Resumo: O presente estudo tem como principal mote a inauguração de um sistema de precedentes vinculantes pelo Novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015) e procura demonstrar a grande aproximação operada entre o sistema brasileiro, de tradição romano-germânica (civil law) com o sistema anglo-saxão (common law), de precedentes vinculantes. Em um primeiro momento, expõem-se os conceitos básicos de decisão judicial, precedente, ratio decidendi e obiter dictum. Em seguida, são apresentados os tipos de eficácia que se pode conferir aos precedentes judiciais e as técnicas de confronto e de superação dos mesmos (distinguishing, overruling, overriding e signaling). Por fim, serão expostos todos os precedentes judicias que o Novo CPC erigiu à categoria de vinculantes.
PALAVRAS-CHAVE: Novo Código de Processo Civil. Precedente judicial. Ratio decidendi. Efeito vinculante. Técnicas de confronto e de superação. Art. 927, NCPC.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. NOÇÕES BÁSICAS SOBRE PRECEDENTES JUDICIAIS. 2.1. Conceito de Precedente Judicial. 2.3. Ratio Decidendi. 2.4. Obiter Dictum. 3. EFEITOS DOS PRECEDENTES JUDICIAIS. 3.1 Eficácia Persuasiva. 3.2 Eficácia Vinculante. 4. TÉCNICAS DE CONFRONTO E SUPERAÇÃO DE PRECEDENTES. 4.1 Distinguishing. 4.2 Overruling e Overriding. 4.3 Signaling. 5. PRECEDENTES VINCULANTES NO CPC/2015. 5.1 Precedente oriundo de controle concentrado de constitucionalidade pelo STF (art. 927, I, NCPC). 5.2 Precedente oriundo de súmula do STJ ou do STF (art. 927, II e IV, NCPC). 5.3 Precedentes oriundos de julgamento de casos repetitivos e de assunção de competência (art. 927, III, NCPC). 5.4 Precedentes oriundos de plenário ou de órgão especial (art. 927, V, NCPC). 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS.
O Praticamente em todos os países europeus ocidentais – à exceção da Inglaterra – adota-se um sistema jurídico de tradição romano-germânica denominado civil law. Neste sistema a lei escrita é a fonte primária do direito, relegando-se ao Judiciário o papel primordial de aplicar o texto da lei. Representativa desse modelo de concepção do ordenamento jurídico é a célebre frase de Montesquieu: “o juiz é a boca da lei”.
Em decorrência da colonização portuguesa e da influência do direito europeu continental, em especial do Direito italiano, quando se trata de Processo Civil, o Brasil sempre figurou dentro da família da civil law.
Já nos países anglo-saxões, por influência inglesa, desenvolveu-se um sistema distinto, casuístico, informado pela teoria do stare decisis[1], e no qual os precedentes judiciais assuem importância central, por possuírem força vinculante (binding authority).
Em suma, diferença entre os dois sistemas reside no fato de que, na common law, desenvolveu-se um sistema costumeiro, de maior relevância do poder Judiciário na criação da norma concreta de pacificação do conflito, conferindo-se a ela eficácia vinculante para casos semelhantes futuros. Por outro lado, o civil law é um Direito escrito, sendo a jurisdição estruturada com a finalidade de aplicação do direito objetivo. O poder do juiz emana da lei, sendo desta o intérprete, à luz do caso concreto.
Em que pesem as diferenças entre os sistemas de civil law e de common law, paulatinamente se tem assistido a um intercâmbio cultural entre eles. Assim, ao passo que países anglo-saxões têm feito uso de alguns textos codificados, países de tradição romano-germânica tem dado maior relevância à teoria do precedente judicial, emprestando-lhe, em alguns casos, eficácia vinculante – como é o caso do Brasil.
Importante ressaltar que o precedente judicial é uma realidade inerente a qualquer sistema jurídico, apenas variando o grau de eficácia a ele atribuído. Isso porque todos os povos têm a noção da insegurança jurídica e da forte sensação de injustiça que decisões distintas para casos idênticos podem gerar no seio da sociedade.
Visando a combater o que se convencionou chamar de “jurisprudência lotérica”, o Brasil vem produzindo, nos últimos anos, alterações legislativas pontuais, que reforçam a eficácia persuasiva dos precedentes dos Tribunais Superiores e até conferem-lhes caráter vinculante, como é o caso das súmulas vinculantes[2]. Além destas, podem-se citar também, os recursos especial e extraordinário repetitivos, as súmulas impeditivas de recursos e a improcedência liminar do pedido.
Esses instrumentos processuais de valorização dos precedentes, como se disse, até então são pontuais.
Nada disso obstante, com a entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil, em março de 2016, operou-se, sem hipérboles, uma verdadeira revolução jurídica no Brasil, aproximando-se de maneira jamais vista o sistema brasileiro com os sistemas de common law.
Exatamente nesse ponto centra-se o presente trabalho: buscando colaborar com essa incipiente produção doutrinária acerca das profundas mudanças trazidas pelo Novo CPC, explora-se o que se entende ser a principal mudança – a incorporação ao Direito brasileiro do sistema de precedentes vinculantes.
Existem algumas noções e conceitos fundamentais cuja compreensão mínima é conditio sina qua non para a compreensão do funcionamento de um sistema jurídico de precedentes. Passa-se à análise dos mais relevantes.
2.1. Conceito de Precedente Judicial
Pode-se conceituar precedente judicial, em sentido amplo, como toda a decisão jurisdicional que resolve um caso concreto, mas de cuja fundamentação se pode extrair uma norma geral que pode servir como base para o julgamento de casos futuros semelhantes.
Todo e qualquer precedente judicial (lato sensu) é composto por duas partes distintas[3]: [1] os fatos dos quais emana a lide (descritos no relatório da decisão) e [2] a tese jurídica que embasa a decisão (constante da motivação).
Deve-se perceber que, em sentido mais estrito e técnico, o “precedente judicial” é justamente essa tese jurídica esposta na fundamentação, à qual se dá o nome de ratio decidendi. Em úlima medida, pode-se afirmar que o estudo da ratio decidendi é o estudo do precedente judicial em si.
2.2. Ratio Decidendi
A ratio decidendi (chamada de “holding”, no Direito norte-americano) consiste nos fundamentos jurídicos da decisão judicial indispensáveis para a solução do caso[4]. Constiui a essência da tese jurídica suficiente para decidir o caso concreto (rule of law)[5].
Assim, a norma jurídica constante da fundamentação das decisões judiciais, chamada de ratio decidendi, por meio de um raciocínio indutivo, pode servir como fundamento para a solução de casos futuros análogos, em nítida aplicação de precedente judicial.
Pensou-se em um exemplo concreto, a fim de aclarar o conceito de ratio decidendi:
Imagine-se um processo judicial no qual se discuta a perda do mandato eletivo do deputado federal João da Silva, por pretensa infidelidade partidária, decorrente da desfiliação do partido político pelo qual foi eleito.
Pense-se em uma decisão do Tribunal Superior Eleitoral decretando a perda do mandato do deputado, decorrente da infidelidade partidária.
Nota-se, claramente, a existência de duas normas jurídicas emanada da decisão do TSE. Uma, de caráter individual: o deputado João da Silva deve perder seu mandato eletivo (dispositivo da decisão). Outra de caráter geral: a desfiliação partidária sem motivo justo, superveniente à eleição, acarreta a perda do mandato eletivo de deputado federal (ratio decidendi).
Futuramente, o TSE e os demais órgãos jurisdicionais inferiores, poderão valer-se dessa ratio decidendi para decidir casos semelhantes.
Percebe-se, portanto, a importância da ratio decidendi, a qual, tendo sido adotada em diversos julgados, passa de precedente a jurisprudência e, desta, tornando-se absolutamente reiterada, pode dar ensejo a elaboração de uma súmula de jurisprudência.
2.3. Obiter Dictum
Nem tudo que consta da fundamentação da decisão judicial, porém, é considerado ratio decidendi. Apenas aqueles fundamentos sem os quais o caso teria sido decidido de modo diverso.
Existe uma exceção para a regra exposta no parágrafo anterior: naquelas decisões fundadas em dois fundamentos distintos, cada qual, por si só, com força a decidir no mesmo sentido a lide, ambos esses fundamentos são considerados ratio decidendi, a despeito de um prescindir do outro.
Os demais argumentos e teses jurídicas esposadas na fundamentação que, em estando ausentes, em nada mudariam a decisão tomada pelo órgão julgador, são chamados de obiter dicta (no singular, obiter dictum).
Segundo o grande processualista brasileiro da atualidade, Professor Fredie Didier Jr.:
“o obiter dictum é o argumento jurídico, consideração, comentário exposto apenas de passagem na motivação da decisão, que se convola em juízo acessório, provisório, secundário, impressão, ou qualquer outro elemento jurídico-hermenêutico que não tenha influência relevante e substancial para a decisão”[6].
Em suma, obter dictum é tudo aquilo que é “prescindível para o deslinde da controvérsia”[7]. Assim, são exemplos de obiter dicta: o voto vencido no julgamento colegiado; considerações laterais sobre temas não postos a julgamento, mas sobre os quais o magistrado tece considerações “by the way”, etc.
Um exemplo nítido de obiter dictum seria o seguinte: em uma sentença na qual o juiz extingue o processo sem exame do mérito, por um defeito formal insanável, vai adiante e afirma que, não fosse a nulidade decretada, ainda assim, provavelmente, julgaria a ação improcedente no mérito[8].
Lembre-se, por fim, que o obiter dictum não serve como precedente[9], mas sua importância não pode ser negligenciada, na medida em que pode sinalizar a tendência de decisões futuras daquele órgão jurisdicional.
Consoante já se disse, todo e qualquer sistema jurídico atribui aos precedentes judiciais algum valor, alguma eficácia. O que varia, de acordo com o direito positivo de cada país, é a intensidade desses efeitos.
A melhor doutrina brasileira sobre o tema, personalizada no Professor Fredie Didier Jr., um dos grandes idealizadores do Novo Código de Processo Civil, enxerga ao menos seis tipos diferentes de efeitos jurídicos potencialmente advindos dos precedentes judiciais, a saber: a) efeito vinculante; b) efeito persuasivo; c) efeito obstativo da revisão de decisões; d) efeito autorizante; e) efeito rescindente; e) efeito de revisão de sentença.
Dados os limites deste estudo, ater-se-á aos dois efeitos mais relevantes, quais sejam: o persuasivo e o vinculante.
3.1 Eficácia Persuasiva
A eficácia persuasiva é o efeito mínimo de todo o precedente judicial, prestando-se aexercer influência sobre o livre convencimento motivado do julgador. Constitui um “indício de solução racional e socialmente adequada”[10].
Interessante notar que quando mais hierarquicamente superior for o órgão judicial do qual emanou o precedente, maior será sua eficácia persuasiva. Assim, certamente um precedente emanado do Pleno do Supremo Tribunal Federal tem mais eficácia persuasiva do que um precedente proveniente de uma câmara de Tribunal de Justiça de um Estado-membro.
Pode-se observar a importância da eficácia persuasiva dos precedentes em alguns situalções previstas pelo ordenamento jurídico, como no caso dos embargos de divergência (art. 1.043, NCPC), e no do recurso especial fundado em divergência (art. 105, III, “c”, CF).
3.2 Eficácia Vinculante/Obrigatória
Diz-se vinculante o precedente quando tem força obrigatória para os casos futuros similares, estando o órgão julgador obrigado a observá-lo. O efeito vinculante é o mais intenso de todos os efeitos, abrangendo em si todos os demais. Nos sistemas de common law, a regra é justamente que os precedentes tenham essa autoridade vinculante (“binding authority”).
Assim, quando um sistema jurídico concede força vinculante a um precedente, significa que tem força normativa. A norma jurídica geral, presente na fundamentação da decisão - a ratio decidendi -, tem o poder de submeter todas as decisões futuras de casos análogos à mesma solução do precedente.
Caso se tivesse de escolher um assunto como sendo o cerne do presente estudo (e quiçá o cerne da mudança trazida pelo NCPC), escolher-se-ia a força obrigatória dos precedentes. É exatamente este o ponto nevrálgico de distinção entre os sistemas de common law e de civil law.
Até o ano de 2015, o único precedente obrigatório no sistema brasileiro é aquele consubstanciado em súmula vinculante do Supremo Tribunal Federal (art. 103-A, CF/88).
Com a entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil, passa-se a ter um rol de precedentes com força obrigatória, insculpido no art. 927 da novel codificação. Segundo o Enunciado 170 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “As decisões e precedentes previstos nos incisos do caput do art. 927 são vinculantes aos órgãos jurisdicionais a eles submetidos”.
Importante ressaltar que os precedentes previstos no art. 927 do NCPC, justamente por possuírem força obrigatória, devem ser conhecidos ex officio pelo juiz, ao decidir a causa. Caso não o faça, considerar-se-á omissa a decisão[11].
Por fim, cumpre ressaltar que a força vinculante dos precedentes obrigatórios tem duas facetas distintas, uma externa e outra interna. Esta diz respeito à necessidade de o próprio Tribunal produtor do precedente tem o dever de respeitá-lo, enquanto aquela refere-se à necessidade de os órgãos suborninados a ele respeitarem esse mesmo dever.
Compreendidas as premissas básicas acerca dos precedentes judiciais e seus efeitos, mister agora tratar de sua dinâmica.
Para que o Poder Judiciário não fique demasiadamente engessado, desenvolveram-se, no Direito da common law, técnicas através das quais os precedentes obrigatórios podem ser afastados ou superados. Não há como “importar” a força obrigatória dos precedentes judicias sem, igualmente, fazer uso dos instrumentos de confronto (“distinguishing”) e superação (“overruling” e “overriding”) dos mesmos.
4.1 Distinguishing
Levando-se em consideração que um precedente judicial sempre tem origem em um caso concreto, deve-se ter em mente que, para que seja uilizado em um outro caso concreto futuro, este deve guardar um bom grau de semelhança com aquele. Do contrário, não se estará homenageando a isonomia, mas subvertendo-a.
Destarte, chamado a decidir um caso a respeito do qual há um precedente vinculante, a primeira postura do juiz é averiguar se o caso sub judice se assemelha àquele julgado no precedente. Caso resulte, desse esforço comparativo, uma distinção que não permita a aplicação da mesma solução jurídica, fala-se em distinguishing.
Ensina o renomado processualista José Rogério Cruz e Tucci que o distinguishing é um método de confronto, através do qual o juiz verifica se o caso em julgamento pode ou não ser considerado análogo ao paradigma[12].
Deve-se ter cuidado, todavia, com a polissemia da palavra inglesa distinguishing. Esta pode assumir dois significados distintos, quais sejam: a) o método de comparação entre o caso a ser julgado e o precedente (distinguishing-método) e b) o resultado desse esforço comparativo indicando que os casos não se assemelham suficientemente (distinguishing-resultado).
Cronologicamente, portanto, o caminho a percorrer pelo magistrado começa em fazer um juízo comparativo entre o caso que está prestes a julgar e o precedente que potencialmente se assemelha a ele (distinguishing-método).
Em concluindo que o caso concreto e o paradigma coincidem em seus fatos fundamentais, o juiz deve aplicar a ratio decidendi do precedente vinculante para decidir o novo caso.
Por outro lado, em concluindo pela existência de distinção entre o caso concreto e o paradigma (distinguishing-resultado), estará livre para decidir o novo caso de acordo com seu livre convencimento motivado.
Essa regra, contudo, não é estanque, e comporta exceções. Isso porque, ao constatar a distinção, abrem-se, em realidade, duas opções ao magistrado. Se por uma lado pode concluir que peculiaridades d ocaso concreto impedem a aplicação do precedente (restrictive distinguishing), por outro lado pode concluir que, a despeito de algumas distinções, pode-se aplicar a ratio decidendi do precedente também para aquele caso (ampliative distinguishing).
Com isso, percebe-se que cai por terra a ideia de que o juiz, diante de um sistema de precedentes, se torna uma máquina automizada. A atividade jurisdicional crítica e criativa é fundamental no uso do distinguishing, o qua ldeve ser feito inclusive no cas ode precedentes obrigatórios, ressalte-se[13].
4.2 Overruling e Overriding
Paralelamente às técnicas de distinção dos precedentes, também existem técnicas para superá-los. Há basicamente duas formas de superar um precedente obrigatório: através do overruling e do overriding.
Ocorre o overruling quando há uma superação total do precedente, o qual é susbstituído (overruled) por outro. Essa superação deve ocorrer sempre de forma expressa, ou seja, o Tribunal deve fazer menção ao precedente e, em seguida, superá-lo, através de uma forte carga argumentativa. O sistema brasileiro não permite falar-se em overruling implícito (implied overruling).
Deve-se ter em mente que a mudança de entendimento jurisprudencial, com o passar dos anos, é inerente a qualquer sistema jurídico. Não existe, portanto, em um sistema de precedentes uma impossibilidade de alteração do entendimento consolidado. O que é impossível é uma superação desmotivada.
Não se olvide que um precedente pode estar de tal forma assentado na jurisprudência de uma Corte, sendo aplicado inúmeras vezes ao longo dos anos, que crie uma confiança legítimas nos jurisdicionados de que não irá se alterar. Para que não haja, portanto, violação aos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, a superação deve ter apenas eficácia para o futuro (prospective overruling), não atingindo condutas passadas praticadas de boa-fé, com base na confiança no precedente.
Já o overriding é uma espécie de overruling parcial. Ocorre quando o Tribunal cinge-se a limitar o âmbito da incidência de um precedente, em função de um novo entendimento.
Existe proximidade conceitual entre o overriding e o distinguishing. A diferença se dá namedia em que neste é uma questão de fato que impede a incidência do precedente; já naquele é uma questão de direito (um novo posicionamento) que reduz o suporte fático de um precedente.
Segundo Celso Albuquerque Silva, as hipóteses mais comuns de superação de precedentes são: a) o precedente se tornou obsoleto; b) o precedente é nitidamente injusto ou incorreto e c) não se pode executar o precedente na prática[14].
Como se pode perceber, portanto, o overruling e o overriding são técncias que impedem a fossilização do sistema de precedentes obrigatórios, emprestando-lhe maleabilidade e permitindo sua atualização.
4.3 Signaling
Consoante se disse anteriormente, a superação de um precedente já consolidado pode significar uma violação à confiança daqueles que acreditaram na estabilidade e segurança doordenamento jurídico.
Em um sistema de precedents obrigatórios, é muito provável que os particulares, confiando na informação proporcionada pelos peritos em Direito, venham a tomar medidas e propor determinados negócios jurídicos com base naquele direcionamento[15]. Essa confiança deve ser respeitada.
Nesse contexto surge a figura do signaling (ou “sinalização”). Este se dá quando o Tribunal adota, para a solução do caso concreto (e para aqueles pendentes de julgamento, que se relacionem a fatos pretéritos) o entendimento já consolidado no precedente, sinalizando, porém, que para as situações vindouras, haverá mudança de entendimento[16].
5. PRECEDENTES VINCULANTES NO CPC/2015
Compreendido, em linhas gerais, como funciona um sistema de precedentes obrigatórios, resta agora enumerar e tecer breves considerações acerca de cada um dos precedentes que o Novo Código Civil, em seu art. 927, conferiu força vinculante.
5.1. Precedente oriundo de controle concentrado de constitucionalidade pelo STF (art. 927, I, NCPC)
O primeiro inciso do caput do art. 927 do NCPC confere força obrigatória aos precedentes do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade (ADI, ADC, ADO e ADPF).
Cumpre aqui fazer uma distinção importantíssima: o NCPC inova ao tornar vinculante a ratio decidendi, os fundamentos centrais da decisão do STF em controle concentrado[17]. É diferente de dizer que a coisa julgada nas decisões de controle concentrado tem efeito vinculante erga omnes (art. 102, § 2º, CF), o que já ocorria no sistema do CPC/73.
Deve-se ter atenção ao fato de que, uma coisa é a obrigatoriedade do dispositivo da decisão; outra, bem diferente, é a força vinculante dos fundamentos da decisão (ratio decidendi).
Assim, com a entrada em vigor no Novo CPC, não apenas o dispositivo das decisões do STF, em ações concentradas de constitucionalidade serão obrigatórios, mas também os fundamentos centrais da decisão (ratio decidendi), que formam o precedente.
5.2. Precedente oriundo de súmula do STJ ou do STF (art. 927, II e IV, NCPC)
Em seus incisos II e IV, o art. 927 determina a obrigatoriedade dos precedentes insculpidos em súmulas do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, em matéria constitucional e infraconstitucional, respectivamente.
Com a entrada em vigor do dispositivo, estendem-se os efeitos obrigatórios, que dantes emanavam apenas das súmulas vinculantes do STF (art. 103-A, CF), para todas as súmulas desse tribunal, em matéria constitucional, bem como para as súmulas do STJ, e matéria infraconstitucional. Em vez de possuírem apenas força persuasiva, agora as súmulas detêm força obrigatória.
Cumpre salientar que ainda persiste distinção entre súmulas “ordinárias” do STF e aquelas “vinculantes”. Isso porque, em que pese agora ambas tenham efeitos vinculantes, apenas estas últimas vinculam, além dos órgãos do Poder Judiciário, também a Administração Pública, em todas as suas esferas.
5.3. Precedentes oriundos de julgamento de casos repetitivos e de assunção de competência (art. 927, III, NCPC)
Para a formação dos precedentes oriundos de julgamentos de casos repetitivos e assunção de competência, o NCPC prevê a instauração de um incidente processual específico para a elaboração do precedente. Trata-se, nas palavras de DIDIER, de “uma espécie de formação concentrada de precedentes obrigatórios”.[18]
No procedimento desses incidentes, está prevista a discussão de todos os argumentos favoráveis e contrários à tese que se pretende consolidar. Existe previsão de realização de audiências públicas e participação de amici curiae, o que aumenta a legitimação social e democrática do precedente (art. 927, § 2º; art. 983 e art. 1.038, NCPC).
5.4. Precedentes oriundos de plenário ou de órgão especial (art. 927, V, NCPC)
Por fim, o inciso V do art. 927 determina que os juízes e tribunais sigam a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estejam vinculados.
Percebe-se, portanto, uma força intrínseca das decisões do plenário ou órgão especial (dirigida a seus próprios órgãos fracionários) e uma força extrínseca (dirigida aos magistrados de instância inferior.
Diante desse quadro, os precedentes do Pleno do STF, em matéria constitucional, vinculam todos os magistrados brasileiros. Os precedentes do órgão especial do STJ em matéria infraconstitucional vinculam todos os Tribunais Estaduais e Tribunais Regionais Federais, assim como os juízes de primeiro grau vinculados a estes tribunais. As decisões do pleno do Tribunal de Justiça do Estado-membro vinculam as câmaras do próprio tribunal, bem como os juízes de direito dessa unidade da Federação. E assim por diante.
6. conclusão
Pôde-se perceber, ao longo do presente estudo, que o precedente judicial tem vital importância para qualquer sistema jurídico. Assim se dá porque as sociedades sempre perceberam o grau de insegurança e sentimento de injustiça que decorre de soluções diferentes para casos idênticos, a depender da sorte ou azar na distribuição da demanda (“jurisprudência lotérica”).
Dito isso, em que pese a técnica da obrigatoriedade dos precedentes judiciais seja uma característica peculiar aos sistemas de common law, alguns sistemas de civil law estão realizando reformas em seus ordenamentos processuais, rendendo-se à influência atraente da teoria do stare decisis – como é o caso do Brasil.
Com a entrada em vigor do código de processo civil de 2015, está em curso uma verdadeira revolução de paradigma, consistente em uma aproximação jamais vista do direito brasileiro com o direito anglo-saxão, de precedentes de observância obrigatória. O art. 927 do NCPC traz um rol de precedentes cujo fundamento da decisão (ratio decidendi) é de observância obrigatória para os casos análogos vindouros.
Nesse contexto, a prática forense dos operadores do direito tem de ser repensada. Para o advogado, torna-se tão (ou mais) importante quanto conhecer a lei, conhecer os precedentes judiciais, em especial dos tribunais superiores.
Pela ótica dos magistrados, estes devem sempre estar atentos à jurisprudência dos tribunais que lhe são hierarquicamente superiores, e à jurisprudência do pleno ou do órgão especial do próprio tribunal a que pertencem. Por outro lado, a obrigatoriedade dos precedentes racionaliza a prestação jurisdicional, que pode decidir casos idênticos (demandas de massa) com a aplicação dos precedentes vinculantes, aliviando a agenda do juízo e incrementando a qualidade das demais decisões, que ainda não possuem precedente (“hard cases”).
Obviamente que não se pode criar as barreiras da obrigatoriedade dos precedentes sem se desenvolver uma ciência das técnicas de confronto e superação dos precedentes, sob pena de engessamento do Judiciário. Daí a importância fundamental dos institutos do “distinguishing”, do “overruling”, do “overriding” e do “signaling”.
Vê-se, portanto, com excelentes olhos a mudança, que visa a promover princípios tão caros ao Estado Democrático de Direito, como a isonomia, a segurança jurídica e a duração razoável do processo. Resta saber se a comunidade jurídica brasileira está preparada para tamanha revolução de pensamento.
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[2] BRASIL. Constituição Federal de 1988. Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei
[3] TUCCI, José Rogério Cruz e Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 12.
[4] DIDIER Jr., Fredie; BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael Santos de. Curso de Direito Processual Civil. V 2. 10 ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2015. p. 442.
[5] TUCCI, José Rogério Cruz. Op. cit. p. 175.
[6] DIDIER Jr., Fredie; BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael Santos de. Curso de Direito Processual Civil. V 2. 10 ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2015. p. 444.
[7] LEAL, Roger Stiefelmann. O efeito vinculante na jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 168-169.
[8] Embora não seja o objeto deste trabalho, vale lembrar a regra insculpida no § 2o do art. 282 do Novo CPC: “§ 2o Quando puder decidir o mérito a favor da parte a quem aproveite a decretação da nulidade, o juiz não a pronunciará nem mandará repetir o ato ou suprir-lhe a falta.”. Trata-se de regra condizente com o “princípio da primazia do julgamento de mérito, e com o princípio do “pas de nullité sans grief” (não há pronúncia de nulidade sem prejuízo).
[9] Enunciado nº 318 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “os fundamentos prescindíveis para o alcance do resultado fixado no dispositivo da decisão (obiter dicta), ainda que nela presentes, não possuem efeito de precedente vinculante”.
[10] TUCCI, José Rogério Cruz e Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 13.
[11] Em que pese o art. 1.022, parágrafo único, I, NCPC, faça referência apenas à omissão nos casos em que o juiz deixe de se manifestar sobre tese firmada em julgamento ode casos repetitivos ou em incidente de assunção de competência, a melhor interpretação se dá no sentido de que isso vale para todos os precedentes obrigatórios. In: DIDIER Jr., Fredie; BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael Santos de. Curso de Direito Processual Civil. V 2. 10 ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2015. p. 455.
[12] TUCCI, José Rogério Cruz e Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 174.
[13] Enunciado 306 do Fórum Permanente de processualistas Civis: O precedente vinculante não será seguido quando o juiz ou tribunal distinguir o caso sob julgamento, demonstrando, fundamentadamente, tratar-se de situação particularizada por hipótese fática distinta, a impor solução jurídica diversa.
[14] SILVA. Celso Albuquerque. Do efeito vinculante: sua legitimação e aplicação. P. 266-284.
[15] FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Irretroatividade e jurisprudência judicial. In: NERY JR., Nelson. CARRAZZA, Roque Antonio. “Segurança Jurídica e eficácia temporal das alterações jurisprudenciais”. Revista de Direito do Estado. N. 6. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. P. 335.
[16] DIDIER Jr., Fredie; BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael Santos de. Curso de Direito Processual Civil. V 2. 10 ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2015. p. 503.
[17] Enunciado 168 do Fórum Permanente de processualistas Civis: Os fundamentos determinantes do julgamento de ação de controle concentrado de constitucionalidade realizado pelo STF caracterizam a ratio decidendi do precedente e possuem efeito vinculante para todos os órgãos jurisdicionais.
[18] DIDIER Jr., Fredie; BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael Santos de. Curso de Direito Processual Civil. V 2. 10 ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2015. p. 465.
Advogado. Graduado com Láurea pela UFRGS e Pós-Graduado em Processo Civil pela Rede LFG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AITA, Rodrigo Antola. O sistema de precedentes vinculantes inaugurado pelo novo Código de Processo Civil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 jun 2019, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53093/o-sistema-de-precedentes-vinculantes-inaugurado-pelo-novo-codigo-de-processo-civil. Acesso em: 22 dez 2024.
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