RESUMO: Buscou-se com esse estudo analisar a relação entre o princípio da separação de poderes e a reserva de iniciativa do Poder Executivo e como esse instituto deve ser interpretado e aplicado em face dessa relação e da jurisprudência. O objetivo maior é permitir uma sistematização do conhecimento e auxiliar aos diversos atores do processo legislativo no conhecimento de suas funções e atribuições. Realizou-se pesquisa bibliográfica em autores como Albuquerque (2011), Bielschowsky(2012), Couceiro (2011), dentre outros, e na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal procurando conciliar os pensamentos dos vários autores e da jurisprudência para se expressar quais os parâmetros guiam a interpretação da norma constitucional. Concluiu-se que as normas de iniciativa reservada, apesar de visar proteger a separação de poderes, são exceções ao princípio pelo que sua interpretação deve ser feita sempre com cautela e de modo restritivo.
Palavras-chave: Separação de Poderes. Reserva de Iniciativa. Interpretação.
Introdução
O presente trabalho visa analisar a melhor forma de interpretação da reserva de iniciativa privativa do Poder Executivo em face do princípio da separação de poderes e tendo como parâmetro a jurisprudência do STF.
O recorte de análise se limitará á a reserva de iniciativa do Poder Executivo, não abarcando a de outros órgãos, de modo que para evitar repetições durante o trabalho sempre que se fizer menção à iniciativa privativa será às atribuídas constitucionalmente ao Poder Executivo.
A importância desse trabalho pode-se deduzir das lições da doutrina clássica José Afonso da Silva (2010, f. 146), por exemplo, aduz a relevância da iniciativa legislativa para o processo de criação de normas jurídicas:
A iniciativa legislativa é, talvez, o ato de maior relevo nos processos legislativo, pois não se resume no direito de apresentar projetos de lei ao Poder Legislativo. Este é um momento instrumental da iniciativa, porque o projeto de lei é mero instrumento formal da atuação do poder de iniciativa legislativa, que é um momento culminante da atuação do poder político no processo de formação das leis. É aí que se dá a interferência do poder na predeterminação das normas jurídicas, na formação escrita das regras de conduta e envolve uma escolha das vias possíveis difusas no viver social.
Ao lado disso, há entendimentos arraigados na prática jurídica, inclusive jurisprudencial, que ainda seguem posicionamentos antigos de jurisprudências dos Tribunais Superiores e de lições doutrinárias que se fundaram, em especial, na constituição de 2+67 onde a relação entre os Poderes era muito diversa, dando prevalência ao Executivo e dando ao Judiciário uma função de quase subordinação.
A título de exemplo a Lei Municipal 4.255, de 7 de maio de 2014 do Rio de Janeiro foi declarada inconstitucional em virtude de criar despesas para o Poder Executivo, entendimento que se fundava no art. 57, II da EC 01/69 e que não possui similar na Constituição de 1988.
Neste contexto, o objetivo primordial deste estudo é estudar a relação entre a iniciativa privativa e o a Separação de Poderes para, a partir daí, compreender qual a melhor interpretação a ser dada para o instituto na atual ordem constitucional.
Para alcançar os objetivos propostos, utilizou-se como recurso metodológico, a pesquisa bibliográfica, realizada a partir da análise pormenorizada de materiais já publicados na literatura e artigos científicos divulgados no meio eletrônico, além de pesquisas da jurisprudência mais recente do STF sobre o tema.
O texto final foi fundamentado nas ideias e concepções de autores que trataram especificamente sobre o tema evitando-se a utilização de manuais e livros que tratem de vários temas diversos, assim, pautou-se pelas concepções, dentre outros, de Rezende (2017), Couceiro (2011), Cavalcante Filho (2013), Lois (2009), Ferrari Filho (2001).
Nesta perspectiva, se construiu questões-tema que nortearam este trabalho e suas conclusões:
a) Qual a relação entre a iniciativa privativa e a separação de poderes?
b) Como vem decidindo o Supremo Tribunal Federal ao julgar essa matéria?
c) Qual o melhor modo de interpretação da iniciativa privativa em face de sua relação com a separação de Poderes e com as decisões do STF.
Ao final far-se-á um estudo de caso referente à lei 13.334/2016, de iniciativa parlamentar, promulgada no município de Juiz de Fora que teve como objetivo instituir a obrigação de colocação de banheiro para uso dos motoristas e cobradores do transporte público municipal de Juiz de Fora, sendo que referida lei foi impugnada em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade, sob o argumento de violar a reserva de iniciativa do chefe do Poder Executivo.
Em suma a análise adequada dos termos constitucionais é essencial à criação de leis hígidas e adequadas ao sistema democrático, nesse sentido o entendimento acerca da iniciativa privativa é imprescindível para mantença do sistema de Separação de Poderes e do modelo constitucional posto e o tema condutor desse trabalho.
Desenvolvimento
Da relação entre separação de poderes e iniciativa privativa
A criação de normas jurídicas passa por um complexo processo político chamado processo legislativo que se divide em cinco fases: iniciativa, discussão, votação, sanção, promulgação e publicação (FERRARI FILHO, 2001, p. 57). A iniciativa é o primeiro momento de tal processo e possui relevância ímpar, vez que é por meio das regras de iniciativa que a Constituição Federal define quais atores políticos podem iniciar o processo legislativo.
Desse modo, pode-se definir iniciativa privativa como a competência constitucionalmente conferida a um ator político para deflagrar o processo legislativo de produção de normas jurídicas.
Quando o Texto Constitucional define que certos assuntos só podem ter seu processo legislativo iniciado por certos atores políticos, qualquer iniciativa diversa macula todo o processo tornando a lei inconstitucional. O vício é de tal monta que nem mesmo a sanção pelo Poder que teve sua competência usurpada pode saná-lo.
O entendimento de que a violação das regras de iniciativa são insanáveis se funda na ideia de que a inconstitucionalidade gera um vício de nulidade de lei e, portanto, impassível de convalidação.
Se é certo que outrora o entendimento majoritário era pela possibilidade de convalidação, o que ficou cristalizado na súmula 5 do STF, é certo que tal entendimento se encontra superado, nesse sentido:
O desrespeito à prerrogativa de iniciar o processo de positivação formal do Direito, gerado pela usurpação do poder sujeito à cláusula de reversa, traduz vício jurídico de gravidade inquestionável, cuja ocorrência reflete típica hipótese de inconstitucionalidade formal, apta a infirmar, de modo irremissível, a própria integridade jurídica do ato legislativo eventualmente editado. Dentro desse contexto - em que se ressalta a imperatividade da vontade subordinante do poder constituinte -, nem mesmo a aquiescência do Chefe do Executivo mediante sanção ao projeto de lei, ainda quando dele seja a prerrogativa usurpada, tem o condão de sanar esse defeito jurídico radical. Por isso mesmo, a tese da convalidação das leis resultantes do procedimento inconstitucional de usurpação - ainda que admitida por esta Corte sob a égide da Constituição de 1946 (Súmula 5) - não mais prevalece, repudiada que foi seja em face do magistério da doutrina (...), seja, ainda, em razão da jurisprudência dos Tribunais, inclusive a desta Corte (...).
[ADI 1197, rel. min. Celso de Mello, P, j. 18-5-2017, DJE 114 de 31-5-2017.]
Tal se dá porque as reservas de iniciativa do Texto Constitucional não têm mero caráter formal, mas visam proteger a própria ideia de separação de poderes, cláusula pétrea do sistema constitucional brasileiro (FERRARI FILHO, 2001, p. 60). Assim quando se estuda as competências normativas se estuda de modo mais ou menos direto o postulado da Separação de Poderes.
A CF 88 se adotou o modelo de separação tripartide de Monstesquieu, ou seja, há três poderes independentes e harmônicos o Executivo, o Legislativo e Judiciário, a cada um é atribuída uma função específica, qual seja a de administrar, legislar e julgar.
Deste modo cabe ao Poder Legislativo a criação de leis e normas jurídicas, ao Poder Executivo a execução de políticas públicas e de governo e ao Poder Judiciário o julgamento de controvérsias e a interpretação do modo de aplicação da lei.
Nesse sentido pode-se dizer que a Separação de Poderes atua sob um campo funcional, quer dizer, separam-se as funções cometidas aos diversos titulares de Poderes Estatais de modo que o exercício de uma função sirva como limite a outra (COUCEIRO, 2011).
A princípio cada Poder deveria exercer as funções que lhe são inerentes sem adentrar nas que são de competência dos outros Poderes, todavia, no modelo adotado pelo sistema brasileiro não se pode falar que essas funções sejam estanques porque ao mesmo tempo em que os Poderes exercem suas funções típicas, também lhes são atribuídas pelo Texto Constitucional funções atípicas que a priori seriam pertecentes aos outros poderes, nas palavras de Russomano:
As exigências de ordem prática, à medida que se desdobram as décadas, demandaram um apagamento das fronteiras entre os Poderes, e, pois entre as suas funções. Contemplando o que se passa no Estado moderno, podemos observar que cada Poder, se exerce- conforme o sabemos- a função que lhe é própria com dominância, cada vez o faz com melhor ênfase. As funções estão longe de ser exclusivas do Poder respectivo. Secundariamente embora, estes, em sua dinâmica, escapam aos setores que lhe são inerentes. (RUSSOMANO, 1976, p.33)
Essa ‘atipicidade’ de funções denota uma excepcionalidade no postulado da separação de poderes, vez que modifica a estrutura básica do sistema de tripartição e cria um complexo de competências interconectadas entre os Poderes modificando a separação absoluta por uma interpenetração de competências (FERRARI FILHO, 2001). Nesse sentido, é a existência de funções atípicas do Poder Executivo que garante ao mesmo um complexo rol de competências legislativas privativas (REZENDE, 2017, p. 10).
Desse modo, é de se perceber que certos temas normativos devem ter seu processo legislativo iniciado privativamente pelo Executivo. Tal reserva visa garantir-lhe certa autonomia em relação ao Poder Legislativo, vez que permite ao mesmo o exercício de certas competências legislativas que, se não lhe fosse garantida iniciativa, ficariam a cargo da vontade do legislativo.
O constituinte buscou que as funções a serem exercidas pelo Poder Executivo não fossem impedidas pela inércia ou pela iniciativa incauta do legislador, desse modo que se deve-se perceber as regras de iniciativa como uma garantida do exercício de um dos Poderes contra ingerência dos demais.
Tal ideal se ainda mais claro se analisarmos o art 84, VI da Constituição Federal, isto porque, apesar de não se tratar de regulamentação de iniciativa de processo legislativo, trata-se da única forma de decreto autônomo existente no Direito Brasileiro, ou seja, neste artigo estão arroladas as únicas hipóteses em que o Chefe do Poder Executivo pode manifestar seu poder normativo independentemente do Poder Legislativo.
Nosso modelo de separação de competências é diferente de outros países, por exemplo, no modelo norteamericano todas as funções legislativas cabem ao Congresso sendo, apenas excepcionalmente e quando autorizado por lei através de parâmetros claros e sólidos, permitido ao Executivo a criação de normas jurídicas (ALBUQUERQUE, 2011):
De fato, após declarar a inconstitucionalidade de algumas leis relacionadas à política do New Deal em 1.935, a Suprema Corte americana passou a insistir que a complexidade da vida social moderna autorizaria a delegação pontual de parcela de competência legislativa ao Executivo, desde que acompanhada de parâmetros claros e sólidos para a atuação do delegatário.
Ou seja, ainda que se possa afirma com certa segurança que as regras de iniciativa privativas são decorrentes do sistema de separação de poderes não se pode dizer que só há separação de poderes se houver regras de iniciativa privativa.
A iniciativa privativa é, deste modo, pertencente ao sistema de separação de poderes, mas não inerente ao mesmo, sendo uma peculiaridade do sistema brasileiro. É interessante a síntese de Sérgio Antônio Ferrari Filho (2011, p. 61) sobre o assunto:
Em suma, entendemos que o princípio da separação dos poderes é realmente um princípio fundamental do Estado brasileiro. No entanto, a relação entre o princípio da separação dos poderes e a iniciativa privativa se revela simultaneamente em duas facetas: como exceção e como garantia. Como exceção, porque subtrai a iniciativa de legislar do Poder Legislativo, a quem esta tocaria naturalmente, pelo próprio princípio da separação dos poderes. Como garantia, na medida em que impede que o Poder Legislativo prepondere sobre os demais, legislando sobre seus serviços internos. A regra da reserva de iniciativa, portanto, é norma-disposição, destituída de características principiológicas autônomas.
Em suma, ao mesmo tempo que as regras de iniciativa protegem os poderes das ingerências de outros também constituem exceção à regra geral da Separação de Poderes, vez que limita as atribuições inerentes ao Legislativo, qual seja, legislar.
Esse duplo viés é o que nos dá o modo adequado de interpretação da iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo, se por um lado a mesma deve ser vista como garantia de não ingerência do Poder Legislativo em suas atribuições também deve ser vista como exceção ao sistema tripartide de separação de competências.
Da interpretação das regras de iniciativa privativa e da interpretação do STF
Como aduzido no item anterior a iniciativa privativa possui uma dupla faceta em face do sistema constitucional de separação de poderes, ao mesmo tempo em que é garantia de um Poder contra ingerência de outro é uma excepcionalidade no sistema. Interpretar seu modo de aplicação é, portanto, conciliar sua dupla natureza.
Ao mesmo tempo em que o intérprete tem que perceber a importância da mesma para a manutenção da estabilidade constitucional, deve perceber que o aumento desmedido no que considera de ‘iniciativa privativa’ gera um desequilíbrio no sistema correndo o risco de transformar o que é excepcional em uma regra.
Cavalcante Filho (2013, p.12) aduz em seu estudo “Limites da Iniciativa Parlamentar Sobre Políticas Públicas” que por ser a iniciativa privativa norma restritiva da função típica de legislar do Congresso Nacional que:
as hipóteses de iniciativa privativa devem ser interpretadas de forma restritiva, não apenas no sentido de que a enumeração constitucional é taxativa, mas também – e principalmente – porque não se deve ampliar, por via interpretativa, o alcance de seus dispositivos.
O Supremo Tribunal Federal, todavia, não segue a plenitude essa orientação. Como se observa do estudo de Renato Monteiro de Rezende (REZENDE, 2017, p. 2) a interpretação do STF costuma ir além dos estritos limites gramaticais das normas constitucionais:
fato é que a Corte tem feito tradicionalmente uma exegese teleológica dos dispositivos constitucionais que conferem tal iniciativa, para aplicá-los a situações que vão além da literalidade do texto.
A jurisprudência se mostra, todavia, oscilante, como se observar do Recurso Extraordinário 878.911 Rio de Janeiro em Repercussão Geral. O caso versava acerca de lei de origem parlamentar que obrigava a instalação de segurança em escolas públicas. O Chefe do Executivo do município de Rio de Janeiro entendia inconstitucional a matéria, vez que o Legislativo criara por meio da lei despesas para o Executivo.
Durante a votação de mérito a posição mais restritiva quanto às iniciativas privativas prevaleceu. Nas palavras do Ministro Gilmar Mendes:
O Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento no sentido de que as hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão taxativamente previstas no art. 61 da Constituição, que trata da reserva de iniciativa de lei do Chefe do Poder Executivo. Não se permite, assim, interpretação ampliativa do citado dispositivo constitucional, para abarcar matérias além daquelas relativas ao funcionamento e estruturação da Administração Pública, mais especificamente, a servidores e órgãos do Poder Executivo.
A posição interpretativa que cremos mais acertada será aquela que conciliar os dois fundamentos da iniciativa privativa, quais sejam sua excepcionalidade dentro do sistema e sua função de garantia da separação de poderes.
O modelo da Corte Suprema foi utilizada pelo o Parecer do Ilustre parquet na ADI 1.0000.17.092678-6/000 no Tribunal e Justiça de Minas Gerais aduziu que:
“não usurpa competência privativa do Chefe do Poder Executivo lei que, embora crie despesa para a Administração Pública, não trata da sua estrutura ou da atribuição de seus órgãos nem do regime jurídico de servidores públicos (art. 61, § 1º, II, ‘a’, ‘c’ e ‘e’ da Constituição Federal).”
Nesse sentido, realmente as normas constitucionais que prevêem a iniciativa privativa devem ser interpretadas de maneira restritiva sob pena de se subverter a lógica do sistema e a natureza excepcional da iniciativa privativa. Todavia, também se deve ampliar o espectro para se evitar que, ainda que não seja relativa ao funcionamento e estruturação dos órgãos e servidores do Poder Executivo, leis de iniciativa parlamentar que venham a redesenhar os órgãos do Poder Executivo venham a vulnerar a separação de poderes.
Esse modo de interpretação da iniciativa privativa é o que Cavalcante Filho (2013, p. 31) ao estudar iniciativa privativa nas políticas públicas identificou como a terceira fase de interpretação do Supremo Tribunal Federal, nas palavras do autor:
Realmente, a Corte, após vedar qualquer iniciativa parlamentar sobre Administração Pública (1ª fase) e proibir que Deputados ou Senadores propusessem projetos de lei que criassem órgãos ou atribuições (2ª fase), dá indícios – ainda que tímidos – de encaminhar-se para uma terceira fase, em que é permitido ao Legislador iniciar projetos de lei instituindo políticas públicas, desde que não promova o redesenho de órgãos do Executivo.
Desse modo, há uma virada hermenêutica na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal o que impõe que as normas de iniciativa privativa sejam interpretadas de maneira restritiva, se limitando ao texto constitucional e evitando que leis parlamentares redesenhem órgãos, carreiras ou atribuições do Poder Executivo.
DA LEI 13.334/2016 DO MUNICÍPIO DE JUIZ DE FORA
A lei 13.334/2016 prevê a obrigação de que se mantenha banheiros privados para motoristas e trocadores que trabalhavam no transporte público intramunicipal de passageiros, tal lei foi proposta por iniciativa do Poder Legislativo e sofreu veto do Poder Executivo. Nas razões de veto se aduziu que:
A presente proposição, apesar da elogiável iniciativa dessa respeitável Casa Legislativa, diante do manifesto interesse público e do expressivo alcance social, apresenta um obstáculo de ordem técnica intransponível, porquanto interfere na competência privativa do Poder Executivo (...)
Neste sentido, constata-se que o Projeto de Lei nº 38/2015 fere a autonomia e independência entre os Poderes Legislativo e Executivo, pois, à luz do princípio da simetria, é de iniciativa do Executivo Municipal a lei que veicule normas, envolvendo o regime de concessão ou permissão de serviços públicos do Município.
O veto foi derrubado pela Câmara Municipal do Município tendo sido a lei promulgada. Ato contínuo foi impetrada a Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.0000.17.092.678-6/000 cujos fundamento foi a violação à competência exclusiva do Chefe do Poder Executivo para leis que disponham sobre serviços públicos.
A análise do caso concreto cinge-se, portanto à eventual vedação de que o Poder Legislativo legisle sobre normas de concessão e permissão de serviços públicos ou que disponham sobre serviços públicos.
O Ministério Público no corpo do referido processo exarou parecer no sentido de que:
Todavia, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário com Agravo 878.911/RJ, reconheceu a repercussão geral da matéria constitucional ora debatida e, no mérito, reafirmou a jurisprudência daquela Corte no sentido de que não usurpa a competência privativa do Chefe do Poder Executivo lei que, embora crie despesa para a Administração Pública, não trata da sua escritura ou atribuição de seus órgãos nem do regime jurídico de servidores públicos (art. 61, §1º, II, a, c e e, da Constituição Federal)
Assim, considerando o entendimento firmado pelo STF, na sistemática de repercussão geral, no sentido de que não usurpa a competência privativa do Chefe do Poder Executivo lei que, embora crie despesa para a Administração Pública, não trata da sua estrutura ou da atribuições de seus órgãos e nem do regime jurídico de servidores públicos, não se vislumbra, in casu, o fumus boni iuris.
Por sua vez o Tribunal de Justiça de Minas Gerais em sede liminar aduziu que:
Por outro lado, a concessão do serviço de transporte coletivo é atribuição privativa do Poder Executivo (art. 10, XIII, “b”, da CEMG). Através do contrato de concessão de serviço público, a Administração Pública transfere à pessoa jurídica ou consórcio de empresas a execução de certa atividade de interesse coletivo.
No entanto, a iniciativa de projeto de lei que preveja condições sanitárias e de conforto nos locais de trabalho, a céu aberto, de motoristas e trabalhadores em transporte rodoviário urbano, não constitui matéria de competência reservada do Prefeito, o que legitima a iniciativa da lei pela Câmara Municipal.
(...)
Ademais, quanto à afirmação de que a referida lei cria despesa aos concessionários, o que ofende as disposições constitucionais previstas no art.173 § 1º c/c art.6º, ambos da CEMG, a mesma não procede.
Sabe-se não ser toda e qualquer despesa criada pela lei que pode ser caracterizada como ofensiva ao princípio da separação dos poderes; do contrário, estar-se-ia inviabilizando o exercício da função legislativa, já que a maioria dos projetos de lei gera algum tipo de despesa.
Dois pontos importantes foram apresentados pelo Tribunal no presente caso, em primeiro lugar o fato de que o mero fato de a lei criar despesas não gera competência exclusiva do chefe do Poder Executivo.
Isso se da porque de um modo ou outro todas as lei geram despesas e, portanto, impedir a criação de despesas por leis de iniciativa legislativa seria impedir o exercício da função legislativa pelas Casas Legislativas.
Tal previsão de vedação a projetos de leis do legislativo que criassem despesas derivava do art. 60, II da CF 67 que limitava tal iniciativa ao Chefe do Poder Executivo, todavia deve-se recordar que tal texto constitucional tinha como grande característica centralizar o poder político nas mãos do Executivo o que não se coaduna com a CF 88. Por todos Lima:
Pode-se depreender a partir do posicionamento supra citado que esta Carta procurou institucionalizar o regime ditatorial, ampliando os poderes do Executivo em detrimento do Legislativo e Judiciário, engendrando uma organização hierárquica constitucional. O Poder Executivo exercia, com caráter exclusivo, a prerrogativa de criar emendas constitucionais, sem a anuência do Poder Judiciário e legislativo.
Isso se dá até mesmo pela premissa anteriormente estabelecida de que a iniciativa privativa deve ter seus casos interpretados restritivamente. Para reforço desse entendimento citamos a ADI 3.394 do STF:
Não usurpa a competência privativa do chefe do Poder Executivo lei que, embora crie despesa para a Administração Pública, não trata da sua estrutura ou da atribuição de seus órgãos nem do regime jurídico de servidores públicos
(...) reafirmação da jurisprudência desta Corte no sentido de que não usurpa a competência privativa do Chefe do Poder Executivo lei que, embora crie despesa para a Administração Pública, não trata da sua estrutura ou da atribuição de seus órgãos nem do regime jurídico de servidores públicos (art. 61, § 1º, II, a, c e e, da Constituição Federal)
Um segundo ponto relevante se aduziu claramente que, apesar de efetivamente a prestação e concessão de serviços públicos ser de competência do Poder Executivo, por sua própria atribuição constitucional de atuação material, a regulamentação dessas prestações podem se dar por obra do Poder Legislativo.
Isso se dá porque as políticas públicas devem ser analisadas, sopesadas, decididas e implementadas por atuação conjunta do Poder Executivo e Legislativo, sendo que não se pode minar a competência do Legislativo para sua atuação em abstrato via diplomas normativos, sob pena de condicioná-lo à vontade do Executivo.
Nesse sentido Barroso (2002) afirma que:
Por sua vez, a questão do controle das políticas públicas envolve, igualmente, a demarcação do limite adequado entre matéria constitucional e matéria a ser submetida ao processo político majoritário. Por um lado, a Constituição protege os direitos fundamentais e determina a adoção de políticas públicas aptas a realizá-los. Por outro, atribuiu as decisões sobre o investimento de recursos e as opções políticas a serem perseguidas a cada tempo aos Poderes Legislativo e Executivo.
Também pela possibilidade de regulamentação pelo Legislativo nas políticas públicas o Agravo Regimental no Recurso Extraordinário (AgRE) nº 290.549 da primeira turma do STF, que decidiu:
a criação, por lei de iniciativa parlamentar, de programa municipal a ser desenvolvido em logradouros públicos não invade esfera de competência exclusiva do Chefe do Poder Executivo.
Já na ADI nº 2.444, o STF consignou que:
A lei em questão não cria, extingue ou modifica órgão administrativo, tampouco confere nova atribuição a órgão da administração pública. O fato de a regra estar dirigida ao Poder Executivo, por si só, não implica que ela deva ser de iniciativa privativa do Governador do Estado. Não incide, no caso, a vedação constitucional (CF, art. 61, § 1º, II, e).
Pode-se se dizer que a função natural do Legislativo é exercer seu poder de criar atos normativos primários e que, somente excepcionalmente, tais atos normativos podem ser restringidos por regras de iniciativa privativa do Chefe do Executivo.
Há uma nítida separação entre a legislação, pertencente por regra ao Legislativo, a regulamentação, pertencente por regra ao Executivo e a execução, também pertencente ao Executivo.
Nesse sentido que no caso analisado o TJMG aduziu in litteris na decisão liminar:
Com efeito, salvo as matérias taxativamente elencadas nas alíneas do inciso III do art. 66 e do art. 90 da CEMG, as demais questões serão de iniciativa concorrente, não havendo óbice constitucional para que o Poder Legislativo proponha lei que acarrete aumento de despesa para o Executivo.
Ante o exposto pode-se concluir que as hipóteses de iniciativa privativa visam balancear e harmonizar a convivência entre os três poderes e, consistindo em verdadeira limitação ao Poder natural de legislação do Poder Legislativo, deve ser interpretada restritivamente.
Conclusão
Diante do exposto, concluiu-se que a reserva constitucional de iniciativa privativa a determinados projetos de lei é uma forma de defesa do princípio da Separação de Poderes.
Em que pese haver relação intrínseca a ambos não é correto afirmar que a reserva de iniciativa é conditio sine qua non para a efetiva existência de uma separação de poderes, havendo países como os Estados Unidos da América onde inexiste tal reserva sendo toda matéria legislativa de competência do Poder Legislativo.
Com isso em mente pode se perceber que a reserva de determinadas matérias da iniciativa do Poder Legislativo é uma exceção à regra de que compete ao Parlamento o dever de legislar. E essa natureza excepcional deve ser levada em conta no momento da aplicação da norma que deve, portanto, ter interpretação restritiva.
Assim passou-se à análise da jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal Federal que modificou seu entendimento passando a prever que a reserva de iniciativa deve ser interpretada restritivamente.
Assim, conclui-se, na esteira do STF, que somente há falar em violação à reserva de iniciativa do Poder Executivo pelo Poder Legislativo caso o projeto de lei vise modificar órgãos ou estruturas daquele.
Em seguida passou-se à análise da aplicabilidade de tal entendimento em um caso específico de um Tribunal Local e o modo como a interpretação da iniciativa privativa deve-se dar de maneira restritiva.
Tais conclusões permitem que um amplo leque de matérias, sejam apresentadas pelo Poder Legislativo, cuja representatividade democrática, ante ao seu caráter de órgão colegiado, é maior do que a do Poder Executivo e que dessa maneira se garante o respeito à separação de poderes, sem limitar indevidamente as funções naturais do Poder Legislativo.
REFERÊNCIAS
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BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 851,1 nov. 2005. Disponível em: < https://jus.com.br/artigos/7547 >. Acesso em: 2 abr. 2019.
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CAVALCANTE FILHO, João Trindade. Limites da iniciativa parlamentar sobre políticas públicas: uma proposta de releitura do art. 61, §1º, II ‘e’ da Constituição Federa. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Fevereiro/2013 (Texto para Discussão nº 122). Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/243237. Acesso em 11 de janeiro de 2017.
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Ferrari Filho, Sérgio Antônio. A iniciativa privativa no processo legislativo diante do princípio interpretativo da efetividade da constituição, In: Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 5, n. 9, jan./jun. 2001. Disponível em: <http://www.camara.rj.gov.br/setores/proc/revistaproc/revproc2001/revdireito2001a/estudo_iniciatpriv.pdf>, Acesso em 11 de janeiro de 2017.
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Advogado, Graduado em Direito pelas Faculdades Integradas Vianna Júnior, especialista em filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, ex-procurador municipal de Ouro Preto, advogado da Câmara Municipal de Juiz de Fora.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NASCIMENTO, Yuri Alexander Nogueira Gomes. Do modelo interpretativo da iniciativa reservada do Poder Executivo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 abr 2019, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52830/do-modelo-interpretativo-da-iniciativa-reservada-do-poder-executivo. Acesso em: 23 dez 2024.
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