RODOLFO PAMPLONA FILHO[1]
(Coautor)
“Um ser humano tem o direito de viver com dignidade, igualdade e segurança. Não pode haver segurança sem uma paz verdadeira, e a paz precisa ser construída sobre a base firme dos direitos humanos” (Sergio Vieira de Mello)
RESUMO: O presente trabalho destina-se à análise dos aspectos essenciais da disciplina protetiva do trabalhador migrante em âmbito internacional.
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Acesso ao trabalho e dignidade humana. 3 A proteção jurídica do trabalho do migrante. 4 Conclusões.
1 INTRODUÇÃO
O tratamento jurídico conferido a trabalhadores migrantes pode ser visualizado como uma das questões mais complexas e controversas da contemporaneidade.
O tema envolve reflexões a respeito dos direitos humanos, da soberania dos Estados (e de seus atuais limites jurídicos), da odiosa prática de discriminação em razão de origem nacional (atrelada às figuras do racismo e da xenofobia), além dos desafiadores problemas atinentes ao controle de fronteiras. Os frequentes casos de tráfico de pessoas e a constatação de que um número expressivo de deslocamentos internacionais é motivado por um quadro de absoluta miséria no local de origem revelam que a questão das migrações laborais está intimamente relacionada a alguns dos mais graves problemas em matéria de direitos humanos.
O presente texto propõe-se a expor alguns dos mais relevantes aspectos a respeito do marco internacional de proteção dos trabalhadores migrantes. As reflexões serão conduzidas a partir de duas linhas argumentativas: a percepção de que o acesso ao trabalho é um valor em si e é diretamente vinculado à concretização da dignidade humana e a apresentação do arcabouço normativo direcionado à proteção dos migrantes em matéria de trabalho e sua imbricação com a questão da soberania dos Estados.
É o que será realizado a seguir.
2 ACESSO AO TRABALHO E DIGNIDADE HUMANA
A sabedoria popular ensina que o trabalho dignifica o ser humano.
Em termos jurídicos, a máxima revela-se totalmente acertada, o que não é surpreendente, já que, apesar das questões técnicas específicas, o Direito pode ser visualizado, numa perspectiva ampla, como o conjunto de regras e princípios que concretizam os ideais de justiça e de vida boa de uma sociedade, em dado momento histórico.
Caminhando ao encontro dessa ideia, a Organização Internacional do Trabalho sustenta que a todo aquele cuja sobrevivência depende da oferta de sua energia no mercado deve ser assegurado um trabalho em condições dignas, isto é, um trabalho decente.
A noção de trabalho decente propugnada pela Organização envolve[2]:
a) a promoção do emprego produtivo e de qualidade, que permita ao obreiro sua própria realização pessoal e a participação para a concretização bem-estar coletivo;
b) a ampliação das medidas de proteção social;
c) o incentivo ao diálogo social;
d) o respeito aos princípios e direitos fundamentais no trabalho, consagrados na Declaração de 1998 e nas Convenções 29 e 105 (abolição do trabalho escravo), 138 e 182 (proibição do trabalho infantil), 100 e 111 (proibição à discriminação no emprego) e 87 e 98 (liberdade sindical e negociação coletiva).
Em outras palavras: o trabalho deve ser um meio para a realização do indivíduo, para o desenvolvimento de suas potencialidades, para o fortalecimento de suas relações sociais, para a contribuição para o desenvolvimento socioeconômico da nação e para a obtenção dos resultados financeiros pretendidos pelo seu empregador, bem como para a participação em um esforço coletivo de proteção do meio ambiente, especialmente daquele em que o labor é executado. Presentes essas condições, pode-se falar de trabalho decente, produtivo, sustentável e de qualidade.
Não restam dúvidas de que o trabalho é — e deve ser reconhecido como — um dos mais relevantes veículos para a plena realização do ser humano, não um instrumento para a violação de sua dignidade.
Essa percepção da centralidade do trabalho para o amplo desenvolvimento das potencialidades e concretização do bem-estar dos indivíduos é reforçada ao constatar-se que as mais prestigiadas visões, filosóficas e jurídicas, em torno do conteúdo mínimo da dignidade humana envolvem elementos cuja materialização é particularmente evidente no campo das relações sociais de trabalho: a) a autonomia do ser humano em suas escolhas, a livre determinação dos caminhos mediante os quais o sujeito realizará seu ideal de vida boa, respeitadas, obviamente, as diretrizes necessárias à convivência social; b) a garantia de um conjunto de direitos materiais mínimos que viabilizem o efetivo exercício dessa autonomia mencionada; c) vedação a condutas que importem em degradação, humilhação ou rebaixamento da pessoa humana.
Precisamente por isso, a garantia de proteção jurídica ao trabalho do migrante (inclusive sob a perspectiva de acesso a postos de trabalho) é, para além de uma questão de postura política dos Estados, um imperativo de tutela dos direitos humanos. É sob essa perspectiva que o próximo tópico será desenvolvido.
3 A PROTEÇÃO JURÍDICA DO TRABALHO DO MIGRANTE
Em qualquer discussão a respeito tratamento jurídico conferido aos migrantes no âmbito de qualquer dos ramos do Direito, o primeiro ponto que deve ser destacado e reafirmado é que o sistema global (Carta Internacional dos Direitos Humanos) não condiciona a titularidade de direitos humanos à nacionalidade das pessoas, conforme pode ser observado, por exemplo, no art. 1º[3] da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
O segundo aspecto a ser sublinhado diz respeito especificamente aos trabalhadores em situação migratória, os quais, por força de diversos documentos internacionais, não podem ser privados de seus direitos humanos, inclusive do acesso ao trabalho, seja por este constituir-se em um valor em si, conforme exposto no tópico anterior, seja pelo fato de que, em um regime de economia de mercado, ele é o meio por excelência para obtenção dos bens em geral e, por consequência, para a sobrevivência do indivíduo e de sua família. É dizer: a situação migratória, por si só, jamais poderá ser utilizada como justificativa para o oferecimento de proteção jurídico-trabalhista ao estrangeiro menos favorável (e, portanto discriminatória) do que a conferida aos nacionais.
Essa conclusão pode ser extraída da leitura conjugada de diversos diplomas concebidos por um dos entes internacionais com atuação mais relevantes em matéria de proteção dos direitos humanos, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a saber: as Convenções n.º 19, art. 1º[4], n.º 97, arts. 6º[5] e 11[6], n.º 117, arts. 3º (item 2[7]) e 6º[8], n.º 143, art. 9º[9], o Marco Multilateral da OIT para Migrações Laborais (2005), o Protocolo à Convenção n.º 29 (2014), art. 2º[10], e a Recomendação n.º 203, art. 4º[11].
No mesmo sentido é a previsão contida no art. 7º da Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias:
Os Estados Partes comprometem-se, em conformidade com os instrumentos internacionais relativos aos direitos humanos, a respeitar e a garantir os direitos previstos na presente Convenção a todos os trabalhadores migrantes e membros da sua família que se encontrem no seu território e sujeitos à sua jurisdição, sem distinção alguma, independentemente de qualquer consideração de raça, cor, sexo, língua, religião ou convicção, opinião política ou outra, origem nacional, étnica ou social, nacionalidade, idade, posição económica, património, estado civil, nascimento ou de qualquer outra situação.
Estabelecidas essas premissas, é importante avançar para uma temática que diz respeito, a um só tempo, à concretização dos direitos mencionados e à soberania das nações.
É certo que a observância espontânea e integral pelos Estados nacionais dos parâmetros internacionais de proteção dos direitos humanos é um cenário distante da realidade atual.
Não obstante — e sem deixar de lado as relevantes considerações relativas ao respeito às peculiaridades culturais locais como direito dos povos —, é papel de todos os envolvidos com o sistema de justiça reafirmar que a simples circunstância de um Estado não haver formalmente subscrito um documento internacional de direitos humanos não pode ser invocada para, desacompanhada de elementos concretos e racionalmente justificáveis, que sejam ignoradas quaisquer orientações emanadas de tais diplomas.
Isso porque os direitos humanos constituem-se em posições jurídicas dotadas de jus cogens internacional, dado reconhecido em documentos amplamente reconhecidos pelas comunidades jurídicas como basilares para a construção dos parâmetros normativos que norteiam as sociedades contemporâneas, a exemplo da Declaração e Programa de Ação de Viena (1993), em seu art. 5º[12] e da Convenção de Viena de 1969, em seu art. 53[13].
Trata-se, em verdade, de levar a sério a lição filosófica decisiva para a construção dos pilares da comunidade internacional a partir de meados do século XX: a de que os direitos reconhecidos em dado momento histórico como essenciais à concretização da dignidade das pessoas não podem ser negados, de maneira discriminatória e injustificada, a dado grupo de indivíduos.
4 CONCLUSÕES
Não há dúvidas em relação à dimensão e à complexidade dos desafios práticos relacionados à dinâmica dos movimentos migratórios atuais, especialmente no tocante ao acolhimento dos estrangeiros e à garantia de uma estrutura social capaz de atender as necessidades dos nacionais e daqueles.
Não obstante, não se pode perder de vista que o trabalho é elemento essencial para a viabilização de uma vida digna aos migrantes e às suas famílias. Alijá-los do acesso ao labor em condições de igualdade jurídica com os trabalhadores em geral é, em última análise, atentar contra sua dignidade e negligenciar os parâmetros normativos já reconhecidos pela comunidade internacional.
[1] Juiz do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quinta Região; Professor Titular do Curso de Direito da UNIFACS - Universidade Salvador e Professor Adjunto da Graduação e Pós-Graduação Stricto Sensu (Mestrado e Doutorado) da UFBA - Universidade Federal da Bahia; Professor de Direito do Trabalho e Processo do Complexo de Ensino Renato Saraiva – CERS; Mestre e Doutor em Direito pela PUC/SP; Mestre em Direito Social pela Universidad de Castilla-La Mancha; Membro e ex-Presidente da Academia Brasileira de Direito do Trabalho.
[2] Declaração da OIT sobre a Justiça Social para uma Globalização Equitativa, de 2008.
[3] Artigo 1.º Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.
[4] Art. 1º, 1. Todos os Membros da Organização Internacional do Trabalho que ratificam a presente convenção comprometem-se a conceder aos nacionais de qualquer outro Membro que tenha ratificado a dita convenção, que forem vítimas de acidentes de trabalhos ocorridos em seu território ou em território sob sua dependência, o mesmo tratamento assegurado aos seus próprios acidentados em matéria de indenização por acidentes de trabalho. 2. Esta igualdade de tratamento será assegurada aos trabalhadores estrangeiros e a seus dependentes sem nenhuma condição de residência. Entretanto, no que concerne aos pagamentos que um Membro ou seus nacionais teriam que fazer fora do território do citado Membro em virtude desse princípio, as disposições a tomar serão reguladas, se for necessário, por convenções particulares entre os Membros interessados.
[5] Art. 6º, 1. Todo Membro para o qual se ache em vigor a presente convenção se obriga a aplicar aos imigrantes que se encontrem legalmente em seu território, sem discriminação de nacionalidade, raça, religião ou sexo, um tratamento que não seja inferior ao aplicado a seus próprios nacionais com relação aos seguintes assuntos: (...).
[6] Art. 11, 1. Para os efeitos da presente Convenção, a expressão ‘trabalhador migrante’ designa toda pessoa que emigra de um país para outro com o fim de ocupar um emprego que não será exercido por sua própria conta, e compreende qualquer pessoa normalmente admitida como trabalhador migrante. 2. A presente convenção se aplica: a) aos trabalhadores fronteiriços; b) à entrada por um curto período, de pessoas que exerçam profissão liberal e de artistas; c) aos marítimos.
[7] Art. 3º, 1. Todas as medidas práticas e possíveis deverão ser tomadas, no planejamento do desenvolvimento econômico, a fim de harmonizar tal desenvolvimento a uma evolução sadia das comunidades interessadas. 2. Em particular, dever-se-ão empreender esforços para evitar a ruptura da vida familiar e das unidades sociais tradicionais, especialmente mediante: a) o estudo atento das causas e dos efeitos dos movimentos migratórios e a adoção de medidas adequadas quando necessário;
[8] Art. 6º Quando as circunstâncias de emprego dos trabalhadores exigirem que os mesmos residam fora de seus lares, as condições de tais empregos deverão levar em conta as necessidades familiares normais dos trabalhadores.
[9] Art. 9º, 1 - Sem prejuízo das medidas destinadas a controlar os movimentos migratórios com fins de emprego garantindo que os trabalhadores migrantes entram no território nacional e aí são empregados em conformidade com a legislação aplicável, o trabalhador migrante, nos casos em que a legislação não tenha sido respeitada e nos quais a sua situação não possa ser regularizada, deverá beneficiar pessoalmente, assim como a sua família, de tratamento igual no que diz respeito aos direitos decorrentes de empregos anteriores em relação à remuneração, à segurança social e a outras vantagens. 2 - Em caso de contestação dos direitos previstos no parágrafo anterior, o trabalhador deverá ter a possibilidade de fazer valer os seus direitos perante um organismo competente, quer pessoalmente, quer através dos seus representantes. 3 - Em caso de expulsão do trabalhador ou da sua família, estes não deverão custeá-la. 4 - Nenhuma disposição da presente Convenção impedirá os Estados Membros de conceder às pessoas que residem ou trabalham ilegalmente no país o direito de nele permanecerem e serem legalmente empregadas.
[10] Art. 2º As medidas a serem adotadas para a prevenção do trabalho forçado ou obrigatório deverão incluir: (...)d) proteger pessoas, especialmente trabalhadores migrantes, de possíveis práticas abusivas e fraudulentas durante o processo de recrutamento e colocação;
[11] 4. Levando em consideração as circunstâncias nacionais, os deveriam adotar as medidas preventivas mais eficazes, tais como: g) orientações e informações para migrantes, antes da partida e na sua chegada, com o objetivo de que estejam melhor preparados para trabalhar e viver no exterior e para promover a conscientização e um melhor entendimento sobre o tráfico para situações de trabalho forçado; h) políticas coerentes, tais como emprego e políticas de migração para o trabalho, que levem em consideração os riscos enfrentados por grupos específicos de migrantes, incluindo aqueles em uma situação irregular, e tratar de circunstâncias que poderiam resultar em situações de trabalho forçado;
[12] Art. 5º Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos de forma global, justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase. Embora particularidades nacionais e regionais devam ser levadas em consideração, assim como diversos contextos históricos, culturais e religiosos, é dever dos Estados promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, sejam quais forem seus sistemas políticos, econômicos e culturais.
[13] Art. 53 É nulo um tratado que, no momento de sua conclusão, conflite com uma norma imperativa de Direito Internacional geral. Para os fins da presente Convenção, uma norma imperativa de Direito Internacional geral é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por norma ulterior de Direito Internacional geral da mesma natureza.
Juiz do Trabalho Substituto no Tribunal Regional do Trabalho da Sexta Região. Mestre em Relações Sociais e Novos Direitos pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pelo JusPodivm/BA. Diretor de Prerrogativas da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da Sexta Região -- AMATRA VI (gestão 2018/2020). Professor. Membro do Instituto Baiano de Direito do Trabalho (IBDT).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TEIXEIRA, Leandro Fernandez. Reflexões em torno da normatização internacional de proteção do trabalhador migrante Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 jul 2019, 04:50. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53224/reflexes-em-torno-da-normatizao-internacional-de-proteo-do-trabalhador-migrante. Acesso em: 23 dez 2024.
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