RESUMO: O artigo se estrutura em torno da construção teórica de Durkheim sobre a funcionalidade do desvio no corpo social. A pesquisa se situa no nível exploratório, construída a partir da revisão bibliográfica da teoria estrutural-funcionalista aplicada ao estudo do crime e da sanção do Estado. Na primeira parte, apresenta-se a criminologia positivista e a obra de Gabriel Tarde como primeiro ponto de contraposição à ideia de delito como um dado ontológico. Na segunda etapa, os conceitos básicos da obra de Durkheim são explorados para entender a teoria sociológica que afasta do delito a ideia de deficiência biológica ou genética e, ainda, traz repercussões no exercício do poder punitivo pelo Estado. Ao fim, compreende-se a contribuição de Durkheim à atual criminologia, sem prejuízos das superações teóricas que se seguiram mas que extravasam a delimitação do objeto de pesquisa.
PALAVRAS-CHAVE: Crime. Teoria funcionalista. Durkheim. Limites da pena.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Os precedentes da teoria durkheimiana 3. A despatologização do desvio e os limites da punição. 4. Considerações finais. 5. Referências.
1 INTRODUÇÃO
A pesquisa assume o nível exploratório, voltada à análise qualitativa da bibliografia que influencia na construção da teoria estrutural-funcionalista de Durkheim. Sem a pretensão de encerrar qualquer debate sobre o ponto, a modalidade de pesquisa procura resgatar as obras clássicas do pai da sociologia moderna para discutir temas atuais como a patologização do desvio e os limites ao exercício do poder punitivo estatal.
O problema de pesquisa é compreender se existe na teoria funcionalista de Durkheim, para além do conceito de anomia, um campo teórico que também converge para a discussão dos elementos criminológicos do indivíduo e do Estado. O objetivo da pesquisa é interpretar o desvio e o controle punitivo estatal sob a ótica da teoria durkheimiana.
No primeiro capítulo, apresenta-se sucintamente o conteúdo do positivismo criminológico que, originariamente, associava o desvio a defeitos atávicos do delinquente. Ainda, com base na obra de Gabriel Tarde, são compreendidos os primeiros elementos de uma teoria sociológica do comportamento humano e, especificamente para o objeto de pesquisa, do comportamento criminal.
No segundo capítulo, aprofundar-se-ão conceitos construídos nas obras de Durkheim sobre a normalidade e a funcionalidade do desvio na perspectiva do corpo social. Ainda, a ótica da anomia também é explorada a partir do comportamento do Estado e como esse comportamento influenciará na legitimidade do exercício punitivo perante a moralidade coletiva.
Ao fim, procura-se responder ao problema de pesquisa encontrando elementos da teoria da anomia que, sem embargos às justas críticas de outras correntes criminológicas, ajudam a compreender a dialeticidade entre o crime e a punição.
2 Os precedentes da teoria durkheimiana
Campo originário do desenvolvimento da criminologia enquanto ciência autônoma, o positivismo inaugura a compreensão do delito enquanto marca de desvios patológicos. Baluarte da escola positivista e obcecado por identificar as causas da criminalidade, Cesare Lombroso, em sua obra O Homem Delinquente, de 1876, encontra no atavismo a explicação científica para o fato criminoso. De acordo com sua teoria, o arquétipo físico do indivíduo seria o elemento de estudo que permitiria identificar a propensão delituosa. O criminoso seria assim um ser nascido para o crime, e somente a medicina seria uma solução de intervenção que poderia evitar que essa tendência criminosa se proliferasse.
O paradigma nesse momento é etiológico e individual, ou seja, busca-se as causas do comportamento desviante a partir do estudo do indivíduo e de possíveis deficiências anatômicas indicativas do caráter criminoso. Conforme descreve Vera Malaguti,
No positivismo, o delito é um ente natural (paradigma atualizado pelas neurociências e suas publicações apologéticas). O determinismo biológico se contrapõe à ideia liberal de responsabilidade liberal. O importante é ‘estudar’ o autor do delito e classifica-lo, já que o delito aparece aqui como sintoma da sua personalidade patológica, causada pelos mesmos fatores que produzem a degenerescência[1].
Com a veia crítica que lhes é peculiar, Batista e Zaffaroni discorrem sobre o casamento entre o poder policialesco e a questão médica nesse período:
A corporação médica, que sempre tentara apoderar-se da questão criminal, com discursos que não conseguiram hegemonia, não desperdiçou a oportunidade oferecida pela polícia, carente de discurso. O chamado positivismo criminológico tornou-se o discurso médico-policial, de natureza biológica, e que, para além das disputas por sua paternidade e das diferenças de detalhes, foi – com certos matizes – hegemônico até o século XX e ainda sobrevive em uma parte da criminologia europeia e latino-americana. A partir da questão criminal inventou a sociologia, substituindo o contrato pelo organismo social, legitimando o capitalismo selvagem central com a necessidade de permitir a sobrevivência dos mais aptos. Por meio do mesmo paradigma biológico desenvolveu a antropologia, legitimando o neocolonialismo, que estreitou os vínculos econômicos do centro com a periferia e combateu a escravidão (não-funcional nessa etapa), daí resultando um discurso racista evolucionista, que culminada no apartheid[2].
A criminologia positivista, sem embargo de procurar construir uma disciplina e um método científico próprios, desvinculados da teoria kantiana da escola clássica do delito como uma escolha individual inerente ao livre-arbítrio e à igualdade entre seres humanos, constrói um campo de associação entre deficiências biológicas e desvio que retrocederia em importantes conquistas do liberalismo, como a limitação da pena e a proporcionalidade.
Se se considerasse o delito como um dado ontológico pré-constituído vinculado a uma natureza degenerada, as formas de intervenção médica prescindiriam da ocorrência do fato criminoso e não encontrariam limites temporais ou jurídicos às medidas “curativas”. Como no filme Minority Report, dirigido por Steven Spielberg, o determinismo moveria a criação de um departamento pré-crime responsável por enclausurar indivíduos antes que os delitos ocorressem.
Essa realidade, muito bem trabalhada na ficção, não se sustentou cientificamente, tendo em vista aquilo que Eugênio R. Zaffaroni e Nilo Batista definiram como reducionismo biopolicial:
O reducionismo biopolicial entrou em crise com a ruptura de seus pressupostos físicos, biológicos e políticos. A física quântica acabou com o mecanicismo e a biologia moderna arquivou os simplismos da transmissão dos caracteres adquiridos. No campo político, a primeira grande crise do capitalismo moderno (1890) terminou com a ilusão do progresso linear e indefinido, e entre as duas guerras suas principais teses foram adotadas e conduzidas até o genocídio pelo nazismo[3].
É evidente que os discursos positivistas não poderão ser abordados em toda a sua extensão neste artigo, sendo necessário citar ao leitor que a versão biológica determinista do desvio assumiu variações sociológicas do discurso de defesa social e periculosidade, como em Enrico Ferri e Rafaelle Garófalo, formas brilhantemente esmiuçadas na obra de Gabriel Anitua[4].
No entanto, o crime posteriormente passa a ser compreendido como um comportamento social, sujeito às variantes e contingências às quais os demais comportamentos sociais se submetem. Importante obra nesse campo é a obra de Gabriel Tarde sobre as leis sociais[5].
Três importantes conceitos são inicialmente desenvolvidos na obra de Gabriel Tarde; são eles i) a imitação; ii) a oposição e iii) a invenção, sendo relevante para este ensaio o primeiro e o terceiro.
A sociedade, para Tarde, é a imitação, fundada por leis lógicas e extra-lógicas. As primeiras ocorrem quando o indivíduo enxerga no comportamento imitável uma maior utilidade ou verdade; as segundas partem do interior para o exterior e do superior para o inferior. Sem racionalidade útil ou real, o processo de imitação acompanha o esforço de comunicação intersubjetiva:
No decís una palabra que no sea reproducción inconsciente de alguna otra que tiempo atrás oísteis; no cumplís cualquier acto de vuestra religión, señal de la cruz o plegaria, que no reproduzca gestos de las fórmulas tradicionales […]; (p.28) no ejecutáis un mandato civil cualquiera, no lleváis a cabo un acto de vuestro oficio, que no os haya sido enseñado o no hayáis copiado de algún modelo viviente; no dais una pincelada, si sois pintor, ni escribís un verso, si sois poeta, que no esté amoldado a los hábitos de vuestra escuela, y hasta vuestra originalidad misma está formada por vulgaridades acumuladas y llegará a ser vulgar a su vez. De este modo, el carácter constante de un hecho social cualquiera, es ser imitativo. Y este carácter es exclusivamente propio de los hechos sociales[6].
Segundo ele, a imitação é o comportamento habitual do ser humano tendo como referência outro indivíduo; é ela que permite a reprodução na sociedade de hábitos, culturas, idiossincrasias. A posição de inferioridade tende a imitar a posição superior, ou seja, projeta-se em si mesmo a conduta alheia como um norte de atuação. Nesse cenário, o delito, como um fato social, é uma produção das regras de imitação.
A invenção parte da genialidade, da capacidade individual de provocar mutação e progresso em relação às práticas sociais. Como etapa necessária a tornar-se um fato social, a invenção depende da absorção por um processo de imitação. Em sociedades com maiores populações, a tendência é uma incidência maior de invenções.
Por seu turno, a oposição ou conflito é um processo psicológico de contraste de ideias na mente de um mesmo indivíduo. No “público”, conceito que Tarde distingue de “multidão” e razão de uma racionalidade crítica, a unidade dialética se constrói a partir da comunicação intermental e do individualismo inventivo. Tem-se, aqui, uma psicologia social que deságua na própria concepção do delito. Nas palavras de Anitua,
[...] o que é realmente novidade, e inovador de uma sociologia criminal, é sua consideração do delito como uma ‘obra coletiva’. [...] até então tanto o pensamento contratualista juridicista como o positivista médico consideravam o delito como um ato com causas ou culpas meramente individuais. Não rompiam, pois, com o paradigma etiológico e redutivo. A filosofia penal é uma obra do ano de 1891 [...] o tipo criminoso é um tipo social antes de ser um tipo biológico, e o comportamento criminoso é simplesmente um comportamento adquirido pela imitação, com o que Tarde indicava que se as classes mais baixas delinquiam era porque imitavam o que as classes altas haviam feito primeiro, e com sucesso. De acordo com essa obra, se uma pessoa andava com más companhias, se ela é educada com orgulho, inveja, vaidade, ódio [...] terá muita sorte se não acabar por cometer delito. Por conseguinte, o delito é também, porque Tarde não abandona completamente o componente psicológico, uma criação coletiva ou social[7].
Se para Tarde o fato social é um fato de imitação, adquirindo significado a partir da passagem ao ato de indivíduo para indivíduo via intersubjetividade, Émile Durkheim caracteriza o fato social como uma entidade própria, objetivamente explicável, como uma unidade coletiva que exerce força coercitiva sobre os indivíduos e deles se afasta para possuir disciplina própria.
No trabalho de Marco António Antunes, o articulista menciona que:
Para Durkheim (1983: 14) a sociedade é uma unidade colectiva que submete os indivíduos através dos factos sociais: "(...) É facto social toda a maneira de fazer, fixada ou não, susceptível de exercer uma coerção exterior; ou ainda que é geral na extensão de uma sociedade dada, tendo ao mesmo tempo uma existência própria [o todo social], independentemente das suas manifestações individuais". A sociologia de Gabriel Tarde é, acima de tudo, uma psicologia social. Para Tarde, a Sociologia só pode ser compreendida a partir de uma "psicologia intermental", que estude a interacção das consciências individuais, nomeadamente as "acções intermentais"e os "efeitos intercerebrais", complementada por uma lógica social que estude as obras de civilização[8].
Efetivamente, há uma divergência teórica clara entre ambos os autores, evidenciada na obra El Suicidio, de Durkheim:
[...] es lo poco fundado de la teoría que hace de la imitación el supremo manantial de toda la vida colectiva. No hay hecho tan facilmente transmisible por vía de contagio como el suicidio, y acabamos de ver que esta capacidad de contagia no produce, efectos sociales. Si en este caso se encuentra tan desprovista de influencia social, no tendrá más, probablemente, en los otros; las virtudes que se le atribuyen son, pues, imaginarias. Puede muy bien determinar en un círculo muy restringido algunas repeticiones de un mismo pensamiento o de una misma acción, pero no alcanza nunca repercusiones tan extensas y tan profundas que afecten y modifiquen el alma de la sociedad. Los estados colectivos, gracias a la adhesión casi unánime y generalmente secular de que son objeto, resultan demasiado resistentes para que pueda modificados uma innovación privada[9].
3 A despatologização do desvio e os limites da punição
Emile Durkheim assume a condição de fundador do pensamento sociológico moderno a partir de uma abordagem científica posteriormente denominada funcionalismo. De acordo com ele, a totalidade das individualidades de uma socialidade resulta em um organismo diferente do que cada uma de suas partes.
Em sua obra As regras do método sociológico, de 1895, o sociólogo francês constrói uma metodologia própria das ciências sociológicas, independente da filosofia e das demais ciências, marcada pela objetividade, que explica os fatos sociais como coisas empiricamente observáveis, onde os fenômenos sociais também se encontram regidos por regras de causalidade[10].
Nos ensinamentos de Durkheim há uma relativização do conceito de patológico tão trabalhado no positivismo como algo anormal. Para ele, a dicotomia entre normal/anormal estava associada à noção de generalidade, de modo que os fatos repetitivos, habituais, de uma determina sociedade eram considerados normais, enquanto ao patológico reservava-se os fatos não usuais. A patologia aqui perde a noção ontológica vinculada à degenerescência.
Aplicável tal raciocínio ao delito, este será compreendido por Durkheim como um fato social normal, no sentido de que o comportamento desviante sempre acompanhou toda e qualquer sociedade. É um apêndice dos corpos sociais existirem crimes e condutas criminosas. Conforme discorrem Hassemer e Muñoz Conde:
La tesís de la normalidade del delito corresponde a uma consideración que se limita a la descripción de funciones, guardándose de hacer valoraciones. Durkheim contesta a los que le reprochan que no condene la criminalidade por considerala normal, que tampoco el dolo es valorado positivamente y no por eso deja de ser ‘útil’. Em sus reflexiones se encuentran incluso algunos planteamientos que permiten tesis más avanzadas: la criminalidad no sólo esnormal, sino necesaria e incluso irrenunciable para la sociedade. Em uma consideración funcionalista la utilidade de la criminalidade se deriva ya de que está ‘unida a las condiciones de cualquier vida social’[11].
Gabriel Anitua explica que, para Durkheim, as normas do costume, e nas sociedades modernas, as do direito, seriam o ‘cimento’ da sociedade, o que a mantém unida. São talvez o reflexo mais acabado do que é a ‘consciência coletiva’[12].
Outro importante conteúdo da obra de Durkheim é o conceito de solidariedade orgânica atinente à divisão social do trabalho. De acordo com o mestre francês, era esse o tipo de tessitura social das sociedades modernas, em substituição à solidariedade mecânica, típica do Antigo Regime e das sociedades primitivas. Enquanto esta solidariedade encontra seu correspondente no direito repressivo, aquela teria como reflexo um direito restitutivo, ou seja, que procuraria em primeira medida a reparação da ordem abalada, e não a vingança pura e simples.
Enquanto o positivismo criminológico associava o delito a uma patologia social, Durkheim demarca sua natureza ínsita à normalidade social, o que significa dizer que o delito não é uma entidade ontológica; não configura um fato valorado moralmente de forma positiva ou negativa; mas sim é um produto usual das regras sociais em determinado espaço de tempo e lugar.
Desse modo, o ponto comum do delito não é a natureza da conduta proibida pela sociedade, mas sim o fato de existirem condutas sociais que são reprimidas em todo e qualquer organismo social. Nessa orientação, conforme discorre Anitua, “um ato é criminoso quando ofende os estados fortes e definidos da consciência coletiva, entendendo-se por consciência coletiva o conjunto das crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade”[13].
Não bastasse assentar a normalidade do crime, Durkheim também encontra nele um componente utilitarista e, na resposta social, um caráter necessário. Conforme preleciona o mestre italiano Alessandro Baratta,
Em primer lugar, el delito, provocando y estimulando la reacción social, estabiliza y mantiene vivo el sentimento colectivo en que se basa, em la generalidade de los coassociados, la conformidad a las normas. [...] el delito puede tener además uma función directa em el desarrollo moral de uma sociedade. No sólo deja la vía libre a las transformaciones necesarias, sino que em ciertos casos las prepara diretamente. Estou quiere decir que el criminal no sólo permite que el sentimento colectivo se mantenga em situación susceptible de cambio, sino que anticipa el contenido mismo de la futura transformación. Em efecto, el delito es a menudo la anticipación de la moral futura, como demuestra, por ejemplo, el processo de Sócrates.[14]
Diferentemente da posição iluminista e da posição positivista que o antecedem, Durkheim não encara a pena como uma racionalidade instrumental da sociedade. O castigo seria a vingança da moralidade coletiva afetada pela conduta delituosa; ainda que sob o monopólio do Estado, a aplicação da sanção proporciona um movimento de valorização moral do coletivo.
Retornando à passagem do método sociológico, o autor assevera que “o crime é portanto necessário; ele está ligado às condições fundamentais de toda vida social e, por isso mesmo, é útil; pois as condições de que ele é solidário são elas mesmas indispensáveis à evolução normal da moral e do direito”[15].
Enquanto sanção, a pena variava entre as diversas sociedades, de modo que a severidade penal sofreria redução com o advento da sociedade moderna. Essa constatação é a própria reafirmação de seu pressuposto teórico: se o castigo é a externalização da moral e dos valores coletivos, uma pena que atente contra a dignidade do ser humano enquanto valor edificante do corpo social perde em si mesma o significado, posto que também desacredita tais valores. Em suas palavras, “a pena resulta do crime e exprime a maneira pela qual este afeta a consciência pública”[16].
Em outros termos, de acordo com a teoria de Durkheim, se o Estado, que se outorgou o controle da violência, assume sanções que violam o senso coletivo de moralidade, a qualidade desses castigos, porquanto cruéis e degradantes, deslegitimará a utilização da pena pois ela mesma afeta, tanto ou mais do que o crime, os valores coletivos do corpo social.
O funcionalismo do delito recairia, portanto, na sua reação social por meio do castigo monopolizado pelo Estado em sintonia com os valores da consciência coletiva. Essa reação renova o sentimento coletivo de conformidade às normas e, mais ainda, reafirma o valor delas enquanto preceitos estabelecidos de funcionalidade social.
Contudo, quando os níveis delitivos se multiplicam de forma incontrolável ou quando o tecido social perde a referência de sentimentos coletivos que mantém sua união, esse estado de coisas acarreta uma ausência de normatividade de toda ordem, moral, jurídica, econômica, social, religiosa e política. A esse estado Durkheim confere a denominação de anomia, assim construída em seu texto: “la anomia, em efecto, procede de que, en ciertos puntos de la sociedad hay falta de fuerzas colectivas, es decir, de grupos constituidos para reglamentar la vida social”.[17]
Considerações finais
Neste ensaio procuramos, a partir da revisão bibliográfica da obra de Durkheim e de seus precedentes sociológicos e criminológicos, analisar como as teorias do método sociológico e da anomia podem contribuir para rechaçar posturas de governos populistas que exaltam a proliferação de castigos cruéis enquanto práticas de Estado.
Na primeira seção demonstramos como o positivismo jurídico associa a ideia de criminalidade a algum tipo de desvio patológico do delinquente. Assim, o delito seria um dado ontológico pré-constituído vinculado a uma natureza degenerada, guardando em si um conteúdo afeto ao mal.
Com o trabalho de Gabriel Tarde, por seu turno, o delito se afasta de uma concepção individual para assumir aspectos de uma interação intersubjetiva, isto é, uma obra coletiva pautada pelas leis de imitação. Essa primeira teorização irá romper a qualidade individual do desvio que contorna o enfoque positivista.
Émile Durkheim aprofundará o sentido dessa coletividade e, definitivamente, afastará do delito qualquer caráter ontológico, haja vista que todas as sociedades elegem determinados tipos de conduta para seriam criminalizadas e, nesse passo, o desvio é uma construção social, e não uma tragédia fruto da biopsicologia doentia do agente.
Patologia e anomia estariam relacionadas, portanto, não à qualidade do ato, mas sim à sua habitualidade nas sociedades constituídas. O crime é, então, um fato social normal que tem em si uma funcionalidade dentro do corpo social, marcada a partir da reação estatal ao desvio.
Ocorre que, quando essa reação assume graus de brutalidade superiores ao próprio desvio, a moralidade coletiva é duplamente afetada, pois os valores sociais foram atingidos também – e de maneira mais aguda – pela resposta punitiva. Desse modo, a sanção perde a sua legitimidade no funcionamento do corpo social e, mais ainda, rompe o cimento de construção do tecido social, trazendo consequências graves que podem gerar o estado de anomia.
Sem embargo das críticas que posteriormente foram muito bem formuladas em relação ao trabalho de Durkheim, como a função ideológica estabilizadora que equivocadamente associa a criminalidade a causas sociais[18], a teoria funcionalista, ao romper com os dogmas patologizadores da teoria do desvio e reconhecer também os limites à punição no comportamento estatal, tem uma importância histórica ao desenvolvimento da criminologia.
Nos tempos atuais, a defesa da barbárie pelas mãos do Estado, de acordo com a teoria de Durkheim, produzirá a mesma anomia que o excessivo número de delitos acarretaria no corpo social.
Referências
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ZAFFARONI, Eugênio Raúl et al. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume- Teoria Geral do Direito Penal. Rio de Janeiro, Revan, 4ª Ed., 2011.
[1] BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro, Revan, 2011, p. 45.
[2] ZAFFARONI, Eugênio Raúl et al. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume- Teoria Geral do Direito Penal. Rio de Janeiro, Revan, 4ª Ed., 2011, p. 281.
[3] Ibidem, p. 282.
[4] ANITUA, Gabriel Ignácio. História dos pensamentos criminológicos. Trad.: Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro, Revan, Instituto Carioca de Criminologia, 2008, pp. 310-316.
[5] TARDE, Gabriel. Las Leyes Sociales. Trad.: G. Núñez de Prado. Barcelona. Casa Editorial Sopena. 2011, p. 28.
[6] TARDE, Gabriel. Las Leyes Sociales. Trad.: G. Núñez de Prado. Barcelona. Casa Editorial Sopena. 2011, p. 28.
[7] Ob. cit. p. 437.
[8] ANTUNES, Marco António. Comunicação, Público e Multidão em Gabriel Tarde. Biblioteca online de ciências da comunicação. Labcom. 2008. Disponível em http://www.bocc.ubi.pt/pag/antunes-marco-antonio-comunicacao-publico-multidao.pdf. Acesso em 09.03.2019.
[10] DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. Trad.: Pietro Nassetti, São Paulo, Martin Claret, 2001.
[11] HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. Introdución a la criminologia y al derecho penal. Tirant to blanch. Valencia, 1989, pp. 39-40.
[12] Ob. cit. pp. 442-443.
[13] Ob. cit. p. 445.
[14] BARATTA, Alessando. Criminología Critica y Critica al Derecho Penal. 1ª Ed. Buenos Aires, Siglo XXI Editores Argentina, 2004, pp. 57-58.
[15] ____________ As regras do método sociológico, p. 56.
[16] Durkheim, Émile, & Lion, H. (2014). Duas Leis da Evolução Penal. Trad.: Hyago Sarraff de Lion. Primeiros Estudos, (6), 123-148.
[17] __________ El suicidio, p. 225.
[18] BARATTA, Alessando. Criminología Critica y Critica al Derecho Penal. 1ª Ed. Buenos Aires, Siglo XXI Editores Argentina, 2004, p. 65.
Defensora pública do estado do Amazonas, especialista em políticas e gestão de segurança pública pela Universidade Estácio de Sá, pós graduanda em direito da criança e do adolescente pela Fundação do Ministério Público do estado do Rio Grande do Sul.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARBOSA, Roberta Eifler. A despatologização do desvio e os limites da punição na obra de Durkheim Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 jun 2019, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53091/a-despatologizacao-do-desvio-e-os-limites-da-punicao-na-obra-de-durkheim. Acesso em: 23 dez 2024.
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