RESUMO: Muito se tem discutido na doutrina e na jurisprudência acerca da possibilidade de relativização do artigo 41 do Código de Processo Penal, de modo a possibilitar que os acusados em delitos cometidos em concurso de pessoas sejam denunciados e condenados sem a exigência dos requisitos legais, em decorrência da inerente dificuldade de prova nesses casos. O presente trabalho visa superar tal controvérsia, buscando delimitar se e em quais momentos a relativização seria possível, de modo a não ferir os direitos e garantias constitucionalmente estabelecidos.
Palavras-chave: Artigo 41; Código de Processo Penal; Concurso de pessoas; Relativização; Garantias Constitucionais.
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Nova criminalidade e seus caracteres; 3. A aplicação da Teoria do Domínio do Fato; 4. Enfrentamento da questão pelo ordenamento jurídico e pela jurisprudência; 5. Conclusão.
ABSTRACT: Doctrine and jurisprudence have discussed a lot about the possibility of relativization of Brazilian Code of Criminal Procedure’s article 41. This way, people accused in crimes committed by more than one person would be denounced and condemned without the observation of legal requirements, due to the inherent difficulty of proof in such cases. This study aims to overcome the controversy, seeking to delimit if and when it would be possible, in a way to avoid violating rights and guarantees established in the Constitution.
Keywords: Article 41; Code of Criminal Procedure; People cooperation; Relativization; Constitucional guarantees.
1 INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas, em decorrência do fenômeno da globalização econômica, surgiram novas espécies de delitos, para os quais o Direito Penal Clássico mostrou-se ineficaz no combate. São os crimes cometidos dentro de estruturas empresariais, e que lesam, em regra, bens jurídicos supra individuais.
A impossibilidade de responsabilização da própria pessoa jurídica nesses casos leva à tentativa de responsabilização das pessoas físicas envolvidas. Estas, contudo, envoltos pela complexa estrutura empresarial, não podem ter sua conduta facilmente individualizada em todas as circunstâncias fáticas, objetiva e subjetivamente consideradas, como exige o artigo 41 do Código de Processo Penal.
O resultado deste impasse é um dissenso doutrinário e jurisprudencial, que questiona se e quando é possível a relativização do artigo supracitado, bem como dos princípios constitucionais que garantem ao acusado a presunção de inocência e uma ampla defesa.
O presente artigo visa, a partir de um novo conceito de autoria, mais apropriado para este novo tipo de criminalidade, aferir em quais hipóteses e sob quais condições poderá ser aceita a denúncia pelo juiz, bem como prolatada sentença penal condenatória, quando se tratar de crime cometido por intermédio de pessoa jurídica.
Para tanto, utilizamo-nos não só de revisão bibliográfica sobre o tema, como também de pesquisa jurisprudencial nos Tribunais Superiores Brasileiros, para saber como a questão vem sendo tratada desde a promulgação da atual Constituição Federal, em 1988.
2 NOVA CRIMINALIDADE E SEUS CARACTERES
A criminalidade contemporânea, entendida como aquela inerente ao mundo globalizado da segunda metade do século XX e início do século XXI, passou a apresentar certas características próprias que a distingue da criminalidade clássica, na qual atentava-se contra o patrimônio individual de um sujeito determinado.
Conforme constatou Klaus Tiedemann (1975, p. 471), essa nova criminalidade relaciona-se, sobretudo, com novos crimes praticados contra um bem jurídico relativamente novo na análise doutrinária: a ordem econômica. Nesses casos, o bem jurídico lesado não era individual, mas sim de interesse coletivo: bens sociais e difusos. Os prejuízos passaram a ser da sociedade como um todo, incluindo o Estado, os particulares e o próprio sistema de organização e controle da economia.
Os crimes econômicos, entendidos como os lesivos à ordem econômica de uma nação, foram por Wilfried Bottke (1995, p. 640) definidos como aqueles que afetam “las condiciones essenciales de funcionamento del sistema económico respectivo y eventualmente dado al legislador penal em la Constituición”.
A superveniência desta nova criminalidade criou uma nova realidade no Direito Penal. Cresceu o número dos chamados crimes de perigo, que são aqueles nos quais não se exige a efetiva lesão de bem jurídico para consumação. Do mesmo modo, houve um crescimento dos chamados tipos penais abertos, e a tutela dos chamados bens coletivos passou a ser prioridade do Estado. Analisaremos aqui um pouco dessas novas características.
Os tipos penais abertos são aqueles cujo conteúdo não é exaustivamente especificado pelo legislador. Em outras palavras, são normas que permitem maior atuação do intérprete, que utiliza-se de outras fontes do direito para chegar a uma conclusão sobre a aplicabilidade do tipo. Exemplo – na seara do direito penal econômico – de tipo aberto é o artigo 4º, parágrafo único, da Lei nº 7.492/86, que tipifica o crime de “gestão temerária”, na qual não se delineia claramente o alcance da expressão.
Muito criticada é a utilização dos tipos penais abertos pela doutrina (SOUZA, 2012, p. 65), que acredita –majoritariamente- que essas normas violam os princípios da legalidade e da lesividade, bem como a própria segurança jurídica, devendo ser utilizadas somente em situações em que não haja outra forma de proteção do bem jurídico.
A criminalização do risco, concretizada pelos chamados crimes de dano, caracterizam-se pela simples criação de perigo para o bem protegido, sem produção de dano efetivo. Guillermo Yacobucci (2008, p. 39) e Arnaldo Quirino (2012, p.39) explicam que tal técnica legislativa é necessária em decorrência da realidade da sociedade de risco atual. O Direito Penal precisaria proteger preventivamente o bem jurídico, ou então não teria qualquer utilidade. Esse “adiantamento da aplicação da sanção” decorre da importância do bem jurídico sujeito à lesão, o qual pode refletir sobre diversos aspectos da vida em sociedade (GONÇALVES, 2014, p. 15).
Essa permissão, todavia, não significa que esses tipos devam ser tidos como regra. Pelo contrário, constituem exceção na construção dos tipos penais, principalmente por entrarem em linha de confronto com alguns princípios garantidores da justa persecução penal, nomeadamente por estabelecerem presunções de ofensa ao bem jurídico (ALMEIDA, 2012).
Por fim, temos a tutela intensiva em relação aos chamados bens supra individuais. A tutela desses bens se dá em decorrência da nova realidade jurídica do mundo contemporâneo, na qual o enfoque da proteção jurídica passou do indivíduo para o coletivo, ressaltando valores coletivos. Aliás, em última análise, não se pode negar que o ataque a bens coletivos também afetam o bem individual de cada cidadão, motivo que reforça a necessidade de sua tutela.
O emergir desses novos elementos tem relação direta com uma outra característica da criminalidade contemporânea: o crescimento da prática de delitos por intermédio de pessoa jurídica. Nesse sentido, Klaus Tiedemann (1993, p. 264) destaca que, em um estudo realizado em meados de 1979 nos Estados Unidos, constatou-se que as empresas estão consideravelmente relacionadas com a criminalidade econômica. Por esse mesmo motivo, o Conselho Europeu, em 1988, recomendou a adoção da punibilidade penal das empresas ou de sanções administrativas mais rígidas para conter essas condutas criminosas (GONÇALVES, 2014, p. 11).
O problema que surge, então, é o de que as pessoas jurídicas não podem, no Brasil, ser responsabilizadas por crimes diversos dos ambientais (conforme art. 225, §3 da Constituição Federal). Assim sendo, ocorre uma verdadeira “dispersão de responsabilidade” (MALAN, 2007, p. 453), na medida em que a complexa estrutura empresarial atrapalha sensivelmente a aferição das responsabilidades individuais.
Roberto Gullo (2005, p. 09), ao analisar essa realidade, assevera que esses novos delitos se caracterizam pela complexidade das condutas e pelas dificuldades processuais e criminológicas derivadas dessa complexidade. O reflexo dessas dificuldades acaba sendo o estado de impunidade, pois baixa é a quantidade de provas e, consequentemente de condenações derivadas desse tipo de delito.
Se não é possível, conforme exposto acima, responsabilizar penalmente a pessoa jurídica, a solução que resta é a identificação das pessoas físicas responsáveis pelo ilícito. Infelizmente, esta não tem sido uma tarefa fácil para as autoridades policias e judiciárias. Isto porque, nos casos de “crimes praticados por meio de empresa”, cujos órgãos de decisão são colegiados, é deveras tortuosa a missão de localizar o verdadeiro responsável pela conduta punível. Se a individualização da conduta de cada agente, em todas as suas circunstâncias fáticas, é tarefa hercúlea para o juiz em sede de instrução processual, mais ainda o é para o Ministério Público, que baseia-se majoritariamente por provas administrativas e cíveis para o oferecimento da denúncia.
Importante salientar que esse problema não existe nos casos em que todos os sócios, dirigentes ou administradores agem de forma consciente e em concurso de pessoas, visando a consecução da ação criminosa. Quando assim ocorrer, evidentemente é possível identificar os responsáveis, individualizando a conduta de cada um (KNOPFHOLZ, 2013, p. 145). O problema recai naqueles casos nos quais não existe um concurso claro de pessoas, nos casos em que a responsabilidade seria aparentemente da pessoa jurídica. É para estes casos que o presente trabalho busca uma solução (GONÇALVES, 2014, p. 32).
Tendo em vista essa nova realidade, necessário se faz a construção de um novo conceito de autor, que contemple as complexas circunstâncias da nova criminalidade e que possibilite a aferição da autoria individual de forma justa, mantendo a observância dos princípios constitucionais penais.
3 A APLICAÇÃO DA TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO
A Teoria do Domínio do Fato é uma elaboração superior às teorias até então conhecidas, que, conforme ressalta Bitencourt (2012, p. 488), logra êxito ao distinguir com clareza autor e executor, admitindo com facilidade a figura do autor mediato, além de possibilitar melhor compreensão da coautoria.
A teoria do domínio do fato é a corrente hoje preponderante do Direito Penal alemão (ROXIN, 2000, p. 129), tendo sido inicialmente elaborada por Hans Welzel, e mais tarde desenvolvida por doutrinadores como Gallas, Maurach, Roxin e Jeschek (BATISTA, 2004, p. 70).
Seguindo um critério denominado por Nilo Batista (2004, p. 69) de final-objetivo, essa teoria propugna que autor seria o indivíduo que, na concreta realização do fato típico, conscientemente o domina mediante o poder de determinar o seu modo, e inclusive, quando possível, de interrompê-lo.
Trata-se de teoria mista que conjuga critérios objetivos e subjetivos, segundo a qual autor, como sugere a denominação, é o indivíduo que detém o domínio da conduta delituosa, isto é, decide, em linhas gerais, o “se” e o “como” de sua realização (QUEIROZ, 2012, p. 321).
Seria parcialmente objetiva pois aquele que tem o domínio do fato pode atuar com a vontade que bem quiser e continuará tendo o domínio do fato: ele é detentor de importância material para realização do fato típico, e não pode modificar essa situação por simples ato de vontade. São as circunstâncias fáticas que determinam essa posição[1].
Subjetiva, por outro lado, pois essa posição de domínio só é concebível com a intervenção da consciência e vontade do agente (BATISTA, 2004, p. 71): não existe domínio do fato sem dolo, aqui compreendido como conhecer e querer os elementos objetivos que integram o tipo legal.
Em decorrência de seu caráter parcialmente subjetivo, temos que a teoria do domínio do fato somente se aplica aos delitos dolosos, isso porque somente nestes pode-se falar em domínio final do fato típico. Os delitos culposos, conforme assevera Bitencourt (2012, p. 489), caracterizam-se exatamente pela perda desse domínio.
Desta feita, a noção de domínio do fato (Tatherrschaft, em alemão) se constitui de uma (objetiva) disponibilidade da decisão sobre a consumação ou desistência do delito, que deve ser conhecida pelo agente (isto é, dolosa, subjetiva) (BATISTA, 2004, p. 71).
A adoção dessa teoria traz algumas implicações lógicas: a) seria autor quem executa, por sua própria mão, todos os elementos do tipo (quem mata, quem estupra, etc.); b) seria autor quem executa o fato utilizando outro como instrumento (autoria mediata); c) seria autor ou coautor quem realiza uma parte necessária da execução do plano global (domínio funcional do fato), ainda que não seja um fato típico em sentido estrito, mas participando da resolução criminosa (QUEIROZ, 2012, p. 321). Nos demais casos, haveria participação.
Conforme se observa, ao adotarmos essa teoria temos uma ampliação subjetiva da autoria, devendo ser considerado autor todo aquele que executa os elementos do tipo, que se serve de outrem para fazê-lo ou que realiza parte necessária da execução do plano. Em todos esses casos, a não-atuação do indivíduo inviabilizaria o êxito da ação criminosa. Logo, em todos eles temos autoria.
Por fim, emerge importante a observação de que o domínio do fato não deve ser tratado como um conceito indeterminado ou fixo. Trata-se de conceito aberto, admitindo como elementos o método descritivo e a integração do regulativo, devendo a expressão “regulativo” aqui ser interpretada como indicador de direção (BATISTA, 2004, p. 73). Assim sendo, quando da utilização desta, deve ocorrer um deslocamento do “direito da lei”, para o “direito dos juízes”, que deverão decidir com base no caso concreto, e não em mera abstração legal[2].
Roxin bem descreve esse fenômeno quando assevera que:
No podemos, sin conocer el contenido del parêntesis, sacar el concepto delante del parêntesis y despues aplicarlo a los casos concretos. Más bien tenemos que internarmos desde el principio em la diversidade de la matéria, registrar las distintas formas de la intervencion en el sucesso delictivo que se encuentran empiricamente y describir para cada grupo de casos individualmente como surte efecto la idea del domínio del hecho (2000. p.149).
Desta forma, cabe ao julgador, quando da apreciação individualizada de cada caso, aferir quem possuía o domínio do fato (nas suas diferentes formas de exprimir-se, haja vista tratar-se de conceito aberto) e quem não possuía, discernindo assim autores e partícipes.
Feita essa primeira construção, podemos agora tratar da manifestação da teoria do domínio do fato que mais importa para o objeto deste trabalho, qual seja, o domínio do fato em virtude de empresas, maquinarias ou estruturas de poder organizadas. Essa face da teoria até muito pouco tempo não era tratada pela doutrina, cabendo a Claus Roxin (2000. p.270) [3] trazer à tona a discussão sobre as hipóteses em que um sujeito oculto tem à sua disposição uma estrutura de poder, com a qual não mais necessita delegar ao executor do crime a decisão sobre a realização ou não do mesmo. Se esse executor por acaso decide não ir até o final com a conduta criminosa, outro o fará, tal a força da estrutura criminosa.
Levando em conta a teoria desenvolvida por Claus Roxin, trataremos a seguir do enfrentamento da questão pelo ordenamento jurídico brasileiro e pela doutrina pátria.
4 ENFRENTAMENTO DA QUESTÃO PELO ORDENAMENTO JURÍDICO E PELA JURISPRUDÊNCIA
O ordenamento jurídico brasileiro trata da questão em alguns dispositivos, como é o caso do art. 25 da Lei 7492/86, do art. 75 da Lei 8078/90 e do art. 73 §2º da Lei 4728/65. Nestes, o que ocorre é uma presunção relativa de responsabilidade dos sócios, administradores e diretores, a partir da constatação – através da análise do ato constitutivo da empresa - de que o agente se envolve com as atividades que deram origem à conduta ilícita (PRATES, 2000, p. 32).
Muitas vezes o que se observa na prática é uma não correspondência do que está disposto no ato constitutivo e o que de fato ocorre na prática. Dentro do complexo sistema empresarial contemporâneo, nem sempre o controle de determinada atividade pode ser em sua totalidade atribuído a determinada pessoa (ALMEIDA, 2012, p.83). Desse modo, o que se teria seria uma verdadeira responsabilização objetiva dos sócios/administradores, que pelas simples circunstancias do cargo que ocupam, estariam sujeitos à reprimenda penal.
O entendimento doutrinário tem sido majoritariamente neste sentido, considerando essa presunção relativa de responsabilidade do sócio verdadeira afronta aos princípios constitucionais vigentes. Para Cezar Roberto Bitencourt, “isso seria uma afronta aos princípios relativos à culpabilidade de uma forma direta, (...) colocando em risco as garantias individuais tão arduamente conseguidas no Estado de Direito” [4] [5].
Alexandre Knopfholz traz uma observação de extrema importância, quando assevera que “diante da inconteste dificuldade de identificação de autoria em crimes praticados no seio de uma empresa, são oferecidas denúncias genéricas, sem se individualizar a conduta de cada sócio, diretor ou gestor de uma pessoa jurídica (2013, p. 27-39). Para ele, toda essa problemática gira em torno da possibilidade ou não de apresentação (e aceitação) de denúncias genéricas, que vão de encontro ao disposto no artigo 41 do CPP[6].
O que acaba ocorrendo no plano fático é a colocação do máximo possível de autores possíveis na peça acusatória, esperando-se a fase instrutória do processo para que o juiz de fato afira se há ou não autoria efetiva. Esse modus operandi, todavia, acaba por prejudicar gravemente o réu, haja vista ter a peça acusatória a prerrogativa de delimitar o objeto do provimento jurisdicional. Prejudicada fica, portanto, toda a instrução criminal, bem como o direito do indivíduo à ampla defesa e ao contraditório.
A nosso ver, sendo genérica a denúncia, inepta também o será, devendo ser rejeitada (art. 395, I do CPP) e, não o sendo, será capaz de ensejar nulidade do processo, com base no art. 564, III, a, do CPP (MALAN, 2007, p. 469).
Alexandre Knopfholz (2013, p. 199-203) traz algumas alternativas à persecução criminal deste tipo de crime, de modo a não violar princípios constitucionais. Primeiramente, necessário que ocorram inquéritos policiais também para investigar estes delitos econômicos. Isso porque, via de regra, as provas obtidas nesses casos são oriundas de processos administrativos ou cíveis, o que prejudica a análise penal da conduta. Outra opção é a modernização e criação de novas técnicas de investigação deste tipo de crime, de modo a contemplar a atual complexidade dos crimes de natureza econômica. Exemplificando, ele cita (2013, p. 202) “interpretações telefônicas, quebra de sigilo bancário e fiscal e mesmo perícias elaboradas por experts na área econômica”.
No tangente à condenação, a necessidade de lastro probatório é ainda maior. Necessários não somente os indícios de autoria e materialidade (como na denúncia), mas prova cabal da participação do réu no ilícito. A condenação por mera constatação de confluência entre função exercida e ato constitutivo de sociedade empresária configuraria verdadeiro absurdo penal, que não pode ser aceito por configurar clara inconstitucionalidade[7].
Observa-se, portanto, qual a solução dada pelo ordenamento jurídico e pela doutrina para a questão da responsabilidade individual nos crimes cometidos por intermédio da pessoa jurídica. De forma a tornar a análise mais completa, passemos agora ao exame do tratamento dado à questão pelos Tribunais Superiores brasileiros.
Da análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, se depreende que a questão da aceitação de denúncia genérica em sede de crimes praticados no âmbito da pessoa jurídica (em especial, os crimes econômicos) ainda é bastante controversa.
Analisando os julgados posteriores à promulgação da Constituição Federal, o que se observa é que, no período imediatamente subsequente a 1988, a denúncia genérica era comumente aceita, sob o pretexto da dificuldade de averiguação da responsabilidade individual e pela necessidade de evitar a impunidade.
O então Ministro do STF, Dr. Carlos Ayres Britto[8], em julgamento realizado em 2003, asseverou que: “esse entendimento jurisprudencial é principalmente resultante da dificuldade de se pormenorizar condutas que, em geral, são provenientes de decisões internas por parte dos administradores” (GONÇALVEZ, 2014, p. 2014).
A partir de 2005, contudo, o STF modificou sem entendimento majoritário, definindo então que a aceitação de denúncias genéricas violaria expressamente o artigo 41 do CPP, bem como seria inconstitucional em face dos princípios da ampla defesa e da dignidade da pessoa humana[9] [10].
Por fim, desde 2008, o mesmo tribunal tem adotado posição (majoritária, havendo posições em contrário) favorável às denúncias genéricas em relação a crimes de autoria coletiva, de modo a relativizar a disposição do Código de Processo Penal. Tem exigindo, para acolhimento da denúncia, tão somente a indicação de vínculo do acusado com a pessoa jurídica, sem averiguar a fundo as circunstâncias fáticas que levariam à autoria do indivíduo.
A posição do Superior Tribunal de Justiça, até meados de 2005, 2006, era também favorável às denúncias genéricas[11], inexigindo-se individualização da conduta nos crimes dessa natureza. Contudo, observou-se que, após esse período, os Ministros passaram endurecer o procedimento, e apesar de manterem certa flexibilidade quanto à necessidade de provas de autoria do fato, a posição dominante passou a ser no sentido de rejeitar denúncias genéricas[12].
Conclui-se que, não obstante não haja entendimento pacífico sobre o tema, tanto o Supremo Tribunal Federal como o Superior Tribunal de Justiça tem optado pela relativização do artigo 41 do Código de Processo Penal. O grau de relativização, contudo, varia, adotando a Corte Maior posicionamento muito mais flexível. O Superior Tribunal de Justiça, por outro lado, mitiga essa relativização, não hesitando em rejeitar denúncias que não demonstrem um mínimo de vínculo da conduta do indivíduo com a ação criminosa.
6 CONCLUSÃO
No atual momento, ainda não existe entendimento pacífico – seja na doutrina ou na jurisprudência – sobre a possibilidade de relativização do artigo 41 do Código de Processual Penal para a recepção da denúncia genérica. A mesma discussão não ocorre quanto ao momento da condenação, sendo considerada certa a necessidade de vasto lastro probatório para fundamentar a sentença penal condenatória.
Para os fins desse trabalho, consideramos imprescindível a individualização da conduta de cada indivíduo nos crimes de autoria coletiva, de modo a demonstrar o domínio do fato que cada um tinha. Pensar de modo diverso seria legitimar a violação não só da lei ordinária processual, como também dos princípios constitucionais do contraditório, da ampla defesa, da presunção de inocência e, em última análise, da dignidade da pessoa humana.
Não se olvide, contudo, da real necessidade de punição dos agentes criminosos nesses casos. Para isso, conforme exposto no texto, soluções alternativas devem ser utilizadas, como a criação de novas técnicas de investigação ou a possibilidade de instauração de inquérito policial neste tipo de crime. Não se pode, contudo, ignorar e transgredir direitos e garantias constitucionais para alcançar esse objetivo.
REFERÊNCIAS
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[1] Para Nilo Batista, “essa posição (de dispor sobre o fato) é tão real e objetiva quanto real e objetivo é o poder do maquinista sobre a composição ferroviária que dirige”, (2004. p. 70).
[2] Roxin, discorrendo sobre o tema em sua obra, nos mostra que “hay que encontrar um procedimento com ayuda del cual quepa complementar em su contenido el concepto de domínio del hecho de uma manera que por una parte dé cuenta de los cambiantes fenómenos vitales, y por outra parte también pueda alcanzar una gran medida de determinación (...) Alcanzar estos tan fines tan distintos sólo es posible concibiendo el domínio del hecho como concepto – permítaseme la expresión – “aberto”(...) cabe hablar aqui de concepto “aberto” en el sentido de que no va a ser posible una “indicación exhaustiva de sus elementos en todo caso imprescindibles” y de que no va a estar cerrado a admitir nuevos elementos de contenido.
[3] Se alde así a los supuestos que em el posguerra han ocupado em cresciente medida a la jurisprudência y que se caracterizan por que ele sujeto de detrás tiene a su disposicion uma “maquinaria” personal (casi siempre organizada estatalmente) com cuya ayuda puede cometer sus crímenes sin tener que delegar su realizacion a la decision autónoma del ejecutor. ROXIN, Claus. Autoría y Domínio del hecho em Derecho Penal. 7º ed. Madrid, Marcial Pons.
[4] BITENCOURT, Cezar Roberto. SCHMIDT, Andrei Zenkner. Direito Penal Econômico Aplicado. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 10 e 194.
[5] SILVA, Marco Antônio Chaves da. A autoria coletiva em crimes tributários. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 69.
[6] O artigo 41 do CPP dispõe que: “a denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas.”
[7] O art. 93, IX da Constituição Federal estabelece a necessidade de fundamentação de todas as decisões judiciais.
[8] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 83.369/RS, Relator: Min. CARLOS AYRES BRITTO, PRIMEIRA TURMA. Julgado em: 21/10/2003. DJ em 28/11/2003. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=79336>. Acesso em: 24.jun.2014.
[9] GONÇALVES, op.cit., p. 59.
[10] HC 84.436/SP (Relator: Min. Celso de Mello – Segunda Turma – j. 05/09/2006 – Dj. 28/03/2008); HC 89.105/PE (Relator: Min. Gilmar Mendes – Segunda Turma – j. 15/08/2006 – Dj. 06/11/2006); HC 85.948/PA (Relator: Min. Carlos Britto – Primeira Turma – j. 23/05/2006 – Dj. 15/12/2006)
[11] RHC 5.701/RS (Relator: Min. Fernando Gonçalves – Sexta Turma – j. 10/12/1996 – Dj. 03/03/1997); RHC 6.889/SP (Relator: Min. Anselmo Santiago – Sexta Turma – j. 17/11/1997 – Dj. 19/12/1997); RHC 6.619/SP (Relator: Min. Cid Flaquer Scartezzini – Quinta Turma – j. 05/02/1998 – Dj. 15/06/1998); RHC 7.378/SP (Relator: Min. Felix Fischer – Quinta Turma – j. 28/04/1998 – Dj. 29/06/1998); RHC 10.163/PA (Relator: Min. José Arnaldo da Fonseca – Quinta Turma – j. 07/12/2000 – Dj. 05/03/2001); RHC 14.891/SP (Relator: Min. Hamilton Carvalhido – Sexta Turma – j. 20/04/2004 – Dj. 21/06/2004);
[12] HC 62.786/SP (Relator: Min. Haroldo Rodrigues – Sexta Turma – j. 15/09/2009 – Dj. 05/10/2009); HC 129.809/CE (Relator: Min. Og Fernandes – Sexta Turma – j. 09/10/2012 – Dje. 19/10/2012); RHC 26321/MG (Relator: Min. Og Fernandes – Sexta Turma – j. 24/09/2013 – Dje. 09/10/2013);
Advogado. Bacharel em Direito pela UFBA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Felipe Almeida Garcia. A definição da responsabilidade individual nos crimes de autoria coletiva na etapa de recebimento da denúncia e para a condenação Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 set 2019, 04:42. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53394/a-definio-da-responsabilidade-individual-nos-crimes-de-autoria-coletiva-na-etapa-de-recebimento-da-denncia-e-para-a-condenao. Acesso em: 23 dez 2024.
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