ADEMIR GASQUES SANCHES
(Orientador)
RESUMO: O presente artigo busca apresentar as dificuldades encontradas no ordenamento jurídico brasileiro para estabelecer as diferenças entre usuário e traficante de drogas na legislação atual; juntamente com o modo de aplicação e interpretação dos critérios presentes na lei, e como são utilizados pelos juízes para distingui-los, com o intuito de transparecer as consequências de determinadas interpretações no país. O escopo central encontra-se na execução dos artigos 28, caput, e do 33, caput, da Lei 11.343/2006, a qual apresenta uma norma repleta de subjetividade e complexidade, fato que causa grande insegurança jurídica. Também foi observada a existência de seletividade do ordenamento jurídico ao fazer uma leitura mais aprofundada da lei, visto que os critérios estabelecidos criminalizam grupo social determinado. Ainda foi abordado o modo em que vem sendo ignorada a aplicação das medidas alternativas aos usuários, permanecendo assim o método repressivo. Posto isto, reconheceu-se a necessidade da elaboração de critérios legais que sejam objetivos e claros, para que assim, a distinção dos tipos penais presentes nos artigos 28 e 33, respectivamente, seja integralmente incluído na lei em sua formalidade; com o propósito de garantir a seguridade nas decisões judiciais que circundam os delitos da legislação abordada referente a drogas.
Palavras-chave: Lei de drogas. Usuário e Traficante. Critérios Distintivos.
ABSTRACT: This article tries to present the difficulties found in the Brazilian legal system to establish the differences between user and drug trafficker in the current legislation; together with the method of application and interpretation of the criteria in the law, and how they are used by the judges to distinguish them, in order to show the consequences of certain interpretations in the country. The central scope is in the execution of articles 28, caput, and 33, caput, of Law 11.343 / 2006, which presents a norm full of subjectivity and complexity, a fact that causes great legal uncertainty. It was also observed the existence of selectivity of the legal system when doing a more in depth reading of the law, since the established criteria criminalize determined social group. We still discuss how the application of alternative measures to users has been ignored, thus repressive mode. Having said this, it was recognized that there is thus remaining the repressive mode of legal criteria that are objective and clear, so that the distinction of the criminal types in articles 28 and 33, respectively, is fully included in the law in its formality; with the purpose of guaranteeing security in the judicial decisions that surround the crimes of the legislation approached referring to drugs.
Key words: Drug Law. User and Dealer. Distinctive Criteria.
O presente artigo busca apresentar as dificuldades encontradas no ordenamento jurídico brasileiro para estabelecer as diferenças entre usuário e traficante de drogas. Isto porque, a questão das drogas está cada vez mais presente na sociedade, atingindo direta ou indiretamente os cidadãos. O escopo central encontra-se na execução da Lei 11.343/2006, devido ao modo em que vem sendo interpretada pelo judiciário, uma vez que estamos diante de uma norma repleta de subjetividade e complexidade.
Os fatores utilizados para conferir o destino do sujeito portador da droga, ou seja, se pertencem à natureza do consumo ou tráfico, estão presentes no parágrafo 2º do art 28 da Lei 11/343/2006. Doravante, cabe a subjetividade do judiciário a aplicação da mesma, por conseguinte, são desencadeadas problemáticas que derivam dessa concentração decisória. Isso ocorre pela grande heterogeneidade das decisões, bem como, a falta de segurança jurídica; e, principalmente, a inutilidade da “despenalização” da conduta do usuário.
De início, foi apresentado a definição da expressão drogas, de acordo com a organização mundial de saúde, incluindo os aspectos legais. Em seguida, pela abrangência do tema, foi realizada abordagens envolvendo a política criminal antidrogas brasileiras e o método no qual vem sendo aplicada no Brasil.
Atenta-se, posteriormente, para uma abordagem comparativa entre a lei revogada 6.368/76 e seu artigo 12, com a lei atual 11.343/06 em seu art 33, as quais mencionam a respeito do crime de tráfico de drogas, destacando a conduta e a responsabilização do agente, bem como, o caráter equiparado a crime hediondo por consequência da reprovação social do delito.
Logo após, foi feita uma análise relacionada aos atos e responsabilização na esfera penal do usuário de drogas, destacando os pontos principais acerca da natureza jurídica do artigo 28 da lei 11.343/2006, fazendo comparação à lei anteriormente revogada. Foi abordado ainda, a diferença entre as figuras do usuário e dependente de drogas; ambos sujeitos fazem jus a mecanismos de prevenção e reinserção social, no entanto, vale se atentar de modo que não se confundem, pois cada qual estão sujeitos a tratamentos penais distintos.
Com atenção especial ao analisar os critérios criados pelo legislador inseridos no art 28, §2° da lei 11.343/06, que faz jus a diferenciação do porte de drogas para o consumo pessoal do tráfico. Posto isto, é válido ressaltar a subjetividade encontrada em cada um dos critérios, afetando a camada menos favorecida da sociedade.
Em suma, busca-se analisar a dificuldade existente em estabelecer a distinção da figura do usuário de drogas e do traficante na legislação atual; juntamente com o modo de aplicação e interpretação dos critérios presentes na lei, e como são utilizados pelos juízes para distingui-los, com o intuito de transparecer as consequências de determinadas interpretações no país.
Por fim, procura-se exprimir que os parâmetros distintivos utilizados entre usuário/traficante, são incongruentes para justo enquadramento ao que consiste à incriminação dos sujeitos.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), “droga é toda substância que introduzida no organismo vivo modifica uma ou mais das suas funções”. Ainda, de acordo com a juíza de direito aposentada e presidente do Agentes da Lei contra proibição (LEAP Brasil), Maria Lúcia Karam (1993, p.26) considera drogas, nos seguintes termos:
Definições um pouco mais precisas, sendo comumente aceito o conceito de droga como toda substância que, atuando sobre o sistema nervoso central, provoque alterações das funções motoras, do raciocínio, do comportamento, da persecução ou do estado de ânimo do indivíduo, podendo produzir, através de seu uso continuo, um estado de dependência física ou psíquica.
Com base na definição acima do termo drogas, estas são subdivididas em lícitas, ou seja, que é permitido o uso e o comércio conforme a lei, sendo o tabaco, certos medicamentos e bebidas alcoólicas; Já em substâncias ilícitas, que indica uma antijuridicidade, logo, que não é permitido legalmente, como a maconha, cocaína, LSD, ecstasy dentre outras.
A decorrente vigência da nova lei, criou- se um conceito legal-amplo, desse modo não ficou preso à categoria dos entorpecentes, tão como, das substâncias causadoras de dependência física ou psíquica. Sendo considerado drogas, todas e quaisquer substâncias ou produto que tenha potencial lesivo capaz de causar dependência, alterando a função dos organismos vivos, provocando mudanças comportamentais de modo que estejam elencadas em dispositivo legal competente.
Em território brasileiro, o ato que regulamenta as substâncias consideradas drogas e plantas é a Portaria SVS/MS 344, de 12 de maio de 1998, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, a qual determina: “Competirá ao ministério da saúde, de acordo com o art 14 I, a, do Decreto n.5.912/2006, a divulgação atualizada das substâncias ou produtos que são causadores de dependência”.
A política criminal deve ser compreendida como um ramo da Política Jurídica, a qual refere-se à seleção dos bens resguardados pelo aparelho estatal, como também os meios e formas empregados pelo mesmo para regular que tais bens sejam afrontados. Política criminal pode ser entendida de acordo com Eugenio Raul Zaffaroni e José Henrique Pierangelli (2015, p.126):
A ciência ou a arte de selecionar os bens (ou direitos) que devem ser tutelados jurídica e penalmente e escolher os caminhos para efetivar tal tutela, o que iniludivelmente implica a crítica dos valores e caminhos já eleitos.
O intuito principal da política criminal está direcionado ao estudo de melhores ações práticas e princípios para nortear os órgãos estatais e a sociedade com a intenção de reduzir a criminalidade.
No brasil as políticas criminais antidrogas procedem de métodos internacionais incorporados e desenvolvidos em território nacional. Na década de cinquenta, sucedem o modelo médico-jurídico, com fundamento ideológico da diferenciação, no qual discorria acerca das drogas, a fim de traçar distinção entre o traficante e consumidor, ou seja, estereotipar por meio do discurso jurídico aqueles que seriam “culpados” como criminosos e causadores de malefícios para sociedade; em contrapartida, o consumidor era enquadrado pelo discurso médico como dependente. Posto isto, perpetuou-se na sociedade, os estigmas de traficante sendo delinquentes/criminoso, enquanto os usuários, dependentes.
Acerca do modelo proibicionista, concomitante, ao de redução de danos dissertam Mendonça e Carvalho (2008, p.23):
A política de redução de danos faz com que o estado atua de forma preventiva, com o intuito de resguardar a saúde do usuário ora dependente, por meio de assistência médica, locais adaptados e adequados para o consumo, e até mesmo a substituição de drogas menos nocivas.
Ao analisar a legislação de drogas vigente, Lei 11.343/2006, é possível perceber certos alcances; tem-se o modelo proibicionista no tocante à ilicitude do tráfico de drogas. Por outro lado, adotou-se o modelo de prevenção em relação ao usuário e viciado, ao abordar meios de prevenção.
O SISNAD repõe o Sistema Nacional Antidrogas em decorrência da alteração do foco da política estatal de drogas de modo que diferencia o tratamento e responsabilidade imposta ao usuário e ao traficante. Segundo Ricardo Antonio Andreucci (2013, p.125):
O SISNAD, foi criado com o intuito de articular, organizar e coordenar as atividades relacionadas com a prevenção do uso indevido, a atenção e a reinserção social de usuários e dependentes de drogas e a repressão da produção não autorizada e do tráfico ilícito de drogas.
Ao que se refere a prevenção, a mesma é conduzida através da educação e do conhecimento sobre os riscos e consequências ocasionados pelo uso das drogas. É de suma importância a integração de inúmeras esferas sociais em busca da solidificação da proposta. Ao relacionar a reinserção social como uma das finalidades do SISNAD, tem como intuito minimizar os traumas frequentes daqueles que usam e tornaram dependentes das drogas, a fim de reinserir novamente à sociedade, dando oportunidades para a inclusão social e acima de tudo, o respeito com esses cidadãos.
A Lei 11.343/06, prevê em seu art 33 o crime de tráficos de drogas ilícitas:
Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor a venda, oferecer, ter em deposito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal regulamentar.
Pena- reclusão de 5 (cinco) a 15(quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500( mil e quinhentos) dias-multa.
A lei anterior n° 6.368/76, em seu art. 12 elencava em sua disposição os 18 (dezoito) verbos no qual permaneceram na legislação vigente; ao que se refere a sanção imposta ao traficante, a mesma foi alterada e majorada ao tratar da pena privativa de liberdade. Anteriormente a pena era de 3 (três) a 15 (quinze) anos de reclusão, cabendo multa de 50 (cinquenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa, passando para 5 (cinco) a 15 (quinze) anos, e com a possibilidade de multa de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.
Segundo Luciana Boiteux (2006), professora de direito penal e criminologia da UFRJ, o intuito do legislador ao aumentar a pena mínima do crime de tráfico, seria afastar as chances de aplicação das penas alternativas a prisão ao traficante.
A tipificação do art 28 da lei 11.343/06, traz a obrigatoriedade da demonstração do elemento subjetivo especifico, ou seja, que a droga seja para consumo pessoal, diferentemente do crime disposto no art 33, caput, no qual não exige a demonstração de fim especifico, o termo “tráfico de drogas” está estritamente assimilado a fim mercantil e lucrativo. Desse modo, o crime denominado tráfico de drogas, é caracterizado em razão do dolo genérico, consolidado no querer e na livre consciência ao praticar quaisquer dos 18 (dezoito) verbos presentes no art 33, é ciente da prática e a faz sem autorização ou em desacordo ao regulamento legal.
Vale destacar que não há necessidade de modificação no mundo exterior para que seja configurado crime, uma vez que trata de crime de perigo abstrato, segundo Fernando Capez (2016, p. 319):
Para a existência do delito não há necessidade de ocorrência do dano. O próprio perigo é presumido em caráter absoluto, bastando para a configuração do crime que a conduta seja subsumida em um dos verbos previstos. Trata-se, portanto, de infração de mera conduta, nas quais a configuração ou caracterização da figura decorre da mera realização do fato.
Ao se tratar de crime de perigo abstrato, os mesmos baseiam-se numa presunção de que a prática de certa conduta caracteriza um risco a um bem jurídico, embora não exista o reconhecimento efetivo do risco gerado pelo agente no caso concreto.
Além disso, o crime de perigo abstrato, no qual está inserido o crime de tráfico ilícito de drogas é equiparado a crime hediondo. Sobre isso, a Constituição Federal em seu art. 5°, XLIII, assegura tratamentos mais rígidos a certos crimes considerados de extrema gravidade, os quais são causadores de maior reprovação social, denominados hediondos. Desse modo, proíbe a liberdade provisória com fiança, bem como, de graça ou anistia (GUILHERME NUCCI, 2014).
A Lei 11.343/2006 objetiva sanar a lacuna presente durante as leis anteriores já revogadas, na qual não tratava de forma clara (e ainda não é tratado) os aspectos distintos entre o usuário e o traficante, com o propósito de dar particularidade no tocante ao tratamento penal dos sujeitos, separando a figura do usuário e do traficante em artigos distintos.
Alice Bianchini, Luiz Flavio Gomes, Rogério Sanches Cunha e Wilian Terra de Oliveira (2008, p.199), destaca alguns pontos abordados na Lei 11.343/2006:
(a) pretensão de se introduzir no Brasil uma sólida política de prevenção ao uso de drogas, da assistência e de reinserção social do usuário; (b) eliminação da pena de prisão ao usuário ( ou seja: em relação a quem tem posse de droga para consumo pessoal); (c) rigor punitivo contra o traficante e financiador do tráfico; (d) clara distinção entre o traficante “profissional” e o traficante ocasional; (e) louvável clareza na configuração do rito procedimento e (f) inequívoco intuito de que sejam apreendidos, arrecadados e, quando o caso, leiloados os bens e vantagens obtidos com os delitos de drogas.
A Lei estabeleceu normas de repressão a produção sem autorização ao tráfico de drogas, e também tratamento diferenciado ao usuário. Na vigência da lei anterior n°6.368/76, a pena estabelecida ao sujeito era de 6 (seis) meses à 2 (dois) anos, e pagamento de 20 (vinte) à 50 (cinquenta) das-multa, no incurso no artigo 16, referente ao porte de drogas para consumo pessoal. O artigo 28 da Lei 11.343/2006 revogou o artigo anteriormente mencionado.
A legislação atual alterou a aplicação da pena ao crime de porte de drogas para consumo próprio, optou pela substituição das penas de detenção e multa contidas na lei anterior 6.368/76, por penas opostas a prisão, como: I- advertência sobre os efeitos das drogas; II – prestação de serviços à comunidade; III- medida educativa de comparecimento à programa ou curso educativo.
Neste contexto Guilherme Nucci (2014, p.141) menciona:
O crime de porte de drogas para consumo pessoal (art28) tem perfil evidentemente favorável, em comparação com o delito anteriormente previsto no art. 16 da Lei 6.368/76. Não há mais pena privativa de liberdade nesse contexto. Portanto, entrando em vigor a nova lei, todos os condenados com base no antigo art. 16, que estejam eventualmente presos, devem ser imediatamente libertados, substituindo-se a pena privativa de liberdade pelas novas punições previstas no art. 28 da Lei 11.343/2006.
Dessa forma, para que seja configurado crime de consumo (uso) de drogas, é necessário a comprovação do dolo específico juntamente com a finalidade da ação do agente, sendo assim a droga deve destinar-se efetivamente para o consumo pessoal. Caso a destinação for atribuída a terceiro, trata-se de outra espécie elencada no art 33, caput, da Lei 11. 343/06.
Observa- se que para a caracterização do crime de porte de drogas para o consumo próprio é necessário que seja “sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”. No caso de autorização ou em concordância legal, a conduta é considerada atípica, uma vez que o art. 28 só faz referência no tocante a droga sem autorização.
De acordo com Renato Brasileiro de Lima (2013, p.720):
O porte de drogas para consumo pessoal somente será considerado típico se o agente adquirir, guardar, tiver em deposito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal regulamentar. Logo, como a exploração de drogas é permitida no Brasil em situações excepcionais (v.g., dentistas, médicos, hospitais), tal como deixam entrever os arts. 2º e 31 da Lei de Drogas, a tipificação do crime demanda a prática de qualquer um dos núcleos verbais sem autorização ou em desacordo com determinação legal regulamentar.
A grande inovação do legislador referente ao uso de drogas para o consumo pessoal na nova lei 11.343/06, foi relacionado a impossibilidade da aplicação de pena restritiva de liberdade, incluindo flagrante delito. Isto posto, refere-se o art 48, §2° da Lei mencionada:
Art. 48, §2° Tratando-se da conduta prevista no art. 28 desta Lei, não se imporá prisão em flagrante, devendo o autor do fato ser imediatamente encaminhado ao juízo competente (Juizados Especiais), ou, na falta deste assumir o compromisso de a ele comparecer, lavrando-se termo circunstanciado e providenciando-se as requisições dos exames e pericias necessários.
Segundo Renato Brasileiro de Lima (2013, p.705):
Trabalha-se, em síntese, com a premissa de que o melhor caminho é a educação, e não o da prisão, que nesse caso, traz poucos senão nenhum benefício a saúde individual.de mais a mais, é fato que a prisão de usuários não traz nenhum benefício a saúde do indivíduo.
Diante da modificação alusivo a pena, o Senado Federal justificou por meio do Projeto de Lei 115, convertido na Lei 11.343/06, veiculado pelo parecer 846, da Comissão de assuntos sociais do Senado, publicado, no Diário do Senado Federal em 6 de julho de 2006, trazida por Renato Brasileiro de Lima (2013, p.705):
O maior avanço do Projeto está certamente no seu art.28, que trata de acabar com a pena de prisão para o usuário de drogas no Brasil. A pena de prisão para o usuário de drogas é totalmente injustificável, sob todos os aspectos. Em primeiro lugar, porque o usuário não pode ser tratado como criminoso já que é, na verdade dependente de um produto, como há dependentes de álcool, tranquilizantes, cigarro, dentre outros. Em segundo lugar, porque a pena de prisão para o usuário acaba por alimentar um sistema de corrupção policial absurdo, já que quando pego em flagrante, o usuário em geral tenderá a tentar corromper a autoridade policial, diante das consequências que o simples uso da droga pode lhe trazer.
Evidente, portanto, que o legislador ao optar pela revogação da pena privativa de liberdade, no que concerne ao usuário, a qual caracterizava-se em um modelo ineficaz e repressivo, por uma política de redução de danos, têm em vista a prevenção, tratamento e a ressocialização do indivíduo.
Atenta-se a existência da diferença entre o usuário de drogas e o dependente, partindo da premissa que não se deve afirmar que todo usuário é necessariamente dependente ou que venha se tornar. Em relação a tal diferença ressalta Flávio Gomes (2008, p.110):
É preciso distinguir, prontamente, o usuário do dependente de drogas. Nem sempre o usuário torna-se do dependente. Aliás, em regra o usuário de drogas não se converte nem dependente. Ser usuário de droga (ou de álcool) não significa ser toxicodependente (alcoólatra). A distinção é muito importante para o efeito de se descobrir qual será a mais adequada em cada caso concreto.
A organização mundial da saúde (OMS) adotou terminologias concernente as drogas:
Usuário ocasional: pessoa que utiliza uma ou várias drogas quando disponíveis ou em ambiente favorável, sem rupturas (distúrbios) afetiva, social ou profissional.
Usuário habitual: pessoa que faz uso frequente, porém sem que aja ruptura afetiva, social ou profissional, nem perda de controle.
Dependente: pessoa que usa a droga de forma frequente e exagerada, com rupturas dos vínculos afetivos e sociais. Não consegue parar.
Desta forma, referente ao usuário, essa figura faz uso das drogas de forma esporádica, ocasional ou habitual sem rupturas sociais e afetiva, bem como, possui controle emocional e físico sobre o desejo do consumo. Enquanto o dependente, é impulsionado pela necessidade do uso constante e exacerbado, tendo rompimentos afetivos e sociais, somado a falta de controle sobre si, o que desencadeia alterações no estado físico e emocional.
Em relação a consequência penal também possui distinção, sendo aplicada de maneira individual. Para o dependente de drogas a legislação possibilita a absolvição imprópria, com isso afasta a aplicação de pena e substitui por medida de segurança.
Como disposto no art. 45 da Lei 11.343/2006:
Art. 45 é isento de pena o agente que, em razão da dependência, ou sob o efeito, proveniente de caso fortuito ou força maior, de droga, era, ao tempo da ação ou omissão, qualquer que tenha sido a infração penal praticada, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Parágrafo único. Quando absolver o agente, reconhecendo, por força pericial, que este apresentava, à época do fato previsto neste artigo, as condições referidas no caput deste artigo, poderá determinar o juiz, na sentença, o seu encaminhamento para tratamento médico adequado.
Por conseguinte, há diferenças ao que tange os efeitos penais do usuário e do dependente. Ambos não devem ser confundidos, visto que, é possível a isenção de pena para o dependente, se no momento do fato delitivo não possuía capacidade de entendimento do caráter ilícito da ação.
Embora as condutas do crime de tráfico de drogas e porte para consumo pessoal estejam tipificadas em artigos distintos, sendo o primeiro previsto no art 33 e o segundo no art 28 da lei 11. 343/06, tem como semelhança a descrição de alguns verbos incriminadores. No entanto, em relação a punibilidade, são totalmente opostas. Ao traficante a pena impõe o encarceramento. Já ao usuário há a isenção do encarceramento. Desta forma, há complexibilidade ao diagnóstico que intitula um indivíduo como traficante e o outro como usuário, de modo que, tratam-se de delitos autônomos, dignos de serem analisados pelo legislador, com objetividade e precisão, afastando margem de dúvidas.
O legislador utiliza parâmetros de distinção entre traficante e usuários amplos. Está disposto na norma penal em seu §2 do art 28 da lei 11.343/06: “o juiz atenderá a natureza e a quantidade de substância apreendida, ao local e as condições em que se desenvolveu a ação, as circunstâncias sociais e pessoais, bem como a conduta e aos antecedentes do agente”. Além do mais, o art 28 caput, exige que haja a constatação da intenção do agente para destinação específica, no caso a posse da droga para uso próprio (conhecido como dolo especifico). Ao contrário do crime de tráfico, que necessita apenas do dolo genérico, baseado no querer consciente de disseminar a droga, com finalidade lucrativa ou não (ainda que gratuitamente). Diante do exposto, tem-se outro elemento diferenciador.
Para a distinção do porte de drogas para consumo pessoal do tráfico, existem dois sistemas que são utilizados pelos inúmeros ordenamentos jurídicos, sendo eles: sistema da quantificação legal e sistema da quantificação judicial. De acordo com Renato Brasileiro de Lima (2013) o primeiro sistema mencionado acima consiste na fixação de um quantum diário para o consumo próprio, que entenda ser tolerável.
Portanto, o agente que ultrapassar essa quantidade diária, há de se falar em tráfico de drogas, e não do crime de porte de drogas para consumo pessoal. Diferente do sistema anterior, o segundo compete ao juiz averiguar as circunstâncias do caso concreto; este é adotado pelo nosso ordenamento.
Embora o sistema brasileiro tenha adotado o sistema de quantificação judicial, o mesmo é alvo de inúmeras críticas quanto a escolha legislativa, recaindo desse modo a competência da autoridade judiciaria analisar se a droga encontrada com o indivíduo era para o consumo próprio ou destinada ao tráfico. De modo a auxiliar o magistrado, os elementos nos quais diferenciam estão previstos no art 28 §2 da lei de drogas, estes são recobertos de carga subjetiva e valorativa.
Para a existência de determinada norma penal incriminadora, é sabido que deve estar interligada ao princípio da legalidade estrita, no qual assegura que “não haverá crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem cominação legal”, disposto no art 1° do CP. Consectário desse, outros dois princípios, o da taxatividade ou mandado de determinação dos tipos penais, determinam que sejam utilizados termos claros e objetivos na exposição da conduta típica, não aceito tipos penais incertos, obscuro e imprecisos.
Existindo desacordo a esses princípios, consequentemente, ferem-se inúmeras garantias individuais, decorrente do poder de punir do Estado. Uma vez que abre espaço frente à insegurança, à incerteza no tocante ao direito à liberdade, no qual estão sujeitos a decisões judiciais subjetivas. Em meio a falta de norma objetiva, mas sim vaga, destaca César Roberto Bitencourt (2017, p.53).
Uma lei indeterminada ou imprecisa e, por isso mesmo, pouco clara não protege o cidadão da arbitrariedade, porque não implica uma autolimitação do ius puniendi estatal, ao qual se possa recorrer. Ademais, contraria o princípio da divisão dos poderes, porque permite ao juiz realizar a interpretação que quiser, invadindo dessa forma, a esfera do legislativo.
Para definir a destinação da droga, se essa destina-se ao consumo pessoal, o juiz seguirá a norma penal do art 28, §2° da Lei 11. 343/06 que apresenta a seguinte definição: “atenderá à natureza e a quantidade da substância apreendida, ao local e as condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como a conduta e aos antecedentes do agente”. Desse modo observa-se que o legislador de forma excessiva utilizou conceitos sujeitos a complementação valorativa, almejando do magistrado um juízo valorativo para integrar a descrição prescrita no art 28, caput, e do art 33, caput, ambos da da Lei 11.343/06. Em suma, tem-se uma norma escassa de técnica legislativa segura, a qual é incapaz de garantir aos cidadãos a previsibilidade e imparcialidade da conduta estatal perante suas ações.
Diante à peculiaridade dos critérios utilizados por juízes para diferenciar a classificação do crime, com base no art 28, §2°, é necessário que se faça uma análise de modo que:
O primeiro requisito diz respeito a natureza e quantidade da substância apreendida, compondo objeto material do delito; são apenas dois dos critérios a serem analisados, sendo impossível utilizar como fator exclusivo de distinção do tráfico e do porte para consumo pessoal. Mesmo que a quantidade de droga apreendida seja pequena, não necessariamente descaracteriza o tráfico, é necessário a análise de todos os critérios.
O segundo requisito a ser analisado refere-se ao local e condições da ação. Neste será levado em conta a localidade em que o agente foi surpreendido com a droga; se essa é considerada como ponto de disseminação do tráfico, bem como se a substância estava condicionada em pequenas porções para venda, e se o agente portava quantidade alta em dinheiro. No terceiro requisito, será levado em consideração as circunstâncias sociais e pessoais do agente, ou seja, diz respeito a condição financeira do indivíduo. De maneira que, se for apreendida quantidade elevada de droga em poder de pessoa pobre, seria um pressuposto de traficância.
Nesse contexto, a condição financeira baixa, a falta de emprego e até mesmo de ensino fundamental e superior, são componentes associados ao tráfico. Destarte, é comum que usuários sejam caracterizados como traficantes, por serem relacionados a essas circunstâncias de desemprego e impossibilidade de condições para efetuar a compra da droga.
Assim, as classes mais baixas são os alvos principais do sistema punitivo estatal, isso significa que são sempre os principais suspeitos do crime de tráfico. Diferente das classes com maior aquisição financeira, que estão distantes de serem atingidos de acordo com os critérios pré-estabelecidos pela norma penal.
O último critério a ser abordado a respeito da distinção entre usuário e traficante está relacionado a conduta e antecedentes do agente. Segundo Samuel Miranda arruda (2007), ao utilizar os antecedentes criminais para identificação no caso concreto, o legislador ao invés de analisar a conduta típica realizada pelo agente em primeiro plano, faz uma apreciação subjetiva do indivíduo, consagrando uma verdadeira presunção de culpabilidade, o que viria de encontro com o princípio de presunção de inocência.
No entanto, o entendimento doutrinário aborda que este critério seja acatado juntamente com os demais, sendo mais um dos pilares interpretativos a serem usados pelo juiz.
Com a elaboração do artigo foi possível observar duas figuras inseridas na lei 11.343/2006, sendo eles o usuário e traficante. O estudo abordou, prioritariamente, os parâmetros utilizados para distinção de ambas condutas praticadas pelos agentes, os mesmos estão elencados no artigo 28 e artigo 33, da lei mencionada.
Após a análise dos parâmetros contidos na norma que são utilizados pelos juízes para estabelecer o crime praticado pelo agente, concluímos a alta seletividade e natureza subjetiva inserida no dispositivo. Dessa maneira, não existe segurança no tocante ao enquadramento do fato à norma.
A existência de seletividade do ordenamento jurídico pode ser observada ao fazer uma leitura mais aprofundada na letra da lei, visto que, os critérios estabelecidos pelo legislador são instrumentos de criminalização a um grupo social determinado. A norma penal de drogas é aplicada pelos órgãos judiciais de forma heterogênea, de acordo com o indivíduo que praticou o delito. Dessa maneira, há uma tendência em imputar o delito de tráfico de drogas, apenas quando estão diante de agentes estereotipados pelo meio jurídico e social
Posteriormente, notou-se que o conteúdo do art 28, §2º da lei 11.343/2006, possui inspirações no direito penal do autor, ao trazer circunstâncias pessoais e sociais, e também os antecedentes do agente, sendo esses alguns dos critérios para estabelecer o delito. Desta forma, a repressão penal existente na norma incide tão somente na vida pessoal e na personalidade do indivíduo, ao invés de priorizar o fato praticado.
É válido ressaltar, que a intenção do legislador quando aboliu a pena de prisão para a conduta do usuário de drogas, substituindo por penas alternativas, procurou garantir tratamento na esfera da assistência social, por meio da educação e prevenção, distanciando-o da repressão do estado. Em decorrência das alterações legislativas, era esperado que o número de prisões decorrentes do crime de tráfico de drogas, teria seus índices relativamente inferiores.
Entretanto, o fato de a lei não possuir parâmetros específicos, certos e objetivos para diferenciar os delitos do art 28 e do art 33, possibilita o efeito contrário do previsto. Logo, há incessantes ocorrências de condenações baseadas na discricionariedade dos juízes, estes que sentenciam em razão do estereótipo criado pela sociedade do traficante.
Posto isto, é imprescindível a elaboração de critérios legais que sejam objetivos e claros, para que assim, a distinção dos tipos penais presentes nos artigos 28 e 33, respectivamente, seja integralmente incluído na lei em sua formalidade. Com o propósito de garantir a seguridade nas decisões judiciais que circundam os delitos da legislação abordada referente a drogas.
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Graduanda em Direito pela Universidade Brasil, Campus de Fernandópolis.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARTA, Julia Maria Casali. Lei de drogas: dificuldades em estabelecer quem é o usuário e quem é o traficante Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 abr 2019, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52836/lei-de-drogas-dificuldades-em-estabelecer-quem-e-o-usuario-e-quem-e-o-traficante. Acesso em: 23 dez 2024.
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