ANDRÉ DE PAULA VIANA[1]
(Orientador)
RESUMO: O estudo em alusão explicita a decisão do Supremo Tribunal Federal no tocante à restrição do foro por prerrogativa de função, relativamente aos parlamentares federais. O instituto jurídico será aplicado quando envolver a prática de infrações penais por tais autoridades cometidas durante e em razão do cargo exercido. Este estudo se propõe a analisar alguns aspectos introdutórios acerca da prerrogativa funcional, sendo inserido um explicativo histórico, além de explorar os pontos relativos à limitação ao alcance e o escopo do foro funcional, alicerçado no julgamento da questão de ordem na ação penal 937/RJ, decidida pela Suprema Corte. O intuito do artigo em tela é pertinente para compreender os efeitos jurídicos da decisão do Pretório Excelso, isso porque, durante as pesquisas no âmbito doutrinário e jurisprudencial, observou-se que apesar do entendimento restringir a parlamentares federais, os demais Tribunais brasileiros passaram a acolher do mesmo entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal, simetricamente aplicando-se a Governadores e Deputados Estaduais. Traz-se também breves considerações sobre a PEC 10/2013, projeto que tramita no Congresso Nacional objetivando extinguir com o foro por prerrogativa de função no ordenamento jurídico brasileiro no tocante as infrações penais comuns, resguardando apenas os chefes dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.
Palavras-chave: Prerrogativa, Tribunal, Competência, Juízes, Autoridades.
ABSTRACT: The study alludes explicitly to the decision of the Federal Supreme Court regarding the restriction of the forum by prerogative of function, relative to federal parliamentarians. The legal institute will be applied when it involves the practice of criminal infractions by such authorities committed during and due to the position exercised. This study proposes to analyze some introductory aspects about the functional prerogative, inserting a historical explanatory, besides exploring the points related to the limitation to the scope and the scope of the functional forum, based on the judgment of the point of order in the criminal action 937 / RJ , decided by the Supreme Court. The purpose of the article on screen is pertinent to understand the legal effects of the decision of the Praetorium Excelso, because during the research in the doctrinal and jurisprudential scope, it was observed that despite the understanding restrict federal parliamentarians, the other Brazilian Courts began to welcome of the same understanding signed by the Federal Supreme Court, symmetrically applying to State Governors and Deputies. Brief considerations are also made on PEC 10/2013, a bill that is being processed in the National Congress with a view to extinguishing the jurisdiction of the Brazilian legal system in relation to common criminal offenses, protecting only the heads of the Legislative, Executive and Judicial branches.
Key Words: Prerogative, court, competence, judges, authorities.
Sumário: Introdução. 1. Contextualização Histórica da Prerrogativa de Função no Ordenamento Jurídico Brasileiro. 2. Conceito. 3. Terminologia: Foro por Prerrogativa de Função ou Foro Privilegiado? 4. Critério Fixador de Competência. 5. Legislação. 6. Alcance Temporal da Prerrogativa de Função. 6.1. Termo Inicial. 6.2. Prática da Infração Penal Antes do Exercício Funcional. 6.3. Prática da Infração Durante o Exercício Funcional. 7. A Necessária Mudança de Entendimento do Supremo Tribunal Federal. 7.1. Como fica o Sentido e Alcance da Prerrogativa e o Alcance da Prerrogativa de Função com essa Mudança de Entendimento?. 7.2. Marco Temporal em que se Prorrogará a Competência. 8. Todas as Autoridades com Prerrogativa serão Atingidas pela Restrição?. 8.1. PEC 10/2013. Considerações Finais. Referências.
A prerrogativa de função desperta interessante debate no âmbito doutrinário e jurisprudencial, ainda mais com promulgação da Constituição Federal de 1988, maior asseguradora do princípio democrático dentre todas as cartas políticas do Brasil. Isso porque, estabelece em seu artigo 5º a igualdade de tratamento perante a lei, sendo vedadas discriminações e diferenciações entre os povos.
Por outro lado, prevê a Carta Magna que determinadas pessoas, ocupantes de alta relevância pública, tais como Presidente e Vice da República, Deputados Federais e Senadores, Juízes, Desembargadores e Membros do Ministério Público, serão processados e julgados diretamente por um tribunal e não por juízes de primeiro grau de jurisdição, em decorrência da função pública desempenhada,de modo a garantir aos julgadores maior autonomia e independência das críticas sociais que poderiam influenciar o órgão julgador durante trâmite processual.
Ocorre que a Constituição Federal, pluralizou de modo excessivo a quantidade de autoridades detentoras do foro especial, ao considerá-las como de ampla influência pública, tornando-se uma constituição aristocrática, ou seja, indiretamente, acabou por privilegiar determinados ocupantes de mandatos políticos, discrepando-se da forma de tratamento isonômico entre os povos, submetendo determinadas classes, que são, na maioria dos casos, cargos políticos, a serem processadas e julgadas diretamente perante os tribunais na prática de crimes comuns, pois, mesmo que cometam o delito sem relação com a função ou, ainda, quando praticam o delito antes do exercício funcional, após serem investidos na função, a competência automaticamente se desloca ao tribunal superior.
Para evitar as alterações de foro e para restringir o sentido da norma constitucional, adequando-a a sua real finalidade de garantia ao cargo e não um privilégio subjetivo a seu ocupante, a Suprema Corte limitou o foro especial ao dar nova interpretação ao enunciado normativo do artigo 105, inciso I, “a”, da Constituição Federal, o qual estabelece qual o sentido e o alcance atribuído à prerrogativa funcional.
O presente estudo se baseia nessa decisão do Supremo Tribunal Federal devido ao impacto no mundo jurídico, buscando compreender como funcionava e como será a partir de então a aplicação do foro por prerrogativa de função com as novas restrições que atingiram especificamente parlamentares federais no tocante à prática de infrações penais, destacando o momento e em que ocasiões se aplicarão o instituto.
Nesta seara, o foco principal abordado e o que se discute no mundo jurídico atualmente, é a possibilidade ou não de estender a restrição para as demais autoridades que possuem prerrogativa funcional, além de abordar aspectos relevantes da PEC 10/2013, aprovada em primeiro turno no Senado Federal, que extingue a prerrogativa de função a todas as autoridades brasileiras, exceto aos presidentes dos poderes da república.
A origem da prerrogativa de função no ordenamento jurídico brasileiro não ocorreu com a promulgação da Constituição Federal de 1988, pelo contrário, desde a primeira Carta Imperial de 1824, já havia passagens da prerrogativa para algumas autoridades que governavam o país. A partir de então, todas as Constituições posteriores a Carta Imperial passaram a prever a prerrogativa de função em seus textos, algumas limitando a garantia a poucas autoridades, outras, por sua vez, estendendo a prerrogativa a uma quantidade maior de ocupantes de cargos e funções.
De início, previa a Carta Imperial de 1824, ainda sob o regime monarca do Imperador Dom Pedro I, alguns verdadeiros privilégios à figura do próprio Imperador, tendo em vista ser tratado como agente intocável, não sendo responsabilizado por qualquer conduta (artigo 99). Ademais, no tocante às infrações comuns, previa a Carta Imperial que o Senado detinha a competência de julgar os delitos comuns praticados por Membros da Família Imperial, Ministros e Conselheiros de Estado, os próprios Senadores e Deputados, durante a legislatura (artigo 47, inciso I). Ainda, ao Supremo Tribunal de Justiça, competia conhecer dos delitos praticados por seus próprios Ministros, além dos Ministros das Relaçõese os Presidentes das Províncias (artigo 164, inciso II). (IMPÉRIO DO BRAZIL, 1824).
Já no período da Res Pública, previa a Constituição de 1891, a prerrogativa de função unicamente ao Presidente, o qual apenas seria responsabilizado criminalmente após aprovação da Câmara pelo Supremo Tribunal Federal.
Na Constituição Federal de 1934, é possível identificar uma maior previsão de autoridades com foro por prerrogativa. Desse modo, a competência para processar e julgar o Presidente da República passou a ser do Supremo Tribunal Federal, no tocante aos delitos criminais. Ademais, competia ao citado órgão, a atribuição de conhecer das infrações penais praticadas pelos seus Ministros, os Ministros de Estados, Procurador Geral da República, dos juízes dos tribunais federais e estaduais (artigo 76). (BRASIL, 1934).
A Carta Constitucional de 1937 expandiu ainda mais as hipóteses de cargos com prerrogativa de função, inovando, ademais, ao prever essa possibilidade às constituições estaduais de previrem o foro funcional aos ocupantes de cargos públicos estaduais referentes aos delitos criminais comuns.
Alterando novamente a competência para processar e julgar o Presidente da República nos crimes comuns, a Constituição de 1946, delegou ao Supremo Tribunal Federal esta atribuição, após aprovação por maioria absoluta da acusação pela Câmara.
Além do Chefe do Executivo, competia a Corte Suprema, a competência originária para conhecer dos crimes praticados por seus Ministros, Procurador Geral da República, Ministros de Estados e dos Tribunais de Contas, magistrados dos tribunais e os Chefes de Missão Diplomática (artigo 101, 1, “a”, “b” e “c”). (BRASIL, 1946).
Na Constituição de 1967, manteve a competência do Supremo Tribunal Federal para processar e julgar o Presidente da República, quando da prática de crimes comuns, após a aprovação da acusação pela Câmara pelo voto de dois terços dos seus membros. aos demais ocupantes de cargos com prerrogativa funcional previstos na Constituição de 1946, a Carta Política de 1967 manteve o mesmo tratamento. (BRASIL, 1967).
A maior inovação quanto aos cargos que detinham prerrogativa de função nos ordenamentos anteriores, ocorreu com a Emenda Constitucional número 01 de 1967, prevendo a prerrogativa aos Deputados Federais e Senadores que foram submetidos à competência originária do Supremo Tribunal Federal quando do cometimento de infrações penais comuns.
Por sua vez, a vigente Constituição Federal de 1988, recebeu um tratamento diferenciado pelo legislador constituinte originário, ao prever uma imensidão de cargos e funções públicas com prerrogativa de função, além de manter a competência das constituições estaduais para estabelecerem ocupações públicas com prerrogativa.
Desse modo, verifica-se atualmente a exacerbada quantidade de autoridades que detém o foro por prerrogativa de função, fulminando os tribunais superiores, com destaque ao Supremo Tribunal Federal, de ações penais em curso relacionadas aos crimes comuns praticadas pelos ocupantes desses cargos, com a atenção voltada aos parlamentares, diante dos rotineiros escândalos que mancham a moral pública administrativa.
Entende-se como foro por prerrogativa de função, a proteção dada pelo legislador a alguns cargos públicos ocupados por certas autoridades de serem submetidas diretamente a apreciação dos Tribunais pela prática de delitos no âmbito penal ou de responsabilidade no âmbito da atividade pública, em razão de relevância da função desempenhada.
Desse modo, conceitua Tourinho Filho que “A competência por prerrogativa de função consiste no poder que se concede a certos Órgãos superiores da Jurisdição de processar e julgar determinadas pessoas”. (TOURINHO FILHO, Fernando, 2010, p. 315).
Para o ilustre doutrinador Renato Brasileiro de Lima, a garantia do foro especial:
[...] tem como matriz o interesse maior da sociedade de que aqueles que ocupam certos cargos possam exercê-la em sua plenitude, com alto grau de autonomia e independência, a partir de que seus atos, se eventualmente questionados, serão julgados de forma imparcial por um Tribunal. (LIMA, Renato, 2017, p. 283).
Portanto, a prerrogativa de função é um mecanismo que designa situações especiais de processo e julgamento de determinadas funções públicas, estatuindo que se sejam submetidas diretamente ao órgão julgador de hierarquia superior competente quando praticam delitos na esfera penal. A natureza jurídica da prerrogativa é salvaguardar o livre exercício da função pública de interferências externas que possam prejudicar a eficiência da atividade estatal.
Discorrendo sobre o tema, Flávio Martins diferencia foro por prerrogativa e foro privilegiado dispondo que “O privilégio diz respeito à pessoa, é algo personalíssimo e renunciável. Já a prerrogativa diz respeito à função exercida, sendo irrenunciável, portanto”. (MARTINS, Flávio, 2017, pg. 1385).
E acrescenta o ilustre professor Aury Lopes Jr., ao ensinar que “Algumas pessoas por exercerem determinam funções, têm a prerrogativa (não é um privilégio, mas prerrogativa funcional) de serem julgadas originalmente por determinados órgãos”. (LOPES JR., Aury, 2017, pg. 282).
Desse modo, finalidade da prerrogativa funcional é garantir a imparcialidade de julgamento das influências sociais e políticas, garantindo uma maior independência no exercício do cargo sendo, pois, de caráter objetivo e decorrente de lei.
Entretanto, quando se denomina foro privilegiado a ideia que surge é de verdadeiro privilégio à pessoa, ou seja, é critério subjetivo, levando a ideia de superioridade das pessoas que dele desfrutam, afrontando claramente o regime democrático e o tratamento isonômico previsto constitucionalmente.
O foro por prerrogativa de função, além de ser um instituto de proteção ao cargo público, funciona também como critério fixador de competência assegurado não só na legislação processual penal, entre os artigos 69, inciso VII, e artigos 84, 85, 86 e 87, como também a Constituição Federal estabelece um rol de autoridades que serão submetidas diretamente aos tribunais superiores e de hierarquia maior ao do juízo de primeiro grau.
Dessa forma o foro especial “pode alterar fundamentadamente a eleição do foro competente para apurar a infração cometida”. (NUCCI, Guilherme, 2015, p.266). Ademais, a prerrogativa de função estabelece a competência originária para o processo e julgamento em determinada instância diversa do juízo de primeiro grau (MARCÃO, Renato, 2015, p. 317).
Ensina Renato Brasileiro de Lima (2017, p.493) que, caso a autoridade detenha a prerrogativa funcional, “pouco importa o local onde o crime foi cometido, recaindo a competência sobre o Tribunal ao qual se encontrar vinculada a respectiva autoridade”.
Assim, se determinada autoridade que detêm a prerrogativa funcional praticar uma infração penal, em qualquer que seja o lugar localizado no território brasileiro, será julgada pelo Tribunal a qual está vinculado, isso, porque, quando se fala em prerrogativa de função, a competência será originária de um tribunal colegiado, excluindo a regra processual, segundo a qual, a competência no âmbito processual penal, será determinada pelo lugar da infração.
Vale mencionar ainda a força atrativa do foro por prerrogativa de função nos crimes dolosos contra a vida, que segundo determinação constitucional, o ocupante do mandato ou cargo público que comete um crime doloso contra a vida e que tenha previsão de foro funcional na Constituição Federal, não será submetido a júri popular e sim diretamente ao tribunal a qual está vinculado, salvo se a prerrogativa estiver prevista em Constituição Estadual, ocasião em que prevalecerá a competência do júri, por ter previsão hierárquica superior, entendimento consolidado na Súmula Vinculante número 45 do Supremo Tribunal Federal.
A Constituição Federal prevê a garantia da prerrogativa funcional às infrações penais comuns e aos crimes de responsabilidade. Neste trabalho o tema limita-se ao estudo aos detentores do foro especial no tocante aos crimes comuns, incluindo, neste caso, os delitos eleitorais e militares.
Por regra, o rol de cujos cargos e funções públicas possuem a garantia do foro funcional taxadas nos artigos 29, inciso X; art. 53, § 3º; art. 86, § 1º, I; art. 96, III; art. 102, inciso I, “b” e “c”; art. 105, inciso I, “a”; art. 108, inciso I, “a”, todos da Constituição Federal de 1988.
Desse modo, por expressa disposição constitucional, são cargos e funções que possuem a prerrogativa funcional na esfera criminal:
No Supremo Tribunal Federal:
Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I - processar e julgar, originariamente:
(...)
b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República;
c) nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no art. 52, I, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente. (...). (BRASIL, 1988).
No Superior Tribunal de Justiça:
Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
I – processar e julgar, originariamente:
a) nos crimes comuns, os Governadores dos Estados e do Distrito Federal, e, nestes e nos de responsabilidade, os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais. (...). (BRASIL, 1988).
Nos Tribunais Regionais Federais, no tocante aos crimes comuns, competem:
Art. 108. Compete aos Tribunais Regionais Federais:
I – processar e julgar, originariamente:
a) os juízes federais da área de sua jurisdição, incluídos os da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho, nos crimes comuns e de responsabilidade, e os membros do Ministério Público da União, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral. (...). (BRASIL, 1988).
Ressalva se faz com relação ao prefeito, cuja prerrogativa de função foi prevista de modo genérico no artigo 29, inciso X, da Constituição Federal, determinado que seja submetido à apreciação do Tribunal de Justiça no tocante a prática de delitos criminais comuns.
Esse entendimento está consolidado na súmula 704 do Supremo Tribunal Federal ao dispor que: “A competência do tribunal de justiça para julgar prefeitos restringe-se aos crimes de competência da justiça comum estadual; nos demais casos a competência originária caberá ao respectivo tribunal de segundo grau”.
Assim, poderá o prefeito ser julgado pelo Tribunal Regional Federal, nas infrações penais federais ou, pelo Tribunal Regional Eleitoral por crimes eleitorais ou, ainda, pelo Superior Tribunal Militar, por crimes militares.
O início da prerrogativa de função ocorre a partir do momento em que a autoridade pública é investida ou diplomada respectivamente no cargo público, função ou mandato político.
Em relação aos parlamentares federais, prevê a Constituição Federal que a prerrogativa se inicia a partir da expedição do diploma, sendo assim, a prerrogativa aos Deputados Federais e Senadores antecede a posse, conforme dispõe o artigo 53, §1º da Carta Republicana:
Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos:
§ 1º Os Deputados e Senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal. (...). (BRASIL, 1988).
Por conseguinte, o fim da prerrogativa se dá a partir do momento em que a autoridade deixa de ocupar o cargo ou função pública, entretanto, em alguns casos, se o representante político renunciar ao mandato utilizando-se de meios ardilosos, visando às modificações de competências, com claro intuito protelatório e como meio de eximir-se da responsabilidade penal, entende a jurisprudência no sentido prorrogar a competência do Tribunal para seguir no julgamento da causa.
Se o ocupante do cargo público ou eletivo comete a infração penal antes de iniciar a função “a competência será automaticamente alterada a partir do momento em que o acusado ingressar no exercício da função” (LIMA, Renato, 2017, p.485), ou seja, se um sujeito comum pratica um delito, e durante o processo no juízo de primeiro grau seja diplomado como Deputado Federal, os autos serão imediatamente remetidos ao Supremo Tribunal Federal, em razão do foro especial.
Por outro lado, com o término do exercício funcional, cessa a prerrogativa do agente e “eventuais processos existentes seriam imediatamente remetidos ao juízo de primeiro grau, sem prejuízo da validade dos atos até então praticados.” (TAVORA, N. & ALENCAR, R.R.; 2017, p. 430). A regra se estende tanto para autoridades políticas como para autoridades públicas, tais como magistrados e membros do Ministério Público.
Nesse sentido, fala-se em regra da atualidade, pela qual as autoridades públicas apenas continuarão a ter direito à prerrogativa de função enquanto viger o mandato, em outras palavras, apenas terá o direito ao foro especial enquanto estiver exercendo a função pública. Encerrado o mandato ou cargo público, cessa a prerrogativa funcional e o caso será remetido ao órgão judicial competente para prosseguimento do feito, permanecendo válidos os atos praticados até então.
Todavia, entende a jurisprudência que se o Supremo Tribunal Federal já tiver dado início ao julgamento do processo, a competência se prorrogará, mesmo o mandato do congressista ou a função pública exercida tenha se encerrado.
Ensina JR., LOPES, Aury (2017, p. 283) que: “Se o delito e? praticado durante o exercício do mandato eletivo ou depois de devidamente investido no cargo que esta? exercendo, o agente tem a prerrogativa, logo, será julgado no respectivo tribunal”. Por outra via, se deixar de ocupar o cargo, cessa a prerrogativa e os autos são remetidos ao juízo de primeiro grau.
Entretanto, adotava a Suprema Corte a regra da contemporaneidade que, segundo dispunha a Súmula 394 do Supremo Tribunal Federal:
Súmula 394: Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cassação daquele exercício.
Diante dessa orientação, o agente continuaria detendo o foro especial, mesmo após deixar o cargo, desde que o delito fosse praticado durante e em razão da função ocupada, essa orientação foi consignada como regra da contemporaneidade.
Em momento posterior, o próprio Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Inq-QO/SP nº 687 (Rel. Min. Sydney Sanches. DJ 09/11/2001), cancelou a mencionada súmula e determinou que após o término do exercício funcional encerrasse-se o foro especial.
O legislador ordinário, visando restabelecer novamente a “perpetuatio jurisdictionis” para os detentores da prerrogativa de função, editou a Lei nº 10.628/02, a qual alterou o artigo 84 do CPP, possibilitando que o agente continuaria fazendo jus ao foro especial mesmo com o término do exercício funcional.
Novamente a Suprema Corte foi chamada para apreciar o tema, ocasião em que declarou a inconstitucionalidade do dispositivo por violação a preceito constitucional, tendo em vista que o legislador ordinário não pode legislar sobre matéria constitucional.
Ademais, cabe salientar que, caso o ocupante do cargo com prerrogativa funcional venha a perder o mandato ou cargo público, as infrações penais cometidas após o exercício da função, não serão submetidas à competência originária dos tribunais. Nesse sentido foi editada a Súmula nº 451 do Supremo Tribunal Federal, a qual informa que “A competência especial por prerrogativa de função não se estende ao crime cometido após a cessação definitiva do exercício funcional”.
Verifica-se que o foro por prerrogativa de função foi alvo de vários debates e mudanças de entendimento durante a vigência da Constituição Federal de 1988, vezes dando interpretação abrangente, de modo a confundir os institutos de imunidade parlamentar com impunidade, violando demasiadamente os princípios constitucionais da igualdade e, por outro lado, sendo restringida a extensão à prerrogativa de função, assim, até então, o entendimento sedimentado era estabelecido que, enquanto o ocupante do mandato ou cargo público exercer a função continua com o direito à prerrogativa de foro, entretanto, ao deixar o cargo, cessará automaticamente à prerrogativa.
O foro por prerrogativa de função foi estabelecido diante do fundamento de que para o exercício de determinados cargos públicos é necessário uma garantia maior de autonomia, desse modo, os ocupantes dos mais elevados cargos dos poderes legislativo, judiciário e executivo, para o bom desempenho da função, devem ser submetidos à apreciação de um órgão colegiado diante da prática de infrações penais.
Assim, um Deputado Federal, por exemplo, não pode ser processado e julgado por um juiz de primeiro grau quando praticar um crime comum, que poderia ser cometido por qualquer pessoa.
Há posição na doutrina de que o foro por prerrogativa de função não interfere no princípio da isonomia porque foi previsto no texto constitucional pelo constituinte originário.
Todavia, há posicionamentos, inclusive sustentado pelo Ministro Roberto Barroso, de que fere a isonomia tratar um cidadão que pratica um crime comum e que será processado e julgado por um juiz de primeiro grau e, por ventura vier a ser eleito como parlamentar ocupando um cargo que possuí o foro funcional, seu processo deverá ser automaticamente direcionado ao tribunal colegiado, enfatiza-se, por um delito que qualquer cidadão leigo poderia cometer.
Verifica-se que a interpretação no tocante a abrangência do foro por prerrogativa de função é ampla, não havendo sustentação sólida para a garantia ser estendida a tantos cargos e aplicada para delitos comuns, inclusive contravenções e crimes de menor potencial ofensivo.
Para harmonizar o instituto da prerrogativa de função com os princípios da igualdade e republicano, o Ministro Luís Roberto Barroso suscitou questão de ordem durante o trâmite da Ação Penal número 937, para que o plenário deliberasse sobre a mudança de interpretação no que toca ao alcance do foro funcional, passando a adotar uma interpretação mais restritiva e adequar a garantia para o real e efetivo exercício da função.
Submetida a julgamento, o plenário do Supremo Tribunal Federal acolheu a tese do Ministro Relator Roberto Barroso e sedimentou o seguinte entendimento:
Ementa: Direito Constitucional e Processual Penal. Questão de Ordem em Ação Penal. Limitação do foro por prerrogativa de função aos crimes praticados no cargo e em razão dele. Estabelecimento de marco temporal de fixação de competência. I. Quanto ao sentido e alcance do foro por prerrogativa [...]. 6. Resolução da questão de ordem com a fixação das seguintes teses: “(i) O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas; e (ii) Após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o vício. [...].(AP 937 QO, Relator(a): Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 03/05/2018, Acordão Eletrônico, DJe-265, Divulg. 10-12-2018, Public. 11-12-2018).
Diante desta mutação constitucional restringindo o alcance do foro por prerrogativa de função, concretiza-se o fundamento de que o foro funcional não é um privilégio ao ocupante do cargo e, ainda, para evitar que haja conflito entre normas constitucionais que de um lado prevê o princípio da igualdade e de outro, normas que garantem uma proteção a mais aos detentores de determinados cargos públicos, a Suprema Corte adequou os institutos nos limites de sua competência, visto que, para que haja a extinção ou diminuição de grande parte dos cargos submetidos ao foro funcional, apenas por Emenda Constitucional esta hipótese poderia ser concretizada.
As normas que previam o foro por prerrogativa de função, com o transcorrer do tempo, foram sendo interpretadas de modo extensivo, admitindo que a imunidade relativa alcançasse todas as infrações penais cometidas pelos detentores dos cargos protegidos, situações nas quais contrariavam os princípios da igualdade e moralidade administrativa, obstando a eficiência da justiça.
Visando evitar as constantes modificações de foro, o Supremo Tribunal Federal deu nova interpretação às normas que estabelecem a prerrogativa funcional. Nessa esteira, utilizou-se da interpretação restritiva, também chamada de redução teleológica, adequando a norma para aplica-la aos delitos cometidos durante o exercício do cargo e que tenha relação com o mesmo.
Consequentemente, limitou o sentido e o alcance da prerrogativa de função aos parlamentares, com fundamento no princípio republicano e na isonomia, tendo em vista estas autoridades utilizavam, na grande maioria dos casos, da prerrogativa como espécie de escudo para a prática de delitos.
De agora em diante, se o parlamentar praticar uma infração penal antes do início do mandato, ou seja, se comete o delito antes da diplomação, mesmo que diplomado, será processado e julgado pelo juízo competente de primeiro grau. Do mesmo modo, se praticar um crime durante o mandato, mas sem vinculação com o cargo, também não terá direito a prerrogativa e o julgamento prosseguirá perante o juízo monocrático.
Isso porque, pelo novo entendimento, o congressista só será julgado pelo Supremo Tribunal Federal se cometer o delito durante o mandato e em razão da função desempenhada, não podendo se valer do foro para acobertar toda e qualquer infração praticada a qualquer tempo.
Para evitar o constante deslocamento de competências entre as instâncias do poder jurisdicional e para assegurar o princípio da identidade física do juiz, decidiu a Suprema Corte que o momento processual em que se fixará a competência do Tribunal para julgar os detentores da prerrogativa especial, será o fim da instrução processual, ou seja, o ato processual de apresentaçãodas alegações finais.
Sendo assim, se a autoridade deixou o cargo ou mandato antes da apresentação das alegações finais, a competência será deslocada do Tribunal para o juízo de primeiro grau competente. Todavia, se por outro motivo deixou o cargo após o despacho que determinou a exibição das alegações finais, a competência do Tribunal se prorroga e o antigo ocupante do cargo será julgado pelo órgão colegiado.
O entendimento é plausível, tendo em vista que o juiz ou Tribunal, conforme o caso poderá acompanhar toda a marcha processual, garantindo um processo mais célere, justo, garantidor e principalmente, imparcial, respeitando o princípio constitucional do juiz natural.
A decisão do Supremo Tribunal Federal foi explícita em restringir o foro aos congressistas, ou seja, Senadores e Deputados Federais.
Entretanto, no julgamento do Inq. 4703/QO/DF, o Ministro Relator Luiz Fux defendeu que a tese apresentada na AP 937/RJ, poderá atingir as demais autoridades políticas, tais como Ministros de Estados, governadores e prefeitos. (Inq-QO 4703, Relator(a): Min. LUIZ FUX, julgado em 12/06/2018, publicado em 01/10/2018, Primeira Turma),
Seguindo esse entendimento, Superior Tribunal de Justiça e demais Tribunais brasileiros estão limitando o alcance da prerrogativa de função somente para os acusados detentores de cargos políticos com prerrogativa funcional, que praticam crimes durante e em razão do exercício funcional.
Com relação aos desembargadores, promotores e juízes de direito, ainda não há unanimidade na jurisprudência acerca da aplicação da restrição do foro a essas autoridades, tendo em vista a grande possibilidade comprometer a imparcialidade de julgamento.
Desse modo, o tema deve ser detalhadamente debatido e, para maior segurança jurídica, ser regulamentado por meio de Emenda Constitucional, a qual já há tramitação de projeto que tende a ser ainda mais radical que a decisão do Supremo Tribunal Feral.
Trata-se da PEC 10/2013, já aprovada no Senado Federal e submetida à apreciação na Câmara dos Deputados.
A proposta sugere extinguir o foro funcional a todas as autoridades brasileiras que cometerem infrações penais, sejam políticas ou aqueles cargos públicos investidos por concurso público, tais como juízes e promotores, isentando apenas ao Presidente da República, do Senado e da Câmara dos Deputados.
No mesmo sentido, a proposta visa proibir a criação de foro por prerrogativa no futuro além de permitir que parlamentares sejam presos se condenados em segunda instância.
Assim como defendeu o Ministro Roberto Barroso, a proposta está fundamentada na posição que defende que o foro por prerrogativa de função é contra o princípio da igualdade no tocante à prática de delitos no âmbito criminal, ou seja, aqueles que qualquer pessoa pode cometer.
Ademais, levou-se em consideração a deficiência dos tribunais superiores, em especial o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, que possuem centenas de ações penais em curso referentes a infrações criminais cometidas por ocupantes de cargos públicos, em lidar com toda a marcha processual, visto não estarem plenamente preparados para atenderem demandas que fogem de suas competências primordiais, acarretando em não raros casos de prescrição.
Como visto, o foro por prerrogativa de função no ordenamento jurídico brasileiro existiu desde a primeira Constituição, neste caso, como verdadeiro privilégio a pessoa do Imperador, tendo em vista a adoção do estado absolutista.
A partir de então, todas as Constituições posteriores previram, outras em menor quantidade, outras com um número já elevado, de cargos com prerrogativa de função, até que, em 1988, com a promulgação da atual Constituição Federal, conhecida por ser a mais democrática de todas, contemplando com um dos seus princípios basilares, o princípio republicano e da igualdade entre os povos.
Todavia, ocorre que a mesma Constituição republicana, previu, de modo exacerbado, uma imensidão de cargos com prerrogativa de função, muito deles, desprovido da importância na política social, econômica e jurídica ao país, dando ao intérprete, deste modo, uma maior amplitude quando da interpretação do alcance do instituto da prerrogativa de função.
Desse modo, como o passar do tempo, inúmeras manobras legislativas foram feitas, com o fim de fugir da responsabilidade penal dando causa, na grande parte dos casos, a prescrição, devido a morosidade do judiciário, especificamente no tocante aos tribunais superiores, já que ainda não há estrutura suficiente para lidarem com o conhecimento de ações penais desde o início, além disso, diante da complexidade dos casos envolvendo escândalos políticos, o processo penal tornava-se ainda mais lento, tornando o judiciário inseguro e ineficiente.
Com isso, surgiram alguns entendimentos jurisprudenciais e outras teorias na tentativa de limitar o alcance da prerrogativa de função e, em contrapartida, manobras legislativas com a criação de leis para fazer do instituto em comento, um verdadeiro escudo face à responsabilidade penal pelos delitos praticados por detentores do foro funcional.
Assim, diante da crise que assola o Poder Judiciário e na lentidão dos processos que correm no Supremo Tribunal Federal, este mesmo órgão resolveu dar início a restrição ao alcance da prerrogativa de função, na tentativa de harmoniza-lo com o princípio republicano e da igualdade entre os povos.
Neste diapasão, a Suprema Corte interpretou o instituto de forma restritiva, consolidando o entendimento de que só haverá a prerrogativa de função ao parlamentar que cometer o ilícito penal durante o mandato e em razão dele, logo, não é qualquer crime e não será a qualquer momento que o detentor do mandato eletivo fará jus ao instituto.
Ademais, verifica-se que a decisão do Supremo Tribunal Federal, limitou-se aos parlamentares, todavia, os demais tribunais superiores do país, seguiram o entendimento da Suprema Corte e passaram a utiliza-lo para outros cargos detentores de mandato eletivo.
Mais outro ponto positivo e que segue em tramitação no Congresso Nacional, é a PEC 10/2013, o qual se aprovado, extinguirá com o foro por prerrogativa de função do ordenamento jurídico brasileiro, com ressalva de alguns cargos, como é o caso do Presidente da República.
Com isso, verifica-se que a decisão do Supremo Tribunal Federal foi um ponto de partida para tornar tanto deputados como cidadãos comuns em pé de igualdade, resguardando tanto o princípio da igualdade, como o princípio da identidade física do juiz, ou seja, evitará a troca de instâncias, trará a possibilidade do Poder Judiciário ser mais célere nos processos criminais relativos a parlamentares que praticam delitos comuns e, até que seja aprovada a PEC 10/2013, restringirá o alcance dos inúmeros cargos detentores da prerrogativa de função.
REFERÊNCIAS
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[1] Graduado em Direito. Pós Graduação Lato Sensu em: O Processo e o Direito Civil sob a Ótica da Constituição Federal de 1.988 e da Lei 10.406/2002. Pós Graduação Stricto Sensu em Ciências Ambientais, todos pela Universidade Camilo Castelo Branco. Pós-Graduado Lato Sensu em Direito Médico pela UNIARA. Docente no curso de Direito, Docente e Supervisor do Módulo Responsabilidade Profissional no Curso de Medicina, ambos pela Universidade Brasil - Fernandópolis-SP. Advogado inscrito na OAB/SP sob n. 236.293, com atuação profissional em Direito Penal e Direito Médico. Avaliador do INEP (Instituto Nacional de Educação e Pesquisa Anisio Teixeira). Membro da Comissão de Cultura e Eventos da 63 Subseção de Jales da OAB/SP.
Bacharelando em Direito pela Universidade Brasil - Campus Fernandópolis - SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Rafael de Souza. O alcance da prerrogativa de função com a nova decisão do STF Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 abr 2019, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52840/o-alcance-da-prerrogativa-de-funcao-com-a-nova-decisao-do-stf. Acesso em: 23 dez 2024.
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