RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo analisar o julgamento do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 271.286/RS, a fim de extrair conclusões acerca da efetivação do direito à saúde em cotejo com a insuficiência financeira e orçamentária estatal. Nesse interim, serão destacados os elementos que geram a responsabilidade estatal pelas prestações relativas ao direito à saúde, bem como, no caso concreto, a definição estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal.
Palavras-chave: Direito Constitucional, Direito à Saúde, Mínimo existencial
Sumário: 1 Introdução; 2 Apresentação do caso; 3. Análise da teoria; 4 Efetivação do direito à saúde; 5 Considerações Finais. Referências
O objetivo do presente trabalho é o de estudar o direito à saúde, e mais especificamente, o fornecimento de medicamentos por via judiciária às pessoas carentes e portadoras de HIV, sob a perspectiva de diversos autores, dentre eles Humberto Ávila e Germano Schwartz.
Este estudo será dividido em três pontos. O primeiro se dedicará à apresentação do caso, momento no qual serão descritas as minúcias da situação fática subjacente. O segundo buscará analisar o substrato teórico aplicado ao caso concreto. O terceiro, por sua vez, buscará tratar da efetivação do direito à saúde.
Trata-se do já consagrado Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 271.286 do Rio Grande do Sul, que teve como relator o Ministro Celso de Mello, parte agravante o Município de Porto Alegre e parte agravada Diná Rosa Vieira. O resultado do julgamento, por unanimidade, foi no sentido de negar provimento ao agravo regimental.
A decisão agravada, que não conheceu o recurso extraordinário, manteve o acórdão emanado do Tribunal de Justiça local, que apoiado no art. 196 da Constituição da República, incumbiu ao recorrente (município de Porto Alegre), solidariamente com o Estado do Rio Grande do Sul, do fornecimento gratuito dos medicamentos necessários ao tratamento da AIDS, nos casos que envolvessem pacientes destituídos de recursos financeiros e que fossem portadores do vírus HIV.
O recorrente alegou que a decisão violou o art. 167, I da Constituição Federal, que veda o início de programas ou projetos não incluídos na lei orçamentária anual, afirmando também ser de iniciativa do Poder Executivo as leis que estabelecem os orçamentos anuais e que nessa lei deveria ser previsto o orçamento da seguridade social (art.165, §5º, III, CF/88), bem como que a Lei 9.313/96, art. 2º remete sua eficácia à norma regulamentar.
Aduziu ainda que a decisão agravada, afrontaria o princípio da separação de poderes e o art. 198, parágrafo único, da Constituição Federal, que responsabiliza as três esferas federativas (União, Estados e Municípios) pelo financiamento, ações e serviços de saúde.
Os argumentos, como não foram no caso, são considerados improcedentes, pois, estão em desconformidade com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Ademais, a mera alegação de desrespeito a um preceito constitucional não bastaria para legitimar o acesso a via recursal extraordinária.
O Rel. Min. Celso de Mello, em seu voto enfatiza que:
“(...) entre proteger a inviolabilidade do direito a vida e à saúde, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado a todos pela própria Constituição da República (art. 5º, caput e art.196), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo – uma vez configurado esse dilema – que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: aquela que privilegia o respeito indeclinável à vida e a à saúde humana(...)”
Destaque-se que tal jurisprudência permanece atual, uma vez que, recentemente, o Supremo Tribunal Federal fixou tese acerca do tema, reiterando a responsabilidade solidária dos entes da Federação em ações que tratem sobre medicamentos:
(...) Os entes da Federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde e, diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro. (...) STF. Plenário. RE 855178 ED/SE, rel. orig. Min. Luiz Fux, red. p/ o ac. Min. Edson Fachin, julgado em 23/5/2019 (Info 941).
A partir dos estudos feitos sobre a obra “Teoria dos Princípios” de Humberto Ávila, segue-se ao estudo do postulado normativo aplicativo da ponderação.
Os postulados normativos são normas que estruturam a aplicação de outras normas, são, portanto, metanormas, pois se situam no nível aplicativo.
Muito comum é a confusão de princípios e regras, normas que segundo Ávila são de primeiro grau, com os postulados normativos que seriam de segundo grau.
Os princípios são normas finalísticas por excelência e objetivam um estado ideal de coisas. O princípio não determina imediatamente as condutas a serem seguidas para a concretização desse fim. Ainda os princípios, quando a luz do caso concreto, entrarem em contradição deverão ser ponderados de forma que o princípio com maior dimensão de peso incida. Ávila (2010) mostra o conceito de princípio:
“Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária para sua promoção.” (ÁVILA, 2010, p. 78/79)
Por sua vez, as regras são normas que descrevem imediatamente um comportamento a ser adotado na sua integralidade. Quando duas regras, no plano abstrato, estiverem em antinomia, uma delas poderá ser excluída do ordenamento. Desse modo afirma Alexy (2010):
Um conflito de regras somente pode ser solucionado se se introduz, em uma das regras, uma clausula de exceção, que elimine o conflito, ou se pelo menos se uma das regras for declarada inválida”. (ALEXY, 2010, p. 92)
Humberto Ávila(2010,p.52) faz uma crítica a essa afirmativa trazida por Alexy (2010), defendendo que as regras, que anteriormente convivendo em harmonia no mundo abstrato, podem a luz do caso concreto entrar em colisão e então essas regras poderão e deverão ser ponderadas sem que nenhuma perca sua validade.
Feita a distinção e conceituação de princípios e regras, pode-se agora ter uma visão mais clara do motivo que sustenta a separação dos postulados destas normas de primeiro grau (princípios e regras). Os postulados são normas que vão criar mecanismos para a aplicação de outras normas, assim ensina Ávila (2010):
Os postulados funcionam diferentemente dos princípios e das regras. A uma, porque não se situam no mesmo nível. A duas, porque não possuem os mesmos destinatários: Os princípios e as regras são primariamente dirigidos pelo poder público e aos contribuintes; os postulados são frontalmente dirigidos ao intérprete e aplicador do direito. A três, porque não se relacionam da mesma forma com outras normas: os princípios e as regras, até porque se situam no mesmo nível do objeto, implicam-se reciprocamente, quer de modo preliminarmente complementar (princípios), quer de modo preliminarmente decisivo (regras); os postulados, justamente porque se situam num metanível, orientam a aplicação dos princípios e das regras sem conflituosidade necessária com outras normas (ÁVILA, 2010, p. 124).
Passa-se agora a analisar o postulado que mais interessa no presente trabalho, que é o da ponderação.
A ponderação é a técnica usada para dirimir o conflito de normas, ela atribui uma dimensão de peso para as normas em conflito para que concretamente uma venha a prevalecer, decidindo o caso. Tanto nas regras quanto nos princípios a ponderação será feito no caso concreto, já que em tese todas as normas estão em harmonia no mundo abstrato. Só é razoável falar em ponderação partindo-se da premissa que as normas não são absolutas, tanto os princípios quanto as regras são passíveis de relativização concretamente. Assim entende Alexy (2010):
Se existem princípios absolutos, então, a definição de princípios deve ser modificada, pois se um princípio tem precedência em relação a todos os outro em caso de colisão, até mesmo em relação ao princípio que estabelece que as regras devem ser seguidas, nesse caso, isso significa que sua realização não conhece nenhum limite jurídico, apenas limites fáticos. Diante disso, o teorema da colisão não seria aplicável. (ALEXY, 2010, p. 111)
Podem-se apontar três etapas para estruturar a ponderação; a primeira é reconhecer no ordenamento jurídico quais normas podem ser aplicadas no caso, ou seja, estabelecer quais os objetos de sopesamento que o intérprete irá utilizar concretamente. Ávila (2010, p.146) chama essa etapa de preparação da ponderação.
Em segundo lugar, o intérprete irá relacionar esses objetos, criando argumentações para que se possa realizar posteriormente a relação com o caso concreto. A essa etapa Ávila (2010, p.146) denomina realização da ponderação.
A terceira etapa trata-se de realizar a ponderação com relação aos fatos reais que norteiam o caso em análise, é o momento do sopesamento das normas, em que uma delas prevalecera, sendo que todas permanecerão com validade para além do caso. Ávila (2010, pg.146) denomina essa etapa reconstrução da ponderação.
Passemos ao próximo capítulo, onde será utilizado o postulado da ponderação e suas etapas a luz do caso concreto.
No caso em análise, pode-se observar a colisão de alguns princípios. O conflito se dá entre o interesse financeiro do Estado e o direito público subjetivo à saúde.
O município de Porto Alegre, ao negar o fornecimento do medicamento, alega em sua defesa que a decisão recorrida fere o princípio da separação dos poderes, além de não responsabilizar as outras esferas federativas à prestação dos medicamentos solicitados. Contrapondo esta alegação, em seu voto, o ministro relator Celso de Mello reconhece que o município de Porto Alegre, solidariamente com o estado do Rio Grande do Sul, tem a obrigação de fornecer gratuitamente os medicamentos para o tratamento da AIDS para pessoas carentes.
O direito subjetivo a saúde qualifica-se como um direito fundamental, constitucionalmente tutelado e é indispensável para a efetivação do direito à vida. Sendo assim o poder público deve zelar pela saúde da população, deve agir para estabelecer as condições mínimas existenciais, pois a saúde desta é de interesse supra do Estado.
É um direito, como disse Morais:
(...) ligado a um aspecto comunitário, ou seja, a um Estado que busca a construção de uma ordem social e jurídica com fundamento na solidariedade, um Estado de ação positiva, promocional de cunho transformador.(1997, APUD SCHWARTZ, 2001,p.54)
Ao ponderar o direito fundamental a saúde e o interesse financeiro público, neste caso concreto, não se vê alternativa a não ser dar uma maior dimensão de peso ao direito à saúde, já que:
a hipótese de não existência de previsão orçamentária não pode ser alegada pelo estado, até porque não se pode antever com eficácia as necessidades da população, ou ainda, de outra banda, não se pode favorecer a omissão do ente responsável, premiando- o por sua negligência. (SCHWARTZ, 2001, p.80)
Isso porque se trata de direito ínsito ao mínimo existencial, decorrente da eleição do princípio da dignidade da pessoa humana como núcleo axiológico de nosso sistema normativo. Nessa linha Sarlet e Figueiredo (2008):
Premissa central da análise que se passa a empreender é a circunstância de que não se poderá desconsiderar que o direito à saúde, como os demais direitos fundamentais, encontra-se sempre e de algum modo afetado pela assim designada reserva do possível em suas diversas manifestações, seja pela disponibilidade de recursos existentes (que abrange também a própria estrutura organizacional e a disponibilidade de tecnologias eficientes), seja pela capacidade jurídica (e técnica) de deles se dispor (princípio da reserva do possível). Por outro lado, a garantia (implícita) de um direito fundamental ao mínimo existencial opera como parâmetro mínimo dessa efetividade, impedindo tanto omissões quanto medidas de proteção e promoção insuficientes por parte dos atores estatais, assim como na esfera das relações entre particulares, quando for o caso. Em outras palavras e apenas retomando aqui o que já havia sido anunciado, em matéria de tutela do mínimo existencial (o que no campo da saúde, pela sua conexão com os bens mais significativos para a pessoa) há que reconhecer um direito subjetivo definitivo a prestações e uma cogente tutela defensiva, de tal sorte que, em regra, razões vinculadas à reserva do possível não devem prevalecer como argumento a, por si só, afastar a satisfação do direito e exigência do cumprimento dos deveres, tanto conexos quanto autônomos, já que nem o princípio da reserva parlamentar em matéria orçamentária nem o da separação dos poderes assumem feições absolutas. Nesta linha de entendimento, além de significativa doutrina, também já se tem pronunciado a jurisprudência, inclusive no âmbito do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal.
Prevalecendo desta forma o respeito não só a saúde, mas também à vida e à dignidade da pessoa humana, evitando penalizar o cidadão pela falta de vontade política por parte dos poderes públicos que esquecem, muitas vezes, sua função.
A tarefa de sobrepesar normas é árdua e requer do intérprete um amplo conhecimento jurídico, fundamentação e ética. A luz do caso concreto é que os conflitos ganham vida e no caso estudado prevalece o princípio que melhor supre as finalidades da constituição brasileira que tem como objetivo-mor a vida.
O estudo do caso trouxe questionamentos acerca dos recursos destinados à saúde, se eles seriam suficientes para suprir as necessidades da população brasileira ou se eles estariam sendo devidamente aplicados, ilustrando a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
A Corte, em julgados antigos e recentes, tem se inclinado na efetivação do direito à saúde, em detrimento de considerações acerca da capacidade financeira estatal, mormente diante da aplicação da doutrina do mínimo existencial.
REFERÊNCIAS:
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Theorie der Grundrechte/Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2006
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 10ªEd. São Paulo: Malheiros, 2010.
SARLET, Ingo Wolfgang e FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 24, jul. 2008. Disponível em: <http://revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao024/ingo_mariana.html>. Acesso em: 11 set. 2019.
SCHWARTZ, Germano. Direito à saúde: efetivação em uma perspectiva sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
Bacharela em Direito pela Universidade do Extremo Sul Catarinense. Pós-graduada em Direito Processual Civil pela Uniderp Anhanguera. Pós-graduanda em Direito Administrativo pela PUC Minas. Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SAVI, Jéssica Campos. Direito à saúde na perspectiva do postulado da ponderação: estudo de caso Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 271.286/RS Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 set 2019, 04:39. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53426/direito-sade-na-perspectiva-do-postulado-da-ponderao-estudo-de-caso-agravo-regimental-no-recurso-extraordinrio-n-271-286-rs. Acesso em: 23 dez 2024.
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