RESUMO: O Estado de Coisas Inconstitucional se define como uma violação contínua e sistemática de diversos direitos fundamentais, e diante dessa situação de crise estrutural, criada por uma omissão generalizada dos poderes públicos no cumprimento de seus respectivos deveres constitucionais, a superação desse quadro exige a ação conjunta de diversas autoridades públicas, as quais devem adotar uma série de medidas para que essas omissões sejam sanadas, no sentido de garantir a máxima efetividade das normas constitucionais e o respeito aos direitos fundamentais. Na metodologia, foi feita uma abordagem “analítica” por possibilitar a busca múltipla de fontes para a compreensão dos principais conceitos e institutos que serviram de base ao estudo proposto. Foi utilizado, ainda, o método de “análise crítica” no tópico que trata da análise da atuação do Poder Judiciário. Os resultados da pesquisa apontam que o Estado de Coisas Inconstitucional apresenta-se como uma dimensão do ativismo judicial, diante de uma postura mais ativista do Poder Judiciário, permitindo que as situações violadoras de direitos fundamentais sejam resolvidas com maior efetividade, ainda que isso implique na possibilidade do Poder Judiciário determinar um conjunto de medidas estruturais, a serem tomadas pelos demais poderes constituídos, resultando numa releitura do princípio da separação dos poderes.
Palavras-chave: Estado de Coisas Inconstitucional. Princípio da Separação dos Poderes. Ativismo Judicial. Direitos Fundamentais.
ABSTRACT : The Unconstitutional State of Affairs is defined as a continuous and systematic violation of various fundamental rights, and in the face of this situation of structural crisis, created by a general omission of public authorities in the fulfillment of their respective constitutional duties, overcoming this framework requires joint action. various public authorities, which should take a series of measures to remedy these omissions to ensure the maximum effectiveness of constitutional norms and respect for fundamental rights. In the methodology, an “analytical” approach was made by allowing multiple sources to understand the main concepts and institutes that underpin the proposed study. The method of “critical analysis” was also used in the topic that deals with the analysis of the performance of the judiciary. The research results show that the unconstitutional State of Affairs is a dimension of judicial activism, facing a more activist posture of the Judiciary, allowing situations that violate fundamental rights to be solved more effectively, even if this implies the possibilit of the judiciary to determine a set of structural measures to be taken by the other constituted powers, resulting in a re-reading of the principle of separation of powers.
Keywords: Unconstitutional State of Affairs; Principle of separation of Powers. Judicial activism. Fundamental rights.
SUMÁRIO: Introdução. 2 Desenvolvimento 2.1 Estado de coisas inconstitucional: origem e aplicabilidade no sistema jurídico brasileiro. 2.2 Princípio da separação de poderes à luz da Constituição Federal de 1988. 2.3 Direitos fundamentais, efetividade e a força normativa da Constituição. 2.4 Limites e parâmetros para o controle judicial em face do Estado de Coisas Inconstitucional. Conclusão. Referências.
A separação dos poderes é um dos princípios basilares do Estado Democrático de Direito, estando relacionado com a forma de governo republicana, podendo ser definido como uma limitação ao poder estatal mediante a desconcentração, divisão e racionalização das respectivas funções estatais.
Há uma divisão horizontal de tarefas entre os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, onde a independência entre os poderes pressupõe a inexistência de hierarquia entre os respectivos órgãos e funções do poder estatal, de forma que cada um deve operar de acordo com as suas respectivas funções (legislar, administrar e julgar). A teoria da divisão de poderes consistiu na divisão orgânica das funções estatais e na adoção de um sistema de freios e contrapesos, evitando que uma só pessoa ou órgão viesse a concentrar em suas mãos todo o poder do Estado.
Entretanto, diante de recentes julgados do Supremo Tribunal Federal relativo a situação carcerária brasileira, é possível identificar situações que se caracterizam como Estado de Coisas Inconstitucional e propor uma releitura do clássico princípio da separação dos poderes, diante da violação sistemática e generalizada dos direitos fundamentais pelos poderes públicos. Nesse sentido, para além da definição jurídica do termo em apreço, o estudo visa buscar definições mais precisas desse conceito e definir critérios práticos que possam ajudar o intérprete a identificar o Estado de Coisas Inconstitucional e as situações em que a intervenção do Poder Judiciário se faz legítima.
No atual contexto, vislumbra-se, de um lado, um quadro de ofensa generalizada e sistemática de diversos direitos fundamentais sob o argumento de crise orçamentária e, do outro lado, a interferência do Poder Judiciário em questões afetas à Administração Pública, o que justifica o estudo científico em apreço, dado à relevância do tema na atualidade.
Na metodologia, foi feita uma abordagem “analítica” por possibilitar a busca múltipla de fontes para a compreensão dos principais conceitos e institutos que serviram de base ao estudo proposto. Foi utilizado, ainda, o método de “análise crítica” no tópico que trata da atuação do Poder Judiciário. O estudo observou um plano sistemático, com apresentação dos principais aspectos jurídicos, que embora analisados em separado, permitiram um percurso científico coordenado e harmônico, possibilitando uma construção lógica de entendimento na validação das proposições decorrentes do objetivo da pesquisa.
A gênese do Estado de Coisas Inconstitucional é proveniente das decisões da Corte Constitucional Colombiana (CCC) e foi assim chamada por ter como característica a existência de violações generalizadas, contínuas e sistemáticas de direitos fundamentais. A primeira decisão da Corte Constitucional Colombiana que reconheceu o Estado de Coisas Inconstitucional - ECI foi proferida em 1997(Sentencia de Unificación - SU 559, de 6/11/1997), numa demanda promovida por diversos professores que tiveram seus direitos previdenciários sistematicamente violados pelas autoridades públicas. Ao declarar, diante da grave situação, o Estado de Coisas Inconstitucional, a Corte Colombiana determinou às autoridades envolvidas a superação do quadro de inconstitucionalidades em prazo razoável. (CUNHA JÚNIOR, 2015)
Conforme se verifica do julgado da Corte Constitucional Colombiana, o Estado de Coisas Inconstitucional se caracteriza como um estado de coisas que se encontra em desconformidade com a Constituição, numa relação direta com a violação de direitos fundamentais de um número amplo de pessoas e que autorizam a determinação de medidas a diversas autoridades, com o objetivo de superar essa situação de crise estrutural e recompor a ordem constitucional. (REPÚBLICA COLOMBIANA.CORTE CONSTITUCIONAL, 1997)
No Brasil, em julgado de 09 de setembro de 2015, o Supremo Tribunal Federal, ao deferir parcialmente o pedido de medidas cautelares formulado na Ação Declaratória de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347/DF, proposta em face da crise do sistema carcerário brasileiro, reconheceu expressamente a existência do Estado de Coisas Inconstitucional no sistema penitenciário brasileiro, diante de graves, generalizadas e sistemáticas violações de direitos fundamentais da população carcerária. Nesse julgado, o Supremo Tribunal Federal, ao deferir a liminar, determinou diversas medidas ao Poder Executivo como o fim do contingenciamento do Fundo Penitenciário Nacional e a implantações das audiências de custódias. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2015)
Considerando a Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça verifica-se que houve a imposição de obrigações aos demais poderes constituídos, ao determinar a implantação das audiências de custódias a serem realizadas com a presença obrigatória do Ministério Público e da Defensoria Pública[1]. Com relação ao Poder Executivo, fora determinado o fim do contingenciamento do fundo penitenciário, de forma que esses recursos pudessem ser utilizados em melhorias no sistema carcerário.
O Estado de Coisas Inconstitucional, portanto, nos direciona a uma releitura do clássico princípio da separação dos poderes, por se tratar de uma terminologia que pressupõe uma postura mais ativista do Poder Judiciário, ao demandar um conjunto de medidas a serem tomadas pelos demais órgãos pertencentes aos outros poderes constituídos.
As primeiras bases teóricas para a “tripartição de Poderes” foram lançadas na Antiguidade grega por Aristóteles, em sua obra “Política”, em que o pensador vislumbrava a existência de três funções distintas exercidas pelo poder soberano, quais sejam, a função de editar normas gerais a serem observadas por todos, a de aplicar as referidas normas ao caso concreto e a função de julgamento, dirimindo os conflitos oriundos da execução das normas gerais nos casos concretos. (LENZA, 2012, p.403).
Posteriormente, a divisão de poderes fora esmiuçada por John Locke, na obra “Segundo tratado sobre o governo civil”, o qual identifica a existência de três funções estatais típicas, quais sejam, a executiva, consistente em aplicar a força pública no âmbito interno, para assegurar a ordem e o direito, e a federativa, consistente em manter relações com outros Estados, especialmente por meio de alianças (MORAES, 2018, p. 582).
Na obra de Montesquieu “O espírito das leis”, vislumbra-se uma concepção aperfeiçoada do princípio da separação dos poderes, trazendo não só a divisão funcional, como também uma distribuição das funções estatais, e na adoção de um sistema de freios e contrapesos, evitando que uma só pessoa ou órgão viesse a concentrar em suas mãos todo o poder do Estado.
No sistema de freios e contrapesos, esses controles recíprocos buscam o equilíbrio necessário à realização do bem da coletividade, evitando uma situação de hipertrofia dos órgãos de poder, o que afetaria os alicerces do Estado Democrático de Direito. Saliente-se que os denominados controles recíprocos (checksand balances), fora adotado no sistema constitucional brasileiro, relativizando a independência entre os poderes (ARAUJO; NUNES JÚNIOR, 2018, p. 250).
Ao lado das funções típicas de cada órgão de poder, há também a realização de funções atípicas, de forma que excepcionalmente um determinado órgão pode vir a desenvolver atividades que seria de atribuição de outro poder.
Nessa esteira, diante da atual realidade social, é preciso reinterpretar o princípio da tripartição de poderes, de modo a termos respostas mais coerentes para as demandas atuais no sistema jurídico.
Nesse trilhar, após o estudo do princípio da separação de poderes contemplado na Constituição Federal, e tendo melhor compreendido essas relações, cumpre avaliar se as intervenções do Poder Judiciário, frente a uma situação de estado de coisas inconstitucional, para avaliar se são devidas ou indevidas, e quais os limites dessa intervenção judicial.
Feitas algumas considerações acerca do princípio da separação de poderes, cabe agora algumas ponderações acerca dos direitos fundamentais, sua efetividade e a força normativa da Constituição, uma vez que os poderes constituídos (Executivo, Legislativo e Judiciário) têm o dever de implementar os direitos fundamentais na maior medida possível, em consonância com os princípios da máxima efetividade dos direitos fundamentais e da força normativa da Constituição, razão pela qual cumpre tecer algumas considerações acerca do tema.
Segundo SILVA (2015, p. 176), os direitos fundamentais são prerrogativas e instituições concretizados pelo direito positivo, de modo a assegurar uma existência digna. Por esta definição podemos concluir dois aspectos importantes, quais sejam: a dignidade inerente a esses direitos e a positivação, uma vez que passam por um processo de incorporação ao direito interno. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 176.
A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, §1º, dispõe que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata” De acordo com Barroso (1996, p.83), “a efetividade seria a relação de correspondência das previsões normativas com a realidade social.”
Com efeito, embora tenham eficácia imediata, não se pode concluir que todos os direitos fundamentais têm eficácia absoluta, pois se trata de norma de natureza principiológica, que depende das possibilidades fáticas de implementação, sem descurar da realidade social subjacente ao texto constitucional.
Nesse sentido, Sarlet (2011, p. 242) destaca: (...) o postulado da aplicabilidade imediata não poderá resolver-se, a exemplo do que ocorre com as regras jurídicas (e nisto reside uma de suas diferenças essenciais relativamente às normas-princípio), de acordo com a lógica do tudo ou nada, razão pela qual o seu alcance (isto é, o quantum em aplicabilidade e eficácia) dependerá do exame da hipótese em concreto, isto é, da norma de direito fundamental em pauta.”
Verifica-se que por ser norma de natureza principiológica, a implementação de direitos fundamentais deve ser concretizada na maior medida possível. De igual modo, por se tratar o Estado de Coisas Inconstitucional de uma situação de violação sistemática de direitos fundamentais pertencentes a um grande número de pessoas em situação de vulnerabilidade, verifica-se uma ofensa grave à Constituição Federal.
A efetividade das normas constitucionais diz respeito, portanto, à pretensão de máxima realização, no plano da vida real, do programa normativo abstratamente estabelecido (embora tal programa normativo seja ele próprio fruto de uma articulação com o mundo dos fatos, da economia, dos movimentos sociais etc.), em outras palavras, como também pontua Barroso (2011, p. 197), “ao processo de migração do “dever ser” normativo para o do plano do “ser” da realidade social.”
Os comandos constitucionais vinculam todos os poderes públicos para que estes busquem aplica-la na maior medida possível, devendo ser conferida ao texto constitucional a interpretação que lhe confira maior eficácia jurídica, sob pena das normas constitucionais se transformarem em uma promessa constitucional inconsequente.[2]
Nesse sentido, conclui-se que as normas constitucionais têm natureza cogente, vinculando as ações das autoridades públicas. Verificada uma situação de crise estrutural criada pela omissão de diversos órgãos públicos em relação aos seus respectivos deveres delimitados na própria Constituição Federal e em atos normativos infraconstitucionais, resta evidenciada a necessidade oriunda da própria definição de Estado de Coisas Inconstitucional, qual seja: uma ação coordenada dos poderes públicos, de modo a que sejam superadas essas violações contínuas e sistemáticas de direitos fundamentais decorrentes da própria omissão dos poderes públicos em afronta direta ao texto constitucional.
Após a análise do princípio da tripartição de poderes, verifica-se uma discussão central ao objetivo desse estudo: seria capaz o poder judiciário de identificar com imparcialidade uma situação de Estado de Coisas Inconstitucional? Teria o Poder Judiciário condições adequadas de interferir nas searas administrativa e legislativa determinando medidas de cunho administrativo e normativo aos demais poderes públicos de forma cogente de modo a simultaneamente solucionar uma situação de crise estrutural e ao mesmo tempo manter a harmônia que dever nortear a relação entre os poderes?
É de conhecimento de todos que a atuação da Administração Pública pressupõe a existência de uma lei condicionando as condutas administrativas, uma vez que os poderes outorgados aos gestores públicos tem por objetivo a realização do interesse público, por essa razão os atos de gestão pública são sindicáveis pelo Poder judiciário. Nesse sentido, na hipótese de haver uma lesão provocada por uma ação ou omissão dos administradores públicos, podem ser apresentadas demandas ao Poder Judiciário por quem se sinta prejudicado, buscando uma reparação por eventuais danos causados, de acordo com o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário, conforme art. 5º, XXV, da Constituição Federal de 1988, (BRANDÃO, 2017).
O direito brasileiro adotou o sistema da jurisdição una. Di Pietro (2019, p. 829) dizer que o Poder Judiciário possui o monopólio da função jurisdicional e, consequentemente, o poder de apreciar, com força de coisa julgada, a lesão ou ameaça de lesão a direitos individuais e coletivos.
Com fulcro no princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, o Poder Judiciário pode interferir diante de ações ou omissões contrárias ao direito. Com efeito, não se pode desconsiderar o alto grau de discricionariedade na execução de tarefas centrais na administração pública, seja na área previdenciária, de saúde, segurança pública, sistema carcerário... Acrescente-se a isso que nem sempre há delimitações precisas de quais as ações devem ser tomadas para o atendimento dessas necessidades públicas acima, muito menos quanto à possibilidade e grau de intervenção do Poder Judiciário nesta seara, razão pela qual alguns questionamentos precisam ser respondidos.
Essas indagações levam a uma outra reflexão acerca do denominado ativismo judicial e suas dimensões. Nessa esteira, o termo é usado para designar que o poder judiciário está agindo além dos poderes que lhe são conferidos pela ordem jurídica de forma a identificar que o poder judiciário está agindo além dos poderes que lhe são conferidos pela ordem jurídica.
Buscando aprofundar um pouco mais essa conceituação, vejamos o conceito dado por Luís Roberto Barroso: “a ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. (BARROSO, 2019)
O oposto de ativismo judicial seria a autocontenção judicial, que se caracteriza pela conduta segundo a qual o Judiciário procura reduzir sua interferência nas ações dos outros Poderes. Com efeito, a conceituação de ativismo judicial é objeto de divergência jurídica, uma vez que a doutrina também tece críticas ao ativismo judicial. Nesse sentido, Bickel (1962, p. 16-18), destaca o caráter contra majoritário e de certa forma antidemocrático da revisão judicial, sob o fundamento de que no momento em que o Poder Judiciário interfere nas atribuições de outros poderes que estão sujeitos ao crivo eleitoral, este controle seria exercido contra a maioria dominante. Nesse sentido, o caráter contra majoritário dessas interferências do Poder Judiciário em atividades típicas dos demais poderes, os quais são democraticamente eleitos, constitui-se num dos principais argumentos teóricos contrários à atuação jurisdicional, devendo o judicicário, portanto, adotar uma postura de autocontenção (judicial self restrain).
No mesmo sentido, em posição contrária a uma postura mais ativista do Poder Judiciário, cabe pontuar o entendimento de Daniel Sarmento (2007, p.14): “...Esta "euforia" com os princípios abriu um espaço muito maior para o decisionismo judicial. Um decisionismo travestido sob as vestes do politicamente correto, orgulhoso com seus jargões grandiloquentes e com a sua retórica inflamada, mas sempre um decisionismo. Os princípios constitucionais, neste quadro, converteram-se em verdadeiras "varinhas de condão": com eles, o julgador de plantão consegue fazer quase tudo o que quiser. Esta prática é profundamente danosa a valores extremamente caros ao Estado Democrático de Direito. Ela é prejudicial à democracia, porque permite que juízes não eleitos imponham a suas preferências e valores aos jurisdicionados, muitas vezes passando por cima de deliberações do legislador. Ela compromete a separação dos poderes, porque dilui a fronteira entre as funções judiciais e legislativas. E ela atenta contra a segurança jurídica, porque torna o direito muito menos previsível, fazendo-o dependente das idiossincrasias do juiz de plantão, e prejudicando com isso a capacidade do cidadão de planejar a própria vida com antecedência, de acordo com o conhecimento prévio do ordenamento jurídico”.
No mesmo sentido, defendendo uma postura de autocontenção do Poder Judiciário e criticando o ativismo judicial, Silva Ramos (2019), explica que o ativismo judicial resulta numa transbordamento das funções jurisdicionais e uma indevida invasão nas funções legislativa e administrativa e até na função do governo.
De igual modo, também o professor Gomes (2019) tece severas críticas ao ativismo judicial: “uma espécie de intromissão indevida do Judiciário na função legislativa, ou seja, ocorre ativismo judicial quando o juiz ‘cria’ uma norma nova, usurpando a tarefa do legislador, quando o juiz inventa uma norma não contemplada nem na lei, nem nos tratados, nem na Constituição.
Com efeito, em que pese os posicionamentos contrários acima expostos e fazendo um juízo de ponderação, verifica-se que na existência de situações excepcionais, da qual merece destaque o Estado de Coisas Inconstitucionais, implica numa releitura do princípio da tripartição de poderes, uma vez que o modelo de divisões estanques das funções estatais de legislar, julgar e administrar por vezes se mostra insuficiente para resolver crises estruturais, uma vez que uma situação de crise demanda para a sua solução um esforço conjunto de diversos órgãos estatais de modo a superar uma grave, permanente e generalizada violação de direitos fundamentais, que afeta a um número amplo e indeterminado de pessoas.
Nesse sentido, o que se pretende não é transformar a figura do juiz em gestor público ou legitimar interferências indevidas do Poder Judiciário nas funções atribuídas aos demais poderes da república, mas antes, buscar a definição de critérios para que o Poder Judiciário possa interferir quando verificada uma situação de omissão por parte dos demais órgãos que originem dificuldades de implementação de direitos constitucionalmente reconhecidos.
Nesses termos, a partir da análise desses aspectos, busca-se uma conciliação entre os princípios da separação dos poderes e da força normativa da constituição e da eficácia dos direitos fundamentais.
Com efeito, diante de um quadro generalizado e sistemático de violação dos direitos fundamentais, é preciso repensar a dinâmica de ação entre os três poderes, de modo que o Estado possa dar uma resposta mais efetiva diante de uma situação de Estado de Coisas Inconstitucionais, sem descurar é claro do respeito e independência recíprocos que deve vigorar entre os detentores do poder.
Nesse sentido, o entendimento do doutrinador Canotilho (1993, p. 71), onde “um sistema de governo composto por uma pluralidade de órgãos requer necessariamente que o relacionamento entre os vários centros do poder seja pautado por normas de lealdade constitucional (Verfassungstreue, na terminologia alemã). A lealdade institucional compreende duas vertentes, uma positiva, outra negativa. A primeira consiste em que os diversos órgãos do poder devem cooperar na medida necessária para realizar os objetivos constitucionais e para permitir o funcionamento do sistema com o mínimo de atritos possíveis. A segunda determina que os titulares dos órgãos do poder devem respeitar-se mutuamente e renunciar a prática de guerrilha institucional, de abuso de poder, de retaliação gratuita ou de desconsideração grosseira. Na verdade, nenhuma cooperação constitucional será possível, sem uma deontologia política, fundada no respeito das pessoas e das instituições e num apurado sentido da responsabilidade de Estado (statesmanship)”.
O tema é de interesse sobretudo em razão de posturas judiciais de autocontenção (judicial self restraint), a qual embora esteja alinhada a um conceito clássico de tripartição de poderes, em situações extremas como o ECI (Estado de Coisas Inconstitucionais), tal entendimento pode significar uma perpetuação de uma situação de violações sistemáticas e generalizadas aos direitos fundamentais de pessoas que se encontram em uma situação de vulnerabilidade, seja por se no caso de pessoas privadas de liberdade, ou dependentes de tratamento médico a ser fornecido pelo Estado ou como no caso julgado pela Corte Constitucional Colombiana em que os professores tiveram os seus direitos previdenciários desrespeitados.[3]
Com efeito, o fim da ditadura militar e a insurgência de um estado social em contraposição a um estado liberal, também contribui para esse redesenho do Poder Judiciário, uma vez que o amplo rol de direitos fundamentais previstos na Carta Cidadã não pode se transformar em promessas inconsequentes, sem descurar também do contexto histórico, uma vez que com a transição do Ditadura militar para a democracia, o Estado é constantemente demandado a garantir a implementação de direitos, a exemplo do dever de pagamento de indenizações àqueles que foram privados de exercer atividade profissional por conta de perseguições políticas, de acordo com o art. 8º do ADCT – (TAVARES, 2018, p. 35).
Cumpre destacar que o próprio conceito e definição do denominado Estado de Coisas Inconstitucionais contribuiu para identificação de situações de violações sistemática de direitos fundamentais e para a própria legitimidade ou não da intervenção do Poder Judiciário em tarefas pertencentes originariamente aos demais poderes.
A resolução dessas controvérsias não tem fórmula pronta e, muitas vezes, evidencia uma discussão mais profunda travada atualmente no Brasil: o ativismo do Poder Judiciário. Com conotações políticas, econômicas e sociais, o conceito de ativismo envolve a ideia da atribuição de pro atividade à atuação da Justiça, em perspectiva expandida – mas não contraditória – da estrita aplicação da lei.
É de conhecimento de todos a necessária proibição da atuação do juiz como administrador público. É indene de dúvidas que o Estado Democrático de Direito pressupõe a independência das funções estatais, de maneira que o Judiciário não pode e nem deve se imiscuir na esfera discricionária da atuação normativa dos demais Poderes. Nesse sentido, é salutar o autocontrole da jurisdição constitucional, pois não cabe ao Poder Judiciário interferir nos demais poderes, mas sim exercer esses controles somente quando preenchidos determinados requisitos e vislumbrada uma situação de omissão dos demais poderes constituídos e que dessa omissão resulte em supressão ou deficiência na implementação de direitos.
Com efeito, não se pode esquecer da força normativa da constituição, da qual decorre a eficácia vinculante dos preceitos constitucionais, os quais vinculam não somente o legislador ordinário quando da produção legiferante, mas também os órgãos do Poder Judiciário nas suas tarefas de interpretação e aplicação das normas jurídicas, devendo buscar sempre a máxima efetividade das suas disposições normativas.
No mesmo sentido, vejamos o entendimento de (Cunha Junior, 2015), in verbis: “A separação absoluta entre os Poderes não é só impossível – haja vista a unidade do Poder político e a tarefa comum a todos – mas também indesejada, de tal modo que distante de uma separação de Poderes, o que se tem, deveras, é uma verdadeira coordenação ou colaboração ou co-participação entre os Poderes em certas tarefas, onde um Poder participa, de forma limitada e secundária, da função de outro, que a conserva sua, ensejando um funcionamento harmônico ou uma colaboração recíproca, embora independente, na tarefa comum, tendo como objetivo o equilíbrio político, a limitação do Poder e, em conseqüência, a proteção da liberdade e a melhor realização do bem comum.”
Pode-se concluir, portanto, que o reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional pressupõe uma atuação ativista do Tribunal (uma espécie de Ativismo Judicial Estrutural), na medida em que as decisões judiciais vão induvidosamente interferir nas funções executivas e legislativas, com repercussões, sobretudo, orçamentárias.(CUNHA JUNIOR, 2015).
A título de exemplificação, o STF ao julgar a questão acerca da situação carcerária no Brasil, determinou dentre outras medidas a implantação das audiências de custódias e o fim do contingenciamento do fundo penitenciário.[4]
Nesse trilhar, é preciso buscar uma interpretação mais flexível em contraposição à clássica noção de separação de poderes e à postura de autocontenção para que possam ser admitidas como legítima a interferência do Poder Judiciário em atribuições originariamente típicas dos demais poderes constituídos, notadamente em uma situação de crise estrutural, na qual o Estado de Coisas Inconstitucionais se sobressai como um exemplo privilegiado, valorizando assim uma postura de coordenação e colaboração recíproca, de modo a ensejar um funcionamento harmônico das funções típicas do Estado em situações de crise.
De acordo com (Barroso), o ativismo judicial se caracteriza quando há a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas no texto constitucional e ao mesmo tempo há uma omissão legislativa, na própria declaração de inconstitucionalidade quando o judiciário adota critérios mais flexíveis para declarar uma norma inconstitucional, ou com a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas. Nesse último caso percebe-se claramente o caso das intervenções do Poder Judiciário nas situações que envolvem o Estado de Coisas Inconstitucional.
Nesse sentido, o Estado de Coisas Inconstitucional, em sua própria definição, ao demandar ações coordenadas de diversos órgãos públicos de modo a superar uma situação de crise estrutural, implica numa nova dimensão do ativismo judicial, uma vez que nessas situações o Poder Judiciário está autorizado a determinar uma série de medidas de cunho normativo e executivo, em nítida interferência nas atribuições típicas de outros poderes.
Verificamos até então o conceito e definição de Estado de Coisas Inconstitucional, fizemos um estudo sucinto acerca do princípio da separação de poderes, da efetividade dos direitos fundamentais e da força normativa da constituição, além de debatermos alguns posicionamentos doutrinários e jurisprudências mostrando pontos de vista contrários e favoráveis ao ativismo judicial em relação à postura de intervenção do Poder Judiciário nas atribuições típicas dos demais Poderes (Legislativo e Executivo).
A partir do texto ora trabalhado extrai-se que diante das novas demandas que tem batido à porta do Poder Judiciário, é preciso fazer uma releitura do princípio da separação de poderes diante de uma situação de violação sistemática de direitos fundamentais ( Estado de Coisas Inconstitucionais), de modo a termos uma postura mais proativa do Poder Judiciário em contraposição à postura clássica da autocontenção (judicial self restraint), uma vez que o fim da ditadura militar e a insurgência de um estado social exige um maior ativismo do Poder Judiciário para que o amplo rol de direitos fundamentais elencados na Carta Magna goze da maior eficácia possível.
É cediço que essa postura mais proativa do Poder Judiciário possibilita uma maior densificação dos princípios constitucionais, ao mesmo tempo em que confere maior efetividade aos direitos fundamentais. Por outro lado, não é qualquer intervenção que encontra justificada, devendo ser definidas balizas para que essa interferência não se
É necessário para que reste caracterizado o ECI uma violação contínua, sistemática e generalizada de um número indeterminado de pessoas e que essas violação seja resultado da omissão de diversos órgãos público, a demandar do Poder Judiciário uma solução estrutural com a determinação de implementação de medidas diversificadas por parte dos órgãos estatais omissões.
Nesses termos, em face do Estado Social, em que os direitos fundamentais necessitam em última análise prestações positivas do Estado, sobretudo em situações envolvendo o ECI (Estado de Coisas Inconstitucionais), é preciso uma releitura do princípio clássico da tripartição de poderes a demandar posturas mais enérgicas dos diferentes órgãos estatais, circunstancia em que a clássica divisão de poderes sofre certas mitigações.
Não se está aqui a propor uma sobreposição das funções estatais ou a defesa irrestrita do ativismo judicial, mas a repensar a postura dos órgãos estatais quando ocorre uma situações de violação sistemática de diversos direitos fundamentais, circunstancia que desafia a própria força normativa da constituição a demandar pronta intervenção para preservar a eficácia imediata dos direitos fundamentais.
Nessa esteira, para além de concluir por uma relativização do princípio da separação dos poderes, o estudo também nos autoriza a concluir que o Estado de Coisas Inconstitucional apresenta uma nova dimensão do ativismo judicial, uma vez que verificada uma situação de crise estrutural, o Poder Judiciário a estabelecer um conjunto de medidas estruturais cogentes que devem ser observados pelos demais poderes públicos em respeito aos direitos e garantias fundamentais quando de uma violação sistemática e generalizada de direitos fundamentais pertencente a um número amplo e indeterminado de pessoas.
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ISAAC VILLASBOAS DE OLIVEIRA. Graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia – UFBa, Pós Graduando em Direito Constitucional pela Fundação Luís Flávio Gomes. Defensor Público Federal em Guarulhos-SP.
[1]A Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça determina a implantação das audiências de custódias, de modo que o custodiado possa ser levado a presença de uma autoridade judicial no prazo de até 24 horas para verificação dos requisitos, pressupostos e legalidade da sua prisão. Nessa audiência devem estar presentes, também, um membro do Ministério Público e da Defensoria Pública. A audiência de custódia não se presta à análise das provas processuais, mas apenas acerca da legalidade da prisão.
[2]Conforme citação do Min. Relator Celso De Mello no Ag.Reg. no Recurso Extraordinário com Agravo: ARE 685230 MS julgado do Supremo Tribunal Federal. (STF, 2013).
[3]Sentencia, SU-559, de 6/11/1997. Na oportunidade, um grupo expressivo de professores tiveram os seus direitos previdenciários negados. Na oportunidade. Verificando uma situação generalizada dos direitos previdenciários desses professores, a Corte Constitucional Colombiana determinou uma série de medidas a serem adotadas por diversas autoridades públicas (ministros da Educação e da Fazenda e do Crédito Público, Diretor do Departamento Nacional de Planejamento, Governadores, Assembléias Legislativas, prefeitos e Conselhos municipais, de modo a que os professores tivessem resguardados os seus direitos previdenciários, de modo a que fosse superada a situação de Estado de Coisas Inconstitucional.
Graduação em Direito pela Universidade Federal da Bahia-UFBa, mestrando em Direito Administrativo pela PUC-SP. Prof da Faculdade Estácio de Sá. Defensor Público Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Isaac VIllasboas de. Estado de coisas inconstitucional e uma releitura do princípio da separação dos Poderes: estudo à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 ago 2019, 05:04. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53350/estado-de-coisas-inconstitucional-e-uma-releitura-do-princpio-da-separao-dos-poderes-estudo-luz-da-jurisprudncia-do-supremo-tribunal-federal. Acesso em: 23 dez 2024.
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