alguns autores essas demandas deveriam ser resolvidas no plano extrajudicial, sem a intervenção do Poder Judiciário (SCHULZE; GEBRAN NETO, 2016, p.49-50).
A segunda ocorreria quando a discussão processual se referisse a direitos não reconhecidos na via administrativa, “tratamentos ou tecnologias ainda não incorporados, sem registro na Anvisa, sem comercialização no mercado nacional ou quando a tecnologia já está incorporada, mas o sujeito não possui indicação médica”, nesses casos, o grau de rigorismo com o qual o processo deve ser analisado deve ser elevado, pois “condenações indevidas podem causar prejuízo financeiro muito grande e dificuldades na execução do planejamento orçamentário do ente público ou da operadora do plano de saúde” (SCHULZE; GEBRAN NETO 2016, p.50).
Em que pese os autores acima citados apresentarem críticas a segunda forma de judicialização, que em tese seria mais prejudicial à administração, tanto por invasão de competência, como pela questão orçamentária, as considerações a serem feitas a seguir se dirigem aos dois tipos de judicialização, pois se referem ao arcabouço legal e principiológico a ser observado em ambos os tipos de demanda.
Inicialmente cumpre ressaltar que a própria Constituição Federal, prevê em seu art. 196, que o direito à saúde não é ilimitado, que a saúde é direito de todos e dever do estado, a ser garantido “mediante políticas sociais e econômicas”. Ou seja, a primeira parte do dispositivo, deve ser lido de acordo com a segunda, que consagra o chamado princípio da ação política prioritária em saúde.
A Lei nº 8.080/90 dá contornos mais estritos ao dever do Estado na garantia do direito à saúde, ao dispor no art.2º, §1º, que o mesmo “consiste na formulação de políticas econômicas e sociais que visem a redução de risco de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação”.
Além da ação política preventiva prioritária, um outro aspecto a ser observado relaciona-se a delimitação jurídica da saúde pública (art.196, CF/88), destinada ao atendimento do todos os indivíduos, que obedece a uma lógica distinta da saúde privada (art.170, CF/88). Enquanto a livre iniciativa a que é deixada a saúde privada obedece a uma lógica de lucro, de atendimento diferenciado e especializado, com liberdade de escolha por parte do paciente, sendo uma relação de confiança e contratual, não se pode exigir do sistema público de saúde qualidade igual ao que as pessoas da saúde suplementar tem acesso, na medida em que a CF/ 88 dispõe como objetivo do Estado constituir uma sociedade justa e solidária com diminuição das desigualdades sociais, só sendo possível exigir em tese do Estado o que já está previsto na política pública de saúde já existente.[2]
A Lei nº 8.080/90, art.5º, II, prevê expressamente como objetivo do Sistema Único de Saúde (SUS) a formulação da política de saúde, que o faz obedecendo a vários princípios, art. 7º, dentre eles: o da universalidade de acesso; da integralidade da assistência; igualdade de assistência; da utilização da epidemiologia para o estabelecimento de prioridades, a alocação de recursos e a orientação programática, dentre outros.
Não somente com base nessas disposições, não há como se sustentar um direito à saúde ilimitado. Esta é a linha de entendimento adotada, também, por Figueiredo (2007, p.222), a seguir citada:
A fundamentalidade material e formal dos direitos sociais, contudo, não significa a absolutização, nem tampouco uma eficácia ilimitada desses direitos. A incidência de direitos fundamentais de terceiros; a escassez real dos recursos financeiros e fáticos disponíveis à consecução dos direitos sociais; a adequação às regras constitucionais de distribuição do poder, horizontal e verticalmente, ou seja, os princípios da separação dos Poderes e da federação; as discriminações positivas a que se propõem os direitos sociais, enquanto direitos dirigidos à superação, no ‘ponto de chegada’, das diferenças fáticas que separam as pessoas; e a necessidade de concordância harmônica, proporcional e razoável entre todas essas grandezas jurídica e constitucionalmente relevantes, enfim, antepõem-se como objeções à efetivação dos direitos sociais.
É inequívoco que se deve avançar na melhoria e incorporação de novas técnicas, procedimentos e medicamentos, mas os princípios da universalidade e integralidade não devem ser interpretados de forma equivocada.
A universalidade não deve ser interpretada com uma leitura rasa de que é para todos. Entender a universalidade de acesso aos serviços de saúde, em todos os níveis de prestação, pressupõe igualdade de assistência saúde; pois não se vislumbra como possa ser assegurado o acesso de todos (universalidade) às políticas sociais e econômicas voltadas para a salvaguarda da saúde, sem que ao mesmo tempo se garanta a equidade (igualdade) no atendimento, isenta de preconceitos ilegítimos ou privilégios ‘nefastos’- discriminação ilícita (DUARTE, 2012, p. 343).
A universalidade, portanto, deve ser entendida no sentido de que o Sistema Único não deve privilegiar exclusivamente determinado(s) usuário(s) em detrimento dos demais. Contudo, no presente artigo deter-se-á mais especificamente à integralidade, que por apresentar diversos sentidos, precisa de mais considerações de índole legal para que se encontre sua melhor hermenêutica.
A integralidade é tratada na Constituição Federal como uma diretriz para a organização do sistema único e elevada pelo art. 7º, I, da Lei nº 8.080/1990 (Lei Orgânica da Saúde) à categoria de princípio orientador do Sistema Único de Saúde. O art. 7º, inciso II, da Lei Federal nº 8.080/90, prega a “integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema”.
O atendimento integral de que trata o programa normativo do art.98, inciso II, da Constituição Federal, em nada tem a ver com atendimento ilimitado. Carvalho (2006, p.16) considera que a integralidade na saúde apresenta duas dimensões, a vertical, que inclui a visão do ser humano como um todo, único e indivisível, onde não se examina o indivíduo apenas pela ótica da medicina curativa ou preventiva, mas o seu bem-estar físico, social e psíquico; e a horizontal, uma dimensão da ação de saúde em todos os campos e níveis de atenção.
O princípio da integralidade, que em um de seus sentidos relaciona-se ao emprego dos meios necessários para a efetivação do cuidado, de acordo com a complexidade das ações, parece ter um entendimento diferente para o Judiciário. Ao comparar a noção de integralidade empregada no Sistema Único de Saúde àquela manifestada mediante decisões dos tribunais, Vieira (2008, p.365-369) destaca que o deferimento de demandas sem a ressalvas sobre a existência de políticas públicas para tratar as doenças revela que a integralidade para os tribunais está mais associada a noção de consumo:
Nessa concepção, direito à saúde se resume a oferta de medicamentos, reduzindo-se às ações curativas e paliativas, sem considerar o caráter fundamental de promoção e prevenção de doenças e agravos. Sob esse ponto de vista, gera-se a confusão entre a existência de mercado com a sua oferta de mais de 16 mil especialidades farmacêuticas e a existência do SUS, que deve fornecer tratamento à população em todos os níveis de complexidade de atenção à saúde (VIERA, 2008, p.365-369).
Para Miranda (2013, p. 29-30), o princípio da integralidade “consiste em oferecer uma carteira generosa de bens e serviços para a população, a partir de escolhas fundadas em consensos baseados em critérios científicos e racionais de escolha, validados socialmente, em princípios éticos, através de regras claras e transparentes”.
Como bem salienta Henriques (2008, p. 837):
Primeiramente, constitui limite natural ao dever estatal de prover prestações de saúde o estágio de desenvolvimento da medicina no país. Destarte, se é verdade que o poder público está obrigado a fornecer tratamento adequado independentemente de sua complexidade, parece evidente que tal obrigação cinge-se às terapias disponíveis, ao padrão de atendimento possível e aos recursos materiais e humanos existentes no território nacional. Do contrário, se por assistência integral se entendesse um direito absoluto ao melhor tratamento, seria possível argumentar sempre – e quase infinitamente – existirem procedimentos e técnicas mais avançados, profissionais mais competentes e medicamentos mais eficazes em comparação aqueles disponibilizados pelo sistema público de saúde. Além de fadado à exaustão financeira, um tal sistema seria necessariamente injusto, por tornar impraticável a dispensação de tratamento idêntico a todos que se encontrem na mesma situação.
No que diz respeito à integralidade, Santos (2009 p. 63-72) defende que as ações judiciais, devem observar que existem contornos jurídicos a esse princípio definidos em lei, pois não se pode admitir o argumento de que tudo, irrestritamente, cabe no direito à saúde.
Caso não se demarque urgentemente a extensão da integralidade, a saúde poderá sofrer um grande revés em virtude do crescimento das ordens judiciais que estão gerando uma desestruturação do SUS. Do ponto de vista jurídico, a integralidade da atenção à saúde teria os seguintes contornos ou limitações:
a) o paciente deve observar todas as regras do SUS no tocante ao acesso, ao optar pelo atendimento público, ingressando no sistema e nele tendo acesso à assistência terapêutica integral disponibilizada segundo esse regramento, não fora dele;
b) o direito à saúde deve ser efetuado dentro do montante de recursos constitucionais destinados a seu financiamento (EC 29/2000);[3]
c) a integralidade tem um padrão que corresponde aos regulamentos técnicos e científicos, protocolos de condutas, limites para incorporação de tecnologias e protocolos farmacológicos, não admitindo toda e qualquer farmacêutica existente;
d) deve-se respeitar o planejamento imposto pela lei ao gestor do SUS, baseado em epidemiologia, não sendo legítimo ao Judiciário interferir no plano de saúde (SANTOS, 2009, p.63-72).
Ao Judiciário competiria coibir os verdadeiros abusos das autoridades públicas de saúde, mas as decisões judiciais, quando desbordam de sua competência e interferem nas políticas, sem respeitar estes contornos, acabam desestruturando o SUS e privilegiando aqueles que recorrem ao Judiciário, em prejuízo dos que ingressam no SUS voluntariamente (SANTOS, 2009, p.63-72).
Duarte (2012, p.412) ressalta que a própria funcionalidade do SUS e a higidez do Direito Fundamental à saúde pressupõe um adensamento e restrição legal e infralegal, à luz da Constituição, por exemplo: “nem tudo o que se apresenta ao mercado como ‘solução para os problemas’ das pessoas, sobretudo em termos de medicamentos, é realmente eficiente, seguro, de qualidade e de imprescindível incorporação no Brasil.”
Considerando exatamente que o princípio da integralidade tem seus contornos definidos em lei, Mapelli Júnior (2017, p.61) sustenta que a ‘integralidade da assistência’ dever se dar ‘todos os níveis de complexidade do sistema’ (art.7º, II, da Lei Orgânica da Saúde):
[…] sempre que o paciente ingressar na rede pública de saúde pela porta de entrada regular (art. 9º do Decreto nº7.508/11), em determinada região de saúde (Redes de Atenção à Saúde/RAS – art.20 do Decreto nº 7.508/11), local de início do tratamento e coordenação de todo o cuidado (atenção básica/primária), de onde deve automaticamente ser referenciado para os níveis mais especializados de atenção (atenção secundária e terciária), em um fluxo contínuo e articulado de serviços preventivos e curativos (art. art.7º, II, in fine, LOS) de responsabilidade do Poder Público.
Para referido autor a integralidade deve ser entendida como sistêmica ou regulada, na medida em que o SUS, em tese, não teria o dever legal de fornecer serviços e produtos de saúde para quem está fora do sistema público, prescritos por médicos privados ou tratamentos descolados das políticas públicas criadas para, de forma articulada e contínua, propiciar adequado, eficaz e seguro procedimento terapêutico para a prevenção e cura de doenças. O desenho jurídico da integralidade teria sido complementado por novos marcos legais introduzidos no patamar legislativo, tornando seu conceito mais claro, positivado em lei, conforme citado:
a) a Lei nº 12.401/11, que alterou a LOS, para definir os contornos jurídicos da assistência terapêutica integral, o procedimento de elaboração e atualização dos protocolos clínicos e a proibição do fornecimento de medicamentos sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), experimentais e importados; b) a Lei nº 14.466/11, que alterou a LOS, para elevar ao patamar legal os foros de pactuação e negociação conhecidos como Comissão Intergestores Tripartite (CIT) e Comissão Intergestores Bipartite (CIB), bem como, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) e o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS); c) o Decreto nº 7.508/11, que regulamentou a LOS, especialmente para explicitar que o atendimento deve ocorrer nas Regiões de Assistência da Saúde (RAS) e quais os requisitos para o acesso a medicamentos (tratamento na rede pública, médico vinculado ao SUS, respeito aos protocolos clínicos e dispensação em farmácia pública); e d) a lei Complementar nº141/12, que, ao normatizar os recursos sanitários, determinou que eles somente podem ser utilizados para assistência farmacêutica regular do SUS. (MAPELLI JÚNIOR, 2017, p.67-68).
Convergindo para um conceito de integralidade sistêmica ou regulada pelos procedimentos técnico-administrativos do SUS, a lei sanitária maior passou a conter uma norma jurídica expressa definindo a integralidade, art.19-M, inserido na Lei nº 8.080/90, através da Lei nº 12.401/11, trazendo uma definição bem precisa de assistência terapêutica integral (MAPELLI JÚNIOR, 2017, p. 70):
Art. 19-M. A assistência terapêutica integral a que se refere a alínea d do inciso I do art. 6º consiste em:
I - dispensação de medicamentos e produtos de interesse para a saúde, cuja prescrição esteja em conformidade com as diretrizes terapêuticas definidas em protocolo clínico para a doença ou o agravo à saúde a ser tratado ou, na falta do protocolo, em conformidade com o disposto no art. 19-P;[4]
II - oferta de procedimentos terapêuticos, em regime domiciliar, ambulatorial e hospitalar, constantes de tabelas elaboradas pelo gestor federal do Sistema Único de Saúde - SUS, realizados no território nacional por serviço próprio, conveniado ou contratado.
No tocante a evolução jurisprudencial de dois tribunais superiores do país, STF e STJ, no que se refere ao direito à saúde, pode-se dizer que se divide em, pelo menos, três fases distintas do desenvolvimento da prática judiciária. Na primeira fase, iniciada em meados da década de 1990, denota-se a prevalência das teses da Fazenda Pública, no sentido da impossibilidade de atendimento estatal das demandas judicializadas relacionadas ao direito à saúde (BALESTRA NETO, 2015, p.87-111).[5]
Na segunda fase, com início em 2000, a jurisprudência predominante passou a se filiar a um novo entendimento, identificando a fundamentalidade material do direito à saúde, como emanação direta do princípio da dignidade da pessoa humana, os tribunais superaram as várias teses defensivas da Fazenda Pública, fazendo assim valer, indiscriminadamente, os pedidos dos usuários do Sistema Único de Saúde. Nesse período os ministros passaram a se debruçar basicamente sobre o conflito entre mínimo existencial e reserva do possível, sem lançarem maiores considerações sobre as especificidades do pedido (BALESTRA NETO, 2015, p.87-111).[6]
Finalmente, uma terceira fase iniciou-se em meados da década de 2000, quando os tribunais eventualmente passaram a negar pedidos ligados ao direito fundamental à saúde, analisando as questões próprias das ações – medicamentos fora da lista nacional, medicamentos experimentais etc. Nessa ocasião, tribunais superiores começaram a superar a ideia de que o direito à saúde e sua diretriz da integralidade significariam um “direito a tudo”, passando a uma análise mais minudente do caso concreto, com considerações de ordem técnica. Inaugurou-se na jurisprudência uma série de decisões negando aos usuários do SUS determinadas prestações, por estarem em desacordo com balizas das políticas públicas previamente delineadas (BALESTRA NETO, 2015, p.87-111).[7]
A decisão do STF em grau recursal, relativa ao pedido de Suspensão de Tutela Antecipada STA n. 175 AgR/CE, que teve como relator o Min. Gilmar Mendes, 17.03.2010), intentada contra acórdão proferido pela 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, nos autos da Apelação Cível nº 408729/CE (2006.81.00.003148-1), traçou importantes balizas para julgados sobre o tema.
Nessa decisão, com fulcro no art. 196, CF/88, se reconhece a existência de um direito público subjetivo a políticas públicas que promovam, protejam e recuperem a saúde, não havendo, contudo, direito absoluto a todo e qualquer procedimento que recupere a saúde.
O Ministro relator, devido à grande quantidade de processos e complexidade envolvida, convocou Audiência Pública nº 04 para ouvir especialistas em matéria de saúde pública e após oitiva dos depoimentos, constatou que, na maioria das demandas, a intervenção judicial não ocorre em razão de uma omissão absoluta em matéria de políticas púbicas voltadas a promoção do direito à saúde, mas com a finalidade de obter tutela judicial para o cumprimento de políticas já estabelecidas.
Cita-se como parâmetro inicial para as decisões, a observância de existir ou não política estatal que abranja a prestação de saúde pleiteada pela parte. Caso a prestação não esteja entre as políticas do SUS, deve-se distinguir se a não prestação decorre: 1) de uma omissão legislativa ou administrativa; 2) de uma decisão administrativa de não fornecê-la; ou 3) de uma vedação legal a sua dispensação. Sendo vedado à Administração fornecer fármaco que não possua registro na Anvisa, nos termos da Lei Federal nº 6.360/76.
Um segundo dado a ser considerado seria a existência de motivação para o não fornecimento de determinada ação de saúde pelo SUS, considerando que em alguns casos, o SUS decide não custear por entender que inexistem evidências científicas[8] suficientes para autorizar sua inclusão. Nessas hipóteses, poderiam ocorrer duas situações: “1º) o SUS oferece tratamento alternativo, mas não adequado a determinado paciente; 2º) o SUS não tem nenhum tratamento específico para determinada patologia.”
Sobre a matéria, o Ministro Gilmar Mendes acentuou que, em geral, deve ser privilegiado o tratamento fornecido pelo SUS em detrimento de opção diversa escolhida pelo paciente, sempre que não for comprovada a ineficácia ou a impropriedade da política de saúde existente, de modo que cabe ao usuário o ônus da prova da ineficácia do tratamento oferecido pelo SUS. No julgamento também restou assentado que:
[…] que a inexistência de Protocolo Clínico no SUS não pode significar violação ao princípio da integralidade do sistema, nem justificar a diferença entre as opções acessíveis aos usuários da rede pública e as disponíveis aos usuários da rede privada”. Nesses casos, a omissão administrativa no tratamento de determinada patologia poderá ser objeto de impugnação judicial, tanto por ações individuais como coletivas. No entanto, é imprescindível que haja instrução processual, com ampla produção de provas, o que poderá configurar-se um obstáculo à concessão de medida cautelar.
O presente caso resolvido pelo STF é um retrato fiel de que houve uma evolução jurisprudencial dos tribunais superiores, tendo chegado mais próximo do ponto de equilíbrio existente entre as infinitas demandas dos usuários e a necessidade de organização e racionalidade do SUS (BALESTRA NETO, 2015, p.87-111).
Schulze (2016, p.65-70) aborda critérios que os juízes do Brasil teriam de observar para proferir decisões judiciais sobre direito à saúde, especialmente nos casos de alto impacto para o gestor, que teria como objeto de conflito, por exemplo, a internação compulsória, concessão de tratamentos, medicamentos ou tecnologias ainda não incorporados, entre outros, a fim de evitar excessos inconstitucionais.
As alterações que a Lei nº 12.401/2011 introduziu na Lei nº 8.080/1990 estabelecem regras sobre a assistência terapêutica e disciplinam a incorporação de novas tecnologias no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS. Essa lei traz como importantes inovações: 1) a constituição da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia do SUS - CONITEC[9], que tem o papel de desenvolver estudos técnicos para assessorar o Ministério da Saúde na incorporação de novas tecnologias e 2) a necessidade de observância de alguns requisitos à incorporação de novas tecnologias no âmbito do SUS, devendo-se observar a existência de evidências científicas sobre a eficácia, a acurácia, a efetividade e a segurança do medicamento, produto ou medicamento objeto do processo de incorporação; bem como indispensável a avaliação econômica comparativa dos benefícios e dos custos em relação às tecnologias já incorporadas, inclusive no que se refere aos atendimentos domiciliar, ambulatorial ou hospitalar, quando cabível (SCHULZE; GEBRAN NETO, 2016, p.65-70).
Para referido autor, a autoridade judicial responsável por processo em que se postula a concessão de medicamento, tratamento ou tecnologia deve observar as decisões baseadas em critérios técnicos proferidas pela CONITEC, se a decisão dessa comissão é favorável à incorporação daquela tecnologia, o magistrado não poderia contrariá-la, salvo comprovação científica contrária, contemporânea ou superveniente (ônus que compete ao autor do processo). De outro lado, se a posição da CONITEC for a de não autorizar a tecnologia no âmbito do SUS, o juiz somente poderia deferir o pedido se houver prova técnica (apresentada pela parte autora) refutando a conclusão da CONITEC (SCHULZE; GEBRAN NETO, 2016, p.65-70).
A decisão judicial destituída de fundamentação fática é nula, por descumprir o comando do art.93, IX, da Constituição. Não basta apenas mencionar que o direito à saúde está garantido na Constituição, a partir do art. 5º e do art.196. É necessário que, na análise do caso judicializado, se investigue o diagnóstico, o quadro clínico e principalmente, a comprovação da melhor prática de evidência científica, além da eficácia, da acurácia, da efetividade e da segurança o medicamento, produto ou procedimento postulado, sem dispensar também, a avaliação econômica comparativa dos benefícios e dos custos em relação às tecnologias já incorporadas, que consistiria na análise da relação custo-benefício.[10] (SCHULZE; GEBRAN NETO, 2016, p.65-70)
Nos casos em que o judiciário tem praticamente criado políticas de saúde, proferindo decisões judiciais de concessão de medicamentos e tratamentos não previstas no âmbito do SUS ou regulamentadas por operadoras de planos de saúde, devem ser levados em consideração os seguintes critérios para a decisão judicial:
observar a decisão da Conitec – ou de outra entidade que fornece apoio técnico ao juiz, tal como Núcleo de Apoio Técnico, Câmara Técnica, entre outros; (b) analisar a existência da melhor prática de evidência científica sobre a eficácia, a acurácia, a efetividade e a segurança do medicamento, produto ou procedimento postulado judicialmente, (c) a avaliação econômica comparativa dos benefícios e dos custos em relação às tecnologias já incorporadas (e já fornecidas), inclusive no que se refere aos atendimentos domiciliar, ambulatorial ou hospitalar, quando cabível (o critério, aqui, é da relação custo- benefício) e; (d) observar se o pedido judicial está em conformidade com as Recomendações 31 e 36 do Conselho Nacional de Justiça.
Outras balizas para o controle judicial, adotadas a partir, mas não exclusivamente da decisão proferida na STA nº 175, são enumeradas por Gebran Neto (2016, p. 174-192). Como premissa inicial, referido autor postula que haverá direito subjetivo público à saúde quando existir política pública que preveja o fornecimento de determinado medicamento e/ou tratamento ao cidadão, sendo exigível perante o Poder Público o seu fornecimento e seu deferimento deve ocorrer por intermédio do próprio SUS, em concordância com o Enunciado nº 11, da I Jornada da Saúde:
Enunciado nº 11 - Nos casos em que o pedido em ação judicial seja de medicamento, produto ou procedimento já previsto nas listas oficiais do Sistema Único de Saúde (SUS) ou em PDCT, recomenda-se que seja determinada, pelo Poder Judiciário, a inclusão do demandante em serviço ou programa já existentes no SUS, para fins de acompanhamento e controle clínico.
Uma segunda premissa identificada pelo autor é que por força do princípio da universalidade se faz desnecessária a comprovação da hipossuficiência para fazer jus a prestação material, esteja ela fixada em política pública ou não. A terceira premissa refere-se à vedação legal de dispensação de medicamento não aprovado pela Anvisa, contida na Lei nº 8.080/90, alterada pela Lei nº 12.401/11, conforme art. 19-T, II, que estabelece (SCHULZE; GEBRAN NETO, 2016, p. 176):
Art. 19-T. São vedados, em todas as esferas de gestão do SUS:
[...] II - a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento e produto, nacional ou importado, sem registro na Anvisa.”
Em sintonia com o presente artigo, encontram-se os enunciados nº6 e 9º, da I Jornada da Saúde:
Enunciado nº 6 - A determinação judicial de fornecimento de fármacos deve evitar os medicamentos ainda não registrados na Anvisa, ou em fase experimental, ressalvadas as exceções expressamente previstas em lei. […]
Enunciado nº 9 - As ações que versem sobre medicamentos e tratamentos experimentais devem observar as normas emitidas pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e Anvisa, não se podendo impor aos entes federados provimento e custeio de medicamento e tratamentos experimentais.
Especificamente quanto a medicamentos, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) recentemente definiu requisitos para a concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS, nos autos do RESP nº 1.657.156/RJ - Tema 106, entendendo, para fins do artigo 1.036, do Código de Processo Civil, ser exigível a presença cumulativa dos seguintes requisitos: (i) comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS; (ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito; (iii) existência de registro na ANVISA do medicamento.[11]
Outra premissa consiste na necessidade de prévio requerimento administrativo, sendo possível o ajuizamento da ação judicial somente após a decisão administrativa, ou omissão desta em apresentar resposta fundamentada em tempo razoável, premissa que também se sustenta em enunciado do CNJ (SCHULZE; GEBRAN NETO, 2016, p. 183):
Enunciado nº 13 - Nas ações de saúde, que pleiteiam do poder público o fornecimento de medicamentos, produtos ou tratamentos, recomenda-se, sempre que possível, a prévia oitiva do gestor do Sistema Único de Saúde (SUS), com vistas a, inclusive, identificar solicitação prévia do requerente à Administração, competência do ente federado e alternativas terapêuticas.
Além disso, o tratamento para diferentes patologias devem ser realizadas, no âmbito do SUS, obedecendo as diretrizes fixadas pela política pública, ressalvando-se a hipótese de “demonstração de sua inadequação ou ineficácia para o paciente, sendo vedado o tratamento ou medicamento experimental”(SCHULZE; GEBRAN NETO, 2006, p.186), esse requisito está em consonância com os enunciados nº14 e 16 da referida Jornada:
Enunciado nº 14 - Não comprovada a inefetividade ou impropriedade dos medicamentos e tratamentos fornecidos pela rede pública de saúde, deve ser indeferido o pedido não constante das políticas públicas do Sistema Único de Saúde (SUS). […]
Enunciado nº 16 - Nas demandas que visam ao acesso a ações e serviços da saúde diferenciada daquelas oferecidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o autor deve apresentar prova da evidência científica e também a inexistência, inefetividade ou impropriedade dos procedimentos ou medicamentos constantes dos protocolos clínicos do SUS.
Para o Gebran Neto (2016, p.187) é necessária a realização de laudo médico (ou perícia, sendo aquele preferível) indicando, se for o caso, a necessidade de tratamento excepcional, seus efeitos, estudos da Medicina Baseada em Evidências (MBE) e vantagens para o paciente, além da comparação com eventuais fármacos fornecidos pelo SUS. A preocupação com a adoção de critérios científicos quanto à adequação do tratamento/medicamento proposto evidencia-se através da leitura do seguinte enunciado da I Jornada da Saúde:
Enunciado nº17. Sempre que possível, as decisões liminares sobre saúde devem ser precedidas de notas de evidência científica emitidas por Núcleos de Apoio Técnico em Saúde (NATS).
Finalmente, deve ser de conhecimento do público a existência de eventual conflito de interesses[12] entre o prescritor e o fármaco prescrito, consistente na obrigação do médico que prescreve determinado medicamento informar se participou na criação ou desenvolvimento do fármaco, ou se participou de eventuais cursos, estudos, pesquisas, viagens, congressos, palestras ou outros eventos financiados pelo laboratório ou indústria farmacêutica (SCHULZE; GEBRAN NETO, 2006, p. 189).
Tais premissas e a orientação jurisprudencial que delas se seguiu, para o autor, não tem respondido satisfatoriamente a diversas questões, pois as exceções previstas na STA nº 175 têm prevalecido sobre as teses centrais. No que se refere especificamente as decisões que deferem medicamentos, uma rápida pesquisa sobre a jurisprudência nacional nos permitiria verificar que são raras as decisões que não os deferem, tendo o paciente demonstrado minimamente a necessidade, bastando existir uma prescrição de médico particular, indicando o princípio ativo, o nome fantasia ou qualquer outra indicação do fármaco (SCHULZE; GEBRAN NETO, 2006, p. 192):
De regra, não se exige maiores provas quanto a exames médicos, demonstração de que a pretensão está fundada na medicina baseada em evidências, prévio requerimento administrativo ou mesmo prescrição por médico do SUS. Sequer a demonstração do efetivo benefício do fármaco ou sua comparação com similares ou com aqueles previstos na política pública.
Grande parte das decisões judiciais limita-se a analisar a urgência do paciente, comprovação da moléstia e a necessidade indicada pela prescrição de um médico especialista, num raciocínio reducionista de que ‘ninguém postula judicialmente um medicamento se dele não estiver precisando’.
Duarte (2012, p.396) defende que nem todo argumento é válido em sede de discursos jurisdicionais de aplicação, alguns deles, na verdade, em vez de reforçarem a correção das decisões judiciais, terminariam por subvertê-las em novos e anômalos discursos de fundamentação “propiciando ao juiz uma liberdade argumentativa incompatível com uma concepção pós-positivista do direito e com a própria pretensão de desenvolvimento e consolidação de um Estado Democrático de direito”.
Quanto as decisões afetas ao Direito Fundamental à saúde, essa questão seria particularmente problemática, pois como fundamentação interna do provimento jurisdicional do pedido, é bastante usual encontrar argumentos do tipo:
‘se o Estado não prestar o tratamento a pessoa vai morrer’(a), ‘o medicamento é eficaz ao tratamento da patologia e, por isso, o Estado não pode se furtar a prestá-lo ao paciente’(b), ‘como a saúde é Direito e dever de todos, nos termos do art.196 da CR/88, este não pode deixar de custear o tratamento em fase experimental, pleiteado por pessoa carente’(c). (DUARTE, 2012, p.396)
Algumas perguntas que ajudariam a fornecer uma solução correta para o caso concreto como na demanda por medicamentos, seriam:
[…] ‘por que o Estado se negou a fornecer o medicamento?’ a); ‘o remédio de fato é eficiente para o tratamento da patologia?’ (b); ‘existem similares que poderiam ser empregados com o mesmo fim e que podem ser fornecidos pelo SUS?’ (c); ‘o que diz a comunidade científica nacional e internacional acerca do medicamento pleiteado?’ (d); ‘o procedimento de incorporação descambou para argumentos ilegítimos à luz de uma leitura holística do sistema jurídico e da Constituição como locus hermenêutico do Direito?’(e); […] (DUARTE, 2012, p.396)
Duarte (2012, p. 337) ressalta a importância de investigar de forma mais aprofundada alguns dos programas normativos relacionados com o Direito à saúde, e que, direta ou indiretamente, refletem nas dimensões de conteúdo que seu âmbito normativo pode vir a assumir, permitindo enxergar com mais clareza a complexidade da definição, in concreto, do âmbito normativo do Direito à saúde, a fim de não pressupor um Direito à saúde ‘sem qualquer limite fático’, o que não se sustenta em nenhum lugar do mundo.
Outro parâmetro que poderia ser levado em consideração para decisões envolvendo saúde pública especificamente, diz respeito a possibilidade do Estado conferir a todos os cidadãos o pedido pleiteado judicialmente, pois, de acordo com o princípio da universalidade de assistência, o magistrado deveria questionar se seria economicamente viável ao ente adotar determinada ação em saúde como política estatal, face também o caráter coletivo do direito à saúde.
Quanto ao tema, cumpre ressaltar considerações do Min. Gilmar Mendes na decisão proferida em sede de tutela coletiva, Suspensão de Liminar 228-7/CE.[13] Para Duarte (2012, p.428), que elogia referida decisão, a mesma revela a necessidade de um redimensionamento da questão da judicialização dos direitos sociais no Brasil. Referido ministro foi enfático ao dizer que:
[…] por ser assegurado principalmente mediante políticas públicas sociais e econômicas, não haveria um direito absoluto a todo e qualquer procedimento necessário para a proteção, promoção e recuperação da saúde, independentemente da existência de uma política pública que viessem a concretizá-lo. Em todo caso, segundo ele, haveria um direito público subjetivo a políticas públicas que promovessem, protegessem e recuperassem a saúde. [...]
Segundo Gilmar Mendes, em casos tais, o primeiro aspecto a ser considerado seria a existência ou não de política estatal que abrangesse a prestação de saúde pleiteada pela parte no processo. Em sua opinião, ao deferir uma prestação de saúde que estivesse incluída entre as políticas sociais e econômicas formuladas pelo SUS, o judiciário não estaria criando uma nova política pública, mas determinado seu efetivo cumprimento. Nesses casos, a existência de um direito subjetivo público a determinada política de saúde seria evidente.
Por outro lado, se a prestação pleiteada não fosse abrangida pelas políticas do SUS, seria imprescindível distinguir se a não prestação decorria de uma omissão legislativa ou administrativa(a), ou de uma decisão administrativa de não fornecer(b). Nesses casos, na visão do Ministro, ‘a ponderação dos princípios em conflito’ daria a resposta para o caso concreto. No fim, caso chegasse a conclusão pelo dever de ‘determinar o fornecimento de um serviço de saúde(internação hospitalar, cirurgias, medicamentos, etc.)’ o julgador precisaria assegurar-se de que o Sistema de Saúde ‘possuiria condições de arcar não só com as despesas da parte, mas também com as despesas de todos os outros cidadãos que se encontrassem em situação idêntica’. (DUARTE, 2016, p.428-429) grifo nosso
Mapelli Júnior (2017, p.176-178) sustenta que a única forma de compatibilizar o direito individual com os princípios da universalidade, igualdade (e/ou equidade) e da integralidade(sistêmica ou regulada) seria que as ações judiciais de tutela individual se restringissem a medicamentos e produtos tipicamente sanitários previstos nos programas do SUS; cabendo ao Ministério Público e demais instituições legitimadas por lei, discutir judicialmente as políticas públicas de medicamentos, seus protocolos clínicos e as diretrizes terapêuticas, sob pena de se incorrer no privilégio da disponibilização de nova tecnologia médica de forma individual.[14]
Dentre os dispositivos infraconstitucionais aplicáveis no âmbito da saúde pública, se encontram: a Lei nº 8.080/1990, a Lei nº 12.401/2011, Decreto nº 7.508/2011, Lei nº 8.142/1990, Resoluções nº 1931/2009, nº 1956/2010 e nº 2156/2016 do Conselho Federal de Medicina, Portarias nº 1.897/2017, 1.554/2013, 1.555/2013 do Ministério da Saúde, Enunciados na 1ª e 2ª Jornadas do Direito da Saúde.
Nenhum juiz possui poderes absolutos, mas não se pode negar, que diante do caso concreto, muitos deles ficam reféns de pedidos fundamentados em prescrições médicas que violam as regras da Medicina Baseada em Evidências. Como os juízes não tem formação na área médica o Poder Judiciário passou a fornecer instrumentos aos juízes do Brasil para facilitar a compreensão desse tema. A crescente qualificação dos profissionais do direito sobre o tema, as iniciativas do Conselho Nacional de Justiça, os trabalhos desenvolvidos pelo Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde e as atividades dos diversos Comitês Estaduais de Saúde tendem a facilitar uma alteração do conteúdo da judicialização da saúde (SCHULZE; GEBRAN NETO, 2016, p. 193).
Desde 2009, os casos ligados a judicialização da saúde são acompanhados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), quando este promoveu a primeira audiência pública para discutir o tema. Um dos principais resultados da referida audiência foi a constituição de um grupo de trabalho, mediante Portaria nº 650 de 20 de novembro de 2009 do CNJ, composto por juízes federais e estaduais, desembargadores e especialistas em Direito Sanitário, responsável por estudar e propor medidas concretas e normativas para as demandas judiciais envolvendo a assistência em saúde, no âmbito do próprio CNJ(MACEDO, 2016, p.106).
Atos normativos provenientes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), como a Recomendação nº 31/2010 e a Recomendação nº 36/2011, abordam a adoção de medidas para subsidiar os magistrados nas decisões sobre saúde pública e suplementar.
A Recomendação nº 31/2010, por exemplo, determinou que os tribunais, entre outras medidas, celebrassem convênios com o objetivo de disponibilizar apoio técnico composto por médicos e farmacêuticos para auxiliarem magistrados na apreciação das questões clínicas apresentadas pelas partes, observadas as peculiaridades regionais.
Através da Resolução nº 107/2010, ficou instituído o Fórum Nacional do Judiciário para monitoramento e resolução de demandas de assistência à saúde, com objetivo de monitorar as demandas assistenciais e discutir estratégias para efetivar o Direito à saúde. Na I Jornada do Direito da Saúde, em maio de 2014, o CNJ aprovou 45 enunciados (19 de saúde pública, 17 de saúde suplementar e 9 de biodireito), a seleção dos enunciados foi feita pelo Comitê Executivo Nacional do Fórum de Saúde e pela Comissão científica do evento, alguns deles já foram citados.
A II Jornada da Saúde do CNJ, que ocorreu em maio de 2015, com o slogan “A justiça faz bem à saúde”, também deu origem a importantes enunciados, recomendando, por exemplo: a requisição do prontuário médico para tornar a prova mais fidedigna com a situação do paciente (Enunciado nº 49); para a caracterização de urgência/emergência, relatório médico circunstanciado, com menção expressa ao quadro clínico de risco imediato (Enunciado nº 51); que em processo judicial no qual se pleiteia o fornecimento de medicamento, produto ou procedimento, verifique-se se a questão foi apreciada pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS – CONITEC (Enunciado nº 57); quando houver prescrição de medicamento, produto, órteses, próteses ou procedimentos que não constem em lista (RENAME/RENASES) ou protocolo do SUS, notifique-se da ação judicial o médico prescritor, para esclarecimentos sobre a pertinência e necessidade da prescrição, bem como para firmar declaração de eventual conflito de interesse (Enunciado nº 58); que as demandas por procedimentos, medicamentos, próteses, órteses e materiais especiais, fora das listas oficiais, sejam fundadas na Medicina Baseada em Evidências (Enunciado nº 59).
Os enunciados do CNJ são provenientes de decisões proferidas pelas Turmas Recursais. Apesar de não se tratar de legislação, visam unificar um entendimento que seja recorrente nos tribunais, evitando-se a insegurança jurídica (CORVINO, 2017, p. 182). Resta saber se nas decisões judiciais atualmente são consideradas as Recomendações do CNJ, bem como referidos enunciados o que conferiria um grande ganho técnico nas decisões, uma vez que as mesmas possibilitam uma judicialização da saúde mais coerente com os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde.
Portanto, a lógica que vem sendo empregada na Judicialização da saúde, limitando-se a interpretação da saúde como “direito de todos e dever do Estado”, merece uma melhor interpretação. Os enunciados não só do CNJ, mas dos Comitês de saúde, vem procurando organizar a discussão sobre o tema. Afinal a valorização das escolhas públicas é indispensável para uma equitativa distribuição de bens e recursos na área da saúde.
Com a judicialização da saúde, diferentes aspectos científicos passam a ser exigidos, direta ou indiretamente dos atores do sistema de justiça. Para tanto se faz muito importante o conhecimento, pelos magistrados, de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas[15] e da medicina baseada em evidências, que muitas vezes vem a desempenhar papel preponderante na solução do litígio.
Percebe-se que as incursões judiciais podem ser muito mais coerentes com a forma com a qual o Sistema Único se organiza, dotando as decisões de mais legitimidade, na medida em que possam se fundamentar em recomendações e enunciados que passaram por um debate com outros atores e setores responsáveis pela Saúde Pública como um todo.
Vê-se que essas decisões terão um grande ganho de fundamentação, desde que a magistratura esteja mais preparada para atuar nesses casos, seja mediante cursos de aperfeiçoamento, ou assessoria por profissionais de saúde, o que vai contribuir para uma autocontenção e consequentemente redução da judicialização excessiva, nas duas formas em que elas se apresentam.
3. A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE NO ESTADO DO CEARÁ: UM ESFORÇO PELA AUTOCONTENÇÃO JUDICIAL
No Estado do Ceará um tipo de demanda que causa apreensão principalmente por, em tese, ferir o acesso igualitário à política de saúde pública, relaciona-se aos leitos de UTI. Diante da negativa do Poder Público, inúmeros indivíduos recorrem ao Judiciário para garantir uma vaga e o embate ocorre quando a decisão judicial viola a ordem de uma fila de espera. No estado, esse problema é objeto de noticiários desde 2003, quando foi ajuizada ação civil pública para transferência de pacientes de fila para a rede privada, bem como a construção de mais leitos; diante da permanência do problema, outras ações civis públicas foram ajuizadas, além de diversas demandas individuais (LEITE, 2016, p.101).
Conforme recente estudo, do intervalo de tempo entre 2013 até outubro de 2014, houve aumento na quantidade de demandas enviadas à Crifor[16]. Enquanto durante todo o ano de 2013 (365 dias), houve um total de 75 mandados judiciais, em um intervalo inferior no ano seguinte, até o dia 31 outubro de 2014 (304 dias), a Crifor recebeu 202 mandados, o que demonstrou um crescente aumento nesse tipo de demanda. Para Leite (2016, p. 134-135), isso evidencia a necessidade de uma ação macroscópica para o problema, com a utilização de ação coletiva, notadamente, a ação civil pública (ACP).
Em resposta à ação civil pública (ACP) ajuizada pela Defensoria Pública da União (DPU) em dezembro de 2014, a Justiça Federal determinou, em outubro de 2017, a implantação de, no mínimo, 150 novos leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) no sistema público de saúde do Ceará, que devem ser implantados de forma conjunta e solidária pela União, Estado do Ceará e municípios de Fortaleza e Caucaia, no prazo máximo de quatro anos contados do ajuizamento da demanda, sendo que, a cada ano, deverão ser implantadas no mínimo 35 novas vagas.[17]
Contudo, a judicialização desses casos ainda vem tomando grandes proporções. Somente o Núcleo de Defesa da Saúde (Nudesa) da Defensoria Pública do Estado do Ceará recebe diariamente, de 10 a 15 pedidos de pessoas em busca de vagas em leitos de Unidades de Terapia Intensiva (UTI) nos hospitais da rede pública. No ano de 2017, a entidade deu entrada em cerca de 600 solicitações desta natureza, sendo 277 no segundo semestre.[18]
Em outro estudo, que aborda a judicialização do direito à saúde no Estado do Ceará, através do cruzamento de dados de processos judiciais nos sistemas de informação do judiciário entre os anos de 1998 e 2012, também se verificou a tendência de ampliação do processo de judicialização no Ceará. Dentre os processos analisados, a demanda por medicamentos representou 74% dos pedidos; linfoma, doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), mieloma e diabetes equivaleram sozinhas a 31% de todas as doenças, sendo que as prescrições médicas, em sua maioria (76%) eram provenientes da rede pública. Dentre outros achados relevantes, os autores constataram que:
a) 963 (99,8%) processos solicitaram tutela antecipada, dos quais em 882 (91,4%) o pedido foi deferido e em 35 (3,6%) o pedido estava pendente. Portanto, em apenas 46 (4,7%) dos processos os magistrados não haviam concedido a tutela antecipada. Além disso, nos 882 processos que tiveram a tutela antecipada concedida, em 858 (97,3%) as medidas antecipatórias foram concedidas sem que se ouvisse a administração pública (inaudita autera pars).
b) grande divergência de dados entre os dados encontrados na pesquisa: 1.757 processos encontrados por pesquisa direta, enquanto os dados oficiais divulgados pelo CNJ, colocavam o Ceará como o quarto maior Estado do país em número de demandas, e maior do Nordeste, com 8.344 processos em judicialização da saúde;
c) a maioria dos medicamentos pleiteados é aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) (RAMOS JÚNIOR, NUNES, 2016, p. 192-199).
Segundo informações obtidas junto à Assessoria de Comunicação (ASCOM) da Secretaria de Saúde do Estado do Ceará (SESA), referido órgão firmou parceria com a Defensoria Pública do Estado, em maio de 2016, para evitar a judicialização das demandas de saúde e solucioná-las de forma administrativa. A solicitação mais comum na área da saúde seria a demanda por medicamentos para pacientes em tratamento de câncer, osteoporose, fibrose cística e doenças raras, não constantes na Relação Nacional de Medicamentos (Rename) para fornecimento gratuito pelo SUS ou com distribuição não regulamentada pela ANVISA. O número de demandas judiciais decrescera de 5.461, em 2015, para 4.053 em 2016.
No mesmo ano, a Secretaria de Saúde ampliou as categorias de compras centralizadas para insumos da saúde e serviços, visando ampliar a capacidade de controle de estoques de medicamentos e material médico-hospitalar das unidades assistenciais. Tal centralização possibilitou o remanejamento de estoques de maneira mais rápida, permitindo a adequação da demanda ao paciente, essa medida reduziu o volume de estoques em 15% e normatizou as compras para períodos de aquisição mais curtos.[19]
Dentre medidas que buscam uma redução e aprimoramento no julgamento das demandas em saúde no âmbito do Estado, cumpre ressaltar, que em cumprimento à Resolução de nº 238 de 06/09/2016 do CNJ, que trata sobre a criação e manutenção, pelos Tribunais de Justiça e Regionais Federais, de Comitês Estaduais da Saúde, foi instalado, no dia 22 de março de 2011, o Comitê Executivo em Saúde do Estado do Ceará, sendo atualmente composto por representantes de diferentes órgãos (Justiça Federal, Justiça Estadual, Ministério Público Federal, Ministério Público Estadual, Defensoria Pública da União, Defensoria Pública do Estado, Procuradoria do Estado do Ceará, Procuradoria do Município de Fortaleza, Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Ceará, Secretaria da Saúde do Estado do Ceará, Secretaria de Saúde do Município de Fortaleza, Representantes das Operadoras dos Plano de Saúde, Agência Nacional de Saúde Suplementar - Núcleo Ceará, Conselho Regional de Medicina, AGU, Representante dos usuários da saúde suplementar) que voluntariamente cumulam estas atividades com os seus respectivos trabalhos profissionais.[20]
O Comitê Estadual da Saúde tem entre as suas atribuições, apresentar propostas às instâncias competentes para implementação e regulamentação de políticas públicas e acompanhar sua execução, inclusive emitindo recomendações; articular e mobilizar a sociedade e o poder público por meio de campanhas, debates e de ações; estimular a produção de estudos, pesquisas, debates e campanhas; implementar e monitorar ações previstas nos planos nacional, estadual e municipais de saúde, estimulando o desempenho de órgãos e entidades, avaliando os resultados; acompanhar os trabalhos dos poderes legislativos estadual e municipais quanto a projetos de leis referentes às ações de saúde; participar da elaboração da política e os planos estadual e municipais de saúde e firmar termos de acordo de cooperação técnica ou convênios com órgãos e entidades públicas e privadas, cuja atuação institucional esteja voltada à busca de solução dos conflitos na área de saúde.[21]
Visando contribuir para o monitoramento e resolução das demandas de assistência à saúde, com a atribuição de elaborar estudos e propor medidas concretas e normativas para o aperfeiçoamento de procedimentos, a efetividade dos processos judiciais e a prevenção de novos conflitos, o trabalho do referido comitê deu origem a duas Recomendações no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, a Recomendação nº 01/2017, que dispõe sobre a utilização do relatório médico para ajuizamento de ações em matéria de saúde suplementar e a Recomendação de nº 02/2017, que dispõe sobre a utilização do relatório médico para ajuizamento de ações em matéria de saúde pública, recomendando:
I) À Defensoria Pública da União no Ceará, à Defensoria Pública Estadual do Ceará, à Ordem dos Advogados do Brasil – Secção Ceará, aos Procuradores da República no Estado do Ceará, aos Promotores de Justiça do Ministério Público do Estado do Ceará, aos Magistrados, aos Servidores Públicos e aos demais profissionais que direta ou indiretamente atuam nas tutelas inerentes ao Direito de Saúde a solicitarem dos médicos vinculados ao Sistema Único de Saúde o preenchimento do Relatório Médico para Judicialização no âmbito da Saúde Pública, anexo a esta Recomendação, aprovada pelo Comitê Executivo da Saúde do Estado do Ceará;
II) À Secretaria Estadual de Saúde, às Secretarias Municipais de Saúde do Ceará e à EBSERH[22] que diligenciem no sentido de dar conhecimento aos profissionais prescritores, através de capacitação específica, acerca da existência do Relatório Médico para Judicialização no âmbito da Saúde Pública, com o auxílio do Conselho Regional de Medicina do Estado do Ceará, na divulgação e capacitação dos profissionais.[23]
O Comitê Estadual de Saúde ainda tem como função auxiliar os tribunais na criação de Núcleos de Apoio Técnico do Judiciário (NAT'S), constituído de profissionais da Saúde, para elaborar pareceres acerca da medicina baseada em evidências, observando-se na sua criação o disposto no parágrafo segundo do art. 156 do Código de Processo Civil Brasileiro. Os Núcleos de Apoio Técnico do Judiciário (NAT'S) terão função exclusivamente de apoio técnico, auxiliando os magistrados que precisam decidir sobre demandas que chegam à Justiça e envolvem temas relacionados à saúde.
Uma das experiências inovadoras de efetivação do direito à saúde no Estado do Ceará consiste na criação do Núcleo de Apoio Técnico ao Judiciário do Ceará – NAT-JUS/CE, criado em 11 de novembro de 2016, através do Termo de Cooperação Técnica nº 07/2016 firmado entre o Tribunal de Justiça do Ceará, Hospital Universitário Walter Cantídio – UFC/EBSERH, o Estado do Ceará e o Município de Fortaleza. O NAT-JUS/CE tem como objeto o atendimento às solicitações de esclarecimentos em ações judiciais que envolvam prestação de assistência à saúde no Sistema Único de Saúde – SUS.
O sistema pode ser consultado por Magistrados das Varas e Juizados da Fazenda Pública da Comarca de Fortaleza, Magistrados da Turma Recursal da Fazenda Pública da Comarca de Fortaleza e Desembargadores das Câmaras Cíveis de Direito Público do Tribunal de Justiça do Ceará. Em sua solicitação, via e-mail, o Magistrado/Desembargador deverá fazer seus questionamentos de forma clara e objetiva, anexando todos os documentos médicos que envolvem a demanda (laudo médico, exames, relatórios médicos, etc).
Os documentos técnicos solicitados pelo TJCE serão entregues em cinco dias úteis a partir da data do recebimento da solicitação, ainda conforme Termo de Cooperação Técnica nº 07/2016, a prestação de serviços é prestada por três médicos e três farmacêuticos e deverá contemplar as seguintes informações: a) análise do caso concreto apresentado no processo judicial para o qual será elaborado o parecer; b) mapeamento bibliográfico específico para cada caso, por profissional devidamente qualificado; c) informações sobre a possibilidade de substituição do medicamento ou do procedimento médico prescrito por outro fornecido pelo SUS, e em caso negativo, a justificativa para a não utilização do protocolo do SUS.
A expansão do Núcleo de Apoio Técnico (NAT), que auxilia magistrados no julgamento de processos de saúde pública, foi tema de entrevista no “Judiciário em Evidência”, onde a juíza Antônia Dilce Rodrigues Feijão, que atua como supervisora dos trabalhos destacou que a expansão do NAT para a Região Metropolitana de Fortaleza ocorre dois anos após a implantação do Núcleo na Capital, que funciona desde 16 de novembro de 2016. Segundo ela, com o sucesso dessa nova fase, haverá a ampliação para as comarcas do Interior, começando pelas de maior demanda, como Sobral, Juazeiro do Norte e Iguatu. Afirma ainda que já foram emitidas 182 notas técnicas que podem ser consultadas por qualquer cidadão no portal[27] do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE).[28]
Nos pareceres costumam constar revisão bibliográfica acerca do medicamento/tratamento, considerações sobre a eficácia e evidências científicas dos tratamentos disponibilizados pelo SUS, sobre seu registro na Anvisa, incorporação pelo Conitec, sobre a presença de Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) do Ministério da Saúde ou de órgão público e informações sobre o custo da medicação, entre outras informações.
Recente reunião, realizada entre a presidência do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) e juízes das Varas da Fazenda Pública de Fortaleza, teve como objetivo tratar da especialização de unidades para processar especificamente demandas de saúde pública. A esse respeito, juiz coordenador das Varas da Fazenda Pública, de Execuções Fiscais, de Falências e Registros Públicos da Capital, Francisco Eduardo Torquato Scorsafava, destaca que a especialização aperfeiçoará os serviços disponibilizados à população: “Quando se especializa é possível obter uma qualificação técnica melhor e consequentemente uma melhor prestação jurisdicional.”[29]
No âmbito do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará tem-se promovido cursos de aperfeiçoamento para a magistratura nas demandas relacionadas ao Direito à saúde, como o “Curso de Direito à Saúde”, que se deu no mês de maio de 2018, no Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), de iniciativa da Escola Superior da Magistratura do Ceará (Esmec), em parceria com o Núcleo de Apoio Técnico ao Judiciário do Estado (NAT-JUS), com o objetivo de promover o aperfeiçoamento de magistrados e servidores em temas relacionados à matéria, como o fornecimento de medicamentos, tratamentos, entre outros.[30]
Vê-se que o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, apesar da demora na criação do NAT’S se comparado a outros estados, vem envidando esforços, juntamente com o Comitê Estadual de Saúde, na busca por soluções não só para o excesso de judicialização na área da saúde, mas também para a judicialização descabida que gera prejuízos aos cofres públicos mediante a criação de políticas públicas por parte dos magistrados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através do presente estudo se conclui que o modelo de judicialização da saúde de forma irrestrita como tem ocorrido revela-se insustentável, provocando uma evolução da jurisprudência reconhecendo-se a necessidade da utilização de critérios legais e auxílio técnico para decisões dos magistrados, de forma a contribuir para uma melhor fundamentação, que garanta um direito à saúde de acordo com a realidade fática, uma vez que, tanto os recursos existentes são limitados, devendo ser dispostos de forma a atender o bem comum, bem como deve ser considerada a totalidade da legislação e principiologia relativa a política pública de saúde assegurada pelo Estado Brasileiro.
Constatou-se a atuação do Conselho Nacional de Justiça, no incentivo a criação dos Comitês da Saúde nos Estados e instalação de órgãos técnicos de auxílio aos magistrados (NAT’S), bem como na produção de Enunciados das Jornadas do Direito à saúde. Todo esse esforço permite que a judicialização no âmbito das políticas públicas de saúde, caso seja necessária, se dê de forma mais democrática, uma vez que se permite discussão dos contornos dessa intervenção com os demais atores do sistema de saúde.
No âmbito do Estado do Ceará, notadamente a atuação na capacitação de magistrados, por parte do Comitê Executivo de Saúde e Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, bem como a instalação do NAT’JUS/CE, demostram o esforço de aprimoramento das relações para, que haja um diálogo mais amplo entre os seus atores a fim de evitar que as decisões judiciais causem um impacto muito grande na política pública coletivamente planejada.
Existe um direito individual subjetivo público à saúde, no caso de haver política pública que garanta o fornecimento desses medicamentos e ou tratamentos aos cidadãos, sendo exigível, portanto, perante o Poder Público o seu fornecimento. Contudo, espera-se desse paciente chegar ao SUS através da via adequada.
REFERÊNCIAS
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[1] Os dados reunidos nesse Relatório estão disponíveis por meio do “Justiça em Números Digital”, ferramenta interativa on-line que permite livre navegação pelas estatísticas oficiais. Para utilização da ferramenta, o usuário deve acessar os painéis em dashboard disponíveis no link paineis.cnj.jus.br.
[2] Mapelly Júnior sustenta que: “O texto constitucional impede uma concepção consumista de saúde, conferindo-lhe status de direito social e ‘relevância pública’, sempre submetido a rigorosa regulamentação, fiscalização e controle do Poder Público (art.197), e vincula o seu exercício às políticas públicas (art.196, CF), mais adiante o autor acrescenta que “no desenho constitucional do SUS não há espaço para uma visão privatista, consumista e irrestrita de direito à saúde, como se se tratasse de um direito absoluto, sem regras, descolado dos protocolos clínicos e das diretrizes terapêuticas do Poder Público, dependente apenas da escolha do médico e do interessado, sem controle público. O SUS não pode servir para atender interesses meramente privados que não consideram, sob a ótica coletiva, os interesses ou direitos de outros que podem ser afrontados com o desvio de recursos orçamentários para procedimentos terapêuticos discutíveis, devendo os serviços públicos de saúde ser planejados para atender a todos, segundo escolhas prioritárias que consideram o perfil epidemiológico da população, os custos da tecnologia médica e os escassos recursos públicos, não interesses privados.”(in MAPELLI JÚNIOR, Reynaldo. Judicialização da saúde: regime jurídico do SUS e intervenção na Administração pública. 1.ed. - Rio de Janeiro: Atheneu, 2017, p.65-149)
[3] O dispositivo restou prejudicado, devendo-se atentar então à Emenda Constitucional nº 95, de 15.12.16, que alterou o texto constitucional para instituir o Novo Regime Fiscal.
[4] Mediante alterações da Lei nº 12.401, de 2011, a Lei nº 8080/90 passou a dispor que: “art. 19-P. Na falta de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica, a dispensação será realizada: I - com base nas relações de medicamentos instituídas pelo gestor federal do SUS, observadas as competências estabelecidas nesta Lei, e a responsabilidade pelo fornecimento será pactuada na Comissão Intergestores Tripartite; no âmbito de cada Estado e do Distrito Federal, de forma suplementar, com base nas relações de medicamentos instituídas pelos gestores estaduais do SUS, e a responsabilidade pelo fornecimento será pactuada na Comissão Intergestores Bipartite”.
[5] Como exemplo ilustrativo dessa fase, o autor aponta o Recurso em Mandado de Segurança n. 6564/RS, julgado pelo STJ, em 23 de maio de 1996. (in BALESTRA NETO, Otávio. A Jurisprudência dos tribunais superiores e o direito à saúde - Evolução rumo à racionalidade. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, v.16, n.1, p. 87-111, mar./jun. 2015).
[6] Exemplos elucidativos dessa posição jurisprudencial são seguintes julgados: o Recurso Extraordinário n. 195192/RS e o Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 271286/RS, ambos do STF, e o Recurso em Mandado de Segurança n. 11183/RS, do STJ. (in BALESTRA NETO, Otávio. A Jurisprudência dos tribunais superiores e o direito à saúde - Evolução rumo à racionalidade. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, v.16, n.1, p. 87-111, mar./jun. 2015).
[7] Acrescenta o autor que: “Esse novo momento da jurisprudência brasileira culminou com a audiência pública de 2009, no STF, que levou, finalmente, à estipulação de parâmetros bem mais nítidos para a racionalização da prática judiciária do direito à saúde. São exemplos dessa fase jurisprudencial: o Mandado de Segurança n. 8895/DF, do STJ, a Suspensão de Segurança n. 3073 e o Agravo Regimental na Tutela Antecipada n. 175, os dois últimos do STF. Pode-se dizer que esta terceira fase gerou ao menos três eventos importantes para a judicialização da saúde no Brasil: (a) a realização da audiência pública no STF, em 2009; (b) o julgamento do Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada n. 175, em 17 de março de 2010; e (c) a edição da Lei nº 12.401/2011”. (in BALESTRA NETO, Otávio. A Jurisprudência dos tribunais superiores e o direito à saúde - Evolução rumo à racionalidade. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, v.16, n.1, p. 87-111, mar./jun. 2015).
[8] A Medicina Baseada em Evidências (MBE) originou-se da “nova ciência resultante da associação dos métodos da epidemiologia com a pesquisa clínica”, vindo a coroar os conceitos fundamentais da Medicina e da Saúde, que requerem “evidências de eficácia, efetividade, eficiência e segurança para nortear decisões, tendo-se assim maior probabilidade de se acertar”. (in ATALLAH, Álvaro Nagib. Medicina baseada em evidências. Revista Diagnóstico & Tratamento. v. 23, ed.02, São Paulo: 2018, p.43-44). Schulze considera a Medicina Baseada em Evidências MBE como melhor instrumento para identificar a eficácia, a eficiência, a segurança e o custo-efetividade de produtos e medicamentos. A partir dos estudos do Medicina Baseada em Evidências (MBE) que surgem os Protocolos de Diretrizes Terapêuticas (PCDTs) e as decisões e notas técnicas da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia (CONITEC), da Agência Nacional de Vigilância Sanitária(Anvisa), da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e do Instituto Cochrane, entre outros: “à luz do princípio da integralidade, que norteia a relação médico-sujeito, é recomendável que sejam utilizadas as medidas já adotadas no SUS para, apenas na hipótese de insucesso, cogitar-se a indicação de tratamento não incorporado no SUS.” (in SCHULZE, Clenio Jair. Enunciados do CNJ sobre saúde pública. Parte I e II. Revista Empório do Direito, 2016. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/leitura/enunciados-do-cnj-sobre-saude-publica-parte-i-por-clenio-jair-schulze> Acesso em: 05 out 2018.
[9] Sua composição deverá contemplar um representante indicado pelo Conselho Nacional de Saúde e de um representante, especialista na área, indicado pelo Conselho Federal de Medicina, as decisões da CONITEC são divulgadas em seu sítio eletrônico, e na ausência de decisão técnica na via administrativa, a autoridade judiciária poderá se valer de consulta, inclusive via e-mail([email protected]), sobre produtos e tecnologias postulados judicialmente (In SCHULZE, Clenio; GEBRAN NETO, João Pedro. Direito à saúde à luz da judicialização. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2016, p.65-66).
[10] Schulze ressalta (2016, p. 68) a necessidade da adequação dos juízes e tribunais ao tema, sob pena de prolatação de decisão não baseada em critérios científicos, que pode colocar em risco a segurança do beneficiário e ao próprio sistema de saúde - público e suplementar. Mais adiante, o autor exemplifica com suposto equívoco de decisão do próprio Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário 3685664), que tratou da retinose pigmentar, concedendo a várias pessoas o direito de obter tratamento em Cuba, com todas as despesas custeadas pelo Estado, mesmo inexistindo no processo comprovação científica da eficácia e da efetividade do tratamento, pelo contrário, foi apresentado laudo indicando ausência de cura. Mesmo assim, o voto do Ministro condutor Marco Aurélio, afirmou que existia sim tratamento exitoso em Cuba conforme informação que obteve nos veículos de comunicação. “Tal decisão demonstra a forma inadequada como são analisados os processos judiciais sobre saúde. É impossível imaginar que uma decisão judicial seja proferida com base em informação jornalística e não à luz do sistema jurídico.” (In SCHULZE, Clenio; GEBRAN NETO, João Pedro. Direito à saúde à luz da judicialização. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2016, p. 68-104)
[11] Assim se pronunciou a Corte Superior: “Administrativo. Recurso Especial representativo de controvérsia. TEMA 106. Julgamento sob o rito do art. 1.036 do CPC/2015. Fornecimento de medicamentos não constantes dos atos normativos do SUS. Possibilidade. Caráter excepcional. Requisitos cumulativos para o fornecimento. 1. Caso dos autos: A ora recorrida, conforme consta do receituário e do laudo médico (fls. 14-15, e-STJ), é portadora de glaucoma crônico bilateral (CID 440.1), necessitando fazer uso contínuo de medicamentos (colírios: azorga 5 ml, glaub 5 ml e optive 15 ml), na forma prescrita por médico em atendimento pelo Sistema Único de Saúde - SUS. A Corte de origem entendeu que foi devidamente demonstrada a necessidade da ora recorrida em receber a medicação pleiteada, bem como a ausência de condições financeiras para aquisição dos medicamentos. 2. Alegações da recorrente: Destacou-se que a assistência farmacêutica estatal apenas pode ser prestada por intermédio da entrega de medicamentos prescritos em conformidade com os Protocolos Clínicos incorporados ao SUS ou, na hipótese de inexistência de protocolo, com o fornecimento de medicamentos constantes em listas editadas pelos entes públicos. Subsidiariamente, pede que seja reconhecida a possibilidade de substituição do medicamento pleiteado por outros já padronizados e disponibilizados. 3. Tese afetada: Obrigatoriedade do poder público de fornecer medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS (Tema 106). Trata-se, portanto, exclusivamente do fornecimento de medicamento, previsto no inciso I do art. 19-M da Lei nº 8.080/1990, não se analisando os casos de outras alternativas terapêuticas. 4. TESE PARA FINS DO ART. 1.036 DO CPC/2015. A concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS exige a presença cumulativa dos seguintes requisitos: (i) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS; (ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito; (iii) existência de registro na ANVISA do medicamento. 5. Recurso especial do Estado do Rio de Janeiro não provido. Acórdão submetido à sistemática do art. 1.036 do CPC/2015.” (STJ - REsp1657156/RJ, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 25/04/2018, DJe 04/05/2018).
[12] Destaque-se que o conflito de interesses tem sido objeto de constante preocupação do Conselho Federal de Medicina, que vem regulando a matéria. “O Código de Ética Médica (17 de setembro de 2009), a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, a Resolução da Diretoria Colegiada- RDC 96/2008 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária e a Resolução 1.595/2000 do Conselho Federal de Medicina fazem menção a diferentes modos de conflitos de interesses”. (In SCHULZE, Clenio; GEBRAN NETO, João Pedro. Direito à saúde à luz da judicialização. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2016, p. 189).
[13] Referido Pedido de Suspensão de Liminar foi manejado pela União, contra decisão proferida pelo Juiz da 18ª Vara Federal de Sobral, no julgamento de ACP proposta em conjunto pelo Ministério Público Federal e do Ministério Público do Estado de Ceará, que buscava garantir à população dos 61 municípios da Macrorregião Administrativa de Sobral, o acesso aos serviços médicos de urgência necessários ao tratamento intensivo, em casos de grave risco a saúde, a decisão havia sido mantida pelo TRF da 5ª Região.
[14] Como providências complementares para as ações individuais, sugere-se que: a) antes de apreciar a medida de urgência requerida, o magistrado consulte os gestores do SUS, inclusive por meio eletrônico, para saber se existe programa público disponível; como o paciente deve proceder para ingressar no SUS e qual a alternativa terapêutica pública, afastando prescrições privadas irregulares; b) deve exigir como documento mínimo a instruir a inicial relatório médico circunstanciado do caso, que indique o diagnóstico da doença (CID) e o medicamento por princípio ativo ou denominação genérica, doses e periodicidade do tratamento; o receituário deve indicar a existência de registro do medicamento ou produto na ANVISA, declarar que não se trata de tratamento experimental ou dependente de importação; c) a instrução probatória deve contar, pelo menos, com as versões dos gestores do SUS e do paciente-autor e a realização de perícia médica que pode ser proveniente do NAT(Núcleo de Apoio Técnico do Judiciário), além de informações técnicas complementares, provenientes de conselhos regionais (medicina, farmácia, etc.), universidades e centros de medicina baseada em evidências(Centro COCHHRANE); por se tratar de ação versando sobre direito individual com repercussão em políticas públicas do SUS, faz-se necessário manifestação do Ministério Público como custo legis;d) havendo condenação, o magistrado deve determinar o ingresso do paciente na rede pública do SUS, bem como o cumprimento dos procedimentos técnico-administrativos do programa de medicamentos correspondente; devendo também determinar que as compras públicas sigam as regulamentações da CMED, especialmente o desconto CAP, por se tratar de produtos fármacos decorrentes de ação judicial. (In MAPELLI JÚNIOR, Reynaldo. Judicialização da saúde: regime jurídico do SUS e intervenção na Administração pública. 1.ed. - Rio de Janeiro: Atheneu, 2017, p.177-178).
[15] Conforme definição do Ministério da saúde: “Observando ética e tecnicamente a prescrição médica, os PCDTs tem o objetivo de estabelecer os critérios de diagnósticos de doenças, o algorítimo de tratamento com os medicamentos e as doses adequadas, os mecanismos para o monitoramento clínico quanto à efetividade do tratamento e a supervisão de possíveis efeitos adversos, além de criar mecanismos para a garantia da prescrição segura e eficaz. Além de nortearem uma assistência médica e farmacêutica efetiva e de qualidade, os PCDTs auxiliam os gestores de saúde nas três esferas de governo, como instrumento de apoio na disponibilização de procedimentos e na tomada de decisão quanto à aquisição e dispensação de medicamentos tanto no âmbito da atenção primária como no da atenção especializada, cumprindo um papel fundamental nos processos de gerenciamento dos programas de assistência farmacêutica, na educação em saúde, para profissionais e pacientes, e, ainda nos aspectos legais envolvidos no acesso a medicamentos e na assistência como um todo.” (in MINISTÉRIO DA SAÚDE. Protocolos Clínicos e Diretrizes terapêuticas. Série A. Normas e manuais técnicos. Vol.1, Brasília; 2010)
[16] Impende informar que a fila de espera para internação em leito de UTI no Estado do Ceará é organizada pela Unisus, da Secretaria Estadual da Saúde, através da Central de Regulação do SUS do Estado do Ceará (Cresus-CE). Já no município de Fortaleza, essa fila é organizada pela Crifor, órgão vinculado à Secretaria Municipal de Saúde, por intermédio do Sistema de Regulação (Sisreg) e da Central integrada de Regulação de Fortaleza (Cirf). (In LEITE, Vanessa Gomes Leite. Reflexos da judicialização da saúde no acesso igualitário à políticas públicas: a questão dos leitos de UTI no Estado do Ceará. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Direito, Programa de Pós-Graduação em Direito, Fortaleza, 2016, p. 130)
[17] Disponível em: <http://www.dpu.def.br/noticias-ceara/39886-acao-da-dpu-garante-implantacao-de-150-novos-leitos-de-uti-no-ceara>. Acesso em: 30 out 2018.
[18] Disponível em: <http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/editorias/metro/defensoria-solicita-de-10-a-15-pedidos-de-vaga-em-uti-por-dia-1.1920384>. Acesso em: 30 out 2018.
[19] Conforme informações fornecidas pela referida assessoria da Secretaria de Saúde do Estado(SESA), a metodologia permitiu um melhor abastecimento e com maior homogeneidade, além da economia direta com um incremento de apenas 2% em relação a 2015, em uma realidade que a curva inflacionária média orbitou sempre acima de 10pp, além do que fora absorvido quase R$ 50.000,00 em judicialização nesta conta.
[20] Disponível em: <https://www.tjce.jus.br/saude/criacao/>. Acesso em: 01 dez 2018.
[21] Disponível em: <https://www.tjce.jus.br/saude/criacao/>. Acesso em: 01 dez 2018.
[22] Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares
[23]Disponível em <https://www.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2017/10/Minuta-de-Recomenda%C3%A7%C3%A3o-Relat%C3%B3rio-M%C3%A9dico-Sa%C3%BAde-P%C3%BAblica-1.pdf>. Acesso em: 01 dez 2018.
[24] Precedentes: Agravo de instrumento 0032134-29.2009.8.06.0000 Órgão Julgador: 1ª Câmara Cível decisão: 10/10/2012; Agravo de instrumento 0016794-45.2009.8.06.0001 Órgão Julgador: 3ª Câmara Cível decisão: 19/12/2012; mandado de segurança 0018777-55.2004.8.06.0000 Órgão Julgador: Órgão especial decisão: 27/06/2011. (In Regimento interno do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. Fortaleza: Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, 2018, p.203-204. Disponível em: <https://www.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2015/07/Regimento-Interno-TJCE-2018-28Miolo29-Final.pdf>. Acesso em: 05 dez 2018.
[25] Disponível em <https://www.tjce.jus.br/noticias-saude/comite-encerra-curso-de-saude-suplementar-reunindo-judiciario-ans-e-operadoras-de-planos/> Acesso em: 01 dez 2018.
[26] Disponível em <https://www.tjce.jus.br/noticias/a-regulacao-de-leitos-no-ceara-e-tema-de-palestra-para-magistrados-nesta-sexta-feira/>. Acesso em: 05 dez 2018.
[27]Disponível em:< https://www.tjce.jus.br/saude/>. Acesso em: 05 dez 2018.
[28]Disponível em: <https://www.tjce.jus.br/noticias-saude/expansao-do-nucleo-de-apoio-tecnico-a-magistrados-e-tema-de-entrevista-no-judiciario-em-evidencia/>. Acesso em: 05 dez 2018.
[29] Disponível em: < https://www.tjce.jus.br/noticias/reuniao-no-tjce-debate-especializacao-das-varas-fazendarias-em-materia-de-saude-publica/ >. Acesso em: 05 dez 2018.
[30] Disponível em: < http://www.cnj.jus.br/noticias/judiciario/86710-direito-a-saude-tribunal-promove-curso-para-juizes-do-ceara> Acesso em: 05 dez 2018.
Mestranda em Direito pela Universidade Federal do Ceará-UFC. Especialista em Direito Civil e Processsual Civil pelo Centro Universitário de Araras Dr. Edmundo Ulson, UNAR. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará- UFC. Oficial de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará - TJCE.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CELESTINO, Fernanda Karlla Rodrigues. Judicialização da saúde: Novas perspectivas e os esforços para uma autocontenção no Estado do Ceará Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 jan 2019, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52561/judicializacao-da-saude-novas-perspectivas-e-os-esforcos-para-uma-autocontencao-no-estado-do-ceara. Acesso em: 23 dez 2024.
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