RESUMO: O presente artigo aborda, de forma sumária, sob sistemática doutrinária e jurisprudencial o instituto da alienação fiduciária em garantia que tem por objeto bens imóveis. Procurou-se conceituar tal instituto, expondo seus requisitos e suas condicionantes para validade e eficácia da constituição in mora do devedor, a (in)aplicabilidade do adimplemento substancial em tal contrato, bem como acerca da (in)constitucionalidade do procedimento da venda extrajudicial do bem.
ABSTRACT: This article discusses, under the doctrinal and jurisprudential systematically the institute of chattel in warranty which is immovable object. We sought to conceptualize this institute, exposing their requirements and their limitations to validity and effectiveness of the constitution in arrears of the debtor, the (in)applicability of substantial performance in such a contract, as well as about the (in)constitutionality of extrajudicial procedure of sale of the well.
PALAVRAS-CHAVE: alienação fiduciária de bens imóveis. Mora do devedor. Adimplemento substancial. Procedimento extrajudicial de expropriação do bem. Inconstitucionalidade.
SUMÁRIO: Resumo; Abstract; Palavras Chave; 1. Alienação fiduciária em garantia de bens imóveis; 1.1 Adimplemento substancial nos contratos de alienação fiduciária de bem imóvel 2. Da constituição in mora do devedor; 3. A (in)constitucionalidade do procedimento judicial; 4. Considerações finais; 5. Referências das fontes citadas.
1. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA DE BENS IMÓVEIS.
Isagogicamente, a questão da propriedade fiduciária, no Brasil, foi disciplinada, pelo art. 66 da Lei 4.728/1965, cujo objeto é o mercado de capitais, visando ao seu desenvolvimento. De forma sucessiva, em 1969, a norma sofreu alterações por força do Decreto-lei 911/1969, sendo que até a década de 1990, a alienação fiduciária estava restrita aos bens móveis. Todavia, no ano de 1997, surge a Lei 9.514 para cuidar exclusivamente da alienação fiduciária de bens imóveis.
Posteriormente, com a edição do Código Civil de 2002, a alienação fiduciária recebeu um tratamento indireto, uma vez que a propriedade fiduciária passou a compor a norma geral privada, diante das regras inseridas entre os arts. 1.361 e 1.368-A, com as alterações posteriores pela Lei 10.931/2004.
Assim, a Lei 9.514/1997 que trata da alienação fiduciária em garantia de bens imóveis, enunciou no seu art. 1.º que, ipsis litteris,
“A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel”[1].
Tem origem, de acordo com ensinamentos de GONÇALVES[2], em virtude de o credor desejar resguardar seus direitos de futura violação, sendo uma medida de caráter preventivo, com natureza extrajudicial, sendo que o princípio do consensualismo restou sufragado pelos formalismos exigidos para acautelamento de seus direitos.
Frisa-se que pela dicção legal do artigo retro transcrito, aufere-se que a propriedade fiduciária constitui modalidade de propriedade resolúvel, sendo esta aquela que pode ser extinta quer pelo advento de condição (evento futuro e incerto) ou pelo termo (evento futuro e certo), quer pela superveniência de uma causa capaz de destruir a relação jurídica, in casu, o (in)adimplemento do contrato estabelecido.
Conforme TARTUCE[3], “Por meio da alienação fiduciária, o bem a ser adquirido passa a ser da empresa credora, que tem a sua propriedade resolúvel; ficando o devedor com a posse da coisa na qualidade de depositário”.
Ademais, leciona GONÇALVES[4], que a propriedade fiduciária é um negócio jurídico formal, sendo que para se constituir juridicamente e tornar-se-se hábil a produzir seus efeitos no mundo jurídico, deve observar os requisitos contidos no art. 1.361, §1º do Código Civil, devendo conter no contrato, o total da dívida; o prazo, ou a época do pagamento; a taxa de juros; a descrição da coisa objeto da transferência.
Continuando com seus ensinamentos, GONÇALVES frisa que com a constituição da propriedade fiduciária, o devedor torna-se possuidor direto da coisa, sendo que os seus direitos e obrigações irão consistir em: ficar com a posse direta da coisa e o direito eventual de reaver a propriedade plena, com o pagamento da dívida; purgar a mora, em caso de lhe ser movida ação de busca e apreensão; receber o saldo apurado na venda do bem efetuada pelo fiduciário para satisfação de seu crédito; responder pelo remanescente da dívida, se a garantia não se mostrar suficiente; não dispor do bem alienado, que pertence ao fiduciário; entregar o bem, em caso de inadimplemento de sua obrigação, sujeitando-se ao pagamento de perdas e danos.
Registra-se que os direitos e obrigações do fiduciário consistem em proporcionar ao alienante o financiamento a que se obrigou, bem como em respeitar o direito ao uso regular da coisa por parte deste, na forma do art. 1.364 do CC.
Insta salientar que a alienação fiduciária não se enquadra no quadro geral dos direitos pessoais, mas sim no direito das coisas, como garantia real, não podendo ser confundida com um contrato, sendo este apenas o ato que a instituiu.
Nesta linha de raciocino, expõe TARTUCE:
“É notório que a alienação fiduciária em garantia é tratada por muitos como contrato, notadamente como um contrato empresarial. Porém, conforme se retira do pensamento dos civilistas, em sua maioria, a alienação fiduciária em garantia não constitui um contrato, no sentido categórico e jurídico do termo, eis que o instituto se situa dentro do Direito das Coisas. É verdade que, no geral, a alienação fiduciária é instituída por contrato, no sentido de negócio ou instrumento negocial, mas não se pode enquadrá-la como um direito pessoal de caráter patrimonial”[5].
Frisa-se que tal modalidade de garantia, poderá ser celebrada tanto por pessoa física quanto jurídica, conforme estabelece o art. 22, § 1.º, da Lei 9.514/1997 que “A alienação fiduciária poderá ser contratada por pessoa física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no SFI[...]”.
De acordo com o que disciplina a Lei 9.514/1997, a alienação fiduciária em garantia ocorre quando o devedor – ou fiduciante –, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor – ou fiduciário –, a propriedade resolúvel de coisa imóvel (art. 22).
Parafraseando TARTUCE[6], a alienação fiduciária pressupõe a transferência da propriedade por meio de um negócio jurídico obrigacional, um contrato em sentido de instrumento negocial. Como consequência, com a alienação surge a propriedade fiduciária, esta sim um direito real de garantia que produz efeitos erga omnes e por isso necessita de algumas formalidades para existir, formalidades estas, já citadas.
O fiduciário sempre deve agir com lealdade, devolvendo a propriedade assim que ocorra a condição suspensiva.
A transmissão da propriedade ocorre em dois momentos. De início, como garantia ao fiduciário, de forma transitória e temporária. Depois, se o fiduciante cumprir com as obrigações assumidas, o bem lhe retornará de forma automática, independentemente de qualquer interpelação.
Conceituando, a alienação fiduciária em garantia constitui um negócio jurídico que traz como conteúdo um direito real de garantia sobre coisa própria.
Portanto, três são as pessoas envolvidas no negócio: o vendedor (alienante anterior da coisa), o comprador, que passa a ser o devedor fiduciante, e o credor fiduciário, que tem a propriedade resolúvel da coisa.
Continua TARTUCE, no tocante à sua natureza jurídica de direito real, a alienação fiduciária em garantia envolve a publicidade do ato jurídico. Em se tratando de imóveis ou de móveis infungíveis, sua posse fica com o devedor e a tradição será ficta, por meio do constituto possessório ou clausula constitui, uma vez que o devedor fiduciante, na qualidade de dono do bem, tinha a posse direta e a indireta, mas com a alienação fiduciária passa a ter apenas a posse direta, perdendo a indireta ao transferir a propriedade ao credor fiduciário. O devedor que possuía o bem em nome próprio passa a possuí-lo em nome alheio.
Anote-se que não há qualquer óbice para que o imóvel alienado seja dado mais uma vez em garantia, pela mesma modalidade. Nesse sentido, aliás, enunciado aprovado na V Jornada de Direito Civil, com a seguinte redação: “Estando em curso contrato de alienação fiduciária, é possível a constituição concomitante de nova garantia fiduciária sobre o mesmo bem imóvel, que, entretanto, incidirá sobre a respectiva propriedade superveniente que o fiduciante vier a readquirir, quando do implemento da condição a que estiver subordinada a primeira garantia fiduciária; a nova garantia poderá ser registrada desde a data em que convencionada e será eficaz desde a data do registro, produzindo efeito ex tunc” (Enunciado n. 506).
Ademais, segundo o art. 22, § 2.º, da Lei 9.514/1997, igualmente incluído pela Lei 11.481/2007, além da propriedade plena, podem ser objeto de alienação fiduciária em garantia os bens enfitêuticos; o direito de uso especial para fins de moradia; o direito real de uso e a propriedade superficiária.
A exemplo do que consta do Código Civil e do Decreto-lei 911/1969, o art. 24 da Lei 9.514/1997[7] consagra os requisitos do instrumento ou contrato que serve de título ao negócio fiduciário, que envolvem a sua eficácia, a saber: o valor do principal da dívida; o prazo e as condições de reposição do empréstimo ou do crédito do fiduciário; a taxa de juros e os encargos incidentes; a cláusula de constituição da propriedade fiduciária, com a descrição do imóvel objeto da alienação fiduciária e a indicação do título e modo de aquisição; a cláusula assegurando ao fiduciante, enquanto adimplente, a livre utilização, por sua conta e risco, do imóvel objeto da alienação fiduciária; a indicação, para efeito de venda em público leilão, do valor do imóvel e dos critérios para a respectiva revisão; a cláusula dispondo sobre os procedimentos do leilão judicial previsto no art. 27 da mesma lei.
A lei específica da alienação fiduciária em garantia de bens imóveis autoriza a cessão do crédito objeto da alienação fiduciária (art. 28). Em situação tal, a cessão implicará a transferência, ao cessionário, de todos os direitos e obrigações inerentes à propriedade fiduciária em garantia. Além disso, o devedor fiduciante também poderá, com anuência expressa do credor fiduciário, transmitir os direitos de que seja titular sobre o imóvel objeto da alienação fiduciária em garantia, assumindo o adquirente as respectivas obrigações (art. 29).
TARTUCE, em relação à extinção da alienação mediante adimplemento contratual, leciona:
“Como mencionado, com o pagamento da dívida e seus encargos, resolve-se, nos termos do art. 25, caput, da lei, a propriedade fiduciária do imóvel. Ocorrendo o pagamento, no prazo de trinta dias, a contar da data de liquidação da dívida, o fiduciário fornecerá o respectivo termo de quitação ao fiduciante, sob pena de multa em favor deste, equivalente a meio por cento ao mês, ou fração, sobre o valor do contrato (art. 25, § 1.º, da Lei 9.514/1997). Sendo apresentado esse termo de quitação, o oficial do competente Registro de Imóveis efetuará o cancelamento do registro da propriedade fiduciária (art. 25, § 2.º, da Lei 9.514/1997)”[8].
In fine, estando inadimplida (vencida e não paga, em todo ou em parte) a dívida, com a mora constituída do devedor fiduciante, conforme o art. 26 da Lei 9.514/1997, consolidar-se-á a propriedade do imóvel em nome do fiduciário, sendo tal consolidação regulamentada pelos parágrafos do artigo retro mencionado, em suma, será intimado pessoalmente o fiduciante para purgar a mora no prazo de 15 (quinze) dias, por intermédio de Oficial do Registro de Títulos e Documentos da Comarca da situação do imóvel, ou do domicílio do devedor, podendo ser efetuada via AR/MP, podendo ser utilizada a intimação por edital, à critério do oficial. Purgada a mora, em três dias o oficial do registro entregará ao credor fiduciário a importância recebida, deduzida das despesas.
Não efetuado o pagamento, e uma vez consolidada a propriedade em seu nome, o credor fiduciário, no prazo de 30 dias, contados da data do registro da consolidação, promoverá leilão público para a alienação do imóvel. Se, no primeiro leilão, o maior lance oferecido for inferior ao valor do imóvel, será realizado o segundo leilão, nos 15 dias seguintes (art. 27, § 1.º, da Lei 9.514/1997). Nesse segundo leilão, será aceito o maior lance oferecido, desde que igual ou superior ao valor da dívida, das despesas, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais (art. 27, § 2.º, da Lei 9.514/1997).
1.1 ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL NOS CONTRATOS DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BEM IMÓVEL
A Teoria do Adimplemento Substancial encontra, ainda, fundamento legal de validade nos diversos princípios que norteiam as relações e negócios jurídicos - todos com fundo constitucional -, dentre os quais se destaca o princípio da função social dos contratos (artigo 421 do Código Civil), da vedação ao abuso de direito (artigo 187 do Código Civil), da vedação ao enriquecimento sem causa (artigo 884 do Código Civil) e, em especial, da boa-fé objetiva (artigo 422 do Código Civil), hoje, considerada como cláusula geral nas relações contratuais.
Sobre o princípio da boa-fé objetiva, RIZZARDO[9] leciona, com muita precisão, que a segurança das relações jurídicas depende, em grande parte, da probidade e da boa-fé, isto é, da lealdade, da confiança recíproca, da justiça, da equivalência das prestações e contraprestações, da coerência e clarividência dos direitos e deveres.
A Teoria do Adimplemento Substancial tem sua existência e validade quando se está diante da terceira modalidade de inadimplemento, qual seja, o inadimplemento insignificante, também conhecido por quase adimplemento. Nesta situação, se verifica que houve cumprimento do essencial da obrigação, tendo havido a satisfação quase integral dos interesses do credor e sendo, ainda, interessante satisfazer o remanescente. Incabível, portanto, a resolução do contrato, sob pena de se permitir a má-fé e/ou o abuso de direito, o que é repugnado e vedado em nosso ordenamento jurídico.
Para BECKER[10] o adimplemento substancial consiste em um resultado tão próximo do almejado, que não chega a abalar a reciprocidade, o sinalagma das prestações correspectivas. Por esta razão, mantém-se o contrato, concedendo-se ao credor o direito a ser ressarcido pelos defeitos da prestação, porque o prejuízo, ainda que secundário, se existe deve ser reparado.
Com base no que foi dito até aqui, pode-se dizer que, para a configuração do adimplemento substancial, faz-se necessária a verificação de alguns pressupostos, sem os quais deve ser permitida a resolução e a extinção do contrato pelo credor. Nesse sentido, se destacam, resumidamente: a) o cumprimento expressivo do contrato; b) a insignificância do inadimplemento; c) a prestação realizada que atenda à finalidade do negócio jurídico; d) a satisfação do interesse do credor; e) a boa-fé objetiva na execução do contrato; f) a diligência por parte do devedor; g) a preservação do equilíbrio contratual; h) a ausência de enriquecimento sem causa e de abuso de direito, de parte a parte. Verificando-se tais pressupostos deve a Teoria do Adimplemento Substancial ser aplicada na sua plenitude[11].
Por fim, cumprido tais requisitos, a jurisprudência é pacífica na aplicação da referida teoria nos casos sub judices, cabendo ao credor fiduciária recorrer a outro meio para persecução de seu crédito do que a resolução contratual e a expropriação prevista na referida lei, conforme julgados:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BEM IMÓVEL. ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL APLICÁVEL. - Adimplemento Substancial é aplicável se comprovado nos autos que o valor inadimplido é consideravelmente menor que às parcelas já pagas, levando em conta o montante total do contrato. - No caso em comento, há comprovação que o valor devido pela agravante é irrelevante se comparado ao que já foi pago ou o total contratado. Sendo, portanto, aplicável a tese do "Adimplemento Substancial" ao presente caso. - Decisão recorrida mantida incólume. AGRAVO DE INSTRUMENTO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. TJ-AM - AI: 40041308920148040000 AM 4004130-89.2014.8.04.0000, Relator: Yedo Simões de Oliveira, Data de Julgamento: 23/03/2015, Primeira Câmara Cível, Data de Publicação: 23/03/2015)
APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL C/C REINTEGRAÇÃO DE POSSE – COMPRA E VENDA DE IMÓVEL – PAGAMENTO DE 84% DO CONTRATO – TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL – RECURSO NÃO-PROVIDO. Mostra-se viável a aplicação da Teoria do Adimplemento Substancial havendo o cumprimento significativo e expressivo das obrigações assumidas, tendo como propósito principal a preservação do interesse do consumidor contra eventuais abusos por parte do credor, sempre em observância aos princípios da função social e da boa-fé objetiva, não se admitindo, assim, a rescisão do contrato. (TJ-MS - APL: 08225696120148120001 MS 0822569-61.2014.8.12.0001, Relator: Des. Claudionor Miguel Abss Duarte, Data de Julgamento: 05/08/2015, 4ª Câmara Cível, Data de Publicação: 06/08/2015)
Por fim:
RESCISÃO DE CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL - PREÇO - PAGAMENTO - ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL - CONFIGURAÇÃO - ENCARGOS DA MORA - AÇÃO PRÓPRIA. Ocorre o adimplemento substancial, quando a prestação for essencialmente cumprida, estando assim satisfeitos os interesses do credor. Nessa situação o instituto resolutório é afastado em virtude do proveito da prestação pelo credor, afigurando-se injustos os efeitos decorrentes da resolução. O adimplemento substancial está configurado quando pago o preço de venda do imóvel objeto de contrato particular de promessa de compra e venda, ainda que de maneira impontual, situação jurídica que obsta a pretensão rescisória do contrato fundada na falta de quitação dos encargos da mora. Assim sendo, aos promitentes vendedores, desejosos por haverem a quitação dos encargos da mora, de ação própria devem se valer, procedimento que assegura o equilíbrio do contrato de promessa de compra e venda de imóvel e evita o enriquecimento sem causa de qualquer das partes. Recurso não provido. (TJ-MG - AC: 10702120224069001 MG, Relator: Saldanha da Fonseca, Data de Julgamento: 23/04/2014, Câmaras Cíveis / 12ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 30/04/2014)
2. DA CONSTITUIÇÃO IN MORA DO DEVEDOR.
De acordo com ensinamentos prescritos na obra de NADER[12], ara a caracterização da mora do devedor devem estar presentes requisitos, entre os quais o da exigibilidade da dívida, ou seja, que a obrigação seja válida, certa e vencida. Se a obrigação é nula, não produz efeito; se é incerta, carece de um dado básico para o seu cumprimento: a determinação; se ainda por vencer, encontra-se na esfera de preparação de pagamento. Ademais, imprescindível que o devedor tenha atuado culposamente, seja por culpa em sentido estrito – imprudência, imperícia ou negligência –, seja por dolo.
In fine, se o incumprimento foi provocado pelo credor não há de se falar em mora solvendi. Decidiu o Superior Tribunal de Justiça que: “A cobrança de encargos indevidos pelo credor afasta a mora do devedor, nos termos do entendimento pacificado na Segunda Seção desta Corte.”.
Conforme STJ:
Verificada a cobrança de encargo abusivo no período da normalidade contratual, resta descaracterizada a mora do devedor. Afastada a mora: i) é ilegal o envio de dados do consumidor para quaisquer cadastros de inadimplência; ii) deve o consumidor permanecer na posse do bem alienado fiduciariamente; e iii) não se admite o protesto do título representativo referente à dívida.“(STJ.REsp 1061530/RS– Segunda Seção–Rel. Min. Nancy Andrighi julgado em . 22.10.2008 – DJe 10.03.2009).
Ademais, leciona que inviabilizado o cumprimento da obrigação nos termos do contrato ou da lei, mas por ato de terceiro, não haverá mora.
Por fim, Nader afirma que quando se toma por referência um objeto de prestação diverso do que é devido ou se indica um outro lugar para o cumprimento da obrigação, a interpelação será inválida, imprópria para a constituição da mora solvendi.
3. A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO PROCEDIMENTO EXTRAJUDICIAL.
A referida (in)constitucionalidade está inserida no segundo leilão previsto na lei 9.514/1997, em que será aceito o maior lance oferecido, desde que igual ou superior ao valor da dívida, das despesas, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais. Isso porque o leilão independe de ação judicial, ocorrendo de forma administrativa, perante o Registro de Imóveis. Assim, se houve o pagamento de R$ 70.000,00 de um débito total de R$ 100.000,00, quando o seu imóvel for a leilão, nada impede que no segundo leilão seja a coisa vendida por apenas R$ 30.000,00.
Segundo TARTUCE[13], o sistema vigente de Direito Civil, é baseado nos princípios da eticidade e da socialidade, sendo que tal procedimento fere tais princípios, porquanto a lei considera como dívida o saldo devedor da operação de alienação fiduciária, na data da sua realização, nele incluídos os juros convencionais, as penalidades e os demais encargos contratuais. Considera como despesas a soma das importâncias correspondentes aos encargos e custas de intimação, bem como as necessárias à realização do leilão público, nestas compreendidas as relativas aos anúncios e à comissão do leiloeiro.
Nesse caso, o credor fiduciário, no prazo de cinco dias a contar da data do segundo leilão, dará ao devedor fiduciante quitação da dívida, mediante termo próprio (art. 27, § 6.º, da Lei 9.514/1997).
Na visão de TARTUCE[14], é exagerado entender pela inconstitucionalidade, a priori. Em sua visão, vem decidindo a jurisprudência, havendo abusos, o devedor fiduciante poderá questionar judicialmente o procedimento administrativo previsto na lei específica, assegurando-se o acesso à justiça e o contraditório.
Conforme Jurisprudência:
Alienação fiduciária. Bem imóvel. Reintegração de posse. Liminar. Consolidação da propriedade (artigos 26 e 30 da Lei 9.514/1997). Constitucionalidade. Reconhecimento. Observando-se, com rigor, os artigos 22 a 30 da Lei 9.514/1997 e consolidada a propriedade fiduciária em nome do credor, assegura-lhe a lei o direito à concessão liminar da reintegração de posse do imóvel, que deverá ser desocupado no prazo de sessenta dias. A previsão de leilão extrajudicial e consolidação da propriedade fiduciária em nome do credor por ato do registrador imobiliário não afronta a Constituição Federal, já que o acesso ao Judiciário, a ampla defesa e o contraditório continuam assegurados ao devedor que se sentir prejudicado” (Segundo Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, AI 880.879-00/2, 5.ª Câm., Rel. Des. Pereira Calças, j. 27.01.2005).
Ademais, TARTUCE leciona que tal procedimento está de acordo com a função social da propriedade. Isso porque a facilidade do credor fiduciário em receber o seu crédito e o leilão como meio coercitivo seriam fatores de incentivo para novos investimentos na construção civil, incrementando o acesso à moradia.
Frisa-se que é até comum que as alienações fiduciárias em garantia para as aquisições futuras de imóveis tragam como conteúdo desproporções negociais, situações de onerosidade excessiva.
Continua TARTUCE[15]:
Opina-se que o art. 27, § 2.º, da Lei 9.514/1997 seja compreendido nos moldes de que esse novo lance não pode ser muito inferior ao valor da coisa que garante a dívida. Não sendo assim, estará configurada a onerosidade excessiva do negócio jurídico a fundamentar a sua revisão, ou mesmo a sua anulação. Para esse argumento, pode-se citar o mencionado art. 157 do CC em vigor, que se refere à lesão como vício do negócio jurídico.
Seguindo parcialmente essa linha, anote-se que, na VI Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça em 2013, foi aprovado o Enunciado 567, segundo o qual “a avaliação do imóvel para efeito do leilão previsto no § 1.º do art. 27 da Lei n. 9.514/1997 deve contemplar o maior valor entre a avaliação efetuada pelo município para cálculo do imposto de transmissão inter vivos (ITBI) devido para a consolidação da propriedade no patrimônio do credor fiduciário e o critério fixado contratualmente”.
Ex positis, o leilão extrajudicial previsto na Lei 9.514/1997 não é inconstitucional, todavia, tal procedimento fere o princípio da socialidade, bem como deixa o devedor, até mesmo consumidor, em situação de extrema onerosidade excessiva, causando prejuízo em detrimento da alienação ao valor mínimo possível.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Incontroverso que tal modalidade de garantia de direito real resultou em singela inovação a execução dos contratos inadimplidos, trazendo inúmeros benefícios aos credores fiduciários, contudo tal procedimento, na vista deste autor, muito embora constitucional, mostra-se diretamente prejudicial ao devedor.
Verificou-se ser perfeitamente aplicável a teoria do adimplemento substancial nos contratos de alienação fiduciária em garantia de bem imóvel, haja vista a função social da propriedade e desde que presentes os requisitos de aplicabilidade de tal teoria, sendo um meio de limitar a discricionariedade do credor frente o inadimplemento ínfimo do devedor.
É certo que nenhum contrato, ao menos, contém em sua essência a intenção dos contratantes em não cumprir ao que fora pactuado, a qual, na maioria das vezes, resulta de um fato imprevisível, que acarreta onerosidade excessiva, dependendo de interpelação judicial para buscar rever o pactuado, contudo diante do procedimento extrajudicial prevista no tema analisado, verificou-se que poderá haver a alienação do bem, que no caso imóvel, o qual possui valorização no mercado, em valor inferior ao realmente avaliado, podendo haver sua arrematação unicamente no valor restante para o adimplemento da obrigação, independentemente do valor real do imóvel, causando prejuízo ao devedor, o qual não terá saldo a rever, dependendo de manifestação judicial para eventual nulidade.
De outro norte, mostra-se inovador e possibilita avanço para a aquisição de bens imóveis, tendo o devedor posse direta do bem, enquanto o credor a propriedade resolúvel, o qual traz benefícios para ambas às partes. Verifica-se que tal garantia de direito real deverá estar prevista nos contratos, até mesmo de adesão, dependendo de formalidades para gerar eficácia na seara jurídica, sendo que, no âmbito das instituições financeiras, cobranças indevidas em tal financiamento, afasta a constituição in mora do devedor, e consequentemente atinge o procedimento extrajudicial, há também a possibilidade de aplicação da teoria do adimplemento substancial.
5. REFERÊNCIAS DAS FONTES CITADAS.
BECKER, Anelise. “A Doutrina do Adimplemento Substancial no Direito Brasileiro e em Perspectiva Comparativista”. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, V. 9, n. 1, 2006.
BRASIL. Lei 9.514, de 20 de novembro de 1997. Dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências. Brasília, DF: novembro 1997.
BRASIL. TJ-AM - AI: 40041308920148040000 AM 4004130-89.2014.8.04.0000, Relator: Yedo Simões de Oliveira, Data de Julgamento: 23/03/2015, Primeira Câmara Cível, Data de Publicação: 23/03/2015.
BRASIL. TJ-MS - APL: 08225696120148120001 MS 0822569-61.2014.8.12.0001, Relator: Des. Claudionor Miguel Abss Duarte, Data de Julgamento: 05/08/2015, 4ª Câmara Cível, Data de Publicação: 06/08/2015.
BRASIL. TJ-MG - AC: 10702120224069001 MG, Relator: Saldanha da Fonseca, Data de Julgamento: 23/04/2014, Câmaras Cíveis / 12ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 30/04/2014.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil esquematizado. v. 1., 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil esquematizado: contratos em espécie, direito das coisas. v. 2., 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
NADER, Paulo. Curso de direito civil, volume 4: direito das coisas. 7. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
RIZZARDO, Arnaldo. Contratos: Lei 10.406, de 10.01.2002, 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
TARTUCE, Flávio. Direito civil, v. 4: Direito das Coisas. 9. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
TORRES, Paula Cunha Menezes. A teoria do Adimplemento Substancial. Artigo. Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, 2009.
[1] BRASIL. Lei 9.514, de 20 de novembro de 1997. Dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências. Brasília, DF: novembro 1997.
[2] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil esquematizado: Parte geral, obrigações, contratos, p. 456/1369.
[3] TARTUCE, Flávio. Direito civil, v. 4: Direito das coisas, p. 449.
[4] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil esquematizado: contratos em espécie, direito das coisas, p. 776-782.
[5] TARTUCE, Flávio. Direito civil, v. 4: Direito das coisas, p. 450.
[6] TARTUCE, Flávio. Direito civil, v. 4: Direito das coisas, p. 451-553.
[7] BRASIL. Lei 9.514, de 20 de novembro de 1997. Dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências. Brasília, DF: novembro 1997.
[8] TARTUCE, Flávio. Direito civil, v. 4: Direito das coisas, p. 380.
[9] RIZZARDO, Arnaldo. Contratos: Lei 10.406, de 10.01.2002, 3 ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2004.
[10] BECKER, Anelise. “A Doutrina do Adimplemento Substancial no Direito Brasileiro e em Perspectiva Comparativista”. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, V. 9, n. 1, 2006, p. 60.
[11] TORRES, Paula Cunha Menezes. A teoria do Adimplemento Substancial. Artigo. Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, 2009. P. 12-15.
[12] NADER, Paulo. Curso de direito Civil: Obrigações, p. 562.
[13] TARTUCE, Flávio. Direito civil, v. 4: Direito das coisas, p. 380.
[14] TARTUCE, Flávio. Direito civil, v. 4: Direito das coisas, p. 381-382.
[15] TARTUCE, Flávio. Direito civil, v. 4: Direito das coisas, p. 383-384.
Jovem Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI. Acadêmico premiado com o mérito estudantil de melhor aproveitamento dos formandos 2018/2 concedido pela OAB/SC. LinkedIn: https://www.linkedin.com/in/lucas-felipe-zuchi-272295146 Lattes: http://lattes.cnpq.br/7184286273235039
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ZUCHI, Lucas Felipe. Alienação fiduciária de imóveis: a (in)aplicabilidade do adimplemento substancial e a (in)constitucionalidade do procedimento extrajudicial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 jun 2019, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53105/alienacao-fiduciaria-de-imoveis-a-in-aplicabilidade-do-adimplemento-substancial-e-a-in-constitucionalidade-do-procedimento-extrajudicial. Acesso em: 23 dez 2024.
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