Para que possamos compreender os modelos de investigação existentes e as especificidades dos procedimentos investigativos regulamentados no Brasil, torna-se imprescindível o estudo das funções de uma investigação criminal prévia ao processo.
Afinal, qual seria a finalidade da investigação preliminar? Quais são seus objetivos? O que se deve buscar durante o seu desenvolvimento? Foi com a finalidade de responder todas essas indagações que nesse estudo ousamos defender a existência de um Funcionalismo que deve pautar a apuração de toda e qualquer infração penal.
Função Preparatória
O objeto de uma investigação criminal é sempre a notitia criminis. Isso significa que é a possibilidade de ocorrência de uma infração penal que justifica a deflagração de um procedimento investigativo cuja finalidade seja, entre outras, a de viabilizar o perfeito esclarecimento dos fatos, suas circunstâncias e motivações.
Com a adoção do Sistema Acusatório pelo nosso ordenamento jurídico, não cabe ao Estado-Juiz dar início a um processo. Essa pretensão acusatória deve ser exercida, em regra, pelo Ministério Público, titular da ação penal pública, ou excepcionalmente pelo ofendido, nos crimes de ação penal privada.
Mas como exercer essa atividade acusatória sem dispor dos elementos mínimos sobre autoria e materialidade?! É esta, pois, a primeira função da investigação criminal: reunir elementos indiciários sobre a autoria e materialidade delituosa, preparando, assim, o exercício da ação penal pelo seu titular.
Ao discorrer sobre as finalidades do inquérito policial, principal instrumento investigativo do nosso ordenamento jurídico, TOURINHO explica o seguinte:
(...) o inquérito policial visa à apuração da existência de infração penal e à respectiva autoria, a fim de que o titular da ação penal disponha de elementos que o autorizem a promovê-la. Apurar a infração penal é colher informações a respeito do fato criminoso. (...) Apurar a autoria significa que a Autoridade Policial deve desenvolver a necessária atividade visando a descobrir, conhecer o verdadeiro autor do fato infringente da norma.[1]
Para TORNAGHI, “o inquérito policial é a investigação do fato, da sua materialidade, e autoria. É a inquisitivo generalis destinada a ministrar elementos para que o titular da ação penal (Ministério Público, ofendido) acuse o autor do crime”.[2]
MOREIRA, por sua vez, ensina que:
O inquérito policial é um procedimento preliminar, extrajudicial e preparatório para a ação penal, sendo por isso considerado como a primeira fase da persecutio criminis (que se completa com a fase em juízo). É instaurado pela polícia judiciária e tem como finalidade a apuração de infração penal e de sua respectiva autoria”.[3]
Como se pôde observar, a maioria da doutrina se limita ao estudo do inquérito policial como se este procedimento fosse sinônimo de investigação criminal, quando, na verdade, trata-se apenas de um dos instrumentos utilizados para formalizar a apuração de infrações penais do Brasil. De todo modo, pode-se concluir que as finalidades indicadas para o inquérito também se aplicam ao gênero investigação criminal.
Função Preservadora
Se, por um lado, a investigação preliminar tem por finalidade viabilizar o exercício de uma pretensão acusatória, por outro, ela deve funcionar como um obstáculo a ser superado antes do início do processo. É certo que a persecução penal como um todo, mas, sobretudo, a fase processual, acarretam inúmeras repercussões, seja para o Estado ou para o imputado.
Sob o prisma do Estado, a instauração de um processo resulta em inúmeros gastos, afinal, além da parte burocrática que envolve a manutenção de sistemas e toda infraestrutura (computadores, papeis, impressoras etc.), os próprios agentes públicos ficam empenhados nos mais diversos casos penais, o que, a toda evidência, afeta o Sistema de Justiça Criminal.
Já sob o ponto de vista do imputado, é inegável as consequências extremamente deletérias vinculadas ao processo. Além de arcar com as custas de sua defesa, circunstância de caráter tangível, existe outro fator de caráter intangível e que reputamos ainda mais grave, qual seja, o rótulo recebido pela pessoa a partir do momento em que se transforma em réu no processo penal.
Em Criminologia, fala-se na “teoria do etiquetamente” (labeling approach), numa perspectiva em que o acusado acaba sendo estigmatizado pela sociedade como uma pessoa criminosa, deixando-se absolutamente de lado o princípio constitucional da presunção de inocência. Na Espanha existe uma expressão que ilustra bem esse cenário: la pena de banquillo, no sentido de que o simples fato de uma pessoa se sentar no banco dos réus, já representa uma pena.
Justamente por isso, torna-se imprescindível uma investigação preliminar ao processo que funcione como um filtro contra imputações infundadas, preservando o investigado e a própria “máquina” do Judiciário, que não será movida de forma desnecessária.
Nesse diapasão se manifestam LOPES JR. e GLOECKNER:
A investigação preliminar não só deve excluir as provas inúteis, filtrando e deixando em evidência aqueles elementos de convicção que interessem ao julgamento da causa e cuja produção as partes devem solicitar no processo, como também devem servir de filtro processual, evitando que as acusações infundadas prosperem. (...) A investigação preliminar está destinada a fornecer elementos de convicção que permitam justificar o processo ou o não processo.[4]
De fato, a função investigativa formalizada, em regra, pelas Polícias Judiciárias, está longe de se resumir a um suporte da acusação, não possuindo caráter unidirecional. A finalidade do procedimento preliminar não deve ser vislumbrada sob a ótica exclusiva da preparação do processo penal, mas principalmente à luz de uma barreira contra acusações infundadas e temerárias, além de um mecanismo de salvaguarda da sociedade, assegurando a paz e a tranquilidade social. Não é outro o escólio de SAYEG ao falar sobre um dos procedimentos de investigação:
A ideia de que o inquérito policial somente tem por objetivo a preparação de uma ação penal é equivocada e distorcida. Em uma República Democrática preza-se pela utilização da Justiça Criminal somente como ultima ratio, caso haja o mínimo de elementos de provas indiciárias de que o investigado tenha praticado o delito em determinado lugar e em determinado momento.[5]
Com o objetivo de subsidiar as conclusões aqui expostas, vale transcrever as incisivas palavras utilizadas pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, ao apreciar o projeto que culminou na Lei 12.830/13, que dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia:
Assim, o inquérito policial, ainda que visto como procedimento administrativo pré-processual, é um instrumento prévio e de triagem contra acusações levianas e precipitadas, uma verdadeira garantia do cidadão e da sociedade, tendo dentro dele uma significativa parcela de procedimento jurídico, vez que poderá ensejar prisão e outras providências cautelares que afetam os direitos individuais. Um inquérito policial bem elaborado presta-se tanto à justa causa para a subsequente ação penal, quanto à absolvição do inocente (grifamos).
É com base nas conclusões acima expostas que se pode afirmar que não existe vínculo entre a investigação criminal e o exercício da ação penal. A uma porque estamos diante de fases distintas da persecução penal, com características e objetivos igualmente distintos. A duas porque, como visto, a investigação preliminar não se destina exclusivamente ao titular da ação penal, devendo desenvolver-se de maneira imparcial e objetiva, visando o escorreito esclarecimento da notícia crime, viabilizando a produção de provas que possam incriminar o investigado ou, por vezes, inocentá-lo, evitando-se, consequentemente, os ônus do processo.
Função de Descoberta do Fato Oculto (Redução das “Cifras Negras”)
É cediço que diversos fatores concorrem para a prática de infrações penais, razão pela qual a segurança pública é uma matéria multidisciplinar. Dentro dessa perspectiva, ganha destaque a Criminologia como uma ciência voltada ao estudo do fenômeno criminal e suas causas. Segundo estudiosos da área, por meio de estatísticas é possível identificar um liame causal entre os fatores de criminalidade e os ilícitos perpetrados.
Ocorre que tais estatísticas devem ser analisadas com reservas, uma vez que inúmeros crimes nem sequer chegam ao conhecimento do Estado (especialmente nos crimes vagos, vale dizer, aqueles em que o sujeito passivo é uma coletividade sem personalidade jurídica), havendo, destarte, um enorme vácuo entre a criminalidade real e a criminalidade revelada, o que dá ensejo a chamada cifra negra.
Ao discorrer sobre o tema, SUMARIVA explica o seguinte:
A primeira é a quantidade efetiva de crimes praticados pelos criminosos, a segunda é o percentual dos crimes que chegam ao conhecimento do Estado e a terceira representa a porcentagem dos delitos que não foram comunicados ou elucidados. Estamos diante de um processo de atrição, que consiste no distanciamento progressivo entre as cifras nominais e as cifras negras da criminalidade, em que o subproduto é a constatação da diferença entre a criminalidade real e a apurada em estatísticas oficiais.[6]
Nas lições de Muñoz Conde[7] sobre a cifra negra, nem todo delito cometido é tipificado; nem todo delito tipificado é registrado; nem todo delito registrado é investigado pela polícia; nem todo delito investigado é denunciado; a denúncia nem sempre termina em julgamento; e o julgamento nem sempre termina em condenação.
De fato, é impossível discordar das lições do renomado penalista, sendo certo que em países subdesenvolvidos esse cenário torna-se ainda mais evidente, seja em virtude das circunstâncias sociais de uma região ou pela falta de estrutura do Estado.
É evidente que o índice de criminalidade oculta (cifra negra) também é influenciado pela própria essência das condutas criminosas, praticadas, de um modo geral, de forma dissimulada ou mascarada, visando assegurar, num primeiro momento, a concretização do ímpeto criminoso e, num segundo momento, a irresponsabilidade penal do agente.
Considerando que a notitia criminis é o objeto da investigação criminal, pode-se concluir que o caráter oculto do crime reflete no aumento das cifras negras, haja vista que, por vezes, inviabiliza o início da persecução penal, o que compromete a própria eficiência da justiça.
Tal conclusão ganha relevância ainda maior devido ao fato de que as investigações criminais, em regra, não funcionam pelo sistema self-starter, ou seja, dependem de provocação. Isso significa que na maioria absoluta dos casos o início da persecução penal depende da vítima, que, nesse cenário, constitui a principal fonte de notícia crime.
De maneira ilustrativa, FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE calculam que nos EUA e na Alemanha, cerca de 85% a 95% das investigações têm seu início vinculado à provocação de particulares.[8] Ocorre que, por inúmeros fatores, cada vez mais as vítimas de crimes deixam de comunicá-los aos órgãos oficiais, contribuindo, assim, para o aumento das cifras negras e, consequentemente, da impunidade. Pode-se destacar os seguintes fatores:
a-) Revitimização: trata-se de um processo emocional que faz com que a vítima de um crime se sinta novamente lesada, seja em decorrência das relações com outras pessoas ou instituições públicas (heterovitimização) ou pelo seu próprio sentimento de culpa (autovitimização secundária).
No Brasil, por exemplo, a falência imposta pelos nossos governantes às Polícias Judiciárias, com atribuição investigativa, faz com que a vítima de um crime perca horas em uma Delegacia de Polícia apenas para noticiar um delito por meio de boletim de ocorrência. Se não bastasse, essa mesma vítima terá que retornar posteriormente à Delegacia para ser ouvida ou participar de outros procedimentos policiais (ex: reconhecimento pessoal), sendo todo esse expediente repetido na fase processual.
Do mesmo modo, a vítima também terá que conviver com a repercussão social causada pelo crime, o que muitas vezes causa incômodo, humilhação e provoca uma constante lembrança do trauma vivenciado, sobretudo em crimes sexuais. Por todas essas razões, a vítima, não raro, prefere não noticiar a ocorrência da infração.
b-) Falta de confiança no sistema de justiça: a conhecida ineficiência do sistema de justiça criminal em alguns países contribui diretamente para o aumento da cifra negra, uma vez que as vítimas, como principais fontes de notícia crime, não acreditam que terão uma resposta positiva das agências estatais, seja pela falta de estrutura (que implica na morosidade e na ineficiência da persecução penal) ou até mesmo pela suspeita de corrupção de seus agentes.
c-) Medo de represálias: como efeito natural da falta de confiança no Estado em dar proteção aos seus cidadãos, as vítimas acabam suportando ações criminosas por receio de serem novamente atingidas pelos mesmos criminosos. Isso é muito comum em crimes de roubo, tentativa de homicídio e nos casos de violência doméstica e familiar, onde as vítimas têm medo das represálias de seus algozes.
d-) Tolerância ao crime: devido aos fatores acima expostos, existe uma capacidade da sociedade em absorver determinadas modalidades de crimes. Algumas vítimas de estupro, por exemplo, preferem absorver o crime a reviver o trauma sofrido inúmeras vezes durante a persecução penal e ainda ficarem expostas perante à sociedade. Já algumas vítimas de furto, por não acreditarem na eficácia da justiça, acabam absorvendo a lesão sofrida em seu patrimônio. O mesmo ocorre com os crimes de roubo, estelionato, apropriação indébita etc.
Feitas essas observações, destaque-se que todos esses fatores acabam fomentando a violência privada, onde o cidadão vítima de um crime e, por vezes, até agentes públicos, procuram fazer justiça com suas próprias mãos, desestruturando a lógica de um Estado Democrático de Direito. Daí a importância de se desenvolver uma estrutura investigativa eficiente que não fique tão refém da provocação da vítima.
Não é outra a conclusão de LOPES JR. e GLOECKNER:
Diante dessa realidade, o Estado deve dispor de instrumentos eficazes para descobrir o fato e não permitir que se elevem os índices de criminal case mortality, que geram descrédito dos sistemas formais de controle e uma insegurança social. Nesse tema, a investigação preliminar desempenha um papel relevantíssimo, e sua eficácia está não só no resultado final, senão também nas formas de starter.[9]
Percebe-se, pelo todo exposto, que a função da investigação criminal de buscar o fato oculto ganha relevância ainda maior nos chamados crimes vagos, justamente porque em tais hipóteses não há uma vítima definida, o que, a toda evidência, compromete o início das apurações.
São exemplos de crimes dessa espécie o tráfico de drogas, os previstos no Estatuto do Desarmamento, crimes ambientais etc. Imaginem, caro leitor, quantas pessoas mantém a posse ilegal de armas de fogo atualmente no Brasil, colocando em risco a segurança pública. Já seara ambiental, são inúmeros os crimes praticados sem qualquer conhecimento por parte do Estado.
Assim, é preciso que as agências estatais de investigação criminal sejam estruturadas com o objetivo de desvendar o fato oculto, inviabilizando, não raro, a própria consumação do crime, atuando de forma preventiva e, ao mesmo tempo, diminuindo o índice de criminalidade desconhecida.
Função Simbólica
A pena é uma consequência jurídica imposta aos autores de crimes justamente em virtude de uma violação às expectativas da sociedade intrínsecas nas leis penais. Ora, se a lei constitui a expressão da vontade geral, ao praticar um crime o agente está claramente confrontando a sociedade em que está inserido, razão pela qual, lhe deve ser imposta uma pena, inclusive para reforçar a observância às normas legais.
BITENCOURT, explicando o pensamento de HEGEL sobre a pena, nos ensina o seguinte:
A tese de Hegel resume-se em sua conhecida frase: “a pena é a negação da negação do Direito”. A fundamentação hegeliana da pena é – ao contrário da kantiana – essencialmente jurídica, na medida em que para Hegel a pena encontra justificação na necessidade de restabelecer a vigência da “vontade geral”, simbolizada na ordem jurídica e que foi negada pela vontade do delinquente.[10]
Percebe-se, pois, que a pena possui uma função simbólica que serve de desestímulo à prática de infrações penais, fomentando, insistimos, o respeito ao ordenamento jurídico. É inegável, nesse contexto, a finalidade preventiva da pena, seja no seu aspecto negativo (dissuadindo possíveis delinquentes), seja no seu aspecto positivo (reforçando a fidelidade dos cidadãos à ordem social a que pertencem).
Com efeito, tendo em vista que a investigação criminal viabiliza a concretização da justiça através da imposição de uma pena aos autores de crimes, podemos concluir que, tal qual a própria pena, a investigação também possui uma função simbólica, mitigando a sensação de insegurança e de impunidade, na medida em que o Estado, por meio de suas agências, está atuando prontamente na apuração dos fatos.
É evidente que a prática de uma infração penal repercute negativamente na sociedade, abalando a paz e trazendo intranquilidade, afinal, a “vontade geral” foi violada. Ocorre que com a imediata ação estatal na apuração do delito, é transmitida uma mensagem a todos no sentido de que o seu responsável será punido.
Conforme nos ensinam LOPES JR. e GLOECKNER:
A investigação preliminar também atende a uma função simbólica, poderíamos dizer até de natureza sociológica, ao contribuir para restabelecer a tranquilidade social abalada pelo crime. Significa que, numa dimensão simbólica, contribui para amenizar o mal-estar causado pelo crime, através da sensação de que os órgãos estatais aturarão, evitando a impunidade. Essa garantia de que não haverá impunidade manifesta-se também através da imediata atividade persecutória estatal, que não se confunde com a necessidade de uma cautelar pessoal (prisão processual).[11]
Note-se que tais premissas deixam clara a importância da investigação criminal na redução das estatísticas criminais. Infelizmente nossos legisladores e governantes jamais se atentaram para uma lição básica de BECCARIA na sua estupenda obra Do delito e das penas onde o autor defende a ideia de que mais importante do que a severidade do castigo é a certeza do castigo.
Diante do aumento da criminalidade o Poder Legislativo, quase instantaneamente, se socorre do Direito Penal como solução para todos os problemas. Como consequência, são criados novos crimes, aumenta-se a pena de outros tantos e novos delitos são elevados à condição de hediondos.
Fato é que o rigor da reprimenda penal nada significa se o delinquente, ao atuar, tem a convicção de que sairá impune. É justamente esse sentimento de impunidade que estimula, entre outros fatores, a prática de infrações penais. Daí a importância de se investir na investigação criminal, instrumento vocacionado ao esclarecimento do crime e que assegura a futura aplicação de uma pena. Afinal, conforme já destacado, é a certeza do castigo que serve de desestímulo ao criminoso e não a sua severidade.
Consigne-se, ademais, que esta função simbólica da investigação criminal atinge seu apogeu nos casos em que viabiliza a prisão em flagrante de um criminoso. Isto, pois, em tais situações a resposta do Estado ao crime é imediata, servindo, não raro, para evitar a própria violação da norma, ou seja, a consumação do delito.
Não por acaso, sustentamos a ideia de que a prisão em flagrante tem a função de atuar como um instrumento constitucional de imediata proteção aos direitos fundamentais, proteção esta que é veiculada por meio de uma norma penal incriminadora que estaria sendo violada ou que acabara de ser.
Nesse diapasão, aliás, é o escólio de Marcelo Cardozo da Silva:
(...) a prisão em flagrante desempenha a necessária função de atualização das funções preventivas das normas penais incriminadoras. Não fosse a prisão em flagrante, perder-se-ia um poderoso instrumento constitucional de defesa contra comportamentos atuais ofensivos a direitos fundamentais/bens coletivos constitucionais. Mais do que qualquer função probatória, realiza um estratégico mister de impedir, pela atualização que traz a toda e qualquer norma incriminadora, comportamentos que as violem: traz, excepcionalmente, a proteção da norma penal, do distante momento do cumprimento da pena, para o momento atual da violação.[12]
Resta evidente, portanto, que a investigação criminal mostra sua máxima eficiência nas hipóteses em que viabiliza a prisão em flagrante de criminosos. Como consequência natural dessa pronta resposta ao delito (função simbólica), ocorre a dissuasão de possíveis delinquentes diante da eficácia demonstrada pelo Estado em assegurar a responsabilização penal daqueles que ousarem violar as leis.
Função Restaurativa ou Satisfativa
Ao lado das funções já indicadas pela doutrina que se debruça no estudo comprometido da investigação criminal, ousamos destacar nesse trabalho uma outra função extremamente relevante: a restaurativa; no sentido de restaurar, vale dizer, reconstruir, recuperar as condições existentes antes da prática do crime, seja sob o prisma do autor ou da vítima.
Infelizmente, os órgãos de persecução penal, sobretudo os ligados à investigação criminal, vêm se contentando em garantir a responsabilização penal de autores de fatos criminosos, quando, na maioria das vezes, essa atividade em quase nada abala uma estrutura organizada que vive de ilícitos penais.
Nesse contexto, engana-se quem pensa que uma persecução penal exitosa é aquela em que os criminosos são presos, pois, dentro de uma sociedade delinquente, não basta assegurar a imposição da pena como efeito jurídico do crime, sendo imprescindível a desarticulação de toda estrutura desenvolvida a partir da prática de infrações penais.
Para tanto, é possível encontrar em nosso ordenamento jurídico diversas ferramentas aptas a mitigar as consequências do crime, evitando, destarte, o locupletamento do criminoso e a reiteração de condutas delituosas. Isto, pois, de nada adianta a prisão do autor de um delito se a estrutura criminosa estabelecida continuar funcionando. Note-se que tais ferramentas servem, inclusive, ao caráter simbólico da investigação criminal, uma vez que desestimulam atos ilícitos.
Nos crimes patrimoniais, por exemplo, sob o ponto de vista da vítima, mais importante do que a responsabilização do criminoso é a recuperação do produto da infração. Assim, não cabe à Polícia Judiciária focar sua atenção apenas na reunião de indícios de autoria e materialidade delituosa, sendo dever da investigação a localização dos objetos roubados, furtados, apropriados ilicitamente etc.
Com esse viés a investigação criminal, além de preparar a ação penal, evitar acusações infundadas, identificar o fato oculto e, consequentemente, desestimular a prática de novas infrações penais, também dará uma satisfação à vítima, vulnerada na sua esfera patrimonial. Da mesma forma, evita-se o locupletamento do criminoso, o que, por óbvio, também atingirá eventual estrutura criada a partir do crime.
Nesse cenário, são valiosas as chamadas medidas assecuratórias, tidas como “as providências de natureza cautelar levadas a efeito no juízo penal que buscam resguardar o provável direito da vítima ao ressarcimento do prejuízo causado pela infração penal”.[13]
Em linhas gerais, pode-se destacar alguns motivos pelos quais as medidas assecuratórias são eficientes no combate ao crime organizado[14]: a-) o confisco dos bens e valores promove a asfixia econômica de certos crimes; b-) tendo em vista a fungibilidade entre os integrantes de uma organização criminosa, a neutralização de bens e valores desestabiliza a estrutura criada; c-) evita-se a possibilidade de uso do produto ou proveito da infração após eventual cumprimento de pena; d-) inviabiliza o locupletamento de familiares ou outros membros da organização.
Apenas para ilustrar, a busca e apreensão tem o papel de resguardar o próprio produto do crime. Ao localizar um veículo furtado, por exemplo, a Polícia Judiciária deverá promover sua apreensão e restituição à vítima, que, assim, terá seu prejuízo mitigado.
Já o sequestro, regulado a partir do artigo 125, do CPP, tem a finalidade de acautelar os bens adquiridos através da prática de crimes. Em outras palavras, essa medida cautelar de natureza patrimonial poderá recair sobre bens móveis ou imóveis de origem ilícita que constituem verdadeiro provento da infração (v.g. veículo adquirido com dinheiro proveniente do tráfico de drogas).
Outra ferramenta que passa despercebida por vários operadores do Direito, encontra previsão legal no artigo 91, §§1º e 2º, do Código Penal, acrescentados pela Lei 12.694/12. Com essa inovação legislativa houve uma significativa ampliação no poder de confisco do Estado, pois não apenas os produtos ou proveitos do crime podem ser confiscados, mas também “os bens e valores equivalentes ao produto ou proveito do crime quando estes não forem encontrados ou quando se localizarem no exterior”. Já o §2º, do mesmo dispositivo, viabiliza a adoção das medidas assecuratórias para abranger esses mesmos bens e valores pertencentes ao investigado para posterior decretação de perda.
Como se vê, trata-se, sem dúvida nenhuma, de importante instrumento restaurativo, cuja adoção certamente irá mitigar os prejuízos causados pelo crime e ainda evitar o locupletamento dos criminosos e seus familiares, sufocando, outrossim, a estrutura econômica de uma organização voltada à prática de ilícitos.
Outra ferramenta apta a contribuir com o caráter restaurativo da investigação criminal é a Lei 9.613/98, que tipificou o crime de Lavagem de Capitais (Money Laudering). Rodolfo Tigre Maia define a lavagem de dinheiro “como o conjunto complexo de operações, integrado pelas etapas de conversão (placement), dissimulação (layering) e integração (integration) de bens, direitos e valores, que tem por finalidade tornar legítimos ativos oriundos da prática de atos ilícitos penais, mascarando esta origem para que os responsáveis possam escapar da ação repressiva da Justiça.[15]
Dentro dessa perspectiva, cabe ao Estado, por meio da investigação, identificar os bens, direitos e valores provenientes de infrações penais e submetidos a esse processo de ocultação ou dissimulação. A criminalização da Lavagem de Dinheiro, portanto, colabora com a função restaurativa do inquérito policial, pois além de viabilizar a responsabilização penal do autor da “lavagem”, dificulta que ele se locuplete do crime, sufocando, assim, suas atividades ilícitas[16].
Em consonância com o ponto de vista aqui defendido, o artigo 4º, §3º, da Lei 9.613/98, estabelece que “O juiz determinará a liberação total ou parcial dos bens, direitos e valores quando comprovada a licitude de sua origem, mantendo-se a constrição dos bens, direitos e valores necessários e suficientes à reparação dos danos e ao pagamento de prestações pecuniárias, multas e custas decorrentes da infração pena” (grifamos). Na mesma linha, o §4º, do mesmo dispositivo legal autoriza a decretação de medidas assecuratórias sobre bens, direitos ou valores de origem lícita pertencentes ao investigado, no intuito de assegurar a reparação do dano decorrente da infração penal antecedente.[17]
Já na Lei 12.850/13, que dispõe sobre as Organizações Criminosas, nós encontramos uma ferramenta que tem o objetivo exclusivo de recuperar o produto ou o proveito dos crimes praticados pela criminalidade organizada. Trata-se da colaboração para a recuperação de ativos, prevista no artigo 4º, inciso IV, da Lei. Por meio dessa técnica especial de investigação será possível desestruturar a organização e ao mesmo tempo mitigar as consequências dos crimes praticados. Nesse ponto, aliás, vale o alerta de Renato Brasileiro no sentido de que:
(...) um dos meios mais eficientes para a repressão de certos delitos passa pela recuperação de ativos ilícitos, sendo imperiosa a criação de uma nova cultura, uma nova mentalidade, que, sem deixar de lado as penas privativas de liberdade, passe a dar maior importância às medidas cautelares de natureza patrimonial e ao confisco dos valores espúrios.[18]
Frente ao exposto, parece-nos inegável esse caráter restaurativo da investigação criminal, que não pode mais se limitar em reunir elementos que possibilitem a responsabilização penal do autor do crime, devendo cumprir um papel muito maior no intuito de mitigar os danos causados pela infração e, sobretudo, desarticular a estrutura criada com base na prática de atos ilícitos.
Referências
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. v. 1. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal. ed. 11. São Paulo: Saraiva.
FIGUEIREDO DIAS, Jorge. COSTA ANDRADE, Manuel. Criminologia – O homem Delinquente e a Sociedade Criminógena. Coimbra: Coimbra Ed., 1992.
LOPES JR., Aury. GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação Preliminar no Processo Penal. ed. 5. São Paulo: Saraiva, 2013.
MAIA, Rodolfo Tigre. Lavagem de dinheiro – lavagem de ativos provenientes de crime – Anotações às disposições criminais da Lei 9.613/98. São Paulo: Malheiros, 2004.
MOREIRA, Rômulo de Andrade. Direito Processual Penal. Salvador: Juspodivm, 2007.
SANNINI NETO, Francisco. Inquérito Policial e Prisões Provisórias – Teoria e Prática de Polícia Judiciária. São Paulo: Ideias e Letras, 2014.
SAYEG, Ronaldo. O inquérito policial democrático: uma visão moderna e contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.
SUMARIVA, Paulo. Criminologia - Teoria e Prática. ed. 5. Niterói, RJ: Impetus, 2018.
TORNAGHI, Hélio. Instituições de processo penal. Rio de Janeiro: Forense, 1959.
TOURINHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. ed. 10. São Paulo: Saraiva, 2008.
[1] TOURINHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. ed. 10. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 64-65.
[2] TORNAGHI, Hélio. Instituições de processo penal. Rio de Janeiro: Forense, 1959. v. II, p. 136.
[3] MOREIRA, Rômulo de Andrade. Direito Processual Penal. Salvador: Juspodivm, 2007. p. 3.
[4] LOPES JR., Aury. GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação Preliminar no Processo Penal. ed. 5. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 124.
[5] SAYEG, Ronaldo. O inquérito policial democrático: uma visão moderna e contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. p. 23.
[6] SUMARIVA, Paulo. Criminologia - Teoria e Prática. ed. 5. Niterói, RJ: Impetus, 2018. p. 137.
[7] CONDE, Muñoz. Introducción y a derecho penal. p. 47.
[8] FIGUEIREDO DIAS, Jorge. COSTA ANDRADE, Manuel. Criminologia – O homem Delinquente e a Sociedade Criminógena. Coimbra: Coimbra Ed., 1992. p. 133.
[9] LOPES JR., Aury. GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. op.cit., p. 105.
[10] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. v. 1. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 138
[11] LOPES JR., Aury. GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. op.cit., p. 106.
[12] SILVA, Marcelo Cardozo da. A prisão em flagrante na Constituição. Pág. 62.
[13] BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal. ed. 11. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 390.
[14] Em sentido semelhante: LIMA, Renato Brasileiro de. op. cit., p.87.
[15] MAIA, Rodolfo Tigre. Lavagem de dinheiro – lavagem de ativos provenientes de crime – Anotações às disposições criminais da Lei 9.613/98. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 53.
[16] De acordo com o art.7º, I, da Lei 9.613/98, é efeito da condenação: a perda dos bens, direitos e valores relacionados direta ou indiretamente, à prática dos crimes previstos nesta Lei.
[17] Art.4º, §4º, Lei 9.613/98: “Poderão ser decretadas medidas assecuratórias sobre bens, direitos ou valores para reparação do dano decorrente da infração penal antecedente ou da prevista nesta Lei ou para pagamento de prestação pecuniária, multa e custas.”
[18] LIMA, Renato Brasileiro de. op. cit., p. 396.
Delegado de Polícia - Pós-graduado com especialização em Direito Público pela Escola Paulista de Direito - Professor de Direito Penal, Processo Penal e Direito Administrativo da UNISAL.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NETO, Francisco Sannini. Funcionalismo da investigação criminal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 ago 2019, 06:06. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53255/funcionalismo-da-investigao-criminal. Acesso em: 23 dez 2024.
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