RESUMO: Após trinta anos de vigência, a Constituição Federal de 1988 demonstrou ter efetivado um verdadeiro marco paradigmático em diversas searas, sendo a mais notável delas a tutela dos direitos fundamentais da pessoa humana. Devido à multiplicidade de conteúdos tratados pela Carta Magna, os quais gozam igualmente de natureza constitucional, haja vista inexistir hierarquia entre normas da Constituição, não raro se encontram aparentes colisões entre tais preceitos, que frequentemente deságuam nos chamados “hard cases” (casos difíceis). Sob esse contexto, florescem os princípios da interpretação constitucional, parâmetros hermenêuticos desenvolvidos para solucionar tais dilemas envolvendo normas constitucionais. O presente trabalho, nesse contexto, tem por fito investigar brevemente os principais princípios da interpretação constitucional, analisando sua aplicação no âmbito da jurisprudência pátria.
Palavras-chave: Princípios. Interpretação constitucional. Constituição.
ABSTRACT: After thirty years of validity, the Federal Constitution of 1988 has proved to have functioned as a true paradigmatic milestone in several fields, the most notable of which is the protection of the fundamental rights of the human person. Due to the multiplicity of contents dealt with in the Constitution, which are also of a constitutional nature, since there is no hierarchy among the norms of the Constitution, there are often collisions between such precepts, which often fall into the so-called "hard cases". In this context, the principles of constitutional interpretation flourish, hermeneutical parameters developed to solve such dilemmas involving constitutional norms. The present work, in this context, aims to investigate briefly the main principles of constitutional interpretation, analyzing its application within the jurisprudence of the mother country.
Keywords: Principles. Constitutional interpretation. Constitution.
SUMÁRIO: Introdução. 1. Os princípios de interpretação constitucional: delimitando o objeto de análise. 2. Princípio da unidade da Constituição. 3. Princípio da supremacia da Constituição. 4. Princípio da força normativa da Constituição. 5. Princípio do efeito integrador. 6. Princípio da máxima efetividade. 7. Princípio da concordância prática ou da harmonização. 8. Princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade. Conclusão. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Preliminarmente, é importante destacar, de forma sucinta, que interpretar o Direito significa extrair do texto positivo enunciados que possuam de força normativa e que conduzam o operador jurídico a um enunciado aplicável em casos fáticos ou concretos.
Longe de ser uma atividade meramente subjetiva, a interpretação trata-se de uma prática construtiva por parte do operador do Direito, voltada sobretudo para a solução de situações litigiosas concretas. Extrai-se, para tanto, o “espírito da norma”, isto é, o seu real sentido em face do caso concreto.
Para isso, a doutrina cuidou em estabelecer princípios norteadores da busca do conteúdo normativo dos enunciados positivados. Importa-nos mormente aqueles que dizem respeito ao texto constitucional, vez que este repercute em todo o ordenamento infraconstitucional. Justifica-se a hermenêutica constitucional, bem como a análise de seus princípios, pela presença e expansão da denominada jurisdição constitucional, alargada por força do neoconstitucionalismo e que tem como principal mister a defesa dos direitos fundamentais.
Diversas sendo as decisões judiciais editadas tendo em vista tais princípios, demonstra-se de suma importância que se examinem mais atentamente, não obstante de forma bastante breve, cada um dos principais deles.
2. OS PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL: DELIMITANDO O OBJETO DE ANÁLISE
Sob o magistério de Luís Roberto Barroso (2006, p. 24), a interpretação constitucional é, antes de mais nada, uma “modalidade de interpretação jurídica”. Na visão do célebre constitucionalista, a normatividade dos princípios e sua posição qualitativa em face das regras é um dos símbolos do neoconstitucionalismo, ou pós-positivismo. A propósito, “(…) Princípios não são, como as regras, comandos imediatamente descritivos de condutas específicas, mas sim normas que consagram determinados valores ou indicam fins públicos a serem realizados por diferentes meios” (BARROSO, 2006, p. 27). Posição semelhante adota Dirley da Cunha Júnior (2012, p. 159), ao lecionar que os princípios “veiculam as ideias-forças que fundamentam e informam todo o sistema jurídico”.
Nesse contexto, cumpre mencionar que a existência de princípios de interpretação constitucional não seguem uma taxatividade, um rol numerus clausus, em virtude de poderem ser extraídos diversos outros preceitos além daqueles mencionados ao longo deste trabalho, sobretudo por conta do novo papel atribuído ao intérprete normativo, já não lhe cabendo um ofício meramente técnico, e sim um papel de “co-participante do processo de criação do Direito, completando o trabalho do legislador, ao fazer valorações de sentido para cláusulas abertas e ao realizar escolhas entre soluções possíveis” (BARROSO, 2006, p. 26).
Essas novas funções do intérprete, para tanto, devem ser sempre balizadas por princípios reconhecidos e passíveis de serem razoavelmente extraídos da norma, sob pena de o intérprete acabar por atuar como legislador positivo, tarefa atribuída única e exclusivamente ao Poder Legislativo, eleito pelo povo.
Expostas tais considerações iniciais, destaque-se que serão analisados, de forma sucinta e direta, no transcorrer deste trabalho sete princípios de interpretação constitucional, tidos pela doutrina como os cruciais, frequentemente mencionado em decisões judiciais, quais sejam: princípio da unidade da Constituição, princípio do efeito integrador, princípio da máxima efetividade, princípio da concordância prática ou da harmonização, princípio da força normativa da Constituição, princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade e o princípio da interpretação conforme a Constituição.
Esses princípios, por sua vez, os quais adquiriram grande força normativa com a ascensão do pós-positivismo e da Constituição brasileira de 1988, serviram de sustentáculo para diversas decisões judiciais, mormente no âmbito da tutela dos direitos fundamentais. Neste trabalho, também examinar-se-á como estes princípios se amoldaram às decisões judiciais pátrias, no domínio dos Tribunais estaduais, do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, influenciando diretamente no plano dos direitos fundamentais da pessoa humana.
3. PRINCÍPIO DA UNIDADE DA CONSTITUIÇÃO
De acordo com esse princípio, deve-se encarar a Constituição como um sistema integrado e, portanto, “um conjunto coeso de normas” (RAMOS, 2012, p. 109). A partir disso, tem-se que configuraria um verdadeiro equívoco jurídico tomar um dispositivo constitucional como isolado diante do todo, que deve ser considerado de maneira una.
Aqui, cabe a ressalva de que, não havendo hierarquia entre as normas constitucionais e tendo em vista que alguns dispositivos de seu texto carregam uma considerável carga de abstração, deve-se apanhar um método de compatibilização entre as normas, através de interpretação sistemática (RAMOS, 2012, 110).
Para Dirley da Cunha Júnior (2012, p. 228), a Constituição se trata de um “sistema jurídico de normas, que se apresenta como uma unidade que reúne, de forma articulada e harmônica, um conjunto de normas”, não cabendo interpretações isoladas ou dispersas das normas constitucionais. Afasta-se, em razão do princípio da unidade, as contradições entre dispositivos constitucionais. Para arrematar, nas palavras de Konrad Hesse (1992, p. 17), “(…) la Constitución sólo puede ser comprendida e interpretada correctamente cuando se la entiende, en este sentido, como unidad”.
Deve-se tomar a obra do legislador constituinte como um todo uniforme, onde inexistem incongruências.
Partindo desse princípio, os Tribunais pátrios frequentemente julgam casos de choque entre normas constitucionais, as quais, por conta do princípio da unidade da Constituição, detém igual patamar de autoridade. Também decorrente do mencionado princípio, tem-se que “não existem direitos ou garantias fundamentais que se revistam de caráter absoluto no ordenamento brasileiro (…), não se legitimando o exercício de direito ou garantia com ofensa a bens jurídicos outros de mesma dignidade constitucional” (TJ-RS - AC 70076019660 RS, Rel. Des. Carlos Eduardo Richinitti, j. 28.2.2018, 9ª Câmara Cível, DJ 2.3.2018).
Para solucionar tais dilemas, pelo princípio da unidade da Constituição e da proporcionalidade, a se analisar posteriormente, “quando existir qualquer tipo de conflito entre normas constitucionais, estas devem ser interpretadas de forma a melhor compatibilizar os interesses e direitos em jogo, sem que um direito prepondere sobre o outro” (TJ-MT - AI 00080158120108110015 20531/2011, Rel. Des. Carlos Alberto Alves da Rocha, j. 25.5.2011, 5ª Câmara Cível, DJ 25.7.2011).
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, confira-se:
RECURSO ESPECIAL (art. 105, inc. III, a e c, CF/88) – AÇÃO CONDENATÓRIA – MATÉRIA JORNALÍSTICA – COLISÃO ENTRE LIBERDADE DE IMPRENSA E A PROTEÇÃO À HONRA OBJETIVA DE PESSOA JURÍDICA – TUTELA DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE – INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS QUE JULGARAM PRECEDENTE O PEDIDO VEICULADO NA DEMANDA, RECONHECENDO A OBRIGAÇÃO DE INDENIZAR, AO REPUTAR CARACTERIZADA A NEGLIGÊNCIA DO ÓRGÃO DE IMPRENSA AO NÃO CONFERIR A VERACIDADE DAS INFORMAÇÕES OBJETO DA REPORTAGEM OFENSIVA. INSURGÊNCIA RECURSAL DA EMPRESA JORNALÍSTICA. 1. No tocante à alegada ofensa aos artigos da Constituição Federal, tem-se por inviável a análise de contrariedade a dispositivos constitucionais, nesta via recursal, o que implicaria a usurpação de competência atribuída ao eg. Supremo Tribunal Federal (CF/88, art. 102). 2. A partir de uma interpretação sistemática e sob a perspectiva do princípio da unidade da Constituição, infere-se que a liberdade de informação jornalística não detém caráter absoluto, de modo a ser mitigada nas hipóteses previstas no artigo 5° e incisos ali enumerados, isto é, em se tratando de direitos e garantias relacionadas aos direitos de personalidade. Especificamente quanto à pessoa jurídica, a extensão de tais direitos de personalidade e sua respectiva tutela/proteção encontra-se prevista no artigo 52 do Código Civil, ao assim dispor: Aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade. (…) (STJ, REsp 1407907/SC 2013/0327526-0, Rel. Min. Marco Buzzi, j. 02.06.2015, 4ª Turma, DJe 11.06.2015).
Ainda no âmbito do STJ, é pacífico que o princípio da unidade da Constituição “impõe a coexistência harmônica das liberdades e dos direitos assegurados na Lei Fundamental, não se legitimando o exercício de direito ou garantia com ofensa a bens jurídicos outros de mesma dignidade constitucional” (STJ, AREsp 973729/RS 2016/0226423-4, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 24.10.2016, DJ 7.11.2016), o que ilustra perfeitamente a aplicação do mencionado princípio nas mais variadas vias judiciais, vez que não há hierarquia entre normas constitucionais.
No tocante à tutela jusfundamental, é cediço que a Constituição assegurou um vasto rol de direitos fundamentais, encontrados, em sua maioria, no artigo 5°. Em alguns momentos, por exemplo, o direito de informação (art. 5°, inciso XIV) irá diretamente de encontro ao direito à intimidade e à imagem (art. 5°, inciso X). Ambos os direitos encontram-se resguardados pela Norma Fundamental de 1988 e possuem idêntico grau de proteção constitucional. Em tais casos, utilizam-se, além do princípio da unidade da Constituição, outros dogmas principiológicos para solucioná-los, como a ponderação e a harmonização.
Por fim, cabe ressaltar que o Supremo Tribunal Federal afasta a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de normas originárias da Constituição, exatamente em face da inexistência de hierarquia entre estas e do princípio da unidade (NOVELINO, 2016, p. 135).
4. PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO
Profundamente ligado à chamada teoria da construção escalonada das normas jurídicas, segundo a qual “a estrutura da ordem jurídica é uma construção escalonada de normas supra e infra-ordenadas umas às outras, em que uma norma do escalão superior determina a criação da norma do escalão inferior” (KELSEN, 1998, p. 144), em que a Constituição estaria no vértice da pirâmide normativa, o princípio da supremacia da Constituição é base para diversos outros pressupostos da interpretação constitucional, senão todos os outros.
Por força do pós-positivismo, a Constituição foi translocada para o centro do ordenamento jurídico, passando a orientar a conformação de todas as demais normas infraconstitucionais (BARROSO, 2006). Emerge daí a noção de controle de constitucionalidade, vez que a norma suprema não pode ser ferida por outra de hierarquia inferior, caso de uma lei ordinária ou complementar, decretos ou outras espécies normativas infraconstitucionais.
O Poder Judiciário, quando intervém para assegurar as franquias constitucionais e para garantir a integridade e a supremacia da Constituição, desempenha, de maneira plenamente legítima, as atribuições que lhe conferiu a própria Carta da República. O regular exercício da função jurisdicional, por isso mesmo, desde que pautado pelo respeito à Constituição, não transgride o princípio da separação de poderes. (MS 23.452, Rel. Min. Celso de Mello, j. 16.9.1999, Plenário, DJ 12.5.2000.)
Partindo do ponto que as normas constitucionais se sobrepõem às infraconstitucionais, o Supremo já decidiu, em vários momentos, em favor dessa posição, ao declarar incompatíveis ou não recepcionadas diversas leis. Exemplificando, cite-se que a Constituição da República apenas autoriza a prisão em caso de flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, ressalvados os casos de transgressão militar ou de crime propriamente militar, assim definidos em lei (art. 5°, LXI). Portanto, se uma lei viesse a destoar dessa disposição constitucional, seria prontamente afastada, em decorrência do princípio da supremacia da Constituição. Assim se deu no caso do art. 319 do Código de Processo Penal (antes da redação pela Lei 12.403, de 2011), que definia os casos de prisão administrativa, a qual se dava sem ordem judicial. O art. 319 foi alterado, após a Lei 12.403/2011, passando a prever “medidas cautelares diversas da prisão”, o que encontra-se mais afinado com o dispositivo constitucional que resguarda a cláusula de reserva de jurisdição.
Do mesmo modo, compreendia-se que, sob a égide da Constituição de 1988, não poderia mais o Ministro da Justiça (que não é autoridade judiciária) deter da legitimidade para determinar prisão, no caso do art. 69 do Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815/1980, revogada pela Lei de Migração – Lei 13.445/2017). Nesse sentido era o entendimento do Supremo:
EXTRADIÇÃO. QUESTÃO DE ORDEM SOBRE A COMPETÊNCIA PARA A DECRETAÇÃO DA PRISÃO DO EXTRADITANDO. – Em face da atual Constituição, tornou-se o Ministro da Justiça incompetente para decretar a prisão do extraditando, estando, assim, derrogada a Lei 6815/80. - Essa competência passa a ser do relator sorteado para, se for o caso, decretá-la, o qual ficará prevento para a direção do processo de extradição, após ser a prisão em causa efetivada. Questão de ordem decidida nos termos do voto do relator (STF, Plenário, Ext-QO 478, Rel. Min. Moreira Alves, j. 30.11.1988, DJ 09.12.1988).
Interessante citar, também, que o princípio da supremacia da Constituição vem sendo invocado no sentido de conferir máxima efetividade a direitos sociais, resguardados pelo artigo 6° da Carta Magna de 1988, como se confere da ementa de um julgado do Tribunal maranhense, transcrita in verbis:
EMENTA. APELAÇÃO CÍVEL. INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA. ADOLESCENTE USUÁRIO DE DROGAS. DIREITO À SAÚDE. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA. PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. SENTENÇA MANTIDA. I - É solidária a responsabilidade entre os entes públicos no que concerne aos tratamentos clínicos e hospitalares, competindo-lhes, independentemente de divisão de funções, garantir o direito fundamental à vida e à saúde do cidadão. II - Não há que se falar em ofensa ao princípio da separação dos poderes, uma vez que é lícito ao Poder Judiciário, diante da inércia estatal, determinar que a Administração Pública adote medidas no sentido de garantir o direito fundamental à saúde, em atenção ao princípio da supremacia da Constituição. III - Apelação conhecida e desprovida. (grifou-se) (TJ-MA AC 00008019820178100022 MA 0058812018, Rel. José Jorge Figueiredo dos Anjos, j. 29.11.2018, 6ª Câmara Cível, DJ 4.12.2018).
Em decorrência do princípio da supremacia, surge outro cânone: o da interpretação conforme a Constituição. Ora, uma norma apenas tem capacidade de interferir na esfera de outra se a primeira estiver em hierarquia superior à segunda. A interpretação de acordo com a Carta Magna ganha relevância quando uma norma infraconstitucional se identifica “com mais de um sentido ou significado” (CUNHA JÚNIOR, 2012, p. 236), devendo-se conceder preferência àquele que esteja em conformidade com a Constituição, ou esteja mais próximo da orientação constitucional, em caso de interpretações diversas e todas conforme o texto magno (CUNHA JÚNIOR, 2012).
Esse processo revela-se “de fundamental importância para a constitucionalização dos textos normativos infraconstitucionais” (STRECK, 2002, p. 443), ao mesmo tempo que impede que uma lei seja declarada nula, quando passível de ser interpretada conforme o texto magno.
O método de interpretação conforme a Constituição, corolário da supremacia constitucional, foi utilizado no famoso julgamento que conduziu ao reconhecimento das uniões estáveis entre casais homoafetivos, equiparando-as às existentes entre heterossexuais. “Ante a possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do CC, não resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de ‘interpretação conforme a Constituição’. Isso para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva” (ADI 4.277 e ADPF 132, Rel. Min. Ayres Britto, j. 5.5.2011, Plenário, DJE 14.10.2011).
Do mesmo modo, de forma a garantir os direitos fundamentais de reunião e de livre manifestação do pensamento, o Plenário da Suprema Corte brasileira interpretou conforme a Constituição o art. 287 do Código Penal, para excluir qualquer interpretação que ensejasse “a criminalização da defesa da legalização das drogas, ou de qualquer substância entorpecente específica, inclusive através de manifestações e eventos públicos” (ADPF 187, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 15.6.2011, Plenário, Informativo 631).
5. PRINCÍPIO DA FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO
O princípio da força normativa se identifica com a concepção de que as normas contidas nos dispositivos constitucionais devem possuir plena eficácia. O debate no campo doutrinário contemporâneo desenvolve-se, sobretudo, em indagar como essas normas podem gozar de força normativa plena e total, sem que isso venha a ferir outros dispositivos.
Analisando esse princípio, o constitucionalista Flávio Martins Alves Nunes Júnior (2017, p. 464) realça que “o intérprete deve, com sua interpretação, tentar garantir a maior efetividade e, principalmente, maior longevidade e permanência da Constituição”. Cita-se como fruto desse princípio a vedação da teoria da dupla revisão, proibição esta que impede que hajam mudanças por meio de revisões constitucionais, já feitas em 1994 por força da norma do artigo 3° do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, cuja eficácia está exaurida.
A respeito da maior efetividade das normas constitucionais, o que é buscado pelo princípio em tela, o Supremo Tribunal Federal já destacou que a “autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais” (RE 201.819, Rel. p/o ac. Min. Gilmar Mendes, j. 11.10.2005, 2ª Turma, DJ 27.10.2006).
Sob outro aspecto, tem-se a aplicação desse princípio na situação de a Constituição brasileira, ao mesmo tempo que consagra diversos direitos fundamentais, concede meios pelos quais estes sejam plenamente efetivados em face de eventuais abusos ou omissões legislativas, caso em que ascenderia a chamada ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO). A Constituição não deve, dessarte, ser mera “letra morta”. Dotada de força normativa, cada uma de suas palavras deve possuir íntima relação sobre a realidade, influindo na sua essência e tendo concretização efetiva pelos intérpretes.
5.1 PRINCÍPIO DO EFEITO INTEGRADOR
Para Flávio Martins Alves Nunes Júnior (2017, p. 461), tratando desse princípio, anota que “o intérprete deve agir de forma responsável, de modo a manter a integridade social e política”. A Constituição, dessa forma, serviria como um projeto de ordenação integradora tanto do Estado quanto da própria sociedade, de maneira a preservar o sistema jurídico, não sendo, todavia, conducente com autoritarismos ou “transpersonalismos políticos” (NOVELINO, 2016, p. 136).
Em linhas bastante gerais, trata-se de um princípio mais direcionado ao julgador, instigando uma ação responsável no ato de interpretar a norma constitucional.
5.2 PRINCÍPIO DA MÁXIMA EFETIVIDADE
Por efetividade, entende-se realização do Direito, o momento em que a norma faz sentir os seus efeitos. Novelino (2016, p. 138) atenta para o fato de que este princípio foi concebido pelo Tribunal Constitucional da Alemanha com base na força normativa da Constituição, a fim de que os dispositivos do texto magno gozassem da maior efetividade possível, tendo em vista sua concretização.
À vista desse princípio, é prudente que se note que a Constituição Federal brasileira de 1988 assegurou meios para se fazer cumprir a efetividade das normas constitucionais, como as ações de habeas data e o mandado de segurança. Não obstante, o princípio da máxima efetividade encontra explícita repercussão na Carta Magna de Outubro quando esta prescreve que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais “têm aplicação imediata” (Art. 5°, § 1°, CF/88).
No sentido do oferecimento de segurança jurídica e, também, com base no referido princípio, já decidiu o Supremo que a “manutenção de decisões das instâncias ordinárias divergentes da interpretação adotada pelo STF revela-se afrontosa à força normativa da Constituição e ao princípio da máxima efetividade da norma constitucional. Cabe ação rescisória por ofensa à literal disposição constitucional, ainda que a decisão rescindenda se tenha baseado em interpretação controvertida ou seja anterior à orientação fixada pelo STF” (RE 328.812-ED, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 6.3.2008, Plenário, DJE 2.5.2008).
5.3 PRINCÍPIO DA CONCORDÂNCIA PRÁTICA OU DA HARMONIZAÇÃO
Consagrando a Constituição brasileira uma série de princípios, valores e regras, o princípio da harmonização tem por finalidade exatamente impor ao intérprete o dever de harmonizar os bens jurídicos e constitucionais em choque, “de modo a evitar o sacrifício (total) de uns em relação aos outros” (CUNHA JÚNIOR, 2012, p. 231).
Tal harmonização, correntemente, dá-se por meio da ponderação, posto que o intérprete fará concessões recíprocas ou procederá à escolha do direito ou bem jurídico que prevalecerá em face da vontade constitucional. Encara-se aqui, pois, o elemento subjetivo da vontade da norma constitucional, a qual igualmente é um ato de interpretação dentro da própria interpretação.
5.4 PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE OU DA RAZOABILIDADE
Lenio Luiz Streck (2002, p. 410), lembra que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem utilizado “proporcionalidade” e “razoabilidade” como sinônimos, mas que a questão “não gera maiores problemas no plano da interpretação da Constituição e das leis”. Arremata o célebre jurista brasileiro que o fundamento do princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade chega a se confundir “com os fundamentos dos princípios da dignidade da pessoa humana, da proibição do excesso, da proibição do desvio de finalidade da lei, da reserva legal, da igualdade, do devido processo legal, enfim, com todos os princípios que estão umbilicalmente vinculados aos direitos fundamentais” (STRECK, 2002, p. 410).
Sob o prisma da constitucionalização do Direito, os poderes públicos tiveram sua discricionariedade restrita ante a observância dos direitos fundamentais, passando a ser titulares de “deveres de atuação” (BARROSO, 2006, p. 31). Por seu turno, o princípio da proporcionalidade, ou proporcionalidade, embora não esteja expressamente previsto na Carta Magna de 1988, traz em seu bojo justamente a limitação da atuação e da discricionariedade dos entes públicos, “vedando que seus órgãos ajam com excesso ou valendo-se de atos inúteis, desarrazoados e desproporcionais” (CUNHA JÚNIOR, 2012, p. 233).
O mencionado princípio, dessarte, pode ser invocado em diversos âmbitos jurídicos, desde a esfera penal (STF, RHC 117143/RS, Rel. Min. Rosa Weber, j. 25.6.2013, 1ª Turma, DJE 14.08.2013) à cível (STJ, AgRg no REsp: 1564019/MG 2015/0268291-7, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, j. 3.10.2017, 4ª Turma, DJE 6.10.2017).
Nada custa anotar que, diferentemente da Carta Magna brasileira, a Constituição de Portugal de 1976, em seu artigo 18, determina que
1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.
2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstrato e não podem ter efeito retroativo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais [1].
Todavia, a falta de literal expressão no texto constitucional não tem obstado a aplicação do princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade no Brasil, em sentido bastante semelhante do que consta dos termos da Carta Magna portuguesa.
Disso infere-se que os poderes públicos, portanto, notadamente a Administração, devem-se valer de meios proporcionais e adequados para a realização de seus fins, atendendo aos critérios da adequação, da necessidade e da proporcionalidade stricto sensu. Trata-se de princípio não somente direcionado ao julgador, mas ao próprio Estado, uma vez que
O Poder Público, especialmente em sede de tributação, não pode agir imoderadamente, pois a atividade estatal acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade, que traduz limitação material à ação normativa do Poder Legislativo. O Estado não pode legislar abusivamente. A atividade legislativa está necessariamente sujeita à rígida observância de diretriz fundamental, que, encontrando suporte teórico no princípio da proporcionalidade, veda os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público (ADI 2.551-MC-QO, Rel. Min. Celso de Mello, j. 2.4.2003, Plenário, DJ 20.4.2006).
Já decidiu a Primeira Turma do Supremo, por exemplo, que, em nome do princípio da proporcionalidade, pode o Judiciário aplicar ao servidor pena menos severa, compatível com a falta cometida e a previsão legal, apesar de não poder substituir-se à administração (RMS 24.901, Rel. Min. Ayres Britto, j. 26.10.2004, 1ª Turma, DJ 11.2.2005).
Também já restou expresso que não ofende o princípio da proporcionalidade “lei que isenta os ‘reconhecidamente pobres’ do pagamento dos emolumentos devidos pela expedição de registro civil de nascimento e de óbito, bem como a primeira certidão respectiva. Precedentes. Ação julgada improcedente.” (ADI 1.800, Rel. p/ o ac. Min. Ricardo Lewandowski, j. 11.6.2007, Plenário, DJE de 28.9.2007).
6. CONCLUSÃO
Conforme se atestou ao longo deste trabalho, a existência de princípios de interpretação constitucional se firma de imensa importância, uma vez que possui dois fundamentos diretos: adequa-se como baliza à atuação dos intérpretes do texto magno, de modo que a sua atuação não seja ilimitada, como os princípios do efeito integrador (o intérprete não deve ferir a integridade sociopolítica instituída) e da concordância prática ou da harmonização; e adapta-se à manutenção e à progressividade das normas assentadas na Constituição, podendo-se citar os princípios da unidade da Constituição, da supremacia constitucional, da força normativa do texto magno, da máxima efetividade e da proporcionalidade ou da razoabilidade. Nesse último fundamento, também enquadram-se parâmetros hermenêuticos tendentes à ponderação, ao sopesamento de valores aparentemente em choque, técnica utilizada para a solução dos conhecidos “hard cases” (casos difíceis).
Tais princípios se revestem de notoriedade ainda maior quando se analisa a expansão da chamada jurisdição constitucional, alargada por força do neoconstitucionalismo e que tem como principal mister a defesa dos direitos fundamentais. Do mesmo modo, notou-se que todos os princípios encontram-se conexos uns com os outros, o que é natural tendo em vista que boa parte deles tem origem da supremacia da Constituição, servindo de respaldo tanto para juízes de instâncias inferiores quanto para a Corte Constitucional do país.
Com relação à jurisprudência firmada no Brasil ao longo dos trinta anos de vigência da Constituição Federal de 1988, a qual significou um grande avanço em conteúdo vinculativo principiológico, tem-se que se sobressaiu a observância do texto magno e o respeito aos direitos fundamentais, sobretudo no âmbito dos princípios da unidade, da supremacia e da proporcionalidade.
7. REFERÊNCIAS
BARROSO, Luís Roberto. 2016. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. THEMIS – Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará, Fortaleza, vol. 4, n. 2, 13-100, julho/dezembro de 2006.
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 6.ª Edição. Salvador: Editora JusPodvum, 2012.
HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. 2.ª Edição. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1992.
NOVELINO, Marcelo. Curso de Direito Constitucional. 11.ª Edição. Salvador: Editora JusPodvum, 2016.
RAMOS, André Tavares. Curso de Direito Constitucional. 10.ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2012.
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6.ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
1. NOTAS
[1] Disponível em . Acesso em 8 jan. 2019.
Bacharelando do curso de Direito na Universidade Estadual do Piauí.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUSA, João Pedro Martins de. Os princípios da interpretação constitucional na jurisprudência brasileira Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 jan 2019, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52610/os-principios-da-interpretacao-constitucional-na-jurisprudencia-brasileira. Acesso em: 23 dez 2024.
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